C&D Constituição & Democracia Nº 5 (Junho de 2006) O QUE O POVO DEVE FAZER PARA LEGISLAR

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CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JUNHO DE 2006

Nº 5 JULHO DE 2006 R$ 2,00

C&D Constituição & Democracia Direito de família

Mãe só tem uma? pg 16 Entrevista

Lavenére e o não ao impeachment de Lula

pg 8

Campanha política

Quem não deve não teme

pg 22

Morales e a Democracia Boaventura de Sousa Santos

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ela terceira vez na história do país (1937, 1969, 2006), a Bolívia acaba de decretar a nacionalização dos seus recursos naturais. A medida terá, para já, um impacto económico significativo apenas no caso do gás natural, de que a Bolívia detém as segundas maiores reservas do continente. Qualquer democrata que se preze – ou seja, alguém para quem a democracia deve ser levada a sério, sob pena de ser descredibilizada e sucumbir facilmente a aventuras autoritárias – deverá saudar esta medida. Por três razões principais. Em primeiro lugar, porque ela foi uma das promessas eleitorais que levaram ao poder o Presidente Evo Morales. Se as promessas eleitorais não forem cumpridas, o que tem vindo a ser recorrente no continente, a democracia representativa deixará a prazo de ter qualquer sentido. Acontece que, neste caso, o não cumprimento da promessa eleitoral

seria particularmente grave porque os bolivianos mostraram de forma eloquente (com o sacrifício da própria vida) em várias ocasiões nos últimos anos a sua determinação em porem fim à pilhagem dos seus recursos: os protestos massivos entre 2000 e 2005, que levaram à demissão de dois presidentes e culminaram com o referendo vinculante de Julho de 2005, em que 89% dos participantes se pronunciou a favor da nacionalização dos hidrocarbonetos. A segunda razão para saudar esta medida é que se a democracia não é sustentável para além de certo limite de exclusão social, podemos dizer que a Bolívia está próximo desse limite, já que cerca de metade da população vive com menos de um euro e meio por dia. O empobrecimento agravou-se nas duas últimas décadas com o neoliberalismo, cujo cerco à sobrevivência do país não cessa de se apertar. Com a recente assinatura dos tratados bilaterais de livre comércio dos EUA com a Colômbia e o Peru, a ex-

portação de produtos agrícolas (sobretudo soja) para os países vizinhos terminará. É certo que a nacionalização não basta, porque se bastasse as nacionalizações anteriores teriam resolvido os problemas do país. Deve ser complementada com uma política progressista de redistribuição social e de investimento na saúde, na educação, nas infraestruturas básicas, na segurança social. Se tal complementaridade ocorrer, o contexto para a nacionalização não podia ser melhor, dado o aumento do preço dos recursos energéticos. Neste domínio, a democracia e a justiça social têm outro ponto de contacto: é moralmente repugnante que as empresas energéticas colham frutos fabulosos – a vender o barril de petróleo acima de 70 dólares com base em contratos de exploração em que o preço de referência é muito inferior a 20 dólares – enquanto o povo morre de fome e de doenças curáveis. A terceira razão para saudar o decreto do Presidente Morales é que esta nacionali-

zação é muito moderada (não envolve expropriação) e visa repor a segurança jurídica, que deve ser um dos pilares da democracia. As privatizações da década de 1990, além de terem sido ruinosas para o país, foram ilegais, como acabam de declarar os tribunais, já que os contratos de exploração não foram aprovados pelo poder legislativo, como manda a Constituição. Em termos jurídicos, a nacionalização é condição mínima para que o governo da Bolívia possa renegociar os contratos com as empresas energéticas de modo mais justo, a fim de que estas renunciem aos seus superlucros (não aos seus lucros) para que o povo empobrecido possa viver um pouco melhor. Perante a força destas razões, cabe perguntar pelo porquê da reacção hostil dos países muito mais ricos e aparentemente muito mais democráticos que a Bolívia. Será que quando a democracia interfere com os nossos negócios são estes que prevalecem?

Congresso

O que o povo deve fazer para legislar

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EDITORIAL

Observatório da Constituição e da Democracia

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ão é possível construir legitimamente a soberania sem pensar a participação popular. Muito embora um senso comum indique que os mecanismos de participação popular direta sejam obstáculos a medidas de soberania - especialmente em momentos críticos em que o debate sobre a violência não pode mais ser posto em segundo plano - é preciso reconstruir, criticamente, esta oposição entre democracia e soberania. E, no centro desta questão, situa-se uma idéia: a democracia, quando debate os limites e desafios de nossas liberdade e igualdade, pergunta-nos a todo o momento qual a medida de nossa participação na construção das normas que nos regem. É esta pergunta que conduz o quinto número deste caderno Constituição & Democracia, em questões que vão de temais mais gerais, tais como a cidadania percebida como condição para efetivo exercício de direitos humanos, a recusa legítima dos povos da França e Holanda de ratificarem uma proposta de Constituição Européia construída em um processo que não privilegiou a participação popular, a necessidade de que a sociedade venha participar diretamente da construção das normas que regulamentam a prestação dos serviços de saúde e mesmo as formas de participação popular na iniciativa de leis - este último um caminho ainda por ser trilhado de modo mais efetivo. A autoria construída pela cidadania, o protagonismo popular, já deu exemplos históricos de sua importância e ainda hoje é a fonte de uma resistência legítima aos ataques que são feitos hoje às garantias constitucionais - ambos temas tratados na entrevista concedida por Macelo Lavenére, sem dúvida um observador e protagonista privilegiado da nossa história político-constitucional mais recente. O debate central deste número aponta para a idéia de que o poder não apenas emana do povo e não é somente exercido em seu nome de forma representativa pelos agentes eleitos, mas extrai toda a sua legitimidade de mecanismos de participação popular. Estes mecanismos podem permitir, se utilizados, que nos vejamos a nós mesmos como autores do nosso direito. Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito Faculdade de Direito - Universidade de Brasília

EXPEDIENTE Caderno mensal concebido, preparado e elaborado pelo Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito (Faculdade de Direito da UnB - Plataforma Lattes do CNPq). Coordenação Alexandre Bernardino Costa Cristiano Paixão José Geraldo de Sousa Junior Menelick de Carvalho Netto Miroslav Milovic Comissão de redação Giovanna Maria Frisso Janaina Lima Penalva da Silva Leonardo Augusto Andrade Barbosa Marthius Sávio Cavalcante Lobato Paulo Henrique Blair de Oliveira Ricardo Machado Lourenço Filho Integrantes do Observatório Adriana Andrade Alexandre Araújo Costa Aline Lisboa Naves Guimarães Álvaro Luiz Ciarlini André Rufino do Vale Artur Coimbra de Oliveira Augusto dos Santos de São Bernardo Carolina Pinheiro Damião Azevedo Daniel Augusto Vila-Nova Gomes

Daniel Barcelos Vargas Fábio Comelli Dutra Fabio Costa Sá e Silva Francisco Schertel Ferreira Mendes Guilherme Cintra Guimarães Gustavo Costa Henrique Smidt Simon Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros Juliana Amorim de Souza Juliano Zaiden Benvindo Laura Schertel Ferreira Mendes Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira Marina Cruz Vieira Villela Marcelo Casseb Continentino Maurício Azevedo Araújo Paulo Sávio Peixoto Maia Pedro Diamantino Ramiro Nóbrega Sant´anna Renato Bigliazzi Rochelle Pastana Ribeiro Vitor Pinto Chaves Projeto editorial R&R Consultoria e Comunicação Ltda Editor responsável Luiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS)

Contato observatorio@unb.br www.unb.br/fd

CIDADANIA É O EXERCÍCIO DOS DIREITOS HUMANOS Eduardo Carlos Bianca Bittar – Livre-Docente e Doutor, Professor Associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Advogado e Secretário-Executivo da Associação Nacional de Direitos Humanos (ANDHEP – 04 NEV/USP) PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA SAÚDE: QUEM DIZ O QUÊ Mariana Siqueira de Carvalho - Professora colaboradora – DIREB/FIOCRUZ, Mestre em Direito pela UnB, especialista em Direito Sanitário – CEPEDISA/USP e integrante do grupo de pesquisa 06 Sociedade, Tempo e Direito ENTREVISTA COM O PRESIDENTE DA COMISSÃO DE ANISTIA DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA MARCELO LAVENÈRE TRÊS RAZÕES CONTRA O IMPEACHMENT DE LULA Alexandre Bernardino Costa - Professor da Faculdade de Direito da UnB, coordenador de Extensão – FD/UnB e integrante dos grupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e Direito Achado na Rua Guilherme Cintra Guimarães - Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante do 08 grupo Sociedade, Tempo e Direito e advogado da União AS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA Maurício Azevedo de Araújo – Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante 10 dos grupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e Direito Achado na Rua e advogado REJEIÇÃO DA CARTA EUROPÉIA PELA FRANÇA E PELA HOLANDA Laura Schertel – Mestranda em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante do grupo de 12 pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e Gestora Governamental DIREITO INTERNACIONAL E A HUMANIZAÇÃO Antônio Augusto Cançado Trindade – Professor Titular do Instituto de Relações Internacionais da 14 UnB e ex-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos MÃE NÃO TEM SÓ UMA Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros – Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB e integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito

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OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO PARTICIPAÇÃO POPULAR NO PROCESSO LEGISLATIVO Leonardo Augusto de Andrade Barbosa – Professor do curso de pós-graduação em Processo Legislativo da Câmara dos Deputados, Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito, analista legislativo na Câmara dos 18 Deputados e advogado OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO DECISÃO DO STF SOBRE CRIMES HEDIONDOS Ana Luiza Pinheiro Flauzina – Mestra em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Controle Penal e Sistema de Justiça, Diretora do EnegreSer e advogada Fabiana Costa Oliveira Barreto – Mestra em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Controle Penal e Sistema de Justiça, e Promotora de Justiça (MPDFT) Marina Quezado Grosner – Mestra em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante do grupo 20 de pesquisa Sociedade, Controle Penal e Sistema de Justiça e advogada

Sindicato dos Bancários de Brasília

Editor assistente Rozane Oliveira Diagramação Gustavo Di Angellis Ilustrações Flávio Macedo Fernandes

PCC: MOVIMENTO SOCIAL OU ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA? José Geraldo de Sousa Junior – Professor da Faculdade de Direito da UnB, integrante dos grupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e Direito Achado na Rua e da Comissão de Defesa da República e da Democracia, do Conselho Federal da OAB Cristiano Paixão – Professor da Faculdade de Direito da UnB, coordenador do Programa de Pósgraduação – FD/UnB, integrante dos grupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e Direito 03 Achado na Rua e procurador do Ministério Público do Trabalho (Brasília-DF)

SindPD-DF

OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS OS DESAFIOS DA CAMPANHA: “QUEM NÃO DEVE NÃO TEME” Sara Côrtes – Professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Mestra em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante do grupo de pesquisa Direito Achado na Rua e Secretária da AATR – Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia e Juliana Neves Barros – Advogada da AATR – Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia 22 MORALES E A DEMOCRACIA Boaventura de Sousa Santos – Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

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Estratégia e mobilização popular: quatro passos No intuito de potencializar os resultados e a mobilização popular em torno da Campanha, foram utilizadas concomitantemente 4 estratégias que se complementam: 1) estratégias jurídicas/institucionais (envio aos 417 municípios baianos da Petição da Cidadania Ativa aos promotores de Justiça pedindo que garantissem o direito de acesso às contas públicas municipais nos meses de abril e maio), 2) formação e mobilização, 3) informação e mídia e de 4) sistematização/diagnóstico, obtendo resultados em todas estas dimensões e em diversas regiões e municípios do Estado da Bahia. Abaixo, os principais resultados: Promotores de 412 municípios baianos receberam a “Petição da Cidadania Ativa” para que atuem junto às prefeituras e câmaras garantindo a efetiva abertura das contas ao público, como reza a Constituição Federal (CF) no seu artigo 31 parágrafo 3º; MUNICÍPIOS ATINGIDOS 118 municípios diretamente pela Campanha (aproximadamente 28% dos municípios da Bahia); ATIVIDADES DE FORMAÇÃO: 366 pessoas e 58 municípios (aproximadamente 49% dos municípios foram atingidos com atividades de formação); CARAVANAS E REUNIÕES -20 municípios (aproximadamente 17% dos municípios); LANÇAMENTOS – 40 municípios (aproximadamente 34% dos municípios); 01 LANÇAMENTOS ESTADUAL e 05 regionais: 510 pessoas; 377 correios eletrônicos; Promotorias de Justiça de 36 municípios RETORNARAM INFORMAÇÕES à secretaria da Campanha (aproximadamente 31% dos municí-

A fiscalização tem grande potencial emancipatório se a consideramos na sua dimensão capacitante, o que se tem chamado de empoderamento dos cidadãos e grupos

pios atingidos); Contatos de outros estados: 06 Estados (Pernambuco, São Paulo, Minas Gerais, Ceará, Pará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Goiás); Com relação ao ACESSO ÀS CONTAS MUNICIPAIS, temos que em 48 municípios a Campanha conseguiu diagnosticar como se deu o acesso (uma amostra de aproximadamente 40% dos municípios atingidos); Desta amostra total de 48 municípios: em 31 municípios as contas públicas foram disponibilizadas para o acesso de grupos e cidadãos, ou seja, em 26% da amostra houve acesso às contas públicas, sendo que destes, em 11 municípios as contas foram disponibilizadas mas com dificuldades de acesso aos grupos e cidadãos; em 17 municípios baianos as contas não foram disponibilizadas aos grupos e cidadãos, ou seja, em 14% da amostra; em 70 municípios ainda não houve retorno dos dados sobre a disponibilidade das contas; Em 16 municípios houve DENÚNCIA AO MINISTÉRIO PÚBLICO ou por que não houve acesso às contas ou porque foram encontradas irregularidades (em 14% da amostra). Apesar de constar na Constituição Federal desde 1988, as experiências vivenciadas atestam que até hoje o procedimento de livre acesso às contas municipais é muito incipiente e distante da realidade pois, em mais de 50% dos municípios diretamente acompanhados pela Campanha, ou as contas não foram disponibilizadas ou houve dificuldade no acesso. Ou seja, em mais da metade, absurdamente, o ato de “pedir as contas” soa como informação nova e inusitada. Revelou-se flagrante a falta de informações sobre direitos pertinentes à participação popular no poder público, especialmente sobre o acesso às contas públicas, sendo que na maioria dos municípios a fiscalização nunca havia sido realizada. Esbarrou-se no autoritarismo e no discurso de descrença e deslegitimação da atuação popular pelas autoridades; na resistência das instituições públicas em travar um diálogo mais direto com o cidadão comum, insistindo ainda no intermédio de “assessorias”; no burocratismo e tecnicismo estatal; na forte cultura da impunidade; no predomínio da lógica político-partidária na

Revelou-se flagrante a falta de informações sobre direitos pertinentes à participação popular no poder público, especialmente sobre o acesso às contas públicas forma de intervenção no poder local, dentre outros. Esbarrou-se enfim na surpresa pela exigência de transparência e quase impossibilidade de responsabilização. Por outro lado, deparamo-nos também nesse processo com oportunidades tais como o acúmulo de experiências, a existência de vários grupos de cidadania já consolidados e o próprio reconhecimento do cenário de atuação. De forma organizada ou como iniciativas isoladas, pessoais, observamos que muitas(os) cidadãs(ãos) já experimentam no seu dia-a-dia as vicissitudes e desafios do acesso às contas públicas e que vêem na Cam-

panha uma forma de reforço político para sua atuação local. A conclusão que chegamos com a leitura dos dados é a de que é possível fiscalizar as contas públicas, é possível ter acesso e é possível compreender as contas indicando mau uso e desvio de recursos públicos, especialmente em municípios com menos de 20 mil habitantes (cerca de 4.000 municípios no Brasil tem menos de 20 mil habitantes). É possível ter apoio do Ministério Público para ter acesso ás contas. Mas é difícil! É preciso organizar-se em grupo e persistir mais de um ano, no intuito de “educar” o gestor público e seus funcionários além de chamar atenção dos cidadãos, organizações e universidades para a importância do ato de buscar saber como, onde e para que estão sendo utilizados os recursos públicos em nosso país. Nesse sentido, invocando a bandeira “contra o desperdício da experiência”, este ano Lançamos a Campanha “Quem Não deve teme” ano II – 2006 acreditando que não é possível pensar e praticar a democracia sem controle social do Estado. Maiores informações no site www.controlepopular.org.br.


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OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Os desafios da campanha: "Quem não deve não teme" ção tem grande potencial emancipatório se a consideramos na sua dimensão capacitante, o que se tem chamado de empoderamento dos cidadãos e grupos. Do mesmo modo temos que as contas públicas são, em verdade, o orçamento público que foi efetivamente executado; logo a fiscalização possibilita uma leitura política dos gastos e revela as prioridades do gestor, desmascarando discursos vazios do marketing político. Vemos ainda que a fiscalização e divulgação ampla dos dados mesmo que posteriormente podem vir a influenciar na redistribuição de recursos servindo também de efeito pedagógico para o gestor público que deve se acostumar com a prática da fiscalização (e assim com o combate ao desvio de recursos públicos) e avaliação (e assim com combate o mau uso do recurso público) pela sociedade civil. Sendo assim, a Campanha propõe, combatendo a pobreza política combater também a material, além de buscar mudar a cultura política do clientelismo e da compra de votos na Bahia, pois o cidadão bem informado faz o julgamento político nas urnas. A iniciativa esteve voltada diretamente para o exercício do direito de acesso às contas públicas pelo(a) cidadão(ã) - garantido pelo artigo 31 § 3ºº da Constituição Federal de 1988 -, alcançou mais de 100 municípios, através de uma extensa rede de parceria e articulação entre entidades da sociedade civil e movimentos sociais.

Sara Côrtes e Juliana Neves Barros

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omo vemos ao redor a democracia não concretizou o seu potencial de realização de justiça social. Apesar disso, reforçamos aqui a posição de Boaventura Santos que aposta na democracia: “Eu, que vivi durante alguns anos em período de fascismo, nunca critico a democracia por ser uma fraude, critico por ser pouca. Eu quero é mais.” Pretendemos neste texto dar notícia da constituição de um novo tipo de movimento social denominado de “movimento cidadão”, composto dos chamados movimentos populares, organizações voluntárias, sejam Ongs ou grupos de mútua ajuda ou associativismo de bairro e comunitários, que reivindicam o controle social do Estado. Importante afirmar na linha do Direito Achado na Rua que nosso interesse aqui gira menos em torno das formas de direito e mais nas práticas jurídicas do Estado e da sociedade civil no que tange a transparência e responsabilização, partindo da hipótese central, qual seja, do controle social como estratégia eficaz para estimular a emancipação social e qualificar a democracia participativa. Neste contexto se insere a experiência da campanha de articulação e mobilização para democratização do acesso às contas públicas municipais na Bahia denominada de Campanha “Quem Não Deve Não Teme” que acaba de entrar no seu segundo ano e de ganhar o Prêmio Nacional de Direitos Humanos 2006 concedido pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), na categoria Ações e Experiências. O prêmio foi entregue dia 06 de abril, durante a abertura, na Câmara, do 14º Encontro Nacional do MNDH, uma organização com 400 entidades filiadas, que conta com o apoio da Comissão de Direitos Humanos e Minorias. A Campanha é uma iniciativa da

AATR - Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia, Cáritas Brasileira/Regional Nordeste 3, CAA - Centro de Assessoria do Assuruá, ESPASSO - Espaço de Participação Social, FASE/Bahia - Federação dos Órgãos para a Assistência Social e Educacional na Bahia e MOC – Movimento de Organização Comunitária, todas organizações não-governamentais que atuam em diferentes regiões do Estado da Bahia

na área de Políticas Públicas e Controle Social do Poder Público, com apoio da CESE - Coordenadoria Ecumênica de Serviço, Ministério Público do Estado da Bahia, Controladoria Geral da União e Associação Bahiana de Imprensa. Esta experiência tem como fundamento principal o enfrentamento da pobreza política e material através da formação política/capacitação e redistribuição de riqueza. A fiscaliza-

A premiada Campanha "Quem Não Deve Não Teme" busca a democratização do acesso às contas públicas municipais na Bahia

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PCC: movimento social ou organização criminosa? José Geraldo de Sousa Junior e Cristiano Paixão

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o desenrolar dos acontecimentos recentes de São Paulo, as primeiras reações se dividiram entre a perplexidade e as respostas habituais nas situações de crise no sistema criminal-penitenciário. A recuperação das matérias jornalísticas do período revela a descrição do cenário espetacular de “barbárie”, “pânico”, “anormalidade”, “ataques”, “rebeliões”, “medo”, “execuções”, “atentados”, “caos” e “incompetência”, que estimula as respostas simplistas de incremento da lei e da ordem e suas alternativas repressivas. E é na esteira desse modelo de reação que surgem os primeiros “pacotes” legislativos, sob a forma de projetos de lei e de propostas de emenda à Constituição, todos em variante criminalizadora. Foram apresentados ou já tramitavam, somente no Senado, vários projetos que formam um amplo catálogo de medidas punitivas ou restritivas: alteração do Código de Processo Penal para disciplinar a reparação de danos decorrente da prática de infração penal; alteração do Código Penal para aumentar o limite de cumprimento de penas privativas de liberdade; alteração do Código Penal para aumentar prazos prescricionais; alteração da legislação de execução penal para criar regime penitenciário de segurança máxima, instalar bloqueadores de celulares, instituir inteligência penitenciária, implantação de presídios federais, deslocamento de presos entre unidades da federação. Há projetos que prevêem a indisponibilidade de bens de criminosos; que estipulam ser falta grave a posse e utilização de telefones celulares ou outros equipamentos de comunicação por presos no interior de estabelecimentos penais, com a previsão de isolamento do faltoso; propõe-se que o juiz possa interrogar o réu ou inquirir detentos na condição de testemunha por meio de videoconferência; procura-

se instituir a “delação premiada” também para o condenado, com a possibilidade de redução de pena; requer-se a extinção da possibilidade do livramento condicional ao condenado reincidente em crime punido com reclusão. Entre as propostas de emendas à Constituição, há as que postulam reestruturar órgãos de segurança pública; tornar obrigatória a aplicação de recursos na área de segurança pública; dispor sobre a aplicação da receita resultante de impostos, para a organização e manutenção dos órgãos de segurança pública. Porém, entre várias alternativas, também aparecem as que chamam a questão da segurança para o campo de revisão de seus paradigmas numa sociedade democrática, desmilitarizada e que aceite discutir a passagem de um sistema repressivo para um modelo restitutivo de juridicidade. É preciso agir não só no campo criminal, mas também no campo social. Cabe, antes de tudo, lançar a discussão acerca da comunicação que teria sido estabelecida entre as forças de segurança do Estado e o comando do PCC. Uma conceituada revista de circulação mensal lançou edição extra com matérias que dariam sustentação ao reconhecimento de caráter político à construção do PCC, designando uma história externa de confronto com o estado por melhores condições carcerárias e uma história interna cheia de vítimas na luta pelo poder. Este tipo de interpretação abre ensejo para por em relevo um aspecto pouco analisado a partir dos acontecimentos. Teria o governo negociado com o PCC? Há na política espaço ético para negociar com facção criminosa? A mesma revista publicou um estatuto atribuído à organização, que é arrematado com um claro apelo político: “Conhecemos a nossa força e a força de nossos inimigos. Poderosos, mas estamos preparados, unidos e um povo unido jamais será vencido. LI-

BERDADE, JUSTIÇA E PAZ!!!”. Aliás, essas inscrições apareceram em cartazes toscos em várias cenas captadas por jornais e televisões. Antes que se possa responder à questão colocada com base na determinação teórica da legitimidade política de uma facção criminosa, um olhar ficcional sobre o mesmo tema pode abrir perspectivas inesperadas. Notícias sobre negociação Em seu último livro, no qual leva ao limite as circunstâncias que derivam das intermitências da morte, o prêmio Nobel José Saramago trabalha a situação difícil na qual um governo, numa ficção narrativa, põe em causa ter que negociar com facção criminosa. Deparando-se com a possibilidade de abrir interlocução com emissários de associação de delinqüentes, o Estado, que “não faz acordos com máfias”, pelo menos não “em papéis com assinaturas reconhecidas por notário”, se vê na contingência de estabelecer acordo de cavalheiros, para ceder sem que pareça ter cedido, até chegar ao ponto inexorável de não poder oferecer alternativas credíveis e ser forçado a avançar num terreno moralmente cedível, diz Saramago, quando o pragmatismo toma conta da batuta e dirige o concerto sem atender ao que está escrito na pauta. Nesta situação, avalia o escritor, o mais certo é que a lógica imperativa do aviltamento venha a demonstrar, afinal, que há ainda degraus éticos a descer. O Estado declarou não fazer acordo com bandidos. Pelo menos não

com formalidade legal ou com registros notariais. Mas, segundo noticiou a imprensa, uma plataforma conciliatória foi estabelecida para estancar a crise e reposicionar as partes em conflito: a hierarquia gerencial do aparato governamental e a facção criminosa. Tudo isso à custa de uma contabilidade macabra erguida como fachada para que o que aconteceu por trás dela se desobjetive numa responsabilidade difusa. A ficção parece antecipar aquilo que a teoria tenta explicar. A legitimidade de interlocução que atribuiu aos movimentos sociais um protagonismo apto a postular direitos e a designá-los politicamente pressupõe mais que a organização e a revolta. Ela pressupõe um sentido emancipatório para a ação. Pressupõe, para aludir ao que indica Boaventura de Sousa Santos – o autor sempre presente na página 24 de Constituição & Democracia –, uma disposição solidária para romper o círculo egoísta do fascismo social e uma determinação para ingressar num campo experimental de novo estatuto comunitário no qual os direitos possam se realizar, não como apropriação possessiva, mas como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade. Uma facção criminosa não é um movimento social. Porém, é fundamental afirmar: pertencendo ou não a organizações criminosas, os presos, em sua condição de exclusão, conservam uma reserva inalienável de cidadania, que deve encontrar formas de reconhecimento e de exercício.


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Freio necessário à lógica que orienta o sistema penal

Cidadania é o exercício dos direitos humanos Eduardo Carlos Bianca Bittar

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que é cidadania? Esta parece ser uma questão de fundamental importância para a construção do Estado Democrático Direito. Decorrência da tradição moderna, a idéia de cidadania trouxe importantes aquisições para a experiência histórica das democracias, mas em parte não se anelou à realização de uma certa fatia das preocupações que hodiernamente incomodam as práticas políticas. Num conceito mais político-jurídico tradicional, ser parte de um Estado soberano, cuja adesão lhe concede um certo status, bem como votar e poder ser votado, são as únicas condições para a definição de cidadania. Assim, estariam em jogo duas dimensões: pertencer ou não a uma soberania e ser por ela reconhecido como parte de seus cidadãos, o que passa por critérios de aceitação definidos nas esferas político-diplomática e cívico-jurídica (ius soli, ius sanguini); estar no gozo dos direitos políticos, podendo votar (cidadania ativa) e ser votado (cidadania passiva) nos processos de participação política.

É certo que estes conceitos são funcionais, e remontam a uma tradição histórica moderna e, sobretudo, a uma tradição jurídica que procura tratar de modo técnico a problemática da cidadania. Não assumindo, portanto, esta leitura ou este viés técnico da questão, e procurando conferir-lhe um tratamento diferenciado daquele que se pretende em linhas dogmáticas, verte-se a reflexão para pensar a pragmática da cidadania, seus problemas e suas implicações sócio-econômicas. Aliás, há um certo uníssono na discussão da idéia de cidadania que permite dizer que suas insuficiências precisam ser revistas: “Todos os exemplos aferidos, da história recente e atuais, apontam para a insuficiência do critério da cidadania. Ou seja, embora ninguém negue que a implantação e o respeito aos direitos civis seja desejável em si, eles são nem indispensáveis nem suficientes como condição para a paz entre maioria e minoria. Podemos apontar para algumas deficiências graves embutidas no próprio conceito de cidadão, e que parecem decorrer da definição abstrata do

cidadão: 1) Esta definição não deixa espaço entre a demanda da assimilação e a ameaça da exclusão; ela é cega às diferenças concretas entre os cidadãos, elimina a possibilidade de transformar essas diferenças – que em outras sociedades impossibilitam a convivência – em um inocente estilo de vida; 2) A teoria da cidadania não pode dar conta das oposições dentro da sociedade à integração de novos candidatos à cidadania, porque não entende o nacionalismo do mainstre a m. Daí a vulnerabilidade de sociedades modernas e superficialmente civilizadas ao racismo, anti-semitismo etc.” (Jaime Pinsky, Carla Bassanezi Pinsky, História da cidadania, 2003, p. 343-373). Quando se insere a perspectiva de análise na dimensão do que é o social, deve-se pensar o quanto as implicações entre as estruturas formais das promessas do jurídico e do político se traduzem em eficazes atendimentos a mandamentos de direitos humanos. Pensar estas questões reclama que se tome uma outra atitude diante da conceituação tradicional, no sentido de alargar sua significação, para abranger uma dimensão

mais ampla de abordagem e reflexão. A ampliação dos horizontes conceituais da idéia de cidadania faz com que se postule, sob este invólucro, a definição de uma realidade de efetivo alcance de direitos materializados no plano do exercício de diversos aspectos da participação na justiça social, de reais práticas de igualdade, no envolvimento com os processos de construção do espaço político, do direito de ter voz e de ser ouvido, da satisfação de condições necessárias ao desenvolvimento humano, do atendimento a prioridades e exigências de direitos humanos, etc. Deve-se, portanto superar a dimensão acrisolada do tradicionalismo que marca a concepção conceitual de cidadania, no sentido da superação de suas limitações e deficiências. No lugar da clausura conceitual tradicional, alargando-se a experiência e o sentido histórico-genético que possuía o termo em seu princípio, o que se propõe é a expansão do sentido em direção às fronteiras das grandes querências sociais, dos grandes dilemas da política contemporânea, dos grandes desafios histórico-realizativos dos direitos humanos.

Imerso nas contradições latinoamericanas, o sistema penal brasileiro está comprometido com essa problemática. A atuação de nosso sistema penal traz para a contemporaneidade vestígios de um direito de ordem privada, de base corporal, típica do período colonial. O número de mortes no sistema, que superam o de regiões em guerra, indicam a continuidade da metodologia truculenta de um aparato que nunca conseguiu se divorciar de suas origens situadas na relação casa-grande/senzala. De acordo com o jornalista Luis Mir, em 2002 as polícias do Rio de Janeiro e de São Paulo liquidaram 1.289 pessoas, enquanto os policiais estadunidenses mataram 367 cidadãos em todo o território dos EUA. Entre dezembro de 1987 e novembro de 2001, ainda de acordo com esse autor, 3.937 crianças e adolescentes foram mortas por ferimentos à bala. No mesmo período, em Israel, os embates levaram 467 adolescentes de 18 anos à morte. A grande questão que emerge da leitura desses dados é a existência de um sistema penal de caráter exterminador que serve para a garantia dos interesses de uma elite que não pretende partilha. Diante do abismo social que se cria e sem uma política capaz de manter o quadro das assimetrias, a violência aparece como o recurso a para a conservação do poder. O discurso que sustenta a torto e a direita a existência de um sistema penal falido perde a credibilidade. O sistema penal funciona e funciona bem. Funciona para os fins para os quais foi concebido: manter as pessoas onde estão. É instrumento que serve para a garantia da propriedade e dos espaços de poder das classes hegemônicas, por meio de política intimidatória que pune com rigidez os delitos praticados pelos segmentos vulneráveis. Nessa dinâmica, o sistema constrói o controle diferencial dos indivíduos e grupos como ingrediente fundamental de sua estruturação. De acordo com Nilo Batista, há duas vertentes claras que orientam a atuação

desse aparato. De um lado estão os consumidores em potencial, autores de delitos de trânsito, lesões corporais, crimes contra o erário e ambientais. Para esses há uma legislação que visa evitar a qualquer custo o aprisionamento como punição. A criminalização tangencial desses desses indivíduos serve principalmente como forma de mascarar o alto grau de seletividade do sistema. De outro medidas impostas por Juizados Especiais a um processamento que dificilmente chega à punição efetiva, os clientes vips são poupados. Para os historicamente marginalizados, a narrativa segue a dinâmica oposta. Os crimes das classes vulneráveis no país contam com uma legislação que elege a prisão como o melhor. O Estado se comunica com os marginalizados pelo sistema penal. Para esses indivíduos a restrição é a regra, a partir de um discurso que trata da periculosidade e da defesa social. São os verdadeiros destinatários do empreendimento penal. A lei de crimes hediondos foi editada justamente para dar conta dessa demanda da globalização, com seus excessos humanos não aproveitáveis. É importante ter o controle, construindo uma barreira para o mercado de trabalho desses segmentos, num círculo vicioso funcional aos interesses do capital. Os indivíduos devem ser aprisionados e mantidos apartados do contato social pelo perigo simbó-

lico que representam ao status quo. O interesse em manter os indivíduos aprisionados está, portanto, pouco relacionado aos nobres interesses da segurança pública. De acordo com estudo realizado pelo Ilanud (Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente), que analisou a realidade da população carcerária das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro no período de 1983 a 2003, a lei de crimes hediondos é um fator fundamental para o aumento da população carcerária. A manutenção desse tipo de instrumento legal em nosso ordenamento jurídico não está posta, obviamente, em decorrência da função alardeada que deveria cumprir. É necessário atentar para o fato de que esse tipo de incongruência está sustentada por uma rendosa “indústria do controle do crime” que se beneficia enormemente desse tipo de política criminal. O mercado de segurança privada que vende uma espécie de proteção ilusória, mas muito lucrativa, é o maior responsável pelas altas cifras desse empreendimento no país. De acordo com Luis Mir, em 1999 enquanto vários setores da economia tiveram uma redução em sua margem de lucros, o aparelho de segurança privada teve um crescimento em torno de 4 a 5% ao ano em seus lucros, que de R$ 6,9 bilhões em 1994,

saltaram para R$ 14,5 bilhões em 2001. O Brasil já é o terceiro mercado de carros blindados do mundo, contando com um mercado de segurança privada que representa 6,6% de seu produto interno bruto. Com esse tipo de desempenho econômico,esse é um terreno que só tende a hipertrofiar, com apoio estatal. Tendo em vista toda essa problemática, a decisão do STF quebra com a lógica dominante que investe no sistema penal como alternativa para a gerência dos conflitos sociais. Mas nada de precipitações. Não se trata de mudança de rumo em instância conservadora do Judiciário brasileiro. A votação monstra a fragilidade desse tipo de entendimento. O fundamental é a declaração pública de que as práticas do sistema devem se aproximar minimamente do discurso jurídico-penal. Afinal, um empreendimento que vende a ressocialização dos criminalizados como produto final de sua atuação não pode apartá-los em definitivo do contato social, negando-lhes a possibilidade de uma aproximação gradual de acordo com o que está expresso na lei. O sistema penal serve à neutralização de poucos e, na sua movimentação, cobra em vidas o custo dessa fatura. É instrumento que serve à segurança particular de classes hegemônicas no país, nada mais. Se ainda é difícil vislumbrar uma quebra efetiva dessa agenda criminalizante e, principalmente, uma nova orientação para os processos de controle social que se divorciem do, é importante que os sujeitos desse empreendimento possam ao menos pautar as incongruências de sua movimentação. Nesse sentido, a decisão do STF se alinha com propostas contra-hegemônicas, com leitura que aproxime as funções declaradas das realmente cumpridas pelo sistema penal no país. Estamos diante de importante rodada nessa queda de braço que opõe privilégios e democracia, contra o elefante branco em que se converteu o aparato de controle penal no Brasil.

Fundamentalmente, o Estado se comunica com a horda de marginalizados que vaga pelo país pela via do sistema penal. Para esses indivíduos a restrição com o contato social é a regra, a partir de um discurso que trata da periculosidade e da defesa social. São eles os verdadeiros destinatários do empreendimento penal


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OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO

Decisão do STF sobre crimes hediondos Ana Luiza Pinheiro Flauzina, Fabiana Costa Oliveira Barreto e Marina Quezado Grosner

A

lei nº 8.072 de 25 de julho de 1990 construiu a noção e disciplinou o cumprimento de penas dos chamados crimes hediondos. De acordo com esse instrumento legal, os crimes de homicídio qualificado ou homicídio quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, latrocínio, extorsão qualificada pela morte, extorsão mediante seqüestro, estupro, atentado violento ao pudor, epidemia com resultado morte, falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais e genocídio são considerados crimes hediondos, sendo a eles equiparados os ilícitos da prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo. Dentre todas as restrições impostas aos indivíduos condenados pela prática de quaisquer dos atos descritos acima, a impossibilidade de progressão de regime, tendo em vista o fato de que a pena deve ser cumprida integralmente em regime fechado, sustenta debates de fôlego entre juristas e leigos. No último dia 23 de janeirofevereiro, um importante capítulo dessa controvérsia tomou assento no STF (Supremo Tribunal Federal). A partir do julgamento de um Habeas Corpus, os ministros, numa votação apertada de seis votos a cinco, consideraram inconstitucional o artigo da lei de crimes hediondos que impedia a progressão de regime prisional. A partir desse entendimento, após o cumprimento de um sexto da pena total da condenação, avaliado seu bom comportamento, o indivíduo pode obter a progressão de regime. É importante compreender que a decisão do STF não tem uma aplicação genérica nos casos concretos. O Tribunal apenas prevê essa possibilidade, sendo facultado a cada indivíduo

pleitear essa prerrogativa junto às instâncias competentes. Ou seja, a progressão de regime não se dá de maneira automática, sendo avaliada caso a caso, quando demandado o Judiciário. Tendo em vista o grande impacto dessa decisão entre os setores mais conservadores da opinião pública, o Ministério da Justiça enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei que enrijece os termos do que fora firmado pelo Tribunal superior. Nessa proposta, o tempo para a progressão de regime passaria de um sexto da pena, para um terço no caso dos réus primários e metade para os reincidentes. Antes de tudo, é importante compreender que toda essa polêmica que circunda o debate sobre a lei de crimes hediondos está inserida num pano de fundo mais amplo que alcança as diversas formas de se conceber o próprio sistema penal. De um lado, a percepção que hegemoniza o entendimento sobre os fenômenos criminais sinaliza para a existência de um mecanismo de controle social que, apesar de imerso numa espécie de crise estrutural, funciona no “combate” à criminalidade em benefício do bem comum. Esse tipo de olhar sustenta a construção de agendas criminalizantes cada vez mais severas, que tem na lei dos crimes hediondos seu exemplo mais ilustrativo. As campanhas de lei e ordem que se valem da difusão de um medo generalizado entre a população, especialmente pela mídia televisiva, divide o mundo entre o bem e o mal, dentro de um espetáculo em que os bandidos e seus hediondos crimes são as principais vedetes. Desse ângulo, o sistema penal, a serviço dos “indivíduos de bem”, encontra o caminho livre para se agigantar na produção de leis que criminalizam as mais variadas condutas, em decisões judiciais que tendem a decretar e manter o encarceramento e num incremento ostensivo dos aparatos manuseados

pelas instâncias policiais. O sistema é, assim, tomado como um mecanismo necessário ao convívio social harmonioso, operando com legitimidade no controle dos incidentes criminais. Caminhando na contramão desse lugar comum, há um entendimento que enxerga essa relação entre a criminalidade e o sistema penal pelo seu avesso. O foco se desloca do delito e do delinqüente para o próprio sistema. O que está colocado no centro da análise é a forma como o sistema penal se movimenta, entendendo-o como um instrumento que constrói e formata a criminalidade. A partir dessa nova abordagem, uma das principais conclusões a que se chegou é que a seletividade é uma marca estrutural dos sistemas penais. Em todo o mundo, os empreendimentos do controle penal funcionam na criminalização mais severa das condutas típicas dos segmentos mais vulneráveis e na imunizaçãonão alcançam das praticadas pelos setores mais hegemônicosprivilegiados. O sistema penal, diz-se, é um instrumento voltado mais para o controle de pessoas do que de atitudes tidas como transgressoras. É importante ter claro que esses aparatos não foram criados, não podem e efetivamente não pretendem criminalizar todos ilícitos praticados diuturnamente. De acordo com Alessandro Baratta, grande criminólogo italiano, o sistema penal gerencia aproximadamente 10% dos

incidentes criminais que ocorrem no dia a dia. Aliás, se todos os crimes que efetivamente ocorrem fossem processados pelo sistema penal estaríamos próximos de uma verdadeira catástrofe social, vez que praticamente todos os indivíduos seriam criminalizados por diversas vezes. Sistema Penal: um grande elefante branco produtor de mortes Mas se é verdade que todos os sistemas penais da Suíça ao Canadá, passando pelo Peru e a China, carregam consigo o vício da seletividade servindo aos propósitos de manutenção do status quo em todo o mundo, com a criação e o reforço de estereótipos para os segmentos marginalizados, o fato é que nas periferias do capitalismo mundial esse diagnóstico está dado de maneira mais evidente. Na América Latina, em especial, o entendimento tem sido o de que os sistemas penais se movimentam na produção de um verdadeiro genocídio. Para Zaffaroni aA morte é mesmo o produto por excelência da movimentação dos sistemas penais latino-americanos. Esse excedente de violência, típica das práticas penais em nossa região, explica-se pelo tipo de ordem social a que o sistema penal tem de dar sustentação (acintosamente assimétrica) e aos destinatários do aparato de controle, sendo o racismo e o sexismo variáveis centrais na sustentação dessa dinâmica.

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O ator, os votos e as delegações Exercitar cidadania não significa delegar ao Estado a tarefa de gerenciar políticas públicas, ações estratégicas ou investimentos adequados em justiça social. Em momento algum. Esta é a condição sine qua non para que a política se exerça de modo salutar em prol de uma sociedade. No entanto, na linha de raciocínio que se está desenvolvendo, não se pode considerar a cidadania uma atitude passiva, e muito menos representativa, que se delega a representantes políticos investidos de poder para mandato eletivo que se escolhem por voto. Se isto é ser cidadão, então a definição de cidadania encontra-se um tanto quanto restrita e apegada à tradição. Mais do que isto, esta linha de pensamento está ainda eivada por um profundo assistencialismo e por concepções paternalistas de Estado. O que se pensa é que a questão da cidadania é uma problemática inerente a um povo. É este povo que bem conhece suas carências, deficiências, necessidades, etc. É também este povo que possui as condições para a transformação de sua condição, o que, no entanto, não se consegue sem a organização da sociedade civil, sem a mobilização das comunidades, sem a conscientização dos grupos minoritários, sem a adesão das mentalidades ao projeto social que pode transformar seu quotidiano. Isto se torna ainda mais importante de ser destacado, grifado e impresso na mentalidade de um povo, na medida em que se vive um momento peculiar, um período de transição, em que se instalou nas mentalidades coletivas uma certa decepção com os paradigmas e promessas modernas que gerou apatia e abdicação do compromisso com os ideais societais básicos de estruturação de nosso meio. É de acordo com esta concep-

O terceiro setor surge para se alinhar ao Estado na construção da cidadania e da efetividade dos direitos fundamentais

ção, e dentro desta experiência prática e histórica de abertura da concepção de cidadania, que o chamado terceiro setor surgiu para se alinhar ao Estado na construção da cidadania e da efetividade de direitos fundamentais: “Por ora, vamos nos ater a uma definição mais genérica: compreendem o terceiro setor todas as entidades que não fazem parte da máquina estatal, não visam lucro e não se afirmam com discurso ideológico, mas sim sobre questões específicas da organização social. Se o aspecto negativo da definição é claro – sabemos que não é terceiro setor -, o lado afirmativo deve ser particularizado. Ou seja, uma vez que o terceiro setor engloba um sem números de entidades com origens e finalidades diversas, a compreensão só acontece no âmbito de cada categoria” ( Jaime Pinsky, Carla Bassanezi Pinsky, História da cidadania, 2003, p. 565). A narrativa da eclosão de uma nova categoria para o pensamento político, além de Estado e sociedade civil, além de povo e soberano, bem como a discussão sobre a efervescência causada por estes novos atores no cenário de composição de interesses públicos, é questão que se transformou em temário fundamental da reflexão sociológi-

O grande agente do processo de construção e reconstrução da cidadania passa a ser o agente coletivo de direito ca dos últimos anos, a partir das próprias experiências das décadas de 70, 80 e 90, num paulatino processo de agigantamento e aperfeiçoamento das estruturas que dão suporte e estruturação aos grupos organizados. Assim é que o grande agente do processo de construção e re-construção da cidadania passa a ser o agente coletivo de direito, na concepção de José Geraldo de Souza Júnior. Em suas palavras: “Ora, a análise sociológica pôde precisar que a emergência do sujeito coletivo opera num processo pelo qual a carência social é percebida como negação de um direito que provoca uma luta para conquistálo. De acordo com Eder Sader, “a consciência de seus direitos consiste exatamente em encarar as privações da vida privada como injustiças no lugar de repetições naturais do cotidiano. E justamente a revolução de expectativas pro-

duzidas esteve na busca de uma valorização da dignidade, não mais no estrito cumprimento de seus papéis tradicionais, mas sim na participação coletiva numa luta contra o que consideraram as injustiças de que eram vítimas. E, ao valorizarem a sua participação na luta por seus direitos, constituíram um movimento social contraposto ao clientelismo característico das relações tradicionais entre os agentes políticos e as camadas subalternas”. (José Geraldo de Souza Júnior, Movimentos Sociais - Emergência de Novos Sujeitos: O Sujeito Coletivo de Direito, in Cláudio Souto e Joaquim Falcão, Sociologia e Direito - Textos Básicos para a Disciplina de Sociologia Jurídica, p. 259). Ante à falta, se instala uma nova ordem e uma nova concepção de cidadania precisa se modular para restabelecer certa coerência na administração dos conflitos, onde a participação direta nos processos flexíveis de articulação de decisões políticas seja possível. Diante da falência, e mesmo da ineficiência, do Estado no gerenciamento e na distribuição de bens fundamentais da vida organizada em sociedade, as alternativas aos modos tradicionais de se conceberem práticas jurídicas e práticas políticas se instalam para suprir carências.


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Participação social na Saúde: quem diz o quê Mariana Siqueira de Carvalho

O

discurso favorável à participação social na Administração Pública deixou de ser exclusividade dos movimentos sociais e de partidos de esquerda. A necessidade de democratização do controle e da gestão de políticas públicas agora é uma bandeira de todos que desejam uma reforma do Estado coerente com o contexto histórico atual. O desafio é reverter o quadro de uma cidadania fragilizada, fragmentada e acostumada a ser imposta de cima para baixo para um processo cada vez maior de participação e inclusão de atores sociais. Nessa nova perspectiva há uma tendência à pluralização das instituições participativas. Para isso, é preciso reconsiderar o mito da Administração neutra/burocrática e passar a reconhecer a existência dos seus componentes políticos. O processo de formulação de políticas públicas diz respeito ao modo de identificar as pretensões em jogo para se chegar à definição do interesse público (ou dos interesses públicos) a ser efetivado sob a coordenação da Administração Pública, e não mais sob a sua imposição. Na América Latina a democracia é recente e a ânsia de vê-la “funcionar” é grande. A emergência da democracia nos países latino-americanos foi o “acontecimento mais importante do século XX”, como constatou Boaventura Santos. O Brasil aos poucos absorve as novas possibilidades ao tentar encaixar na sua máquina estatal, ainda marcada pelo patrimonialismo e pelo excesso de burocracia, instrumentos de participação social nas mais diversas áreas. Algumas experiências vêm dando certo, com destaque para o controle social sanitário que é visto como um paradigma para esse novo cenário de participação. Até a primeira metade da década de 1980 a participação social no setor da saúde já era concreta, porém ainda à margem da legislação e das instituições. Na VIII Conferência Nacional de

Saúde, marco histórico da Reforma Sanitária, essa falha foi detectada. Houve a participação de mais de quatro mil pessoas oriundas dos mais diversos segmentos sociais e políticos. Realizada em março de 1986, a Conferência foi considerada a pré-constituinte em matéria de saúde e seu relatório final, no qual foi proposta a implementação do Sistema Único de Saúde – SUS, tornou-se o principal subsídio para a elaboração do Capítulo da Saúde na Assembléia Nacional Constituinte. Entre as propostas de reforma a conferência formalizou a idéia de controle social. A Assembléia Nacional Constituinte foi instalada no dia 1º de fevereiro de 1987. Ao final do processo constituinte o movimento reformista venceu os lobbies privados e pela primeira vez uma constituição brasileira incorporou em seu texto uma seção sobre Saúde. O direito à saúde foi inserido no rol de direitos sociais fundamentais. A pressão dos movimentos sociais sanitários realizada no momento constituinte ensejou a introdução de novos instrumentos de participação social na formulação, execução e fiscalização das políticas públicas. Participação Social A Lei Orgânica da Saúde regulamentou a participação da comunidade no SUS. Cada esfera do governo deve contar com Conferência e Con-

selho de Saúde como instâncias colegiadas com funções e poderes próprios. Nestes dois cenários encontrase a essência da nova participação do indivíduo, agora não mais para combater o Estado, mas sim para fiscalizálo e co-gerir políticas. A previsão de participação no planejamento e execução de políticas públicas associa-se a uma percepção dinâmica da saúde, em constante transformação devido às alterações mundiais, como o surgimento de novos vírus, novas formas de violência, mudanças comportamentais, diferentes relações entre países etc. A comunidade, que vivencia essas transformações, é o protagonista mais indicado para suscitar questões públicas sanitárias. A participação da comunidade, portanto, é a mola propulsora da contínua construção e reconstrução do direito à saúde. O controle social confere elementos ao cidadão brasileiro para refletir a respeito da democracia, já que os seus palcos de atuação propugnam um modelo democrático misto, no qual a democracia representativa articula-se com a participação direta e onde cada indivíduo faz a diferença. Para isso, não é preciso ter conhecimentos prévios e especializados. O caráter educativo do próprio exercício de participar já define o que se necessita para a tomada de decisão. A capacitação pode ser um elemento enriquecedor dos debates, mas de

nenhuma maneira pode ser vista como condição para fazer parte do processo. Institucionalizados e previstos legalmente, os conselhos setoriais representam um espaço de discussão, formador de opinião pública e tomador de decisões que são levadas em conta pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Neles os segmentos da população articulam-se, trocam informações, formulam propostas de planos e políticas públicas que posteriormente são transmitidas para outros segmentos. O conselho fortalece-se com a multiplicação de atores interessados em participar da gestão pública. Essa expansão deve estar atrelada à autonomia desses espaços. Além da infra-estrutura, deve-se garantir que os conselheiros advindos da comunidade não sejam coagidos pelos conselheiros do governo. Este só se legitima se de fato estimula de maneira clara a participação da comunidade. Não deve haver espaço para o clientelismo no âmbito dos conselhos setoriais. Infelizmente, há muitos casos de submissão dos conselheiros aos gestores: as reuniões do conselho dependem, em boa medida, da disponibilidade do gestor. A contradição de interesses e o enfrentamento dessa situação fazem parte da esfera pública e são vitais para o seu desenvolvimento. Quando participam, as pessoas assumem o dever de pensar o público. Com relação à institucionalização da participação social, motivada principalmente a partir da Constituição Federal de 1988, identificam-se vantagens e desvantagens. É preciso ter cuidado para não burocratizar esses espaços, nem torná-los passíveis de cooptação. Além disso, a obrigatoriedade da criação de conselhos para que o município ou estado receba determinados recursos não pode ser sinônimo de conselhos “artificiais”, com assentos preenchidos apenas por pessoas indicadas pelo gestor.

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Dificuldades da representação político-partidária A experiência da CLP pode oferecer uma perspectiva que nos auxilie a compreender melhor a relação entre participação popular e processo legislativo. A CLP inscreve-se num contexto de certa perplexidade sobre os limites da representação parlamentar e o papel dos partidos políticos. A experiência permite visualizar como a participação democrática direta pode ser potencializada por mediações institucionais, intensificando a articulação de esfera pública e Congresso. Essa aproximação entre o debate que nasce e amadurece na sociedade civil de forma mais ou menos espontânea e o debate parlamentar, aponta para uma prática política menos vinculada à promoção dos interesses incrustados nos partidos – por meio do financiamento eleitoral – e mais articulada com os problemas concretos enfrentados cotidianamente pelos cidadãos. A participação de movimentos sociais organizados no processo legislativo por meio da CLP permite problematizar o próprio papel do Congresso no Estado democrático de direito. A Constituição de 1988 trouxe para o primeiro plano da política constitucional a participação popular. A ‘cidadania’ é o conceito-chave do novo paradigma constitucional, que compreende a Constituição como um processo permanente de conquista de novos direitos fundamentais. Nesse processo, uma das peças mais importantes é o Congresso. O Poder Legislativo é a instância que procura traduzir as exigências constitucionais em medidas políticas gerais democraticamente adotadas. É por meio de sua atuação que se garante o princípio republicano de quesó somos obrigados a respeitar uma lei que nós mesmos aprovamos. O “nós mesmos” pode ser lido como “nossos representantes”: a participação popular no processo legislativo se dá, em primeira linha, pela atuação de representantes eleitos para tal finalidade . Dessa maneira, uma representação política eficaz é condição básica para falarmos em regime democrático. Sabemos que os principais atores do jogo parlamentar são os partidos políticos, aos quais o nosso direito constitucional empresta grande im-

portância. Cabe a eles agregar os cidadãos-eleitores por meio de programas que abordem os temas centrais da agenda política nacional. Os partidos deveriam buscar, assim, uma conexão intensa com a esfera pública, que numa sociedade funciona como uma “caixa de ressonância”, onde os problemas cotidianos são tematizados. Essa rede mais ou menos formalizada permite a circulação e a formação de opiniões sobre temas políticos. Bares, reuniões comunitárias, encontros de jovens, a mídia: todos esses espaços materializam a esfera pública. Em uma sociedade democrática, a esfera pública é um espaço argumentativo inclusivo. A decisão sobre quais opiniões devem prevalecer depende mais dos argumentos apresentados e menos do status e da posição social dos sujeitos que debatem. Assim, a esfera pública possibilita a formação de posições que não resultam do emprego da força ou do poder social (por exemplo, o dinheiro), mas da capacidade de convencer usando bons argumentos. O Congresso representa um espaço de continuação desse debate, só que de maneira institucional. Nesse ponto, discute-se aquilo que todos nós devemos estar obrigados ou proibidos de fazer. Os partidos políticos são os agentes que deveriam promover e facilitar esse processo de transposição do debate na esfera pública para o ambiente parlamentar. Ocorre que a estrutura de financiamento eleitoral dos partidos acaba

por permitir que determinados interesses e posições privadas tenham curso privilegiado no debate político. É incorreto imaginar que os partidos só possuem compromisso com interesses privados. Mas não é exagerado afirmar que interesses privados assegurados pelos lobbies podem se sobrepor ao interesse público – cujo crivo definitivo é o debate aberto e inclusivo entre cidadãos e instituições. . A CLP representa a possibilidade de re-conexão do debate parlamentar com a esfera pública, permitindo que demandas não sedimentadas em partidos, ou negligenciadas por eles tenham curso no processo legislativo. Essa abertura para o pluralismo é a característica mais interessante da experiência da Comissão. Possibilidades não são garantias. Os movimentos sociais devem estar atentos às peculiaridades do funcionamento parlamentar. OCongresso lida com milhares de proposições a cada Legislatura. A maioria delas é arquivada antes de receber um parecer. Nada impede que os interesses dos partidos se imponham em desfavor de pretensões socialmente legítimas. A definição de prioridades pela Comissão deve ser objeto de permanente crítica e acompanhamento pelos atores que se propõem ao jogo parlamentar: somente dessa forma pode ser garantido o caráter reflexivo da pauta definida pela CLP. Devemos lembrar que a “paternidade” da proposição resultante de

uma sugestão legislativa aprovada deve permanecer vinculada ao movimento ou ator que a propôs. Formalmente, a proposição é de autoria da Comissão. E hoje, não está definido qualquer mecanismo institucional de acompanhamento dessas proposições pela CLP ou por seus membros. A ausência de acompanhamento e pressão é obstáculo quase insuperável diante da infinidade de projetos tramitando simultaneamente. A mera transformação da sugestão em projeto é o passo inicial de uma jornada longa, que exige dos movimentos envolvidos criatividade e capacidade de convencimento. Não se deve assumir que toda sugestão legislativa apresentada é produto de debate público. Da mesma forma que o lobby introduz demandas privadas no processo legislativo via partidos políticos, organizações com interesses privados podem se servir da CLP para conferir às suas pretensões ares de legitimidade perante o debate parlamentar. Um dos maiores desafios dos atores que pretendem se valer da CLP é revelar a vocação pública de suas demandas. Repensar o Congresso Até hoje nenhuma proposição oriunda de sugestão legislativa foi transformada em lei. Há 27 projetos de lei prontos para a pauta. Se a repercussão do trabalho da CLP ainda émodesta, devemos recordar que a idéia de uma comissão que recebe sugestões,aponta para importante requisito em sociedades pluralistas e complexas: abertura para novos problemas e discursos. Impede a monopolização. O espaço de debate proporcionado pela Comissão deve ser ocupado pela sociedade, o que potencializará simultaneamente a Câmara dos Deputados e os próprios movimentos sociais, em sua capacidade de perceber e tematizar novos problemas e argumentos. Cabe à Comissão radicalizar sua concepção: investir em estratégia de divulgação e popularização de seu projeto e em maior aproximação dos principais debates e fóruns, superando a postura passiva que hoje marca sua relação com a sociedade.

Parlamento e sociedade civil organizada não se excluem: reforçam-se mutuamente


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OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO

Participação popular no processo legislativo Leonardo Augusto de Andrade Barbosa

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este artigo pretendemos discutir a idéia de “legislação participativa” a partir de um diálogo com a experiência concreta da Câmara dos Deputados, sugerindo que os espaços institucionais destinados a promover esse tipo de política legislativa ainda não estão plenamente consolidados. Seu fortalecimento depende de uma participação protagonista dos movimentos sociais organizados, que, para tanto, devem ser capazes de pensar os riscos e as possibilidades de sua atuação no âmbito parlamentar. Em maio de 2001, a Câmara dos Deputados aprovou, com apoio unânime das lideranças partidárias, a criação da Comissão de Legislação Participativa – CLP. A CLP é uma comissão permanente, cujo propósito é analisar sugestões legislativas apresentadas pela sociedade civil. A iniciativa inovadora da Câmara foi referência para o Senado Federal e para várias Assembléias Legislativas estaduais e Câmaras de Vereadores. No final de 2003, 10 estados brasileiros já contavam com comissões desse tipo instaladas ou em fase de instalação em seus órgãos legislativos. A idéia de uma política legislativa parlamentar que reconhece espaço para a “legislação participativa” ganhou espaço, mas sua visibilidade permanece reduzida, como procuraremos mostrar adiante. De acordo com o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, a Comissão de Legislação Participativa tem competência para apreciar sugestões de iniciativa legislativa apresentadas por associações e órgãos de classe, sindicatos e entidades organizadas da sociedade civil, exceto Partidos Políticos. A Comissão recebe, ainda, pareceres técnicos, exposições e propostas oriun-

A Constituição de 1988 colocou a participação popular em primeiro plano das de entidades científicas e culturais ou de qualquer das entidades mencionadas acima. O Regulamento Interno da CLP prevê, também, que órgãos estatais com participação paritária da sociedade civil tem legitimidade para apresentar sugestões legislativas. É o caso dos conselhos responsáveis pela elaboração de diretrizes para políticas públicas, como, por exemplo, o CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Entre meados de 2001 e o final 2004, a CLP aprovou 88 sugestões, oriundas de diversos segmentos da sociedade civil organizada, transformadas, assim, em proposições legislativas. Nesse mesmo período, a Comissão recebeu em torno de 290 sugestões. Em 2005, foram apresentadas 106 sugestões legislativas. O número de sugestões apresentadas sugere que a visibilidade da proposta institucional da CLP é re-

duzida. Isso fica mais claro se levarmos em conta que parte das sugestões recebidas pela comissão é relacionada à elaboração do orçamento da União. O investimento público é matéria relevante para a pauta de praticamente qualquer movimento social organizado. As poucas sugestões nesse sentido são, assim, um indício consistente de que boa parte desses movimentos não sabe que a Comissão existe, isto é, que é possível, por meio dela, participar inclusive do processo legislativo relacionado à definição do orçamento. É interessante observar, quanto a este ponto, que a Comissão Mista de Planos, Orçamento Público e Fiscalização sustentou inicialmente a posição de que a CLP não poderia apresentar emendas em matéria orçamentária. A Resolução do Congresso que regula a questão exige que cada Comissão, ao apresentar emendas ao orçamento, se atenha à sua área de competência específica. Como a CLP não possui área específica de competência, a Comissão de Orçamento defendeu que, em princípio, não caberia a ela apresentar emendas. Essa posição foi superada em 2004, quando o então Presidente João Paulo Cunha profe-

riu decisão em Questão de Ordem, fixando o entendimento de que a CLP poderia sim oferecer emendas em matéria orçamentária. Em 2006, por exemplo, três emendas foram aprovadas pela Comissão e incluídas no Orçamento da União. Maiores detalhes podem ser encontrados no sítio da Comissão (http://www2.camara.gov.br/comissoes/permanentes/clp). Não obstante, tramita nesse momento no Congresso Nacional uma proposta de alteração no funcionamento da Comissão Mista de Orçamento que suprime da CLP a competência para apresentar tais emendas. Outra possibilidade que deve ser destacada refere-se à proposição de requerimentos de informação a Ministros de Estado, os quais, uma vez aprovados, devem ser necessariamente respondidos, sob pena de crime de responsabilidade. Qualquer matéria de competência da pasta de um Ministério (ou pertinente à entidade sob supervisão do mesmo) pode ser objeto desse tipo de requerimento de informação. Trata-se, portanto, de uma ferramenta notável para a obtenção de conhecimento sobre o governo federal, o que abre à sociedade civil uma possibilidade de interlocução extremamente qualificada. Além da análise de sugestões legislativas, a CLP também promove seminários e audiências públicas com representantes da sociedade civil, debatendo temas relacionados às matérias sob apreciação da Comissão. A própria realização dessas audiências públicas pode ser solicitada pelos movimentos interessados, o que permite um contato direto dos parlamentares com os problemas tematizados pelas sugestões legislativas, além do estabelecimento de relações de parceria com os diversos atores sociais envolvidos.

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Cidadania construída de baixo para cima Em contrapartida, a institucionalização é uma garantia de que esses espaços, apesar das mudanças contínuas de agendas e participantes, sejam preservados. Além disso, a proximidade entre os conselhos e o Poder Executivo gera uma absorção quase imediata de suas deliberações por parte dos gestores e uma fiscalização mais eficaz. A institucionalização promove a ponte entre as opiniões públicas geradas nas bases da sociedade civil, de onde se originam os conselheiros, e o Poder Executivo, o que gera políticas públicas mais próximas às necessidades da população. Além disso, essa aproximação entre conselhos e gestores auxilia na visibilidade/transparência do poder, na medida em que traz a sociedade para dentro do governo e mais perto das decisões políticas. As competências legais básicas dos conselhos de saúde podem ser divididas em dois grandes campos: a área de planejamento e controle e a área de articulação com a sociedade. As atribuições específicas de caráter executivo também estão na seara da competência legal dos conselhos, que cada vez mais, porém ainda insuficientemente, participam na cadeia decisória da administração do SUS, como instância deliberativa e recursal. Em que pese a sua previsão legal, a competência deliberativa dos conselhos não é amplamente executada. A competência fiscalizatória, em muitos casos, é a única a ser efetivada pelos conselheiros, ainda que de forma precária. Há uma resistência por parte de alguns gestores e/ou de outras autoridades governamentais em enxergar o conselho de saúde como uma instância deliberativa. Essa postura é tomada por diversas causas, em especial pelo receio que o gestor tem de “perder poder” decisório frente ao conselho. Não se tem o conselheiro como um aliado (de gestão e planejamento, e não aliado político), mas sim como um “inimigo” que busca evidenciar as falhas e usurpar prestígio perante a população. Uma visão medíocre do controle faz com

que o gestor não atue com o conselho, mas sim contra o conselho. Um fator que inibe a deliberação dos conselhos, em especial no que tange à alocação de recursos, são os programas do Ministério da Saúde que enviam aos municípios e estados recursos “fechados”, ou seja, o repasse de recursos é feito discriminadamente para determinadas ações, o que não dá margem para o poder local definir as suas prioridades. Isso gera a verticalização do repasse com o impedimento da prática do planejamento local com a participação da sociedade. Quanto ao funcionamento, alguns conselhos não realizam reuniões regularmente e/ou não possuem infra-estrutura adequada. O Conselho Nacional de Saúde - CNS é um dos mais ativos do país, com reuniões ordinárias mensais, apoio técnico e administrativo (secretaria executiva), subdivisões em comissões intersetoriais, recursos humanos e materiais, além de dotação orçamentária própria. Os Conselhos Estaduais de Saúde sofrem a pressão do CNS

pelas falhas e omissões, principalmente na falta de cumprimento de dotação orçamentária, mas podem ser considerados ativos. Já a atuação dos Conselhos Municipais de Saúde varia de acordo com o município: há conselhos extremamente ativos, enquanto há outros que existem apenas na letra da lei. A realidade de cada conselho também varia de acordo com o momento político e do espaço de atuação concedido pelo gestor aos conselheiros. Em alguns municípios, como em Porto Alegre, houve conquistas consideráveis devido à influência do conselho na gestão municipal do SUS, bem como na fiscalização das políticas sanitárias. Sem esquecer as conquistas avançadas pelos conselhos, é preciso ressaltar que ainda há lacunas no seu desenvolvimento. Os estudos sobre conselhos são unânimes ao apontar as limitações, mas também detectam a sua importância. Apesar da quase inexistência de tradição de posturas participativas nos vários segmentos da sociedade brasileira, os conselhos de saúde acumulam vitórias na pro-

moção da participação social. O conselheiro não recebe remuneração e sua atividade é de relevância pública. Hoje o número de conselheiros de saúde, entre os quais os usuários do SUS são maioria, ultrapassa o número de vereadores, o que configura uma situação inédita no conjunto das políticas públicas. A existência e o funcionamento dos conselhos possibilitam a participação sistemática de pessoas no debate e na busca de soluções para os problemas de saúde. E, se há o engessamento de alguns conselhos, cabe à sociedade civil repensar a participação e tomar para si a reformulação dos instrumentos participativos. Não há como negar que os milhares de conselheiros espalhados pelo país são prova concreta da proliferação e popularização de discussões de interesse público antes debatidas a quatro portas pelas autoridades. Milhares de conselheiros em todos os cantos do Brasil representam fortemente a ampliação de espaços públicos deliberativos.

Apesar da quase inexistência de tradição de posturas participativas nos vários segmentos da sociedade brasileira, os conselhos de saúde acumulam vitórias na promoção da participação social


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ENTREVISTA

Três razões contra o impeachment de Lula Alexandre Bernardino Costa e Guilherme Cintra Guimarães entrevistaram Marcelo Lavenére, advogado e presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça 1. O senhor desempenhou um papel extremamente relevante no impeachment de Fernando Collor de Mello em 1992, tendo assinado o requerimento que solicitou que o Congresso Nacional julgasse o ExPresidente por crime de responsabilidade. Como o senhor analisa a importância da mobilização da sociedade brasileira no processo de impeachment do Ex-Presidente? Observando as várias encruzilhadas da História do Brasil, é possível afirmar que a mobilização popular no episódio do processo de impeachment do ex-presidente foi um fato inédito. A Independência, a abolição da escravatura, a proclamação da República, a instauração ou o fim do Estado Novo, o Golpe de 64, foram momentos cruciais na história do país, porém sem que o “povo” fosse o seu principal protagonista. Nas etapas posteriores ao golpe de 64, começa o povo a se fazer presente seja no movimento pelas “diretas já” seja na convocação de uma assembléia nacional constituinte. Todavia, foi em 1992 que o povo brasileiro, empunhou a bandeira da ética e fez valer a sua exigência. O Movimento pela Ética na Política, apartidariamente, sem nenhuma estrutura organizacional, isento de qualquer manipulação, reuniu trabalhadores e empresários, confissões e líderes religiosos de todos os matizes, parlamentares, profissionais liberais, estudantes, a Maçonaria e as donas de casa, num irresistível e bem sucedido clamor

que vem das ruas, espontâneo e autêntico. Não foi uma insurreição, na medida em que tudo se cumpriu dentro da mais estrita normalidade constitucional. As Instituições político-jurídicas foram os canais que deram vazão a uma exigência coletiva, sem qualquer arranhão no Estado Democrático de Direito. O Congresso e o Supremo Tribunal Federal, acompanhados pela Imprensa atuando sem qualquer influência, agiram absolutamente dentro dos cânones constitucionais e legais. A mobilização deixou patente, numa demonstração pragmática, a força da vontade popular. 2. Alguns partidos políticos e organizações sociais, como a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, por exemplo, têm cogitado a possibili-

dade de requerer a instauração de um processo de impeachment contra o Presidente Lula devido às recentes denúncias de corrupção envolvendo membros do governo e do Partido dos Trabalhadores – PT. Como o senhor analisa essa proposta? Há uma mobilização popular suficiente para legitimar um eventual requerimento de impeachment? A situação atual apresenta alguma semelhança em relação ao contexto do impeachment do Ex-Presidente Collor? Manifestei publicamente através de mensagem que enviei a todos os integrantes do Conselho Federal da OAB a minha convicção de que há profunda diferença entre a atual conjuntura política brasileira e aquela de 1992, no que se refere à proposta de impe-

achment. Alinhei três pontos que me parecem fundamentais: a) a inexistência de qualquer acusação oficial contra o Presidente Luiz Inácio, diversamente do que ocorria em 1992, em que o ex-presidente estava no foco das denúncias. Nem as CPI’s, nem o Ministério Público Federal, consideraram o presidente como autor de qualquer ato que justificasse um processo de impeachment. b) a ocorrência de eleições dentro de cinco meses e o processo eleitoral já desencadeado. Qualquer proposta de impeachment, agora está contaminada pela interferência ilegítima no resultado das eleições. Cabe ao povo, em outubro, escolher o próximo presidente. c) a ausência de mobilização popular. Sendo o impeachment do Presidente da República um processo políticojurídico, depende essencialmente da manifestação dos eleitores. Sem mobilização popular nenhum processo de impeachment se legitima nem pode ser bem sucedido. O argumento de que o Congresso Nacional não teria autoridade para tanto, na medida em que ali se vive um período de grave crise, não seria óbice. Em 1992 não era diferente a situação. Mas é necessário que deputados e senadores que são os que decidem respectivamente sobre a admissibilidade da denúncia e sobre seu mérito, reflitam a voz que vem das ruas. Quem é o autor do “impedimento” é o povo.

Qualquer proposta de impeachment agora está contaminada pela interferência ilegítima no resultado das eleições

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Cidadania e família em movimento A decisão que concedeu a adoção foi um marco para o exercício de cidadania, ao permitir o reconhecimento da diferença e da pluralidade, entendendo que não se pode alegar aspectos relacionados à orientação sexual para impedir o acesso a direitos. O exercício da cidadania passa pelo respeito a garantias individuais, a garantias que possibilitem o livre exercício e determinação de seus projetos de vida, projetos esses que não podem ser afastados na tentativa de transformar a diferença (envolver-se afetivamente com alguém do mesmo sexo) em desigualdade de direitos. Verifica-se um tratamento inferiorizante quando se pretende proibir que relacionamentos homossexuais tenham o status de entidades familiares, quando se pretende proibir que casais homossexuais possam adotar. Inferiorização afasta a possibilidade de cidadania. Negação de direitos por conta da diferença não é cidadania. Impedir ou procurar romper laços familiares e afetivos estabelecidos entre pessoas, unicamente por conta da orientação sexual não é cidadania. E impedir o exercício de cidadania é violar direitos. É interessante observar que a decisão do Tribunal de Justiça gaúcho considerou, também, o bemestar das crianças. De maneira pioneira e corajosa, rompeu com a idéia equivocada (e sem base jurídica) de que a adoção por um casal homossexual seria, por si só, contrária à proteção dos interesses da criança. Ora, como afirmou o próprio relatório de avaliação, desenvolvido por profissionais ligados às áreas de psicologia e serviço social, o casal “tem exercido a parentalidade adequadamente. Com relação às van-

tagens da adoção para estas crianças, especificamente, conhecendose a família de origem, pode-se afirmar que, quanto aos efeitos sociais e jurídicos, são inegáveis, quanto aos efeitos subjetivos, é prematuro dizer, porém existem fortes vínculos afetivos que indicam bom prognóstico”. A decisão demonstrou que o importante para o melhor desenvolvimento e formação de uma criança não é a orientação sexual daqueles que exercem a parentalidade (sejam homem-mulher, homem-homem, mulher-mulher), mas sim a existência de um ambiente acolhedor, afetivo e dotado de estabilidade.

Inferiorização afasta a possibilidade de cidadania. Negação de direitos por conta da diferença não é cidadania. Impedir ou procurar romper laços familiares e afetivos estabelecidos entre pessoas, unicamente por conta da orientação sexual não é cidadania. E impedir o exercício de cidadania é violar direitos

A decisão demonstrou que o importante para o melhor desenvolvimento e formação de uma criança não é a orientação sexual daqueles que exercem a parentalidade (sejam homem-mulher, homem-homem, mulher-mulher), mas sim a existência de um ambiente acolhedor, afetivo e dotado de estabilidade Argumentar que entidades familiares homossexuais não estariam aptas a desenvolver ambientes desse tipo é fechar os olhos para a dinâmica social e adotar um comportamento anti-jurídico, limitador do exercício da cidadania, que procura negar direitos relacionados a um dos campos mais íntimos de uma pessoa unicamente por conta da diferença, por conta da orientação sexual, ignorando, ainda, um aspecto central da atual formação familiar: o afeto. Felizmente, cresce a quantidade de posicionamentos contrários à cegueira da visão, contrários a tentativas de diminuir a importância do afeto, contrários a tentativas de

negação da presente diversidade de formas de organização familiar. Afinal, no tratamento das pretensões que envolvem o direito em sua relação com a família, que se manifesta tanto em reivindicações de movimentos sociais quanto na literatura especializada ou nas decisões judiciais, deve-se permitir o exercício da cidadania, por meio da concretização de direitos que garantam o respeito à diferença. Para isso, os versos de Milton Nascimento, em uma de suas famosas concepções, se demonstram adequados: “Qualquer maneira de amor vale a pena, qualquer maneira de amar valerá”.


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Revisionistas tentarão reforma sempre

Mãe não tem só uma Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros

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ãe não é quem põe no mundo, mas quem cria. Esse ditado popular é, em certa medida, adotado pelo direito de família brasileiro. Para além de formalismos ou interpretações biológicas, restritas às relações de sangue, as decisões judiciais e os autores da área tem caminhado, a partir de princípios constitucionais, para um entendimento que também privilegia o afeto, os laços sociais, as relações que se formam no decorrer da vida. A partir dessa perspectiva, situações ligadas à paternidade e a outras formas de organização familiar diversas do modelo pai-mãe-filho passaram a ser reconhecidas e protegidas pelo direito. A idéia de família se transforma e cada vez mais se foca no afeto e na possibilidade de realização e satisfação pessoal de cada um de seus integrantes. Foi nesse contexto que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em abril desse ano, entendeu ser direito

de um casal, possuidor de uma relação reconhecida publicamente, baseada no afeto, convívio e respeito mútuos, com projetos comuns e com um efetivo compartilhar de vidas, adotar duas crianças. Esse casal apresenta todas as características necessárias para permitir o melhor desenvolvimento dessas crianças. Esse casal era composto por duas mulheres. Para entender o caso As duas mulheres, aqui chamadas pelos nomes fictícios de Maria e Mariana, convivem desde 1998, em uma relação em que estão presentes características comuns a entidades familiares, ou seja, a afetividade, a estabilidade a apresentação pública dessa relação como uma relação familiar. Em abril de 2003 e fevereiro de 2004, foi concedida exclusivamente a Maria a adoção, respectivamente, de Pedro e João (nomes fictícios). Mariana, apesar de não ter constado inicialmente como uma das adotantes, veio a exercer de maneira

ativa, ao longo desse período, em conjunto com Maria, todos os cuidados e atenções relativos à criação e educação dos meninos. As crianças, inclusive, se referem a Maria e a Mariana da mesma forma: mãe. Procurando ter o reconhecimento, pelo direito, da validade uma situação familiar já concretizada de fato, as duas mães ajuizaram, no último ano, um pedido para que Mariana fosse também reconhecida como adotante. E isso pode? O direito diz que qualquer pessoa, cumprindo alguns requisitos previstos na legislação, a exemplo da necessidade de o adotante ter pelo menos dezoito anos de idade, pode, de maneira isolada, adotar uma criança. Quanto a casais, é necessário que estejam juridicamente casados ou vivendo em regime de união estável. Surge aí um problema, pois uma interpretação formalista conduziria a um entendimento de que a união estável só seria possível entre um ho-

mem e uma mulher, nunca entre pessoas do mesmo sexo. A questão é que esse tipo de interpretação viola o princípio constitucional da igualdade, ou seja, reconhecimento de diferentes formas de estruturação de entidades familiares que, apesar de serem diferentes, merecem proteção e tratamento iguais exatamente por serem entidades familiares. Tal interpretação ignora também todo o papel do afeto nessas diversas entidades, em especial naquelas constituídas por pessoas do mesmo sexo e, também por isso, não foi abraçada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Reconhecendo que todos os traços que caracterizam uma família formada em união estável estavam presentes no relacionamento de Maria e Mariana, o Tribunal entendeu que tal exigência estaria cumprida e que, dessa forma, verificados todos os laços afetivos que envolviam as mães e os filhos, deveria ser concedida a possibilidade de adoção pelas duas mulheres.

A idéia de família se transforma e cada vez mais se foca no afeto e na possibilidade de realização e satisfação pessoal de cada um de seus integrantes

3. A Constituição de 1988 é comumente classificada como uma “Constituição cidadã” devido não apenas ao seu conteúdo avançado em matéria de direitos fundamentais, mas também ao ambiente democrático que caracterizou os debates da Assembléia Constituinte. Como o senhor analisa, então, a atual Proposta de Emenda à Constituição n° 157/2003, em trâmite no Congresso Nacional, que propõe a instauração de uma Assembléia Revisora em 2007? Não é a primeira e possivelmente não será a última tentativa dos inimigos da Constituição Federal de 1988, de, sob o pretexto de aperfeiçoá-la, modernizá-la, de, na verdade, subtrair os institutos que a fazem cidadã e democrática. Ainda não tinha sido proclamada em outubro de 1988 e já era acusada de causar a “ingovernabilidade”. Pouco depois, no final de 1993, após o plebiscito que manteve a República e o Presidencialismo, se promoveu renhida campanha pela revisão da Constituição. Não obtiveram êxito seus defensores. Naquela ocasião, tive a honrar de participar com insignes constitucionalistas de obra em que se evidenciava toda a trama por trás da proposta revisionista. De 1995 até hoje, meia centena de emendas foram aprovadas, alterando o texto de 1988. Agora, tramita, outra PEC prevendo uma Assembléia Revisora em 2007. Os objetivos são os mesmos de todas as tentativas frustradas anteriormente. Este prestigiado caderno mensal – Constituição e Democracia - nos seus dois primeiros números, fez uma arguta análise-crítica, dos interesses que estão em jogo e das artimanhas que estão sendo urdidas para se dar à PEC 157/2003, caráter, que não tem, de medida democrática. Por outro lado, no lugar de cogitar em rever a Constituição, melhor seria que os parlamentares procurassem, de fato, aperfeiçoá-la, aprovando, a

A participação popular na Constituinte de 88 foi a melhor coisa que poderia ter acontecido

Uma Democaracia não se faz com um passe de mágica. Constroe-se a cada dia

PEC 73/2005 que antes mencionei e o PLS 0001/20006, ambos de autoria do Senador Suplicy, o primeiro introduzindo a revogação popular de mandatos eletivos na Constituição Federal e o segundo que regulamentando os instrumentos da Democracia Direta previstos no art. 14. Na justificativa o autor lembra que estas propostas decorrem da Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia, encetada pela OAB em 2005. 4. De acordo com alguns parlamentares, foi exatamente a grande pressão popular exercida sobre a Assembléia Constituinte devido à recente abertura democrática que impediu a produção “do texto de que o país necessitava”. Como o senhor analisa esse argumento? Afirmar tamanho absurdo compromete quem o faça. A pressão popular – ou melhor - a participação popular na elaboração da Constituição de 88, foi o que de melhor poderia ter ocorrido. Se não foi possí-

vel uma assembléia nacional constituinte exclusiva livre e soberana, se o que se obteve foi um congresso constituinte, nem por isso o resultado foi negativo. A participação popular, sem dúvida, permitiu que se produzisse uma Constituição cidadã, com a cara multifacetada da sociedade brasileira. Não se deve pensar que a participação popular foi só dos trabalhadores ou de estamentos considerados “avançados”. A participação dos empresários, dos magistrados, dos agentes de segurança, dos latifundiários, enfim dos conservadores de vários matizes também estava ali presente. A CF de 88, não é aquela que a CUT nem a FIESP queriam, mas foi a CF que mais democraticamente refletiu a sociedade civil brasileira, com seus conflitos, com suas contradições. 5. Como Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, como o senhor analisa a importância da atuação da Comissão para o regime democrático brasi-

leiro na concessão de indenizações aos anistiados como forma de reconhecimento dos abusos e excessos cometidos durante o regime militar? Uma democracia não se faz por passe de mágica. Constroe-se a cada dia. Não nos é dada de presente, servida numa bandeja. É o resultado da luta penosa de cidadãos ao longo de muitos anos de história. Na sua construção vidas numerosas foram ceifadas, ou comprometidas. Desconstituir as estruturas autoritárias, do reino, do colonialismo, dos escravocratas, das ditaduras não é tarefa fácil. Em 1964 o Brasil foi assaltado por um regime militar que interrompeu os canais de comunicação democrática, prendeu, matou e torturou brasileiros, pelo único crime de discordar politicamente do autoritarismo e de lutar por um Estado Democrático de Direito. Este regime de exceção durou quinze longos anos de chumbo. Em 1979, a Lei 6683, constituiu um marco inicial da Anistia, que tem como etapa mais recente a atual a Lei 10559/2001. Estas leis e outras medidas legais se destinam a reparar os desmandos cometidos contra brasileiros, concedendo-lhes, uma reparação – de ordem econômica, ou não - que na verdade é na grande maioria das vezes apenas simbólica. A anistia é assim um mea culpa não dos perseguidos, porém do Estado que perseguiu. O reconhecimento do erro e a intenção em repará-lo mesmo com enorme retardo, constitui uma atitude positiva que fortalece a esperança de que nunca mais se aconteça algo semelhante. A paz, que é o ícone da Anistia, há de ser procurada a todo o custo. A superação da violência não pode ser através de mais violência, num círculo vicioso de escalada da intransigência. Adotar-se uma atitude favorável à Anistia é prestigiar o diálogo, rejeitando-se o acirramento dos confrontos.


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As religiões de matriz africana Maurício Azevedo de Araújo

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ara falarmos da luta pelo reconhecimento da identidade religiosa/racial das religiões de matriz africanas, temos antes que resgatar uma experiência emancipatória negada pela formação racista do Estado e da Sociedade brasileira. É tempo de recompor as trajetórias e redimensionar as práticas que permitiram a repressão e negação de direitos destas comunidades religiosas, bem como afirmar a capacidade de resistência e proteção de sua religiosidade que até hoje sofre do preconceito e da intolerância. Portanto é necessário fazer um percurso pela trajetória destas religiões na busca pela liberdade e igualdade de direitos, pois só desconstruindo a idéia de uma sociedade tolerante e harmoniosa poderemos perceber que a falta de reconhecimento está intimamente ligada ao caráter racista das relações sociais no país. O direito de liberdade religiosa foi garantido no Brasil desde a Constituição de 1891, porém esta não foi a realidade das religiões de origens africana, já que a proclamação da República e abolição da escravidão foram acompanhadas por uma ideologia do branqueamento da população brasileira. A elite nacional caracterizada pela oligarquia rural, militarista e branca imbuída na construção do projeto de nação que incorporasse valores “superiores” da civilização européia, estabeleceu formas de controle e exclusão da população negra recentemente liberta, seja na tentativa de extermínio de suas identidades culturais, como na construção de uma política de branqueamento da sociedade com o objetivo de afastar as influências da comunidade negra do projeto civilizatório nacional. O Estado, a imprensa e a sociedade brasileira promoveram nas primeiras décadas do século XX, uma sistemática repressão e perseguição

às religiões afrodescendentes, através do aparelho repressivo do Estado -a polícia - foram efetuadas diversas batidas nos terreiros de candomblé, interrompendo as manifestações religiosas, prendendo adeptos da religião e apreendendo objetos sagrados, normalmente sob a alegação da defesa da moral pública. Cabe ressaltar o papel fundamental dos discursos jurídicos embalados pela onda racialista, os quais imprimiram uma cruzada contra as manifestações da população negra, a exemplo da criminalização da capoeira e do samba. Em relação às religiões, em vez do direito a liberdade religiosa, o candomblé sofreu verdadeiro processo de controle e vigilância e seus membros criminalmente enquadrados sob a alegação de práticas de feitiçarias e falsa medicina. Porém esqueceram de um detalhe, a capacidade guerreira e a habilidade de negociar do povo negro, que desde a escravidão criou táticas e estratégias para sobreviver e preservar a herança de seus antepassados e de sua terra, a mãe África, que ainda hoje permeia os sentimentos do negro na diáspora. Mesmo diante do ambiente hostil e preconceituoso, as comunidades religiosas de matrizes africanas estabeleceram formas de resistência que possibilitaram sua sobrevivência, tornandose exemplo de práticas emancipatórias que influenciaram as lutas posteriores do povo negro na busca da igualdade e da afirmação de sua identidade racial. As estratégias de resistência como a negociação com as autoridades do Estado e a conquista de apoio de setores da sociedade, possibilitaram com que na década de cinqüenta a repressão frente às religiões de matriz africanas fosse se arrefecendo. As batidas policiais nos terreiros, a prisão de membros da religião e a apreensão de objetos sagrados deram lugar a um discurso oficial de uma nação marcada pela convivên-

cia tolerante das diversas religiões. A elite branca e cristã do Brasil, como que passando uma borracha na história recente de perseguição, embarca no discurso da tolerância complacente, onde do alto da superioridade hierárquica do catolicismo exaltam o sincretismo como benevolência, ou melhor, uma complacência tolerante marcada mais pelo desprezo e arrogante piedade do que um verdadeiro reconhecimento do Candomblé. A formação do discurso de uma sociedade racialmente democrática e tolerante escondia o caráter assimilador das práticas sociais da população negra, estabelecendo barreiras culturais, políticas e jurídicas para uma verdadeira aceitação das religiões de matriz africana. Primeiro porque não se enfrentava o racismo institucionalizado do Estado

brasileiro refletido na falta de reconhecimento da imunidade tributária dos terreiros, do casamento religioso e a exclusão da cosmovisão africana do ensino religioso, ao tempo que se naturalizava nas práticas sociais um discurso de inferiorização e estigmatização dos símbolos sagrados destas religiões. Esta construção ideológica possibilitou a configuração do racismo no Brasil de maneira peculiar, como uma realidade dissimulada presente no seio das relações sociais. A aparente aceitação destas manifestações religiosas foi marcada por uma grande contradição performática, de um lado a exaltação folclórica e turística dos símbolos sagrados e práticas do Candomblé, e do outro a falta de reconhecimento e o preconceito entranhado no Estado e na Sociedade.

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Consciência universal nos debates da ONU No tocante à jurisprudência internacional, o exemplo mais imediato reside na jurisprudência dos dois tribunais internacionais de direitos humanos hoje existentes, as Cortes Européia e Interamericana de Direitos Humanos. A esta jurisprudência se pode agregar a jurisprudência emergente dos dois Tribunais Penais Internacionais ad hoc, para a ex- Iugoslávia e Ruanda. E a própria jurisprudência da Corte Internacional de Justiça contém elementos desenvolvidos a partir de considerações básicas de humanidade. No que tange à prática internacional, a idéia de uma consciência jurídica universal tem marcado presença em muitos debates das Nações Unidas (sobretudo da VI Comissão da Assembléia Geral), nos trabalhos das Conferências de codificação do Direito Internacional (o chamado “direito de Viena”) e nos respectivos travaux preparatoires da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas da década de noventa. Também na doutrina do Direito Internacional encontramos elementos para o desenvolvimento da matéria, ainda que, surpreendentemente, não suficientemente articulados até o presente. A noção que me permito denominar de consciência jurídica universal passa a encontrar expressão doutrinária em tempos relativamente recentes, ao longo do século XX, com a emergência do conceito de communis opinio juris, ao enfrentar o velho dogma positivista do consentimento (voluntas) individual para a formação do direito consuetudinário. Nas três primeiras décadas do século XX, a expressão “consciência jurídica internacional” foi efetivamente utilizada, em sentido ligeiramente distinto, recordando a noção clássica de civitas maxima, a fim de fomentar o espírito de solidariedade internacional. Na América Latina, referências à “consciência jurídica” e “consciência moral” encontram-se, por exemplo, na Meditacion sobre la Justicia (1963) de Antonio Gómez Robledo, em meio a sua lúcida crítica do positivismo jurídico. E duas décadas antes, Alejandro Alvarez argumentava que os grandes princípios do Direito Internacional, e a própria justiça internacional, emanam da “consciência

Neste início do século XXI, temos o privilégio de testemunhar e o dever de impulsionar o processo de humanização do Direito Internacional pública” ou “consciência dos povos”. Estes são alguns exemplos a revelar que, no passado, houve jusinternacionalistas que tiveram a intuição e a sensibilidade para a realidade da consciência humana, mais além da “realidade” crua dos fatos. Caberia recordar os debates do Instituto de Direito Internacional, em sua Sessão de Nova Iorque de 1929, acerca de um projeto de declaração sobre os direitos humanos. Observou-se, na ocasião, que a “vida espiritual” e a “consciência jurídica” dos povos requeriam um novo direito das gentes, com a afirmação dos direitos humanos. O reconhecimento de certos valores fundamentais, imbuídos de um sentido de justiça objetiva, em muito contribuiu à formação da communis opinio juris nas últimas décadas do século XX. Verificou-se, aqui, uma

evolução conceitual que se moveu, a partir dos anos sessenta, da dimensão internacional à universal (sob a grande influência do desenvolvimento do próprio Direito Internacional dos Direitos Humanos), conducente à identificação dos interesses comuns da comunidade internacional e do reconhecimento generalizado do imperativo de satisfazer as necessidades sociais básicas. Referências do gênero, certamente suscetíveis em nossos dias de um desenvolvimento conceitual mais amplo e aprofundado, não se limitam ao plano doutrinário; figuram igualmente em tratados internacionais. A Convenção contra o Genocídio de 1948 se refere em seu preâmbulo ao “espírito” das Nações Unidas. Transcorrido meio século, o preâmbulo do Estatuto de Roma de 1998 do Tribunal Penal Internacional se refere à “consciência da humanidade” (segundo considerandum). E o preâmbulo da Convenção Interamericana de 1994 sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, para citar outro exemplo, menciona a “consciência do hemisfério” (terceiro considerandum do preâmbulo). Movida pela consciência humana, a própria dinâmica da vida in-

ternacional contemporânea tem cuidado de desautorizar o entendimento tradicional de que as relações internacionais se regem por regras derivadas inteiramente da livre vontade dos próprios Estados. O positivismo voluntarista se mostrou incapaz de explicar o processo de formação das normas do Direito Internacional geral, e se tornou evidente que só se poderia encontrar uma resposta ao problema dos fundamentos e da validade deste último na consciência jurídica universal, a partir da afirmação da idéia de uma justiça objetiva. Neste início do século XXI, temos o privilégio de testemunhar e o dever de impulsionar o processo de humanização do Direito Internacional, que, de conformidade com o novo ethos de nossos tempos, passa a se ocupar mais diretamente da identificação e realização de valores e metas comuns superiores. Desse modo, o Direito Internacional evolui, se expande, se fortalece e se aperfeiçoa, e, e última análise se legitima.

* Artigo retirado do livro do autor, A Humanização do Direito Internacional (Belo Horizonte, Del Rey: 2006, pp. 89 – 96), e editado.


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Luta contra a intolerância religiosa no Brasil

Direito Internacional e a humanização Antônio Augusto Cançado Trindade

O

Direito Internacional tradicional,do século XX, caracterizava-se pelo voluntarismo estatal ilimitado, que se refletia na permissividade do recurso à guerra, da celebração de tratados desiguais, da diplomacia secreta, da manutenção das colônias e protetorados e de zonas de influência. Contra esta ordem oligárquica e injusta se insurgiram princípios como: a proibição do uso e ameaça da força e da guerra de agressão (e do não-reconhecimento de situações por estas geradas), a igualdade jurídica dos Estados, a solução pacífica de controvérsias internacionais. Deu-se início ao combate às desigualdades (com a abolição das capitulações, o estabelecimento do sistema de proteção de minorias e a adoção das primeiras convenções internacionais do trabalho, da OIT). A par dos princípios do Direito Internacional, a invocação, no âmbito das “fontes” do Direito Internacional, dos princípios gerais do direito (...) veio atender às “exigências éticas” do ordenamento jurídico internacional, a partir de uma visão jusnaturalista renovada. Tais princípios passaram a iluminar a formação e a evolução do ordenamento jurídico internacional, dada a incapacidade do positivismo jurídico de explicar a formação das normas consuetudinárias, de visualizar o Direito como meio para a realização da justiça, e de reconhecer que

o fundamento último do Direito se encontra necessariamente fora da ordem legal positiva. Em meados do século XX se reconheceu a necessidade da reconstrução do Direito Internacional com atenção voltada aos direitos inerentes a todo ser humano, - do que deu testemunho eloqüente a adoção da Declaração Universal de 1948, seguida, ao longo de cinco décadas, por mais de 70 tratados de proteção hoje vigentes nos planos global e regional, em uma manifestação do despertar da consciência jurídica universal para a necessidade de assegurar a proteção eficaz do ser humano em todas e quaisquer circunstâncias. O Direito Internacional passou a experimentar, na segunda metade do século XX, uma extraordinária expansão, fomentada em grande parte pela atuação da ONU e agências especializadas, além das organizações regionais. Assim, por influência direta das organizações internacionais, o processo tornou-se complexo e multifacetado, no propósito de lograr uma ampla regulamentação que atendesse às necessidades e aspirações da comunidade internacional como um todo. A vasta produção normativa da ONU, por exemplo, já não se limitava aos projetos da Comissão de Direito Internacional, – que retêm seu valor e utilidade, – mas passaram a se estender à própria Assembléia Geral, a sua VI Comissão (para assuntos jurídicos), às Conferências de Plenipoten-

ciáiros; além disso, agências especializadas da ONU, como a OIT, a UNESCO, a AIEA, dentre outras, passaram a produzir numerosos tratados e convenções de importância. A emergência dos novos Estados, em meio ao processo histórico de descolonização, veio a marcar profundamente sua evolução nas décadas de cinqüenta e sessenta, em meio ao grande impacto no seio das Nações Unidas do direito emergente de autodeterminação dos povos. Desencadeou-se o processo de democratização do Direito Internacional. Ao transcender os antigos parâmetros do direito clássico da paz e da guerra, equipou-se o Direito Internacional, com maior ênfase na cooperação internacional. Nas décadas de sessenta e oitenta, os foros multilaterais se involucraram em um intenso processo de elaboração e adoção de sucessivos tratados e resoluções de regulamentação dos espaços. As notáveis transformações no cenário mundial desencadeadas a partir de 1989, pelo fim da guerra fria e a irrupção de numerosos conflitos internos, caracterizaram os anos noventa como um momento na história contemporânea marcado por uma profunda reflexão, em escala universal, sobre as próprias bases da sociedade internacional e a formação gradual da agenda internacional do século XXI. O ciclo das Conferências Mundiais da ONU do final do século XX tem procedido a uma reavaliação global de muitos conceitos à luz da

consideração de temas que afetam a humanidade como um todo. Seu denominador comum tem sido a atenção especial às condições de vida da população – em particular dos que integram os grupos vulneráveis, em necessidade especial de proteção. Com efeito, os grandes desafios de nossos tempos – a proteção do ser humano e do meio ambiente, a superação das disparidades alarmantes entre os países e dentro deles assim como da exclusão social, a erradicação da pobreza crônica e o fomento do desenvolvimento humano, o desarmamento, – têm incitado à revitalização dos próprios fundamentos e princípios do Direito Internacional contemporâneo, tendendo a fazer abstração de soluções jurisdicionais e espaciais (territoriais) clássicas e deslocando a ênfase para a noção de solidariedade. Em meu entender, há efetivamente elementos para abordar a matéria, deste prisma e de modo mais satisfatório, tanto na jurisprudência internacional, como na prática dos Estados e organismos internacionais, como na doutrina jurídica mais lúcida. Destes elementos se depreende – permito-me insistir nesse ponto central – o despertar de uma consciência jurídica universal, para reconstruir, neste início do século XXI, o Direito Internacional com base em um novo paradigma já não mais estatocêntrico, mas situando o ser humano em posição central e tendo presentes os problemas que afetam a humanidade como um todo.

Mas a experiência de resistência e luta da população negra não sucumbe aos mecanismos de negação de suas identidades, portanto as comunidades religiosas de matriz africana e o movimento negro organizado não se renderam aos padrões impostos pela cultura branca hegemônica. Ocuparam o espaço democrático afirmando a negritude e seu símbolos, combatendo o racismo na desconstrução do mito da democracia racial e na proposição de políticas públicas a partir de um olhar que traduza e supere a realidade de desigualdade racial. Daí a necessidade de pensar o reconhecimento dos direitos destas religiões articulando os princípios da igualdade e da diferença, fundamental para a afirmação de sua alteridade e a conseqüente proteção de suas manifestações religiosas. O protesto negro emergiu das ruas e tomou a cena política, exigiu dos poderes públicos ações que superassem a realidade racial brasileira, e foi a participação política destes sujeitos coletivos que provocaram o reconhecimento na Constituição de 1988 da necessidade de combate ao racismo e a intolerância. Porém, a simples positivação não representa a superação do racismo, o qual persiste nas relações sociais principalmente frente às religiões de matriz africana, por parte do Estado como produto do racismo institucional ou no fundamentalismo intolerante das religiões neopentecostais em sua guerra santa contra a religiosidade africana. Podemos perceber o racismo institucional na negação da igualdade de direitos para estas religiões, os exemplos são variados e permanecem nas práticas institucionais, seja na exigência inconstitucional de impostos aos templos religiosos, na falta de reconhecimento dos sacerdotes para fins de inscrição na seguridade social, e na recente tentativa de proibição do sacrifício de animais em rituais religiosos no Rio Grande do Sul, só não efetivada devido à pressão das entidades negras. A outra face atual do racismo contra o Candomblé é a recente cruzada das igrejas ditas neopentecostais contra os símbolos e adeptos das religiões de matriz africana. Reflete a reprodução de todo um senso comum estigmatizante e depreciativo das identi-

dades negras. O país tão propalado como o paraíso das relações raciais e da tolerância assiste aos ataques por intermédio dos meios de comunicação sob o poderio das igrejas, a exemplo da Universal do Reino de Deus, a invasão de terreiros, difamação de adeptos do candomblé em espaços públicos e em muitos casos a própria violência física, revelando a marca racial da intolerância religiosa no país. As comunidades religiosas junto com o movimento negro reagem pautando o debate da intolerância, provocando o judiciário a se manifestar e exigindo da sociedade e dos órgãos públicos ações efetivas contra a violação do direito de liberdade religiosa. Como mais uma experiência de solidariedade da população negra surgiu o Movimento Contra a Intolerância Religiosa, com a presença do povo de santo e de militantes do movimento negro do Brasil inteiro. O movimento promoveu manifestações, denúncias na imprensa, reuniões e encontros, conquistando vitórias judiciais contra o uso preconceituoso dos programas de televisão e rádio, bem como a fixação de indenizações frente às práticas discriminatórias, movimento este

que tomou uma dimensão nacional e passou a pautar politicamente os interesses das comunidades religiosas de matrizes africanas. Portanto a trajetória da luta pelo reconhecimento das religiões de matriz africana deve ser compreendida como uma experiência emancipatória que durante muito tempo foi produzida como não existente, na tentativa de negar o protagonismo das comunidades negras na afirmação de sua identidade religiosa/racial. Por outro lado não podemos falar de reconhecimento se permanecemos no idealismo da tolerância que marca os discursos autorizados. Ademais só haverá uma real conquista de direitos por parte destas religiões quando entendermos que o reconhecimento e proteção da religiosidade negra no Brasil dependem de uma articulação do combate ao racismo e da afirmação da alteridade como elemento basilar do direito a liberdade religiosa. Em uma sociedade marcada pelo racismo, o reconhecimento antes de ser uma concessão da elite branca é produto da luta da comunidade negra. É neste sentido que tentamos res-

gatar dos porões discursivos da narrativa oficial, a trajetória das religiões de matriz africana na luta pela afirmação de identidade religiosa/racial, experiência que nos permite reorientar o debate democrático sobre a tolerância e o direito a liberdade religiosa.

Carta aberta das Yalorixás no encerramento do Congresso Internacional dos orixás: e publicada no Jornal da Bahia no ano de 1983 Desde a escravidão que preto é sinônimo de pobre, ignorante, sem direito a nada a não ser saber que não tem direito; é um grande brinquedo dentro da cultura que o estigmatiza, sua religião também vira brincadeira. Sejamos livres, lutemos contra o que nos abate e nos desconsidera, contra o que só nos aceita se nós estivermos com a roupa que nos deram para usar." (Carta da yalorixás; Jornal da Bahia, 1983).


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Rejeição da Carta européia pela França e pela Holanda Européia não ocorreu de uma hora para outra. Na realidade, ela se insere num contexto histórico de integração do continente europeu, que se iniciou em 1957, com a instituição da Comunidade Econômica Européia (CEE). Desde então, o processo de integração tem sido aprofundado com os tratados subseqüentes, como o Ato Único Europeu (1986), o Tratado de Maastricht (1992), o Tratado de Amsterdã (1997) e o Tratado de Nice (2001). O Tratado de Maastricht, responsável pela criação da União Européia, constituiu um marco no processo de integração política da Europa, tendo sido compreendido como precursor de uma Constituição para a Europa.

Laura Schertel

O

“não” dito à Constituição européia pelos franceses e pelos holandeses nos referendos realizados em 2005 abalou o processo constituinte europeu. Embora as pesquisas de opinião tivessem previsto o resultado do referendo, o “não” surpreendeu a quase todos os políticos europeus, que estavam esperançosos de que os eleitores teriam a “sabedoria” e o “bom senso” de votar “corretamente” a favor da Constituição. Em razão do impacto que o resultado dos referendos causou, este artigo visa analisar o significado da rejeição da Constituição européia pelos franceses e holandeses no contexto de integração da Europa, bem como examinar as razões para tal rejeição. O texto que ficou conhecido por Constituição européia tem, na realidade, a forma jurídica de um “Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa”. Esse tratado foi assinado em outubro de 2004 pelos governos dos Estados que compõem a União Européia, mas não entrou em vigor, uma vez que a sua vigência está condicionada à ratificação pelo parlamento de cada um dos países integrantes da União Européia ou por meio de referendo popular. Até o momento, os países que ratificaram a Constituição para a Europa foram Áustria, Bélgica, Chipre, Alemanha, Grécia, Hungria, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Eslováquia, Eslovênia e Espanha. A data prevista para que a Constituição entrasse em vigor era 1º de novembro de 2006, quando todos os países deveriam tê-la ratificado. Todavia, em razão das rejeições da França e da Holanda, o Conselho Europeu decidiu que, no primeiro semestre de 2006, será feita uma apreciação global dos debates nacionais para que se decida sobre a continuação do processo constituinte europeu. Não se pode negar que a idéia de uma Constituição Européia cause

certa estranheza. Como o constitucionalismo, oriundo das Revoluções Francesa e Americana, sempre esteve associado ao ideário do Estado nacional, é compreensível a polêmica causada pela aprovação de uma Constituição para uma comunidade de Estados. Diante dessa realidade européia inovadora, surgem inúmeros questionamentos referentes à idéia de uma Constituição continental. Como se deve entender o fato de cidadãos de diversas nacionalidades estarem submetidos a um mesmo documento jurídico-político? É possível que diversos Estados soberanos sejam regidos por uma mesma Constituição? Será que os conceitos tradicionais são adequados para explicar essa nova forma de organização política ou devemos abandonálos para compreender essa nova realidade? O processo constituinte europeu O processo de discussão e aprovação da Constituição européia iniciou-se em 2001, em Laeken, na Bélgica, quando o Conselho Europeu decidiu convocar uma Conven-

ção Européia para reestruturar e simplificar os tratados vigentes. Essa revisão dos tratados visava tornar as instituições européias mais transparentes e mais próximas dos cidadãos. Com base nesses argumentos, foi convocada a Convenção, que tinha como tarefa discutir o futuro da Europa e preparar um documento final no qual constassem as suas resoluções. A Convenção, composta por 105 membros que representavam os parlamentos nacionais, o Parlamento Europeu, a Comissão Européia, os Estados-Membros e os Estados candidatos à adesão, iniciou os seus trabalhos em fevereiro de 2002. Em julho de 2003, após 16 meses de trabalho, a Convenção Européia apresentou o Projeto do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa. Esse projeto de tratado foi, então, submetido à Conferência Intergovernamental, que após tê-lo discutido e modificado, aprovou-o. Assim, o “Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa” foi assinado em 29 de outubro de 2004, em Roma. É importante lembrar que a idéia de se estabelecer uma Constituição

O menosprezo ao “não” O “não” dito pelos franceses à Constituição européia deixou todos os seus defensores perplexos, tendo em vista que a França foi um dos países fundadores da União Européia e também uma das principais incentivadoras da integração da Europa desde o seu início. O impacto da rejeição foi tamanho que o primeiro-ministro francês, Jean-Pierre Raffarin, pediu demissão. Na Holanda, em que o referendo tinha uma função apenas de consulta, o governo decidiu retirar a proposta de ratificação da Constituição que estava no Parlamento. Os efeitos do “não” ultrapassaram até mesmo as fronteiras dos dois países protagonistas, alcançando outros Estados europeus: alguns países decidiram substituir o referendo pela ratificação pelo Parlamento e outros, como a Inglaterra e a Dinamarca, resolveram adiar as datas dos referendos que já estavam previstas. Na Alemanha, em que a Constituição já tinha sido ratificada pelo Parlamento, foi realizada pesquisa de opinião, que indicou que, após esses acontecimentos, a população teria votado em massa contra a Constituição se tivesse havido uma consulta popular.

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O legítimo direito de dizer não O que se percebeu depois dos resultados dos referendos foi que a decisão dos eleitores franceses e holandeses foi tratada pelos governantes e políticos como fruto do desconhecimento e da ignorância em relação ao projeto da Europa. Que as autoridades de Bruxelas tenham ficado descontentes com os plebiscitos pode ser compreendido; o que não pode sê-lo foi a incapacidade dessas autoridades de aceitarem o resultado como a legítima vontade dos povos dos dois países. Tanto os franceses quanto os holandeses foram tratados pela mídia como alunos que não aprenderam a lição dos seus tutores. De fato, foi marcante no cenário europeu pós-referendo a idéia de que a elite política falhou ao ensinar os seus pupilos sobre as óbvias virtudes de uma maior integração européia encabeçada por uma Constituição. As vantagens da Constituição seriam tão evidentes aos olhos dos políticos europeus que o tema não mereceria nem ser discutido pela população. Nesse contexto, o “não” foi interpretado das mais diversas formas: como ignorância, como medo, como descontentamento com a política nacional, até mesmo como um “sim” enviesado. Houve quem atribuísse o “não” à burrice das massas, que por serem incapazes de decidir sobre questões complexas, não deveriam ter prerrogativas para tanto. A idéia de que somente o medo ou a ignorância poderiam ensejar a rejeição da Constituição européia está expressa na constrangedora mensagem em defesa da Constituição assinada por intelectuais europeus. A carta foi publicada em 2 de maio de 2005 na França e no dia seguinte na Alemanha, diante da previsão das pesquisas de opinião francesas que demonstravam a forte adesão ao “não”. Intitulada “A Europa necessita de coragem”, em uma alusão ao suposto medo dos franceses da Constituição européia, a mensagem busca convencer os franceses a votar a favor da Constituição, sob o argumento de que a sua rejeição equivaleria à “rendição da razão” e de que a França, como o berço do Iluminismo, não poderia “trair o progresso”. Por fim, a carta incita os franceses a “falarem para os seus compatriotas que o medo não oferece segu-

rança, mas é um sinal de fraqueza, se não um convite para o suicídio”. Será mesmo a rejeição à Constituição significado de irracionalidade, fraqueza e retrocesso? Ou será que a irracionalidade não consiste exatamente na atitude de negar a legitimidade do não? Trata-se isso sim de suicídio democrático, sem dúvida, e de traição não ao progresso, mas à democracia. O fatalismo da mensagem impressiona ao tratar a opção pela Constituição como única saída viável e racional. A irracionalidade reside, pois, não na rejeição dessa Constituição, mas na defesa da aprovação de uma Constituição pouco debatida e cuja legitimidade é questionável. O legítimo direito de dizer “não” Diante dessas observações, como então se poderia interpretar o “não” à Constituição européia? Inicialmente, é importante lembrar que tanto na França quanto na Holanda os partidos que defenderam a rejeição eram de correntes políticas opostas. A direita nacionalista e populista entendeu que a aprovação da Constituição européia geraria problemas de imigração de países pobres e de população muçulmana. Além disso, defendeu a rejeição da Constituição por acreditar que ela afrontaria a soberania nacional e as Constituições nacionais. Por outro lado, a esquerda radical também apoiou o “não”, mas por razões opostas. Segundo essa corrente política, o texto da Constituição favorece a política neoliberal e privilegia aspectos econômicos em detrimento de sociais. Para a esquerda, também a entrada da Turquia na União Européia constitui um problema do ponto de vista da imagem da proteção dos direitos humanos, tendo em vista que esse país é responsável por muitas violações de direitos. Assim, após os referendos viram-se as mais diversas vertentes políticas festejando. Certamente o “não” pronunciado nos referendos não se referiu apenas ao texto ou a determinados trechos da Constituição. O que ocorreu foi a negação de todo um processo de integração do continente realizado de forma fechada, sem participação democrática e com raríssimos momen-

tos de participação popular. O processo político europeu sempre se caracterizou pela falta de transparência, apresentando, portanto, um elevado déficit democrático, que se fez presente também no processo constituinte europeu. Dessa forma, podese dizer que há um abismo entre os cidadãos e a idéia de uma Constituição européia, o que pode explicar, em parte, os resultados dos plebiscitos. A forma em que foi conduzida a integração européia acabou por reprimir os conflitos referentes aos objetivos da União Européia, ao invés de discuti-los e tematizá-los. Por muito tempo, os políticos europeus se esquivaram à discussão pública, buscando esconder as dificuldades surgidas durante o processo de integração. Agora, o povo manifesta-se contrariamente à Constituição européia e demonstra que um processo político conduzido a portas fechadas, sem legitimidade popular, está fadado ao fracasso. Outro problema do processo constituinte europeu refere-se à obscuridade a respeito das suas perspectivas e do caminho que a Europa irá seguir após a aprovação da Constituição. De fato, nem os políticos, nem os intelectuais europeus concordam sobre o futuro da Europa. Enquanto alguns afirmam que a União Européia irá se tornar os Estados Unidos da Europa, outros entendem que a soberania dos países europeus deve conti-

nuar intacta. Nesse contexto, percebe-se que a discussão sobre uma Constituição para a Europa deveria envolver largos debates sobre o que a Europa quer ser, debates sem os quais o processo constituinte não é capaz de evoluir. O “não” pronunciado à Constituição européia, ainda que tenha sido por apenas dois dos Estados da União Européia, não deve ser desprezado, pois tal fato indica carência de legitimidade da integração européia, bem como a necessidade de se promover uma ampla discussão sobre os problemas e sobre as perspectivas de uma Constituição para a Europa. Certo é que se não houver a aceitação e a adesão dos cidadãos ao incipiente processo constituinte europeu, dificilmente poderá a Constituição européia ser conhecida e reconhecida como uma Constituição legítima. Como afirmou o presidente do Conselho da União Européia, JeanClaude Juncker, após os resultados dos referendos, “A Europa não deixa mais as pessoas sonharem”. De fato, para que isso seja possível, é necessário abrir espaço para a participação, debater sobre expectativas e perspectivas para a Europa, não precipitar decisões nem impô-las de cima para baixo e, em vez de ocultar os problemas referentes à integração, mostrálos e debatê-los. Só assim haverá um contexto propício para um legítimo processo constituinte europeu.


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Rejeição da Carta européia pela França e pela Holanda Européia não ocorreu de uma hora para outra. Na realidade, ela se insere num contexto histórico de integração do continente europeu, que se iniciou em 1957, com a instituição da Comunidade Econômica Européia (CEE). Desde então, o processo de integração tem sido aprofundado com os tratados subseqüentes, como o Ato Único Europeu (1986), o Tratado de Maastricht (1992), o Tratado de Amsterdã (1997) e o Tratado de Nice (2001). O Tratado de Maastricht, responsável pela criação da União Européia, constituiu um marco no processo de integração política da Europa, tendo sido compreendido como precursor de uma Constituição para a Europa.

Laura Schertel

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“não” dito à Constituição européia pelos franceses e pelos holandeses nos referendos realizados em 2005 abalou o processo constituinte europeu. Embora as pesquisas de opinião tivessem previsto o resultado do referendo, o “não” surpreendeu a quase todos os políticos europeus, que estavam esperançosos de que os eleitores teriam a “sabedoria” e o “bom senso” de votar “corretamente” a favor da Constituição. Em razão do impacto que o resultado dos referendos causou, este artigo visa analisar o significado da rejeição da Constituição européia pelos franceses e holandeses no contexto de integração da Europa, bem como examinar as razões para tal rejeição. O texto que ficou conhecido por Constituição européia tem, na realidade, a forma jurídica de um “Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa”. Esse tratado foi assinado em outubro de 2004 pelos governos dos Estados que compõem a União Européia, mas não entrou em vigor, uma vez que a sua vigência está condicionada à ratificação pelo parlamento de cada um dos países integrantes da União Européia ou por meio de referendo popular. Até o momento, os países que ratificaram a Constituição para a Europa foram Áustria, Bélgica, Chipre, Alemanha, Grécia, Hungria, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Eslováquia, Eslovênia e Espanha. A data prevista para que a Constituição entrasse em vigor era 1º de novembro de 2006, quando todos os países deveriam tê-la ratificado. Todavia, em razão das rejeições da França e da Holanda, o Conselho Europeu decidiu que, no primeiro semestre de 2006, será feita uma apreciação global dos debates nacionais para que se decida sobre a continuação do processo constituinte europeu. Não se pode negar que a idéia de uma Constituição Européia cause

certa estranheza. Como o constitucionalismo, oriundo das Revoluções Francesa e Americana, sempre esteve associado ao ideário do Estado nacional, é compreensível a polêmica causada pela aprovação de uma Constituição para uma comunidade de Estados. Diante dessa realidade européia inovadora, surgem inúmeros questionamentos referentes à idéia de uma Constituição continental. Como se deve entender o fato de cidadãos de diversas nacionalidades estarem submetidos a um mesmo documento jurídico-político? É possível que diversos Estados soberanos sejam regidos por uma mesma Constituição? Será que os conceitos tradicionais são adequados para explicar essa nova forma de organização política ou devemos abandonálos para compreender essa nova realidade? O processo constituinte europeu O processo de discussão e aprovação da Constituição européia iniciou-se em 2001, em Laeken, na Bélgica, quando o Conselho Europeu decidiu convocar uma Conven-

ção Européia para reestruturar e simplificar os tratados vigentes. Essa revisão dos tratados visava tornar as instituições européias mais transparentes e mais próximas dos cidadãos. Com base nesses argumentos, foi convocada a Convenção, que tinha como tarefa discutir o futuro da Europa e preparar um documento final no qual constassem as suas resoluções. A Convenção, composta por 105 membros que representavam os parlamentos nacionais, o Parlamento Europeu, a Comissão Européia, os Estados-Membros e os Estados candidatos à adesão, iniciou os seus trabalhos em fevereiro de 2002. Em julho de 2003, após 16 meses de trabalho, a Convenção Européia apresentou o Projeto do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa. Esse projeto de tratado foi, então, submetido à Conferência Intergovernamental, que após tê-lo discutido e modificado, aprovou-o. Assim, o “Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa” foi assinado em 29 de outubro de 2004, em Roma. É importante lembrar que a idéia de se estabelecer uma Constituição

O menosprezo ao “não” O “não” dito pelos franceses à Constituição européia deixou todos os seus defensores perplexos, tendo em vista que a França foi um dos países fundadores da União Européia e também uma das principais incentivadoras da integração da Europa desde o seu início. O impacto da rejeição foi tamanho que o primeiro-ministro francês, Jean-Pierre Raffarin, pediu demissão. Na Holanda, em que o referendo tinha uma função apenas de consulta, o governo decidiu retirar a proposta de ratificação da Constituição que estava no Parlamento. Os efeitos do “não” ultrapassaram até mesmo as fronteiras dos dois países protagonistas, alcançando outros Estados europeus: alguns países decidiram substituir o referendo pela ratificação pelo Parlamento e outros, como a Inglaterra e a Dinamarca, resolveram adiar as datas dos referendos que já estavam previstas. Na Alemanha, em que a Constituição já tinha sido ratificada pelo Parlamento, foi realizada pesquisa de opinião, que indicou que, após esses acontecimentos, a população teria votado em massa contra a Constituição se tivesse havido uma consulta popular.

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O legítimo direito de dizer não O que se percebeu depois dos resultados dos referendos foi que a decisão dos eleitores franceses e holandeses foi tratada pelos governantes e políticos como fruto do desconhecimento e da ignorância em relação ao projeto da Europa. Que as autoridades de Bruxelas tenham ficado descontentes com os plebiscitos pode ser compreendido; o que não pode sê-lo foi a incapacidade dessas autoridades de aceitarem o resultado como a legítima vontade dos povos dos dois países. Tanto os franceses quanto os holandeses foram tratados pela mídia como alunos que não aprenderam a lição dos seus tutores. De fato, foi marcante no cenário europeu pós-referendo a idéia de que a elite política falhou ao ensinar os seus pupilos sobre as óbvias virtudes de uma maior integração européia encabeçada por uma Constituição. As vantagens da Constituição seriam tão evidentes aos olhos dos políticos europeus que o tema não mereceria nem ser discutido pela população. Nesse contexto, o “não” foi interpretado das mais diversas formas: como ignorância, como medo, como descontentamento com a política nacional, até mesmo como um “sim” enviesado. Houve quem atribuísse o “não” à burrice das massas, que por serem incapazes de decidir sobre questões complexas, não deveriam ter prerrogativas para tanto. A idéia de que somente o medo ou a ignorância poderiam ensejar a rejeição da Constituição européia está expressa na constrangedora mensagem em defesa da Constituição assinada por intelectuais europeus. A carta foi publicada em 2 de maio de 2005 na França e no dia seguinte na Alemanha, diante da previsão das pesquisas de opinião francesas que demonstravam a forte adesão ao “não”. Intitulada “A Europa necessita de coragem”, em uma alusão ao suposto medo dos franceses da Constituição européia, a mensagem busca convencer os franceses a votar a favor da Constituição, sob o argumento de que a sua rejeição equivaleria à “rendição da razão” e de que a França, como o berço do Iluminismo, não poderia “trair o progresso”. Por fim, a carta incita os franceses a “falarem para os seus compatriotas que o medo não oferece segu-

rança, mas é um sinal de fraqueza, se não um convite para o suicídio”. Será mesmo a rejeição à Constituição significado de irracionalidade, fraqueza e retrocesso? Ou será que a irracionalidade não consiste exatamente na atitude de negar a legitimidade do não? Trata-se isso sim de suicídio democrático, sem dúvida, e de traição não ao progresso, mas à democracia. O fatalismo da mensagem impressiona ao tratar a opção pela Constituição como única saída viável e racional. A irracionalidade reside, pois, não na rejeição dessa Constituição, mas na defesa da aprovação de uma Constituição pouco debatida e cuja legitimidade é questionável. O legítimo direito de dizer “não” Diante dessas observações, como então se poderia interpretar o “não” à Constituição européia? Inicialmente, é importante lembrar que tanto na França quanto na Holanda os partidos que defenderam a rejeição eram de correntes políticas opostas. A direita nacionalista e populista entendeu que a aprovação da Constituição européia geraria problemas de imigração de países pobres e de população muçulmana. Além disso, defendeu a rejeição da Constituição por acreditar que ela afrontaria a soberania nacional e as Constituições nacionais. Por outro lado, a esquerda radical também apoiou o “não”, mas por razões opostas. Segundo essa corrente política, o texto da Constituição favorece a política neoliberal e privilegia aspectos econômicos em detrimento de sociais. Para a esquerda, também a entrada da Turquia na União Européia constitui um problema do ponto de vista da imagem da proteção dos direitos humanos, tendo em vista que esse país é responsável por muitas violações de direitos. Assim, após os referendos viram-se as mais diversas vertentes políticas festejando. Certamente o “não” pronunciado nos referendos não se referiu apenas ao texto ou a determinados trechos da Constituição. O que ocorreu foi a negação de todo um processo de integração do continente realizado de forma fechada, sem participação democrática e com raríssimos momen-

tos de participação popular. O processo político europeu sempre se caracterizou pela falta de transparência, apresentando, portanto, um elevado déficit democrático, que se fez presente também no processo constituinte europeu. Dessa forma, podese dizer que há um abismo entre os cidadãos e a idéia de uma Constituição européia, o que pode explicar, em parte, os resultados dos plebiscitos. A forma em que foi conduzida a integração européia acabou por reprimir os conflitos referentes aos objetivos da União Européia, ao invés de discuti-los e tematizá-los. Por muito tempo, os políticos europeus se esquivaram à discussão pública, buscando esconder as dificuldades surgidas durante o processo de integração. Agora, o povo manifesta-se contrariamente à Constituição européia e demonstra que um processo político conduzido a portas fechadas, sem legitimidade popular, está fadado ao fracasso. Outro problema do processo constituinte europeu refere-se à obscuridade a respeito das suas perspectivas e do caminho que a Europa irá seguir após a aprovação da Constituição. De fato, nem os políticos, nem os intelectuais europeus concordam sobre o futuro da Europa. Enquanto alguns afirmam que a União Européia irá se tornar os Estados Unidos da Europa, outros entendem que a soberania dos países europeus deve conti-

nuar intacta. Nesse contexto, percebe-se que a discussão sobre uma Constituição para a Europa deveria envolver largos debates sobre o que a Europa quer ser, debates sem os quais o processo constituinte não é capaz de evoluir. O “não” pronunciado à Constituição européia, ainda que tenha sido por apenas dois dos Estados da União Européia, não deve ser desprezado, pois tal fato indica carência de legitimidade da integração européia, bem como a necessidade de se promover uma ampla discussão sobre os problemas e sobre as perspectivas de uma Constituição para a Europa. Certo é que se não houver a aceitação e a adesão dos cidadãos ao incipiente processo constituinte europeu, dificilmente poderá a Constituição européia ser conhecida e reconhecida como uma Constituição legítima. Como afirmou o presidente do Conselho da União Européia, JeanClaude Juncker, após os resultados dos referendos, “A Europa não deixa mais as pessoas sonharem”. De fato, para que isso seja possível, é necessário abrir espaço para a participação, debater sobre expectativas e perspectivas para a Europa, não precipitar decisões nem impô-las de cima para baixo e, em vez de ocultar os problemas referentes à integração, mostrálos e debatê-los. Só assim haverá um contexto propício para um legítimo processo constituinte europeu.


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Luta contra a intolerância religiosa no Brasil

Direito Internacional e a humanização Antônio Augusto Cançado Trindade

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Direito Internacional tradicional,do século XX, caracterizava-se pelo voluntarismo estatal ilimitado, que se refletia na permissividade do recurso à guerra, da celebração de tratados desiguais, da diplomacia secreta, da manutenção das colônias e protetorados e de zonas de influência. Contra esta ordem oligárquica e injusta se insurgiram princípios como: a proibição do uso e ameaça da força e da guerra de agressão (e do não-reconhecimento de situações por estas geradas), a igualdade jurídica dos Estados, a solução pacífica de controvérsias internacionais. Deu-se início ao combate às desigualdades (com a abolição das capitulações, o estabelecimento do sistema de proteção de minorias e a adoção das primeiras convenções internacionais do trabalho, da OIT). A par dos princípios do Direito Internacional, a invocação, no âmbito das “fontes” do Direito Internacional, dos princípios gerais do direito (...) veio atender às “exigências éticas” do ordenamento jurídico internacional, a partir de uma visão jusnaturalista renovada. Tais princípios passaram a iluminar a formação e a evolução do ordenamento jurídico internacional, dada a incapacidade do positivismo jurídico de explicar a formação das normas consuetudinárias, de visualizar o Direito como meio para a realização da justiça, e de reconhecer que

o fundamento último do Direito se encontra necessariamente fora da ordem legal positiva. Em meados do século XX se reconheceu a necessidade da reconstrução do Direito Internacional com atenção voltada aos direitos inerentes a todo ser humano, - do que deu testemunho eloqüente a adoção da Declaração Universal de 1948, seguida, ao longo de cinco décadas, por mais de 70 tratados de proteção hoje vigentes nos planos global e regional, em uma manifestação do despertar da consciência jurídica universal para a necessidade de assegurar a proteção eficaz do ser humano em todas e quaisquer circunstâncias. O Direito Internacional passou a experimentar, na segunda metade do século XX, uma extraordinária expansão, fomentada em grande parte pela atuação da ONU e agências especializadas, além das organizações regionais. Assim, por influência direta das organizações internacionais, o processo tornou-se complexo e multifacetado, no propósito de lograr uma ampla regulamentação que atendesse às necessidades e aspirações da comunidade internacional como um todo. A vasta produção normativa da ONU, por exemplo, já não se limitava aos projetos da Comissão de Direito Internacional, – que retêm seu valor e utilidade, – mas passaram a se estender à própria Assembléia Geral, a sua VI Comissão (para assuntos jurídicos), às Conferências de Plenipoten-

ciáiros; além disso, agências especializadas da ONU, como a OIT, a UNESCO, a AIEA, dentre outras, passaram a produzir numerosos tratados e convenções de importância. A emergência dos novos Estados, em meio ao processo histórico de descolonização, veio a marcar profundamente sua evolução nas décadas de cinqüenta e sessenta, em meio ao grande impacto no seio das Nações Unidas do direito emergente de autodeterminação dos povos. Desencadeou-se o processo de democratização do Direito Internacional. Ao transcender os antigos parâmetros do direito clássico da paz e da guerra, equipou-se o Direito Internacional, com maior ênfase na cooperação internacional. Nas décadas de sessenta e oitenta, os foros multilaterais se involucraram em um intenso processo de elaboração e adoção de sucessivos tratados e resoluções de regulamentação dos espaços. As notáveis transformações no cenário mundial desencadeadas a partir de 1989, pelo fim da guerra fria e a irrupção de numerosos conflitos internos, caracterizaram os anos noventa como um momento na história contemporânea marcado por uma profunda reflexão, em escala universal, sobre as próprias bases da sociedade internacional e a formação gradual da agenda internacional do século XXI. O ciclo das Conferências Mundiais da ONU do final do século XX tem procedido a uma reavaliação global de muitos conceitos à luz da

consideração de temas que afetam a humanidade como um todo. Seu denominador comum tem sido a atenção especial às condições de vida da população – em particular dos que integram os grupos vulneráveis, em necessidade especial de proteção. Com efeito, os grandes desafios de nossos tempos – a proteção do ser humano e do meio ambiente, a superação das disparidades alarmantes entre os países e dentro deles assim como da exclusão social, a erradicação da pobreza crônica e o fomento do desenvolvimento humano, o desarmamento, – têm incitado à revitalização dos próprios fundamentos e princípios do Direito Internacional contemporâneo, tendendo a fazer abstração de soluções jurisdicionais e espaciais (territoriais) clássicas e deslocando a ênfase para a noção de solidariedade. Em meu entender, há efetivamente elementos para abordar a matéria, deste prisma e de modo mais satisfatório, tanto na jurisprudência internacional, como na prática dos Estados e organismos internacionais, como na doutrina jurídica mais lúcida. Destes elementos se depreende – permito-me insistir nesse ponto central – o despertar de uma consciência jurídica universal, para reconstruir, neste início do século XXI, o Direito Internacional com base em um novo paradigma já não mais estatocêntrico, mas situando o ser humano em posição central e tendo presentes os problemas que afetam a humanidade como um todo.

Mas a experiência de resistência e luta da população negra não sucumbe aos mecanismos de negação de suas identidades, portanto as comunidades religiosas de matriz africana e o movimento negro organizado não se renderam aos padrões impostos pela cultura branca hegemônica. Ocuparam o espaço democrático afirmando a negritude e seu símbolos, combatendo o racismo na desconstrução do mito da democracia racial e na proposição de políticas públicas a partir de um olhar que traduza e supere a realidade de desigualdade racial. Daí a necessidade de pensar o reconhecimento dos direitos destas religiões articulando os princípios da igualdade e da diferença, fundamental para a afirmação de sua alteridade e a conseqüente proteção de suas manifestações religiosas. O protesto negro emergiu das ruas e tomou a cena política, exigiu dos poderes públicos ações que superassem a realidade racial brasileira, e foi a participação política destes sujeitos coletivos que provocaram o reconhecimento na Constituição de 1988 da necessidade de combate ao racismo e a intolerância. Porém, a simples positivação não representa a superação do racismo, o qual persiste nas relações sociais principalmente frente às religiões de matriz africana, por parte do Estado como produto do racismo institucional ou no fundamentalismo intolerante das religiões neopentecostais em sua guerra santa contra a religiosidade africana. Podemos perceber o racismo institucional na negação da igualdade de direitos para estas religiões, os exemplos são variados e permanecem nas práticas institucionais, seja na exigência inconstitucional de impostos aos templos religiosos, na falta de reconhecimento dos sacerdotes para fins de inscrição na seguridade social, e na recente tentativa de proibição do sacrifício de animais em rituais religiosos no Rio Grande do Sul, só não efetivada devido à pressão das entidades negras. A outra face atual do racismo contra o Candomblé é a recente cruzada das igrejas ditas neopentecostais contra os símbolos e adeptos das religiões de matriz africana. Reflete a reprodução de todo um senso comum estigmatizante e depreciativo das identi-

dades negras. O país tão propalado como o paraíso das relações raciais e da tolerância assiste aos ataques por intermédio dos meios de comunicação sob o poderio das igrejas, a exemplo da Universal do Reino de Deus, a invasão de terreiros, difamação de adeptos do candomblé em espaços públicos e em muitos casos a própria violência física, revelando a marca racial da intolerância religiosa no país. As comunidades religiosas junto com o movimento negro reagem pautando o debate da intolerância, provocando o judiciário a se manifestar e exigindo da sociedade e dos órgãos públicos ações efetivas contra a violação do direito de liberdade religiosa. Como mais uma experiência de solidariedade da população negra surgiu o Movimento Contra a Intolerância Religiosa, com a presença do povo de santo e de militantes do movimento negro do Brasil inteiro. O movimento promoveu manifestações, denúncias na imprensa, reuniões e encontros, conquistando vitórias judiciais contra o uso preconceituoso dos programas de televisão e rádio, bem como a fixação de indenizações frente às práticas discriminatórias, movimento este

que tomou uma dimensão nacional e passou a pautar politicamente os interesses das comunidades religiosas de matrizes africanas. Portanto a trajetória da luta pelo reconhecimento das religiões de matriz africana deve ser compreendida como uma experiência emancipatória que durante muito tempo foi produzida como não existente, na tentativa de negar o protagonismo das comunidades negras na afirmação de sua identidade religiosa/racial. Por outro lado não podemos falar de reconhecimento se permanecemos no idealismo da tolerância que marca os discursos autorizados. Ademais só haverá uma real conquista de direitos por parte destas religiões quando entendermos que o reconhecimento e proteção da religiosidade negra no Brasil dependem de uma articulação do combate ao racismo e da afirmação da alteridade como elemento basilar do direito a liberdade religiosa. Em uma sociedade marcada pelo racismo, o reconhecimento antes de ser uma concessão da elite branca é produto da luta da comunidade negra. É neste sentido que tentamos res-

gatar dos porões discursivos da narrativa oficial, a trajetória das religiões de matriz africana na luta pela afirmação de identidade religiosa/racial, experiência que nos permite reorientar o debate democrático sobre a tolerância e o direito a liberdade religiosa.

Carta aberta das Yalorixás no encerramento do Congresso Internacional dos orixás: e publicada no Jornal da Bahia no ano de 1983 Desde a escravidão que preto é sinônimo de pobre, ignorante, sem direito a nada a não ser saber que não tem direito; é um grande brinquedo dentro da cultura que o estigmatiza, sua religião também vira brincadeira. Sejamos livres, lutemos contra o que nos abate e nos desconsidera, contra o que só nos aceita se nós estivermos com a roupa que nos deram para usar." (Carta da yalorixás; Jornal da Bahia, 1983).


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As religiões de matriz africana Maurício Azevedo de Araújo

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ara falarmos da luta pelo reconhecimento da identidade religiosa/racial das religiões de matriz africanas, temos antes que resgatar uma experiência emancipatória negada pela formação racista do Estado e da Sociedade brasileira. É tempo de recompor as trajetórias e redimensionar as práticas que permitiram a repressão e negação de direitos destas comunidades religiosas, bem como afirmar a capacidade de resistência e proteção de sua religiosidade que até hoje sofre do preconceito e da intolerância. Portanto é necessário fazer um percurso pela trajetória destas religiões na busca pela liberdade e igualdade de direitos, pois só desconstruindo a idéia de uma sociedade tolerante e harmoniosa poderemos perceber que a falta de reconhecimento está intimamente ligada ao caráter racista das relações sociais no país. O direito de liberdade religiosa foi garantido no Brasil desde a Constituição de 1891, porém esta não foi a realidade das religiões de origens africana, já que a proclamação da República e abolição da escravidão foram acompanhadas por uma ideologia do branqueamento da população brasileira. A elite nacional caracterizada pela oligarquia rural, militarista e branca imbuída na construção do projeto de nação que incorporasse valores “superiores” da civilização européia, estabeleceu formas de controle e exclusão da população negra recentemente liberta, seja na tentativa de extermínio de suas identidades culturais, como na construção de uma política de branqueamento da sociedade com o objetivo de afastar as influências da comunidade negra do projeto civilizatório nacional. O Estado, a imprensa e a sociedade brasileira promoveram nas primeiras décadas do século XX, uma sistemática repressão e perseguição

às religiões afrodescendentes, através do aparelho repressivo do Estado -a polícia - foram efetuadas diversas batidas nos terreiros de candomblé, interrompendo as manifestações religiosas, prendendo adeptos da religião e apreendendo objetos sagrados, normalmente sob a alegação da defesa da moral pública. Cabe ressaltar o papel fundamental dos discursos jurídicos embalados pela onda racialista, os quais imprimiram uma cruzada contra as manifestações da população negra, a exemplo da criminalização da capoeira e do samba. Em relação às religiões, em vez do direito a liberdade religiosa, o candomblé sofreu verdadeiro processo de controle e vigilância e seus membros criminalmente enquadrados sob a alegação de práticas de feitiçarias e falsa medicina. Porém esqueceram de um detalhe, a capacidade guerreira e a habilidade de negociar do povo negro, que desde a escravidão criou táticas e estratégias para sobreviver e preservar a herança de seus antepassados e de sua terra, a mãe África, que ainda hoje permeia os sentimentos do negro na diáspora. Mesmo diante do ambiente hostil e preconceituoso, as comunidades religiosas de matrizes africanas estabeleceram formas de resistência que possibilitaram sua sobrevivência, tornandose exemplo de práticas emancipatórias que influenciaram as lutas posteriores do povo negro na busca da igualdade e da afirmação de sua identidade racial. As estratégias de resistência como a negociação com as autoridades do Estado e a conquista de apoio de setores da sociedade, possibilitaram com que na década de cinqüenta a repressão frente às religiões de matriz africanas fosse se arrefecendo. As batidas policiais nos terreiros, a prisão de membros da religião e a apreensão de objetos sagrados deram lugar a um discurso oficial de uma nação marcada pela convivên-

cia tolerante das diversas religiões. A elite branca e cristã do Brasil, como que passando uma borracha na história recente de perseguição, embarca no discurso da tolerância complacente, onde do alto da superioridade hierárquica do catolicismo exaltam o sincretismo como benevolência, ou melhor, uma complacência tolerante marcada mais pelo desprezo e arrogante piedade do que um verdadeiro reconhecimento do Candomblé. A formação do discurso de uma sociedade racialmente democrática e tolerante escondia o caráter assimilador das práticas sociais da população negra, estabelecendo barreiras culturais, políticas e jurídicas para uma verdadeira aceitação das religiões de matriz africana. Primeiro porque não se enfrentava o racismo institucionalizado do Estado

brasileiro refletido na falta de reconhecimento da imunidade tributária dos terreiros, do casamento religioso e a exclusão da cosmovisão africana do ensino religioso, ao tempo que se naturalizava nas práticas sociais um discurso de inferiorização e estigmatização dos símbolos sagrados destas religiões. Esta construção ideológica possibilitou a configuração do racismo no Brasil de maneira peculiar, como uma realidade dissimulada presente no seio das relações sociais. A aparente aceitação destas manifestações religiosas foi marcada por uma grande contradição performática, de um lado a exaltação folclórica e turística dos símbolos sagrados e práticas do Candomblé, e do outro a falta de reconhecimento e o preconceito entranhado no Estado e na Sociedade.

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Consciência universal nos debates da ONU No tocante à jurisprudência internacional, o exemplo mais imediato reside na jurisprudência dos dois tribunais internacionais de direitos humanos hoje existentes, as Cortes Européia e Interamericana de Direitos Humanos. A esta jurisprudência se pode agregar a jurisprudência emergente dos dois Tribunais Penais Internacionais ad hoc, para a ex- Iugoslávia e Ruanda. E a própria jurisprudência da Corte Internacional de Justiça contém elementos desenvolvidos a partir de considerações básicas de humanidade. No que tange à prática internacional, a idéia de uma consciência jurídica universal tem marcado presença em muitos debates das Nações Unidas (sobretudo da VI Comissão da Assembléia Geral), nos trabalhos das Conferências de codificação do Direito Internacional (o chamado “direito de Viena”) e nos respectivos travaux preparatoires da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas da década de noventa. Também na doutrina do Direito Internacional encontramos elementos para o desenvolvimento da matéria, ainda que, surpreendentemente, não suficientemente articulados até o presente. A noção que me permito denominar de consciência jurídica universal passa a encontrar expressão doutrinária em tempos relativamente recentes, ao longo do século XX, com a emergência do conceito de communis opinio juris, ao enfrentar o velho dogma positivista do consentimento (voluntas) individual para a formação do direito consuetudinário. Nas três primeiras décadas do século XX, a expressão “consciência jurídica internacional” foi efetivamente utilizada, em sentido ligeiramente distinto, recordando a noção clássica de civitas maxima, a fim de fomentar o espírito de solidariedade internacional. Na América Latina, referências à “consciência jurídica” e “consciência moral” encontram-se, por exemplo, na Meditacion sobre la Justicia (1963) de Antonio Gómez Robledo, em meio a sua lúcida crítica do positivismo jurídico. E duas décadas antes, Alejandro Alvarez argumentava que os grandes princípios do Direito Internacional, e a própria justiça internacional, emanam da “consciência

Neste início do século XXI, temos o privilégio de testemunhar e o dever de impulsionar o processo de humanização do Direito Internacional pública” ou “consciência dos povos”. Estes são alguns exemplos a revelar que, no passado, houve jusinternacionalistas que tiveram a intuição e a sensibilidade para a realidade da consciência humana, mais além da “realidade” crua dos fatos. Caberia recordar os debates do Instituto de Direito Internacional, em sua Sessão de Nova Iorque de 1929, acerca de um projeto de declaração sobre os direitos humanos. Observou-se, na ocasião, que a “vida espiritual” e a “consciência jurídica” dos povos requeriam um novo direito das gentes, com a afirmação dos direitos humanos. O reconhecimento de certos valores fundamentais, imbuídos de um sentido de justiça objetiva, em muito contribuiu à formação da communis opinio juris nas últimas décadas do século XX. Verificou-se, aqui, uma

evolução conceitual que se moveu, a partir dos anos sessenta, da dimensão internacional à universal (sob a grande influência do desenvolvimento do próprio Direito Internacional dos Direitos Humanos), conducente à identificação dos interesses comuns da comunidade internacional e do reconhecimento generalizado do imperativo de satisfazer as necessidades sociais básicas. Referências do gênero, certamente suscetíveis em nossos dias de um desenvolvimento conceitual mais amplo e aprofundado, não se limitam ao plano doutrinário; figuram igualmente em tratados internacionais. A Convenção contra o Genocídio de 1948 se refere em seu preâmbulo ao “espírito” das Nações Unidas. Transcorrido meio século, o preâmbulo do Estatuto de Roma de 1998 do Tribunal Penal Internacional se refere à “consciência da humanidade” (segundo considerandum). E o preâmbulo da Convenção Interamericana de 1994 sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, para citar outro exemplo, menciona a “consciência do hemisfério” (terceiro considerandum do preâmbulo). Movida pela consciência humana, a própria dinâmica da vida in-

ternacional contemporânea tem cuidado de desautorizar o entendimento tradicional de que as relações internacionais se regem por regras derivadas inteiramente da livre vontade dos próprios Estados. O positivismo voluntarista se mostrou incapaz de explicar o processo de formação das normas do Direito Internacional geral, e se tornou evidente que só se poderia encontrar uma resposta ao problema dos fundamentos e da validade deste último na consciência jurídica universal, a partir da afirmação da idéia de uma justiça objetiva. Neste início do século XXI, temos o privilégio de testemunhar e o dever de impulsionar o processo de humanização do Direito Internacional, que, de conformidade com o novo ethos de nossos tempos, passa a se ocupar mais diretamente da identificação e realização de valores e metas comuns superiores. Desse modo, o Direito Internacional evolui, se expande, se fortalece e se aperfeiçoa, e, e última análise se legitima.

* Artigo retirado do livro do autor, A Humanização do Direito Internacional (Belo Horizonte, Del Rey: 2006, pp. 89 – 96), e editado.


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Revisionistas tentarão reforma sempre

Mãe não tem só uma Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros

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ãe não é quem põe no mundo, mas quem cria. Esse ditado popular é, em certa medida, adotado pelo direito de família brasileiro. Para além de formalismos ou interpretações biológicas, restritas às relações de sangue, as decisões judiciais e os autores da área tem caminhado, a partir de princípios constitucionais, para um entendimento que também privilegia o afeto, os laços sociais, as relações que se formam no decorrer da vida. A partir dessa perspectiva, situações ligadas à paternidade e a outras formas de organização familiar diversas do modelo pai-mãe-filho passaram a ser reconhecidas e protegidas pelo direito. A idéia de família se transforma e cada vez mais se foca no afeto e na possibilidade de realização e satisfação pessoal de cada um de seus integrantes. Foi nesse contexto que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em abril desse ano, entendeu ser direito

de um casal, possuidor de uma relação reconhecida publicamente, baseada no afeto, convívio e respeito mútuos, com projetos comuns e com um efetivo compartilhar de vidas, adotar duas crianças. Esse casal apresenta todas as características necessárias para permitir o melhor desenvolvimento dessas crianças. Esse casal era composto por duas mulheres. Para entender o caso As duas mulheres, aqui chamadas pelos nomes fictícios de Maria e Mariana, convivem desde 1998, em uma relação em que estão presentes características comuns a entidades familiares, ou seja, a afetividade, a estabilidade a apresentação pública dessa relação como uma relação familiar. Em abril de 2003 e fevereiro de 2004, foi concedida exclusivamente a Maria a adoção, respectivamente, de Pedro e João (nomes fictícios). Mariana, apesar de não ter constado inicialmente como uma das adotantes, veio a exercer de maneira

ativa, ao longo desse período, em conjunto com Maria, todos os cuidados e atenções relativos à criação e educação dos meninos. As crianças, inclusive, se referem a Maria e a Mariana da mesma forma: mãe. Procurando ter o reconhecimento, pelo direito, da validade uma situação familiar já concretizada de fato, as duas mães ajuizaram, no último ano, um pedido para que Mariana fosse também reconhecida como adotante. E isso pode? O direito diz que qualquer pessoa, cumprindo alguns requisitos previstos na legislação, a exemplo da necessidade de o adotante ter pelo menos dezoito anos de idade, pode, de maneira isolada, adotar uma criança. Quanto a casais, é necessário que estejam juridicamente casados ou vivendo em regime de união estável. Surge aí um problema, pois uma interpretação formalista conduziria a um entendimento de que a união estável só seria possível entre um ho-

mem e uma mulher, nunca entre pessoas do mesmo sexo. A questão é que esse tipo de interpretação viola o princípio constitucional da igualdade, ou seja, reconhecimento de diferentes formas de estruturação de entidades familiares que, apesar de serem diferentes, merecem proteção e tratamento iguais exatamente por serem entidades familiares. Tal interpretação ignora também todo o papel do afeto nessas diversas entidades, em especial naquelas constituídas por pessoas do mesmo sexo e, também por isso, não foi abraçada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Reconhecendo que todos os traços que caracterizam uma família formada em união estável estavam presentes no relacionamento de Maria e Mariana, o Tribunal entendeu que tal exigência estaria cumprida e que, dessa forma, verificados todos os laços afetivos que envolviam as mães e os filhos, deveria ser concedida a possibilidade de adoção pelas duas mulheres.

A idéia de família se transforma e cada vez mais se foca no afeto e na possibilidade de realização e satisfação pessoal de cada um de seus integrantes

3. A Constituição de 1988 é comumente classificada como uma “Constituição cidadã” devido não apenas ao seu conteúdo avançado em matéria de direitos fundamentais, mas também ao ambiente democrático que caracterizou os debates da Assembléia Constituinte. Como o senhor analisa, então, a atual Proposta de Emenda à Constituição n° 157/2003, em trâmite no Congresso Nacional, que propõe a instauração de uma Assembléia Revisora em 2007? Não é a primeira e possivelmente não será a última tentativa dos inimigos da Constituição Federal de 1988, de, sob o pretexto de aperfeiçoá-la, modernizá-la, de, na verdade, subtrair os institutos que a fazem cidadã e democrática. Ainda não tinha sido proclamada em outubro de 1988 e já era acusada de causar a “ingovernabilidade”. Pouco depois, no final de 1993, após o plebiscito que manteve a República e o Presidencialismo, se promoveu renhida campanha pela revisão da Constituição. Não obtiveram êxito seus defensores. Naquela ocasião, tive a honrar de participar com insignes constitucionalistas de obra em que se evidenciava toda a trama por trás da proposta revisionista. De 1995 até hoje, meia centena de emendas foram aprovadas, alterando o texto de 1988. Agora, tramita, outra PEC prevendo uma Assembléia Revisora em 2007. Os objetivos são os mesmos de todas as tentativas frustradas anteriormente. Este prestigiado caderno mensal – Constituição e Democracia - nos seus dois primeiros números, fez uma arguta análise-crítica, dos interesses que estão em jogo e das artimanhas que estão sendo urdidas para se dar à PEC 157/2003, caráter, que não tem, de medida democrática. Por outro lado, no lugar de cogitar em rever a Constituição, melhor seria que os parlamentares procurassem, de fato, aperfeiçoá-la, aprovando, a

A participação popular na Constituinte de 88 foi a melhor coisa que poderia ter acontecido

Uma Democaracia não se faz com um passe de mágica. Constroe-se a cada dia

PEC 73/2005 que antes mencionei e o PLS 0001/20006, ambos de autoria do Senador Suplicy, o primeiro introduzindo a revogação popular de mandatos eletivos na Constituição Federal e o segundo que regulamentando os instrumentos da Democracia Direta previstos no art. 14. Na justificativa o autor lembra que estas propostas decorrem da Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia, encetada pela OAB em 2005. 4. De acordo com alguns parlamentares, foi exatamente a grande pressão popular exercida sobre a Assembléia Constituinte devido à recente abertura democrática que impediu a produção “do texto de que o país necessitava”. Como o senhor analisa esse argumento? Afirmar tamanho absurdo compromete quem o faça. A pressão popular – ou melhor - a participação popular na elaboração da Constituição de 88, foi o que de melhor poderia ter ocorrido. Se não foi possí-

vel uma assembléia nacional constituinte exclusiva livre e soberana, se o que se obteve foi um congresso constituinte, nem por isso o resultado foi negativo. A participação popular, sem dúvida, permitiu que se produzisse uma Constituição cidadã, com a cara multifacetada da sociedade brasileira. Não se deve pensar que a participação popular foi só dos trabalhadores ou de estamentos considerados “avançados”. A participação dos empresários, dos magistrados, dos agentes de segurança, dos latifundiários, enfim dos conservadores de vários matizes também estava ali presente. A CF de 88, não é aquela que a CUT nem a FIESP queriam, mas foi a CF que mais democraticamente refletiu a sociedade civil brasileira, com seus conflitos, com suas contradições. 5. Como Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, como o senhor analisa a importância da atuação da Comissão para o regime democrático brasi-

leiro na concessão de indenizações aos anistiados como forma de reconhecimento dos abusos e excessos cometidos durante o regime militar? Uma democracia não se faz por passe de mágica. Constroe-se a cada dia. Não nos é dada de presente, servida numa bandeja. É o resultado da luta penosa de cidadãos ao longo de muitos anos de história. Na sua construção vidas numerosas foram ceifadas, ou comprometidas. Desconstituir as estruturas autoritárias, do reino, do colonialismo, dos escravocratas, das ditaduras não é tarefa fácil. Em 1964 o Brasil foi assaltado por um regime militar que interrompeu os canais de comunicação democrática, prendeu, matou e torturou brasileiros, pelo único crime de discordar politicamente do autoritarismo e de lutar por um Estado Democrático de Direito. Este regime de exceção durou quinze longos anos de chumbo. Em 1979, a Lei 6683, constituiu um marco inicial da Anistia, que tem como etapa mais recente a atual a Lei 10559/2001. Estas leis e outras medidas legais se destinam a reparar os desmandos cometidos contra brasileiros, concedendo-lhes, uma reparação – de ordem econômica, ou não - que na verdade é na grande maioria das vezes apenas simbólica. A anistia é assim um mea culpa não dos perseguidos, porém do Estado que perseguiu. O reconhecimento do erro e a intenção em repará-lo mesmo com enorme retardo, constitui uma atitude positiva que fortalece a esperança de que nunca mais se aconteça algo semelhante. A paz, que é o ícone da Anistia, há de ser procurada a todo o custo. A superação da violência não pode ser através de mais violência, num círculo vicioso de escalada da intransigência. Adotar-se uma atitude favorável à Anistia é prestigiar o diálogo, rejeitando-se o acirramento dos confrontos.


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ENTREVISTA

Três razões contra o impeachment de Lula Alexandre Bernardino Costa e Guilherme Cintra Guimarães entrevistaram Marcelo Lavenére, advogado e presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça 1. O senhor desempenhou um papel extremamente relevante no impeachment de Fernando Collor de Mello em 1992, tendo assinado o requerimento que solicitou que o Congresso Nacional julgasse o ExPresidente por crime de responsabilidade. Como o senhor analisa a importância da mobilização da sociedade brasileira no processo de impeachment do Ex-Presidente? Observando as várias encruzilhadas da História do Brasil, é possível afirmar que a mobilização popular no episódio do processo de impeachment do ex-presidente foi um fato inédito. A Independência, a abolição da escravatura, a proclamação da República, a instauração ou o fim do Estado Novo, o Golpe de 64, foram momentos cruciais na história do país, porém sem que o “povo” fosse o seu principal protagonista. Nas etapas posteriores ao golpe de 64, começa o povo a se fazer presente seja no movimento pelas “diretas já” seja na convocação de uma assembléia nacional constituinte. Todavia, foi em 1992 que o povo brasileiro, empunhou a bandeira da ética e fez valer a sua exigência. O Movimento pela Ética na Política, apartidariamente, sem nenhuma estrutura organizacional, isento de qualquer manipulação, reuniu trabalhadores e empresários, confissões e líderes religiosos de todos os matizes, parlamentares, profissionais liberais, estudantes, a Maçonaria e as donas de casa, num irresistível e bem sucedido clamor

que vem das ruas, espontâneo e autêntico. Não foi uma insurreição, na medida em que tudo se cumpriu dentro da mais estrita normalidade constitucional. As Instituições político-jurídicas foram os canais que deram vazão a uma exigência coletiva, sem qualquer arranhão no Estado Democrático de Direito. O Congresso e o Supremo Tribunal Federal, acompanhados pela Imprensa atuando sem qualquer influência, agiram absolutamente dentro dos cânones constitucionais e legais. A mobilização deixou patente, numa demonstração pragmática, a força da vontade popular. 2. Alguns partidos políticos e organizações sociais, como a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, por exemplo, têm cogitado a possibili-

dade de requerer a instauração de um processo de impeachment contra o Presidente Lula devido às recentes denúncias de corrupção envolvendo membros do governo e do Partido dos Trabalhadores – PT. Como o senhor analisa essa proposta? Há uma mobilização popular suficiente para legitimar um eventual requerimento de impeachment? A situação atual apresenta alguma semelhança em relação ao contexto do impeachment do Ex-Presidente Collor? Manifestei publicamente através de mensagem que enviei a todos os integrantes do Conselho Federal da OAB a minha convicção de que há profunda diferença entre a atual conjuntura política brasileira e aquela de 1992, no que se refere à proposta de impe-

achment. Alinhei três pontos que me parecem fundamentais: a) a inexistência de qualquer acusação oficial contra o Presidente Luiz Inácio, diversamente do que ocorria em 1992, em que o ex-presidente estava no foco das denúncias. Nem as CPI’s, nem o Ministério Público Federal, consideraram o presidente como autor de qualquer ato que justificasse um processo de impeachment. b) a ocorrência de eleições dentro de cinco meses e o processo eleitoral já desencadeado. Qualquer proposta de impeachment, agora está contaminada pela interferência ilegítima no resultado das eleições. Cabe ao povo, em outubro, escolher o próximo presidente. c) a ausência de mobilização popular. Sendo o impeachment do Presidente da República um processo políticojurídico, depende essencialmente da manifestação dos eleitores. Sem mobilização popular nenhum processo de impeachment se legitima nem pode ser bem sucedido. O argumento de que o Congresso Nacional não teria autoridade para tanto, na medida em que ali se vive um período de grave crise, não seria óbice. Em 1992 não era diferente a situação. Mas é necessário que deputados e senadores que são os que decidem respectivamente sobre a admissibilidade da denúncia e sobre seu mérito, reflitam a voz que vem das ruas. Quem é o autor do “impedimento” é o povo.

Qualquer proposta de impeachment agora está contaminada pela interferência ilegítima no resultado das eleições

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Cidadania e família em movimento A decisão que concedeu a adoção foi um marco para o exercício de cidadania, ao permitir o reconhecimento da diferença e da pluralidade, entendendo que não se pode alegar aspectos relacionados à orientação sexual para impedir o acesso a direitos. O exercício da cidadania passa pelo respeito a garantias individuais, a garantias que possibilitem o livre exercício e determinação de seus projetos de vida, projetos esses que não podem ser afastados na tentativa de transformar a diferença (envolver-se afetivamente com alguém do mesmo sexo) em desigualdade de direitos. Verifica-se um tratamento inferiorizante quando se pretende proibir que relacionamentos homossexuais tenham o status de entidades familiares, quando se pretende proibir que casais homossexuais possam adotar. Inferiorização afasta a possibilidade de cidadania. Negação de direitos por conta da diferença não é cidadania. Impedir ou procurar romper laços familiares e afetivos estabelecidos entre pessoas, unicamente por conta da orientação sexual não é cidadania. E impedir o exercício de cidadania é violar direitos. É interessante observar que a decisão do Tribunal de Justiça gaúcho considerou, também, o bemestar das crianças. De maneira pioneira e corajosa, rompeu com a idéia equivocada (e sem base jurídica) de que a adoção por um casal homossexual seria, por si só, contrária à proteção dos interesses da criança. Ora, como afirmou o próprio relatório de avaliação, desenvolvido por profissionais ligados às áreas de psicologia e serviço social, o casal “tem exercido a parentalidade adequadamente. Com relação às van-

tagens da adoção para estas crianças, especificamente, conhecendose a família de origem, pode-se afirmar que, quanto aos efeitos sociais e jurídicos, são inegáveis, quanto aos efeitos subjetivos, é prematuro dizer, porém existem fortes vínculos afetivos que indicam bom prognóstico”. A decisão demonstrou que o importante para o melhor desenvolvimento e formação de uma criança não é a orientação sexual daqueles que exercem a parentalidade (sejam homem-mulher, homem-homem, mulher-mulher), mas sim a existência de um ambiente acolhedor, afetivo e dotado de estabilidade.

Inferiorização afasta a possibilidade de cidadania. Negação de direitos por conta da diferença não é cidadania. Impedir ou procurar romper laços familiares e afetivos estabelecidos entre pessoas, unicamente por conta da orientação sexual não é cidadania. E impedir o exercício de cidadania é violar direitos

A decisão demonstrou que o importante para o melhor desenvolvimento e formação de uma criança não é a orientação sexual daqueles que exercem a parentalidade (sejam homem-mulher, homem-homem, mulher-mulher), mas sim a existência de um ambiente acolhedor, afetivo e dotado de estabilidade Argumentar que entidades familiares homossexuais não estariam aptas a desenvolver ambientes desse tipo é fechar os olhos para a dinâmica social e adotar um comportamento anti-jurídico, limitador do exercício da cidadania, que procura negar direitos relacionados a um dos campos mais íntimos de uma pessoa unicamente por conta da diferença, por conta da orientação sexual, ignorando, ainda, um aspecto central da atual formação familiar: o afeto. Felizmente, cresce a quantidade de posicionamentos contrários à cegueira da visão, contrários a tentativas de diminuir a importância do afeto, contrários a tentativas de

negação da presente diversidade de formas de organização familiar. Afinal, no tratamento das pretensões que envolvem o direito em sua relação com a família, que se manifesta tanto em reivindicações de movimentos sociais quanto na literatura especializada ou nas decisões judiciais, deve-se permitir o exercício da cidadania, por meio da concretização de direitos que garantam o respeito à diferença. Para isso, os versos de Milton Nascimento, em uma de suas famosas concepções, se demonstram adequados: “Qualquer maneira de amor vale a pena, qualquer maneira de amar valerá”.


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OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO

Participação popular no processo legislativo Leonardo Augusto de Andrade Barbosa

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este artigo pretendemos discutir a idéia de “legislação participativa” a partir de um diálogo com a experiência concreta da Câmara dos Deputados, sugerindo que os espaços institucionais destinados a promover esse tipo de política legislativa ainda não estão plenamente consolidados. Seu fortalecimento depende de uma participação protagonista dos movimentos sociais organizados, que, para tanto, devem ser capazes de pensar os riscos e as possibilidades de sua atuação no âmbito parlamentar. Em maio de 2001, a Câmara dos Deputados aprovou, com apoio unânime das lideranças partidárias, a criação da Comissão de Legislação Participativa – CLP. A CLP é uma comissão permanente, cujo propósito é analisar sugestões legislativas apresentadas pela sociedade civil. A iniciativa inovadora da Câmara foi referência para o Senado Federal e para várias Assembléias Legislativas estaduais e Câmaras de Vereadores. No final de 2003, 10 estados brasileiros já contavam com comissões desse tipo instaladas ou em fase de instalação em seus órgãos legislativos. A idéia de uma política legislativa parlamentar que reconhece espaço para a “legislação participativa” ganhou espaço, mas sua visibilidade permanece reduzida, como procuraremos mostrar adiante. De acordo com o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, a Comissão de Legislação Participativa tem competência para apreciar sugestões de iniciativa legislativa apresentadas por associações e órgãos de classe, sindicatos e entidades organizadas da sociedade civil, exceto Partidos Políticos. A Comissão recebe, ainda, pareceres técnicos, exposições e propostas oriun-

A Constituição de 1988 colocou a participação popular em primeiro plano das de entidades científicas e culturais ou de qualquer das entidades mencionadas acima. O Regulamento Interno da CLP prevê, também, que órgãos estatais com participação paritária da sociedade civil tem legitimidade para apresentar sugestões legislativas. É o caso dos conselhos responsáveis pela elaboração de diretrizes para políticas públicas, como, por exemplo, o CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Entre meados de 2001 e o final 2004, a CLP aprovou 88 sugestões, oriundas de diversos segmentos da sociedade civil organizada, transformadas, assim, em proposições legislativas. Nesse mesmo período, a Comissão recebeu em torno de 290 sugestões. Em 2005, foram apresentadas 106 sugestões legislativas. O número de sugestões apresentadas sugere que a visibilidade da proposta institucional da CLP é re-

duzida. Isso fica mais claro se levarmos em conta que parte das sugestões recebidas pela comissão é relacionada à elaboração do orçamento da União. O investimento público é matéria relevante para a pauta de praticamente qualquer movimento social organizado. As poucas sugestões nesse sentido são, assim, um indício consistente de que boa parte desses movimentos não sabe que a Comissão existe, isto é, que é possível, por meio dela, participar inclusive do processo legislativo relacionado à definição do orçamento. É interessante observar, quanto a este ponto, que a Comissão Mista de Planos, Orçamento Público e Fiscalização sustentou inicialmente a posição de que a CLP não poderia apresentar emendas em matéria orçamentária. A Resolução do Congresso que regula a questão exige que cada Comissão, ao apresentar emendas ao orçamento, se atenha à sua área de competência específica. Como a CLP não possui área específica de competência, a Comissão de Orçamento defendeu que, em princípio, não caberia a ela apresentar emendas. Essa posição foi superada em 2004, quando o então Presidente João Paulo Cunha profe-

riu decisão em Questão de Ordem, fixando o entendimento de que a CLP poderia sim oferecer emendas em matéria orçamentária. Em 2006, por exemplo, três emendas foram aprovadas pela Comissão e incluídas no Orçamento da União. Maiores detalhes podem ser encontrados no sítio da Comissão (http://www2.camara.gov.br/comissoes/permanentes/clp). Não obstante, tramita nesse momento no Congresso Nacional uma proposta de alteração no funcionamento da Comissão Mista de Orçamento que suprime da CLP a competência para apresentar tais emendas. Outra possibilidade que deve ser destacada refere-se à proposição de requerimentos de informação a Ministros de Estado, os quais, uma vez aprovados, devem ser necessariamente respondidos, sob pena de crime de responsabilidade. Qualquer matéria de competência da pasta de um Ministério (ou pertinente à entidade sob supervisão do mesmo) pode ser objeto desse tipo de requerimento de informação. Trata-se, portanto, de uma ferramenta notável para a obtenção de conhecimento sobre o governo federal, o que abre à sociedade civil uma possibilidade de interlocução extremamente qualificada. Além da análise de sugestões legislativas, a CLP também promove seminários e audiências públicas com representantes da sociedade civil, debatendo temas relacionados às matérias sob apreciação da Comissão. A própria realização dessas audiências públicas pode ser solicitada pelos movimentos interessados, o que permite um contato direto dos parlamentares com os problemas tematizados pelas sugestões legislativas, além do estabelecimento de relações de parceria com os diversos atores sociais envolvidos.

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Cidadania construída de baixo para cima Em contrapartida, a institucionalização é uma garantia de que esses espaços, apesar das mudanças contínuas de agendas e participantes, sejam preservados. Além disso, a proximidade entre os conselhos e o Poder Executivo gera uma absorção quase imediata de suas deliberações por parte dos gestores e uma fiscalização mais eficaz. A institucionalização promove a ponte entre as opiniões públicas geradas nas bases da sociedade civil, de onde se originam os conselheiros, e o Poder Executivo, o que gera políticas públicas mais próximas às necessidades da população. Além disso, essa aproximação entre conselhos e gestores auxilia na visibilidade/transparência do poder, na medida em que traz a sociedade para dentro do governo e mais perto das decisões políticas. As competências legais básicas dos conselhos de saúde podem ser divididas em dois grandes campos: a área de planejamento e controle e a área de articulação com a sociedade. As atribuições específicas de caráter executivo também estão na seara da competência legal dos conselhos, que cada vez mais, porém ainda insuficientemente, participam na cadeia decisória da administração do SUS, como instância deliberativa e recursal. Em que pese a sua previsão legal, a competência deliberativa dos conselhos não é amplamente executada. A competência fiscalizatória, em muitos casos, é a única a ser efetivada pelos conselheiros, ainda que de forma precária. Há uma resistência por parte de alguns gestores e/ou de outras autoridades governamentais em enxergar o conselho de saúde como uma instância deliberativa. Essa postura é tomada por diversas causas, em especial pelo receio que o gestor tem de “perder poder” decisório frente ao conselho. Não se tem o conselheiro como um aliado (de gestão e planejamento, e não aliado político), mas sim como um “inimigo” que busca evidenciar as falhas e usurpar prestígio perante a população. Uma visão medíocre do controle faz com

que o gestor não atue com o conselho, mas sim contra o conselho. Um fator que inibe a deliberação dos conselhos, em especial no que tange à alocação de recursos, são os programas do Ministério da Saúde que enviam aos municípios e estados recursos “fechados”, ou seja, o repasse de recursos é feito discriminadamente para determinadas ações, o que não dá margem para o poder local definir as suas prioridades. Isso gera a verticalização do repasse com o impedimento da prática do planejamento local com a participação da sociedade. Quanto ao funcionamento, alguns conselhos não realizam reuniões regularmente e/ou não possuem infra-estrutura adequada. O Conselho Nacional de Saúde - CNS é um dos mais ativos do país, com reuniões ordinárias mensais, apoio técnico e administrativo (secretaria executiva), subdivisões em comissões intersetoriais, recursos humanos e materiais, além de dotação orçamentária própria. Os Conselhos Estaduais de Saúde sofrem a pressão do CNS

pelas falhas e omissões, principalmente na falta de cumprimento de dotação orçamentária, mas podem ser considerados ativos. Já a atuação dos Conselhos Municipais de Saúde varia de acordo com o município: há conselhos extremamente ativos, enquanto há outros que existem apenas na letra da lei. A realidade de cada conselho também varia de acordo com o momento político e do espaço de atuação concedido pelo gestor aos conselheiros. Em alguns municípios, como em Porto Alegre, houve conquistas consideráveis devido à influência do conselho na gestão municipal do SUS, bem como na fiscalização das políticas sanitárias. Sem esquecer as conquistas avançadas pelos conselhos, é preciso ressaltar que ainda há lacunas no seu desenvolvimento. Os estudos sobre conselhos são unânimes ao apontar as limitações, mas também detectam a sua importância. Apesar da quase inexistência de tradição de posturas participativas nos vários segmentos da sociedade brasileira, os conselhos de saúde acumulam vitórias na pro-

moção da participação social. O conselheiro não recebe remuneração e sua atividade é de relevância pública. Hoje o número de conselheiros de saúde, entre os quais os usuários do SUS são maioria, ultrapassa o número de vereadores, o que configura uma situação inédita no conjunto das políticas públicas. A existência e o funcionamento dos conselhos possibilitam a participação sistemática de pessoas no debate e na busca de soluções para os problemas de saúde. E, se há o engessamento de alguns conselhos, cabe à sociedade civil repensar a participação e tomar para si a reformulação dos instrumentos participativos. Não há como negar que os milhares de conselheiros espalhados pelo país são prova concreta da proliferação e popularização de discussões de interesse público antes debatidas a quatro portas pelas autoridades. Milhares de conselheiros em todos os cantos do Brasil representam fortemente a ampliação de espaços públicos deliberativos.

Apesar da quase inexistência de tradição de posturas participativas nos vários segmentos da sociedade brasileira, os conselhos de saúde acumulam vitórias na promoção da participação social


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Participação social na Saúde: quem diz o quê Mariana Siqueira de Carvalho

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discurso favorável à participação social na Administração Pública deixou de ser exclusividade dos movimentos sociais e de partidos de esquerda. A necessidade de democratização do controle e da gestão de políticas públicas agora é uma bandeira de todos que desejam uma reforma do Estado coerente com o contexto histórico atual. O desafio é reverter o quadro de uma cidadania fragilizada, fragmentada e acostumada a ser imposta de cima para baixo para um processo cada vez maior de participação e inclusão de atores sociais. Nessa nova perspectiva há uma tendência à pluralização das instituições participativas. Para isso, é preciso reconsiderar o mito da Administração neutra/burocrática e passar a reconhecer a existência dos seus componentes políticos. O processo de formulação de políticas públicas diz respeito ao modo de identificar as pretensões em jogo para se chegar à definição do interesse público (ou dos interesses públicos) a ser efetivado sob a coordenação da Administração Pública, e não mais sob a sua imposição. Na América Latina a democracia é recente e a ânsia de vê-la “funcionar” é grande. A emergência da democracia nos países latino-americanos foi o “acontecimento mais importante do século XX”, como constatou Boaventura Santos. O Brasil aos poucos absorve as novas possibilidades ao tentar encaixar na sua máquina estatal, ainda marcada pelo patrimonialismo e pelo excesso de burocracia, instrumentos de participação social nas mais diversas áreas. Algumas experiências vêm dando certo, com destaque para o controle social sanitário que é visto como um paradigma para esse novo cenário de participação. Até a primeira metade da década de 1980 a participação social no setor da saúde já era concreta, porém ainda à margem da legislação e das instituições. Na VIII Conferência Nacional de

Saúde, marco histórico da Reforma Sanitária, essa falha foi detectada. Houve a participação de mais de quatro mil pessoas oriundas dos mais diversos segmentos sociais e políticos. Realizada em março de 1986, a Conferência foi considerada a pré-constituinte em matéria de saúde e seu relatório final, no qual foi proposta a implementação do Sistema Único de Saúde – SUS, tornou-se o principal subsídio para a elaboração do Capítulo da Saúde na Assembléia Nacional Constituinte. Entre as propostas de reforma a conferência formalizou a idéia de controle social. A Assembléia Nacional Constituinte foi instalada no dia 1º de fevereiro de 1987. Ao final do processo constituinte o movimento reformista venceu os lobbies privados e pela primeira vez uma constituição brasileira incorporou em seu texto uma seção sobre Saúde. O direito à saúde foi inserido no rol de direitos sociais fundamentais. A pressão dos movimentos sociais sanitários realizada no momento constituinte ensejou a introdução de novos instrumentos de participação social na formulação, execução e fiscalização das políticas públicas. Participação Social A Lei Orgânica da Saúde regulamentou a participação da comunidade no SUS. Cada esfera do governo deve contar com Conferência e Con-

selho de Saúde como instâncias colegiadas com funções e poderes próprios. Nestes dois cenários encontrase a essência da nova participação do indivíduo, agora não mais para combater o Estado, mas sim para fiscalizálo e co-gerir políticas. A previsão de participação no planejamento e execução de políticas públicas associa-se a uma percepção dinâmica da saúde, em constante transformação devido às alterações mundiais, como o surgimento de novos vírus, novas formas de violência, mudanças comportamentais, diferentes relações entre países etc. A comunidade, que vivencia essas transformações, é o protagonista mais indicado para suscitar questões públicas sanitárias. A participação da comunidade, portanto, é a mola propulsora da contínua construção e reconstrução do direito à saúde. O controle social confere elementos ao cidadão brasileiro para refletir a respeito da democracia, já que os seus palcos de atuação propugnam um modelo democrático misto, no qual a democracia representativa articula-se com a participação direta e onde cada indivíduo faz a diferença. Para isso, não é preciso ter conhecimentos prévios e especializados. O caráter educativo do próprio exercício de participar já define o que se necessita para a tomada de decisão. A capacitação pode ser um elemento enriquecedor dos debates, mas de

nenhuma maneira pode ser vista como condição para fazer parte do processo. Institucionalizados e previstos legalmente, os conselhos setoriais representam um espaço de discussão, formador de opinião pública e tomador de decisões que são levadas em conta pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Neles os segmentos da população articulam-se, trocam informações, formulam propostas de planos e políticas públicas que posteriormente são transmitidas para outros segmentos. O conselho fortalece-se com a multiplicação de atores interessados em participar da gestão pública. Essa expansão deve estar atrelada à autonomia desses espaços. Além da infra-estrutura, deve-se garantir que os conselheiros advindos da comunidade não sejam coagidos pelos conselheiros do governo. Este só se legitima se de fato estimula de maneira clara a participação da comunidade. Não deve haver espaço para o clientelismo no âmbito dos conselhos setoriais. Infelizmente, há muitos casos de submissão dos conselheiros aos gestores: as reuniões do conselho dependem, em boa medida, da disponibilidade do gestor. A contradição de interesses e o enfrentamento dessa situação fazem parte da esfera pública e são vitais para o seu desenvolvimento. Quando participam, as pessoas assumem o dever de pensar o público. Com relação à institucionalização da participação social, motivada principalmente a partir da Constituição Federal de 1988, identificam-se vantagens e desvantagens. É preciso ter cuidado para não burocratizar esses espaços, nem torná-los passíveis de cooptação. Além disso, a obrigatoriedade da criação de conselhos para que o município ou estado receba determinados recursos não pode ser sinônimo de conselhos “artificiais”, com assentos preenchidos apenas por pessoas indicadas pelo gestor.

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Dificuldades da representação político-partidária A experiência da CLP pode oferecer uma perspectiva que nos auxilie a compreender melhor a relação entre participação popular e processo legislativo. A CLP inscreve-se num contexto de certa perplexidade sobre os limites da representação parlamentar e o papel dos partidos políticos. A experiência permite visualizar como a participação democrática direta pode ser potencializada por mediações institucionais, intensificando a articulação de esfera pública e Congresso. Essa aproximação entre o debate que nasce e amadurece na sociedade civil de forma mais ou menos espontânea e o debate parlamentar, aponta para uma prática política menos vinculada à promoção dos interesses incrustados nos partidos – por meio do financiamento eleitoral – e mais articulada com os problemas concretos enfrentados cotidianamente pelos cidadãos. A participação de movimentos sociais organizados no processo legislativo por meio da CLP permite problematizar o próprio papel do Congresso no Estado democrático de direito. A Constituição de 1988 trouxe para o primeiro plano da política constitucional a participação popular. A ‘cidadania’ é o conceito-chave do novo paradigma constitucional, que compreende a Constituição como um processo permanente de conquista de novos direitos fundamentais. Nesse processo, uma das peças mais importantes é o Congresso. O Poder Legislativo é a instância que procura traduzir as exigências constitucionais em medidas políticas gerais democraticamente adotadas. É por meio de sua atuação que se garante o princípio republicano de quesó somos obrigados a respeitar uma lei que nós mesmos aprovamos. O “nós mesmos” pode ser lido como “nossos representantes”: a participação popular no processo legislativo se dá, em primeira linha, pela atuação de representantes eleitos para tal finalidade . Dessa maneira, uma representação política eficaz é condição básica para falarmos em regime democrático. Sabemos que os principais atores do jogo parlamentar são os partidos políticos, aos quais o nosso direito constitucional empresta grande im-

portância. Cabe a eles agregar os cidadãos-eleitores por meio de programas que abordem os temas centrais da agenda política nacional. Os partidos deveriam buscar, assim, uma conexão intensa com a esfera pública, que numa sociedade funciona como uma “caixa de ressonância”, onde os problemas cotidianos são tematizados. Essa rede mais ou menos formalizada permite a circulação e a formação de opiniões sobre temas políticos. Bares, reuniões comunitárias, encontros de jovens, a mídia: todos esses espaços materializam a esfera pública. Em uma sociedade democrática, a esfera pública é um espaço argumentativo inclusivo. A decisão sobre quais opiniões devem prevalecer depende mais dos argumentos apresentados e menos do status e da posição social dos sujeitos que debatem. Assim, a esfera pública possibilita a formação de posições que não resultam do emprego da força ou do poder social (por exemplo, o dinheiro), mas da capacidade de convencer usando bons argumentos. O Congresso representa um espaço de continuação desse debate, só que de maneira institucional. Nesse ponto, discute-se aquilo que todos nós devemos estar obrigados ou proibidos de fazer. Os partidos políticos são os agentes que deveriam promover e facilitar esse processo de transposição do debate na esfera pública para o ambiente parlamentar. Ocorre que a estrutura de financiamento eleitoral dos partidos acaba

por permitir que determinados interesses e posições privadas tenham curso privilegiado no debate político. É incorreto imaginar que os partidos só possuem compromisso com interesses privados. Mas não é exagerado afirmar que interesses privados assegurados pelos lobbies podem se sobrepor ao interesse público – cujo crivo definitivo é o debate aberto e inclusivo entre cidadãos e instituições. . A CLP representa a possibilidade de re-conexão do debate parlamentar com a esfera pública, permitindo que demandas não sedimentadas em partidos, ou negligenciadas por eles tenham curso no processo legislativo. Essa abertura para o pluralismo é a característica mais interessante da experiência da Comissão. Possibilidades não são garantias. Os movimentos sociais devem estar atentos às peculiaridades do funcionamento parlamentar. OCongresso lida com milhares de proposições a cada Legislatura. A maioria delas é arquivada antes de receber um parecer. Nada impede que os interesses dos partidos se imponham em desfavor de pretensões socialmente legítimas. A definição de prioridades pela Comissão deve ser objeto de permanente crítica e acompanhamento pelos atores que se propõem ao jogo parlamentar: somente dessa forma pode ser garantido o caráter reflexivo da pauta definida pela CLP. Devemos lembrar que a “paternidade” da proposição resultante de

uma sugestão legislativa aprovada deve permanecer vinculada ao movimento ou ator que a propôs. Formalmente, a proposição é de autoria da Comissão. E hoje, não está definido qualquer mecanismo institucional de acompanhamento dessas proposições pela CLP ou por seus membros. A ausência de acompanhamento e pressão é obstáculo quase insuperável diante da infinidade de projetos tramitando simultaneamente. A mera transformação da sugestão em projeto é o passo inicial de uma jornada longa, que exige dos movimentos envolvidos criatividade e capacidade de convencimento. Não se deve assumir que toda sugestão legislativa apresentada é produto de debate público. Da mesma forma que o lobby introduz demandas privadas no processo legislativo via partidos políticos, organizações com interesses privados podem se servir da CLP para conferir às suas pretensões ares de legitimidade perante o debate parlamentar. Um dos maiores desafios dos atores que pretendem se valer da CLP é revelar a vocação pública de suas demandas. Repensar o Congresso Até hoje nenhuma proposição oriunda de sugestão legislativa foi transformada em lei. Há 27 projetos de lei prontos para a pauta. Se a repercussão do trabalho da CLP ainda émodesta, devemos recordar que a idéia de uma comissão que recebe sugestões,aponta para importante requisito em sociedades pluralistas e complexas: abertura para novos problemas e discursos. Impede a monopolização. O espaço de debate proporcionado pela Comissão deve ser ocupado pela sociedade, o que potencializará simultaneamente a Câmara dos Deputados e os próprios movimentos sociais, em sua capacidade de perceber e tematizar novos problemas e argumentos. Cabe à Comissão radicalizar sua concepção: investir em estratégia de divulgação e popularização de seu projeto e em maior aproximação dos principais debates e fóruns, superando a postura passiva que hoje marca sua relação com a sociedade.

Parlamento e sociedade civil organizada não se excluem: reforçam-se mutuamente


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OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO

Decisão do STF sobre crimes hediondos Ana Luiza Pinheiro Flauzina, Fabiana Costa Oliveira Barreto e Marina Quezado Grosner

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lei nº 8.072 de 25 de julho de 1990 construiu a noção e disciplinou o cumprimento de penas dos chamados crimes hediondos. De acordo com esse instrumento legal, os crimes de homicídio qualificado ou homicídio quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, latrocínio, extorsão qualificada pela morte, extorsão mediante seqüestro, estupro, atentado violento ao pudor, epidemia com resultado morte, falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais e genocídio são considerados crimes hediondos, sendo a eles equiparados os ilícitos da prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo. Dentre todas as restrições impostas aos indivíduos condenados pela prática de quaisquer dos atos descritos acima, a impossibilidade de progressão de regime, tendo em vista o fato de que a pena deve ser cumprida integralmente em regime fechado, sustenta debates de fôlego entre juristas e leigos. No último dia 23 de janeirofevereiro, um importante capítulo dessa controvérsia tomou assento no STF (Supremo Tribunal Federal). A partir do julgamento de um Habeas Corpus, os ministros, numa votação apertada de seis votos a cinco, consideraram inconstitucional o artigo da lei de crimes hediondos que impedia a progressão de regime prisional. A partir desse entendimento, após o cumprimento de um sexto da pena total da condenação, avaliado seu bom comportamento, o indivíduo pode obter a progressão de regime. É importante compreender que a decisão do STF não tem uma aplicação genérica nos casos concretos. O Tribunal apenas prevê essa possibilidade, sendo facultado a cada indivíduo

pleitear essa prerrogativa junto às instâncias competentes. Ou seja, a progressão de regime não se dá de maneira automática, sendo avaliada caso a caso, quando demandado o Judiciário. Tendo em vista o grande impacto dessa decisão entre os setores mais conservadores da opinião pública, o Ministério da Justiça enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei que enrijece os termos do que fora firmado pelo Tribunal superior. Nessa proposta, o tempo para a progressão de regime passaria de um sexto da pena, para um terço no caso dos réus primários e metade para os reincidentes. Antes de tudo, é importante compreender que toda essa polêmica que circunda o debate sobre a lei de crimes hediondos está inserida num pano de fundo mais amplo que alcança as diversas formas de se conceber o próprio sistema penal. De um lado, a percepção que hegemoniza o entendimento sobre os fenômenos criminais sinaliza para a existência de um mecanismo de controle social que, apesar de imerso numa espécie de crise estrutural, funciona no “combate” à criminalidade em benefício do bem comum. Esse tipo de olhar sustenta a construção de agendas criminalizantes cada vez mais severas, que tem na lei dos crimes hediondos seu exemplo mais ilustrativo. As campanhas de lei e ordem que se valem da difusão de um medo generalizado entre a população, especialmente pela mídia televisiva, divide o mundo entre o bem e o mal, dentro de um espetáculo em que os bandidos e seus hediondos crimes são as principais vedetes. Desse ângulo, o sistema penal, a serviço dos “indivíduos de bem”, encontra o caminho livre para se agigantar na produção de leis que criminalizam as mais variadas condutas, em decisões judiciais que tendem a decretar e manter o encarceramento e num incremento ostensivo dos aparatos manuseados

pelas instâncias policiais. O sistema é, assim, tomado como um mecanismo necessário ao convívio social harmonioso, operando com legitimidade no controle dos incidentes criminais. Caminhando na contramão desse lugar comum, há um entendimento que enxerga essa relação entre a criminalidade e o sistema penal pelo seu avesso. O foco se desloca do delito e do delinqüente para o próprio sistema. O que está colocado no centro da análise é a forma como o sistema penal se movimenta, entendendo-o como um instrumento que constrói e formata a criminalidade. A partir dessa nova abordagem, uma das principais conclusões a que se chegou é que a seletividade é uma marca estrutural dos sistemas penais. Em todo o mundo, os empreendimentos do controle penal funcionam na criminalização mais severa das condutas típicas dos segmentos mais vulneráveis e na imunizaçãonão alcançam das praticadas pelos setores mais hegemônicosprivilegiados. O sistema penal, diz-se, é um instrumento voltado mais para o controle de pessoas do que de atitudes tidas como transgressoras. É importante ter claro que esses aparatos não foram criados, não podem e efetivamente não pretendem criminalizar todos ilícitos praticados diuturnamente. De acordo com Alessandro Baratta, grande criminólogo italiano, o sistema penal gerencia aproximadamente 10% dos

incidentes criminais que ocorrem no dia a dia. Aliás, se todos os crimes que efetivamente ocorrem fossem processados pelo sistema penal estaríamos próximos de uma verdadeira catástrofe social, vez que praticamente todos os indivíduos seriam criminalizados por diversas vezes. Sistema Penal: um grande elefante branco produtor de mortes Mas se é verdade que todos os sistemas penais da Suíça ao Canadá, passando pelo Peru e a China, carregam consigo o vício da seletividade servindo aos propósitos de manutenção do status quo em todo o mundo, com a criação e o reforço de estereótipos para os segmentos marginalizados, o fato é que nas periferias do capitalismo mundial esse diagnóstico está dado de maneira mais evidente. Na América Latina, em especial, o entendimento tem sido o de que os sistemas penais se movimentam na produção de um verdadeiro genocídio. Para Zaffaroni aA morte é mesmo o produto por excelência da movimentação dos sistemas penais latino-americanos. Esse excedente de violência, típica das práticas penais em nossa região, explica-se pelo tipo de ordem social a que o sistema penal tem de dar sustentação (acintosamente assimétrica) e aos destinatários do aparato de controle, sendo o racismo e o sexismo variáveis centrais na sustentação dessa dinâmica.

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O ator, os votos e as delegações Exercitar cidadania não significa delegar ao Estado a tarefa de gerenciar políticas públicas, ações estratégicas ou investimentos adequados em justiça social. Em momento algum. Esta é a condição sine qua non para que a política se exerça de modo salutar em prol de uma sociedade. No entanto, na linha de raciocínio que se está desenvolvendo, não se pode considerar a cidadania uma atitude passiva, e muito menos representativa, que se delega a representantes políticos investidos de poder para mandato eletivo que se escolhem por voto. Se isto é ser cidadão, então a definição de cidadania encontra-se um tanto quanto restrita e apegada à tradição. Mais do que isto, esta linha de pensamento está ainda eivada por um profundo assistencialismo e por concepções paternalistas de Estado. O que se pensa é que a questão da cidadania é uma problemática inerente a um povo. É este povo que bem conhece suas carências, deficiências, necessidades, etc. É também este povo que possui as condições para a transformação de sua condição, o que, no entanto, não se consegue sem a organização da sociedade civil, sem a mobilização das comunidades, sem a conscientização dos grupos minoritários, sem a adesão das mentalidades ao projeto social que pode transformar seu quotidiano. Isto se torna ainda mais importante de ser destacado, grifado e impresso na mentalidade de um povo, na medida em que se vive um momento peculiar, um período de transição, em que se instalou nas mentalidades coletivas uma certa decepção com os paradigmas e promessas modernas que gerou apatia e abdicação do compromisso com os ideais societais básicos de estruturação de nosso meio. É de acordo com esta concep-

O terceiro setor surge para se alinhar ao Estado na construção da cidadania e da efetividade dos direitos fundamentais

ção, e dentro desta experiência prática e histórica de abertura da concepção de cidadania, que o chamado terceiro setor surgiu para se alinhar ao Estado na construção da cidadania e da efetividade de direitos fundamentais: “Por ora, vamos nos ater a uma definição mais genérica: compreendem o terceiro setor todas as entidades que não fazem parte da máquina estatal, não visam lucro e não se afirmam com discurso ideológico, mas sim sobre questões específicas da organização social. Se o aspecto negativo da definição é claro – sabemos que não é terceiro setor -, o lado afirmativo deve ser particularizado. Ou seja, uma vez que o terceiro setor engloba um sem números de entidades com origens e finalidades diversas, a compreensão só acontece no âmbito de cada categoria” ( Jaime Pinsky, Carla Bassanezi Pinsky, História da cidadania, 2003, p. 565). A narrativa da eclosão de uma nova categoria para o pensamento político, além de Estado e sociedade civil, além de povo e soberano, bem como a discussão sobre a efervescência causada por estes novos atores no cenário de composição de interesses públicos, é questão que se transformou em temário fundamental da reflexão sociológi-

O grande agente do processo de construção e reconstrução da cidadania passa a ser o agente coletivo de direito ca dos últimos anos, a partir das próprias experiências das décadas de 70, 80 e 90, num paulatino processo de agigantamento e aperfeiçoamento das estruturas que dão suporte e estruturação aos grupos organizados. Assim é que o grande agente do processo de construção e re-construção da cidadania passa a ser o agente coletivo de direito, na concepção de José Geraldo de Souza Júnior. Em suas palavras: “Ora, a análise sociológica pôde precisar que a emergência do sujeito coletivo opera num processo pelo qual a carência social é percebida como negação de um direito que provoca uma luta para conquistálo. De acordo com Eder Sader, “a consciência de seus direitos consiste exatamente em encarar as privações da vida privada como injustiças no lugar de repetições naturais do cotidiano. E justamente a revolução de expectativas pro-

duzidas esteve na busca de uma valorização da dignidade, não mais no estrito cumprimento de seus papéis tradicionais, mas sim na participação coletiva numa luta contra o que consideraram as injustiças de que eram vítimas. E, ao valorizarem a sua participação na luta por seus direitos, constituíram um movimento social contraposto ao clientelismo característico das relações tradicionais entre os agentes políticos e as camadas subalternas”. (José Geraldo de Souza Júnior, Movimentos Sociais - Emergência de Novos Sujeitos: O Sujeito Coletivo de Direito, in Cláudio Souto e Joaquim Falcão, Sociologia e Direito - Textos Básicos para a Disciplina de Sociologia Jurídica, p. 259). Ante à falta, se instala uma nova ordem e uma nova concepção de cidadania precisa se modular para restabelecer certa coerência na administração dos conflitos, onde a participação direta nos processos flexíveis de articulação de decisões políticas seja possível. Diante da falência, e mesmo da ineficiência, do Estado no gerenciamento e na distribuição de bens fundamentais da vida organizada em sociedade, as alternativas aos modos tradicionais de se conceberem práticas jurídicas e práticas políticas se instalam para suprir carências.


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Freio necessário à lógica que orienta o sistema penal

Cidadania é o exercício dos direitos humanos Eduardo Carlos Bianca Bittar

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que é cidadania? Esta parece ser uma questão de fundamental importância para a construção do Estado Democrático Direito. Decorrência da tradição moderna, a idéia de cidadania trouxe importantes aquisições para a experiência histórica das democracias, mas em parte não se anelou à realização de uma certa fatia das preocupações que hodiernamente incomodam as práticas políticas. Num conceito mais político-jurídico tradicional, ser parte de um Estado soberano, cuja adesão lhe concede um certo status, bem como votar e poder ser votado, são as únicas condições para a definição de cidadania. Assim, estariam em jogo duas dimensões: pertencer ou não a uma soberania e ser por ela reconhecido como parte de seus cidadãos, o que passa por critérios de aceitação definidos nas esferas político-diplomática e cívico-jurídica (ius soli, ius sanguini); estar no gozo dos direitos políticos, podendo votar (cidadania ativa) e ser votado (cidadania passiva) nos processos de participação política.

É certo que estes conceitos são funcionais, e remontam a uma tradição histórica moderna e, sobretudo, a uma tradição jurídica que procura tratar de modo técnico a problemática da cidadania. Não assumindo, portanto, esta leitura ou este viés técnico da questão, e procurando conferir-lhe um tratamento diferenciado daquele que se pretende em linhas dogmáticas, verte-se a reflexão para pensar a pragmática da cidadania, seus problemas e suas implicações sócio-econômicas. Aliás, há um certo uníssono na discussão da idéia de cidadania que permite dizer que suas insuficiências precisam ser revistas: “Todos os exemplos aferidos, da história recente e atuais, apontam para a insuficiência do critério da cidadania. Ou seja, embora ninguém negue que a implantação e o respeito aos direitos civis seja desejável em si, eles são nem indispensáveis nem suficientes como condição para a paz entre maioria e minoria. Podemos apontar para algumas deficiências graves embutidas no próprio conceito de cidadão, e que parecem decorrer da definição abstrata do

cidadão: 1) Esta definição não deixa espaço entre a demanda da assimilação e a ameaça da exclusão; ela é cega às diferenças concretas entre os cidadãos, elimina a possibilidade de transformar essas diferenças – que em outras sociedades impossibilitam a convivência – em um inocente estilo de vida; 2) A teoria da cidadania não pode dar conta das oposições dentro da sociedade à integração de novos candidatos à cidadania, porque não entende o nacionalismo do mainstre a m. Daí a vulnerabilidade de sociedades modernas e superficialmente civilizadas ao racismo, anti-semitismo etc.” (Jaime Pinsky, Carla Bassanezi Pinsky, História da cidadania, 2003, p. 343-373). Quando se insere a perspectiva de análise na dimensão do que é o social, deve-se pensar o quanto as implicações entre as estruturas formais das promessas do jurídico e do político se traduzem em eficazes atendimentos a mandamentos de direitos humanos. Pensar estas questões reclama que se tome uma outra atitude diante da conceituação tradicional, no sentido de alargar sua significação, para abranger uma dimensão

mais ampla de abordagem e reflexão. A ampliação dos horizontes conceituais da idéia de cidadania faz com que se postule, sob este invólucro, a definição de uma realidade de efetivo alcance de direitos materializados no plano do exercício de diversos aspectos da participação na justiça social, de reais práticas de igualdade, no envolvimento com os processos de construção do espaço político, do direito de ter voz e de ser ouvido, da satisfação de condições necessárias ao desenvolvimento humano, do atendimento a prioridades e exigências de direitos humanos, etc. Deve-se, portanto superar a dimensão acrisolada do tradicionalismo que marca a concepção conceitual de cidadania, no sentido da superação de suas limitações e deficiências. No lugar da clausura conceitual tradicional, alargando-se a experiência e o sentido histórico-genético que possuía o termo em seu princípio, o que se propõe é a expansão do sentido em direção às fronteiras das grandes querências sociais, dos grandes dilemas da política contemporânea, dos grandes desafios histórico-realizativos dos direitos humanos.

Imerso nas contradições latinoamericanas, o sistema penal brasileiro está comprometido com essa problemática. A atuação de nosso sistema penal traz para a contemporaneidade vestígios de um direito de ordem privada, de base corporal, típica do período colonial. O número de mortes no sistema, que superam o de regiões em guerra, indicam a continuidade da metodologia truculenta de um aparato que nunca conseguiu se divorciar de suas origens situadas na relação casa-grande/senzala. De acordo com o jornalista Luis Mir, em 2002 as polícias do Rio de Janeiro e de São Paulo liquidaram 1.289 pessoas, enquanto os policiais estadunidenses mataram 367 cidadãos em todo o território dos EUA. Entre dezembro de 1987 e novembro de 2001, ainda de acordo com esse autor, 3.937 crianças e adolescentes foram mortas por ferimentos à bala. No mesmo período, em Israel, os embates levaram 467 adolescentes de 18 anos à morte. A grande questão que emerge da leitura desses dados é a existência de um sistema penal de caráter exterminador que serve para a garantia dos interesses de uma elite que não pretende partilha. Diante do abismo social que se cria e sem uma política capaz de manter o quadro das assimetrias, a violência aparece como o recurso a para a conservação do poder. O discurso que sustenta a torto e a direita a existência de um sistema penal falido perde a credibilidade. O sistema penal funciona e funciona bem. Funciona para os fins para os quais foi concebido: manter as pessoas onde estão. É instrumento que serve para a garantia da propriedade e dos espaços de poder das classes hegemônicas, por meio de política intimidatória que pune com rigidez os delitos praticados pelos segmentos vulneráveis. Nessa dinâmica, o sistema constrói o controle diferencial dos indivíduos e grupos como ingrediente fundamental de sua estruturação. De acordo com Nilo Batista, há duas vertentes claras que orientam a atuação

desse aparato. De um lado estão os consumidores em potencial, autores de delitos de trânsito, lesões corporais, crimes contra o erário e ambientais. Para esses há uma legislação que visa evitar a qualquer custo o aprisionamento como punição. A criminalização tangencial desses desses indivíduos serve principalmente como forma de mascarar o alto grau de seletividade do sistema. De outro medidas impostas por Juizados Especiais a um processamento que dificilmente chega à punição efetiva, os clientes vips são poupados. Para os historicamente marginalizados, a narrativa segue a dinâmica oposta. Os crimes das classes vulneráveis no país contam com uma legislação que elege a prisão como o melhor. O Estado se comunica com os marginalizados pelo sistema penal. Para esses indivíduos a restrição é a regra, a partir de um discurso que trata da periculosidade e da defesa social. São os verdadeiros destinatários do empreendimento penal. A lei de crimes hediondos foi editada justamente para dar conta dessa demanda da globalização, com seus excessos humanos não aproveitáveis. É importante ter o controle, construindo uma barreira para o mercado de trabalho desses segmentos, num círculo vicioso funcional aos interesses do capital. Os indivíduos devem ser aprisionados e mantidos apartados do contato social pelo perigo simbó-

lico que representam ao status quo. O interesse em manter os indivíduos aprisionados está, portanto, pouco relacionado aos nobres interesses da segurança pública. De acordo com estudo realizado pelo Ilanud (Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente), que analisou a realidade da população carcerária das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro no período de 1983 a 2003, a lei de crimes hediondos é um fator fundamental para o aumento da população carcerária. A manutenção desse tipo de instrumento legal em nosso ordenamento jurídico não está posta, obviamente, em decorrência da função alardeada que deveria cumprir. É necessário atentar para o fato de que esse tipo de incongruência está sustentada por uma rendosa “indústria do controle do crime” que se beneficia enormemente desse tipo de política criminal. O mercado de segurança privada que vende uma espécie de proteção ilusória, mas muito lucrativa, é o maior responsável pelas altas cifras desse empreendimento no país. De acordo com Luis Mir, em 1999 enquanto vários setores da economia tiveram uma redução em sua margem de lucros, o aparelho de segurança privada teve um crescimento em torno de 4 a 5% ao ano em seus lucros, que de R$ 6,9 bilhões em 1994,

saltaram para R$ 14,5 bilhões em 2001. O Brasil já é o terceiro mercado de carros blindados do mundo, contando com um mercado de segurança privada que representa 6,6% de seu produto interno bruto. Com esse tipo de desempenho econômico,esse é um terreno que só tende a hipertrofiar, com apoio estatal. Tendo em vista toda essa problemática, a decisão do STF quebra com a lógica dominante que investe no sistema penal como alternativa para a gerência dos conflitos sociais. Mas nada de precipitações. Não se trata de mudança de rumo em instância conservadora do Judiciário brasileiro. A votação monstra a fragilidade desse tipo de entendimento. O fundamental é a declaração pública de que as práticas do sistema devem se aproximar minimamente do discurso jurídico-penal. Afinal, um empreendimento que vende a ressocialização dos criminalizados como produto final de sua atuação não pode apartá-los em definitivo do contato social, negando-lhes a possibilidade de uma aproximação gradual de acordo com o que está expresso na lei. O sistema penal serve à neutralização de poucos e, na sua movimentação, cobra em vidas o custo dessa fatura. É instrumento que serve à segurança particular de classes hegemônicas no país, nada mais. Se ainda é difícil vislumbrar uma quebra efetiva dessa agenda criminalizante e, principalmente, uma nova orientação para os processos de controle social que se divorciem do, é importante que os sujeitos desse empreendimento possam ao menos pautar as incongruências de sua movimentação. Nesse sentido, a decisão do STF se alinha com propostas contra-hegemônicas, com leitura que aproxime as funções declaradas das realmente cumpridas pelo sistema penal no país. Estamos diante de importante rodada nessa queda de braço que opõe privilégios e democracia, contra o elefante branco em que se converteu o aparato de controle penal no Brasil.

Fundamentalmente, o Estado se comunica com a horda de marginalizados que vaga pelo país pela via do sistema penal. Para esses indivíduos a restrição com o contato social é a regra, a partir de um discurso que trata da periculosidade e da defesa social. São eles os verdadeiros destinatários do empreendimento penal


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OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Os desafios da campanha: "Quem não deve não teme" ção tem grande potencial emancipatório se a consideramos na sua dimensão capacitante, o que se tem chamado de empoderamento dos cidadãos e grupos. Do mesmo modo temos que as contas públicas são, em verdade, o orçamento público que foi efetivamente executado; logo a fiscalização possibilita uma leitura política dos gastos e revela as prioridades do gestor, desmascarando discursos vazios do marketing político. Vemos ainda que a fiscalização e divulgação ampla dos dados mesmo que posteriormente podem vir a influenciar na redistribuição de recursos servindo também de efeito pedagógico para o gestor público que deve se acostumar com a prática da fiscalização (e assim com o combate ao desvio de recursos públicos) e avaliação (e assim com combate o mau uso do recurso público) pela sociedade civil. Sendo assim, a Campanha propõe, combatendo a pobreza política combater também a material, além de buscar mudar a cultura política do clientelismo e da compra de votos na Bahia, pois o cidadão bem informado faz o julgamento político nas urnas. A iniciativa esteve voltada diretamente para o exercício do direito de acesso às contas públicas pelo(a) cidadão(ã) - garantido pelo artigo 31 § 3ºº da Constituição Federal de 1988 -, alcançou mais de 100 municípios, através de uma extensa rede de parceria e articulação entre entidades da sociedade civil e movimentos sociais.

Sara Côrtes e Juliana Neves Barros

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omo vemos ao redor a democracia não concretizou o seu potencial de realização de justiça social. Apesar disso, reforçamos aqui a posição de Boaventura Santos que aposta na democracia: “Eu, que vivi durante alguns anos em período de fascismo, nunca critico a democracia por ser uma fraude, critico por ser pouca. Eu quero é mais.” Pretendemos neste texto dar notícia da constituição de um novo tipo de movimento social denominado de “movimento cidadão”, composto dos chamados movimentos populares, organizações voluntárias, sejam Ongs ou grupos de mútua ajuda ou associativismo de bairro e comunitários, que reivindicam o controle social do Estado. Importante afirmar na linha do Direito Achado na Rua que nosso interesse aqui gira menos em torno das formas de direito e mais nas práticas jurídicas do Estado e da sociedade civil no que tange a transparência e responsabilização, partindo da hipótese central, qual seja, do controle social como estratégia eficaz para estimular a emancipação social e qualificar a democracia participativa. Neste contexto se insere a experiência da campanha de articulação e mobilização para democratização do acesso às contas públicas municipais na Bahia denominada de Campanha “Quem Não Deve Não Teme” que acaba de entrar no seu segundo ano e de ganhar o Prêmio Nacional de Direitos Humanos 2006 concedido pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), na categoria Ações e Experiências. O prêmio foi entregue dia 06 de abril, durante a abertura, na Câmara, do 14º Encontro Nacional do MNDH, uma organização com 400 entidades filiadas, que conta com o apoio da Comissão de Direitos Humanos e Minorias. A Campanha é uma iniciativa da

AATR - Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia, Cáritas Brasileira/Regional Nordeste 3, CAA - Centro de Assessoria do Assuruá, ESPASSO - Espaço de Participação Social, FASE/Bahia - Federação dos Órgãos para a Assistência Social e Educacional na Bahia e MOC – Movimento de Organização Comunitária, todas organizações não-governamentais que atuam em diferentes regiões do Estado da Bahia

na área de Políticas Públicas e Controle Social do Poder Público, com apoio da CESE - Coordenadoria Ecumênica de Serviço, Ministério Público do Estado da Bahia, Controladoria Geral da União e Associação Bahiana de Imprensa. Esta experiência tem como fundamento principal o enfrentamento da pobreza política e material através da formação política/capacitação e redistribuição de riqueza. A fiscaliza-

A premiada Campanha "Quem Não Deve Não Teme" busca a democratização do acesso às contas públicas municipais na Bahia

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PCC: movimento social ou organização criminosa? José Geraldo de Sousa Junior e Cristiano Paixão

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o desenrolar dos acontecimentos recentes de São Paulo, as primeiras reações se dividiram entre a perplexidade e as respostas habituais nas situações de crise no sistema criminal-penitenciário. A recuperação das matérias jornalísticas do período revela a descrição do cenário espetacular de “barbárie”, “pânico”, “anormalidade”, “ataques”, “rebeliões”, “medo”, “execuções”, “atentados”, “caos” e “incompetência”, que estimula as respostas simplistas de incremento da lei e da ordem e suas alternativas repressivas. E é na esteira desse modelo de reação que surgem os primeiros “pacotes” legislativos, sob a forma de projetos de lei e de propostas de emenda à Constituição, todos em variante criminalizadora. Foram apresentados ou já tramitavam, somente no Senado, vários projetos que formam um amplo catálogo de medidas punitivas ou restritivas: alteração do Código de Processo Penal para disciplinar a reparação de danos decorrente da prática de infração penal; alteração do Código Penal para aumentar o limite de cumprimento de penas privativas de liberdade; alteração do Código Penal para aumentar prazos prescricionais; alteração da legislação de execução penal para criar regime penitenciário de segurança máxima, instalar bloqueadores de celulares, instituir inteligência penitenciária, implantação de presídios federais, deslocamento de presos entre unidades da federação. Há projetos que prevêem a indisponibilidade de bens de criminosos; que estipulam ser falta grave a posse e utilização de telefones celulares ou outros equipamentos de comunicação por presos no interior de estabelecimentos penais, com a previsão de isolamento do faltoso; propõe-se que o juiz possa interrogar o réu ou inquirir detentos na condição de testemunha por meio de videoconferência; procura-

se instituir a “delação premiada” também para o condenado, com a possibilidade de redução de pena; requer-se a extinção da possibilidade do livramento condicional ao condenado reincidente em crime punido com reclusão. Entre as propostas de emendas à Constituição, há as que postulam reestruturar órgãos de segurança pública; tornar obrigatória a aplicação de recursos na área de segurança pública; dispor sobre a aplicação da receita resultante de impostos, para a organização e manutenção dos órgãos de segurança pública. Porém, entre várias alternativas, também aparecem as que chamam a questão da segurança para o campo de revisão de seus paradigmas numa sociedade democrática, desmilitarizada e que aceite discutir a passagem de um sistema repressivo para um modelo restitutivo de juridicidade. É preciso agir não só no campo criminal, mas também no campo social. Cabe, antes de tudo, lançar a discussão acerca da comunicação que teria sido estabelecida entre as forças de segurança do Estado e o comando do PCC. Uma conceituada revista de circulação mensal lançou edição extra com matérias que dariam sustentação ao reconhecimento de caráter político à construção do PCC, designando uma história externa de confronto com o estado por melhores condições carcerárias e uma história interna cheia de vítimas na luta pelo poder. Este tipo de interpretação abre ensejo para por em relevo um aspecto pouco analisado a partir dos acontecimentos. Teria o governo negociado com o PCC? Há na política espaço ético para negociar com facção criminosa? A mesma revista publicou um estatuto atribuído à organização, que é arrematado com um claro apelo político: “Conhecemos a nossa força e a força de nossos inimigos. Poderosos, mas estamos preparados, unidos e um povo unido jamais será vencido. LI-

BERDADE, JUSTIÇA E PAZ!!!”. Aliás, essas inscrições apareceram em cartazes toscos em várias cenas captadas por jornais e televisões. Antes que se possa responder à questão colocada com base na determinação teórica da legitimidade política de uma facção criminosa, um olhar ficcional sobre o mesmo tema pode abrir perspectivas inesperadas. Notícias sobre negociação Em seu último livro, no qual leva ao limite as circunstâncias que derivam das intermitências da morte, o prêmio Nobel José Saramago trabalha a situação difícil na qual um governo, numa ficção narrativa, põe em causa ter que negociar com facção criminosa. Deparando-se com a possibilidade de abrir interlocução com emissários de associação de delinqüentes, o Estado, que “não faz acordos com máfias”, pelo menos não “em papéis com assinaturas reconhecidas por notário”, se vê na contingência de estabelecer acordo de cavalheiros, para ceder sem que pareça ter cedido, até chegar ao ponto inexorável de não poder oferecer alternativas credíveis e ser forçado a avançar num terreno moralmente cedível, diz Saramago, quando o pragmatismo toma conta da batuta e dirige o concerto sem atender ao que está escrito na pauta. Nesta situação, avalia o escritor, o mais certo é que a lógica imperativa do aviltamento venha a demonstrar, afinal, que há ainda degraus éticos a descer. O Estado declarou não fazer acordo com bandidos. Pelo menos não

com formalidade legal ou com registros notariais. Mas, segundo noticiou a imprensa, uma plataforma conciliatória foi estabelecida para estancar a crise e reposicionar as partes em conflito: a hierarquia gerencial do aparato governamental e a facção criminosa. Tudo isso à custa de uma contabilidade macabra erguida como fachada para que o que aconteceu por trás dela se desobjetive numa responsabilidade difusa. A ficção parece antecipar aquilo que a teoria tenta explicar. A legitimidade de interlocução que atribuiu aos movimentos sociais um protagonismo apto a postular direitos e a designá-los politicamente pressupõe mais que a organização e a revolta. Ela pressupõe um sentido emancipatório para a ação. Pressupõe, para aludir ao que indica Boaventura de Sousa Santos – o autor sempre presente na página 24 de Constituição & Democracia –, uma disposição solidária para romper o círculo egoísta do fascismo social e uma determinação para ingressar num campo experimental de novo estatuto comunitário no qual os direitos possam se realizar, não como apropriação possessiva, mas como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade. Uma facção criminosa não é um movimento social. Porém, é fundamental afirmar: pertencendo ou não a organizações criminosas, os presos, em sua condição de exclusão, conservam uma reserva inalienável de cidadania, que deve encontrar formas de reconhecimento e de exercício.


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EDITORIAL

Observatório da Constituição e da Democracia

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ão é possível construir legitimamente a soberania sem pensar a participação popular. Muito embora um senso comum indique que os mecanismos de participação popular direta sejam obstáculos a medidas de soberania - especialmente em momentos críticos em que o debate sobre a violência não pode mais ser posto em segundo plano - é preciso reconstruir, criticamente, esta oposição entre democracia e soberania. E, no centro desta questão, situa-se uma idéia: a democracia, quando debate os limites e desafios de nossas liberdade e igualdade, pergunta-nos a todo o momento qual a medida de nossa participação na construção das normas que nos regem. É esta pergunta que conduz o quinto número deste caderno Constituição & Democracia, em questões que vão de temais mais gerais, tais como a cidadania percebida como condição para efetivo exercício de direitos humanos, a recusa legítima dos povos da França e Holanda de ratificarem uma proposta de Constituição Européia construída em um processo que não privilegiou a participação popular, a necessidade de que a sociedade venha participar diretamente da construção das normas que regulamentam a prestação dos serviços de saúde e mesmo as formas de participação popular na iniciativa de leis - este último um caminho ainda por ser trilhado de modo mais efetivo. A autoria construída pela cidadania, o protagonismo popular, já deu exemplos históricos de sua importância e ainda hoje é a fonte de uma resistência legítima aos ataques que são feitos hoje às garantias constitucionais - ambos temas tratados na entrevista concedida por Macelo Lavenére, sem dúvida um observador e protagonista privilegiado da nossa história político-constitucional mais recente. O debate central deste número aponta para a idéia de que o poder não apenas emana do povo e não é somente exercido em seu nome de forma representativa pelos agentes eleitos, mas extrai toda a sua legitimidade de mecanismos de participação popular. Estes mecanismos podem permitir, se utilizados, que nos vejamos a nós mesmos como autores do nosso direito. Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito Faculdade de Direito - Universidade de Brasília

EXPEDIENTE Caderno mensal concebido, preparado e elaborado pelo Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito (Faculdade de Direito da UnB - Plataforma Lattes do CNPq). Coordenação Alexandre Bernardino Costa Cristiano Paixão José Geraldo de Sousa Junior Menelick de Carvalho Netto Miroslav Milovic Comissão de redação Giovanna Maria Frisso Janaina Lima Penalva da Silva Leonardo Augusto Andrade Barbosa Marthius Sávio Cavalcante Lobato Paulo Henrique Blair de Oliveira Ricardo Machado Lourenço Filho Integrantes do Observatório Adriana Andrade Alexandre Araújo Costa Aline Lisboa Naves Guimarães Álvaro Luiz Ciarlini André Rufino do Vale Artur Coimbra de Oliveira Augusto dos Santos de São Bernardo Carolina Pinheiro Damião Azevedo Daniel Augusto Vila-Nova Gomes

Daniel Barcelos Vargas Fábio Comelli Dutra Fabio Costa Sá e Silva Francisco Schertel Ferreira Mendes Guilherme Cintra Guimarães Gustavo Costa Henrique Smidt Simon Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros Juliana Amorim de Souza Juliano Zaiden Benvindo Laura Schertel Ferreira Mendes Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira Marina Cruz Vieira Villela Marcelo Casseb Continentino Maurício Azevedo Araújo Paulo Sávio Peixoto Maia Pedro Diamantino Ramiro Nóbrega Sant´anna Renato Bigliazzi Rochelle Pastana Ribeiro Vitor Pinto Chaves Projeto editorial R&R Consultoria e Comunicação Ltda Editor responsável Luiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS)

Contato observatorio@unb.br www.unb.br/fd

CIDADANIA É O EXERCÍCIO DOS DIREITOS HUMANOS Eduardo Carlos Bianca Bittar – Livre-Docente e Doutor, Professor Associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Advogado e Secretário-Executivo da Associação Nacional de Direitos Humanos (ANDHEP – 04 NEV/USP) PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA SAÚDE: QUEM DIZ O QUÊ Mariana Siqueira de Carvalho - Professora colaboradora – DIREB/FIOCRUZ, Mestre em Direito pela UnB, especialista em Direito Sanitário – CEPEDISA/USP e integrante do grupo de pesquisa 06 Sociedade, Tempo e Direito ENTREVISTA COM O PRESIDENTE DA COMISSÃO DE ANISTIA DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA MARCELO LAVENÈRE TRÊS RAZÕES CONTRA O IMPEACHMENT DE LULA Alexandre Bernardino Costa - Professor da Faculdade de Direito da UnB, coordenador de Extensão – FD/UnB e integrante dos grupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e Direito Achado na Rua Guilherme Cintra Guimarães - Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante do 08 grupo Sociedade, Tempo e Direito e advogado da União AS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA Maurício Azevedo de Araújo – Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante 10 dos grupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e Direito Achado na Rua e advogado REJEIÇÃO DA CARTA EUROPÉIA PELA FRANÇA E PELA HOLANDA Laura Schertel – Mestranda em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante do grupo de 12 pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e Gestora Governamental DIREITO INTERNACIONAL E A HUMANIZAÇÃO Antônio Augusto Cançado Trindade – Professor Titular do Instituto de Relações Internacionais da 14 UnB e ex-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos MÃE NÃO TEM SÓ UMA Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros – Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB e integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito

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OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO PARTICIPAÇÃO POPULAR NO PROCESSO LEGISLATIVO Leonardo Augusto de Andrade Barbosa – Professor do curso de pós-graduação em Processo Legislativo da Câmara dos Deputados, Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito, analista legislativo na Câmara dos 18 Deputados e advogado OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO DECISÃO DO STF SOBRE CRIMES HEDIONDOS Ana Luiza Pinheiro Flauzina – Mestra em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Controle Penal e Sistema de Justiça, Diretora do EnegreSer e advogada Fabiana Costa Oliveira Barreto – Mestra em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Controle Penal e Sistema de Justiça, e Promotora de Justiça (MPDFT) Marina Quezado Grosner – Mestra em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante do grupo 20 de pesquisa Sociedade, Controle Penal e Sistema de Justiça e advogada

Sindicato dos Bancários de Brasília

Editor assistente Rozane Oliveira Diagramação Gustavo Di Angellis Ilustrações Flávio Macedo Fernandes

PCC: MOVIMENTO SOCIAL OU ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA? José Geraldo de Sousa Junior – Professor da Faculdade de Direito da UnB, integrante dos grupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e Direito Achado na Rua e da Comissão de Defesa da República e da Democracia, do Conselho Federal da OAB Cristiano Paixão – Professor da Faculdade de Direito da UnB, coordenador do Programa de Pósgraduação – FD/UnB, integrante dos grupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e Direito 03 Achado na Rua e procurador do Ministério Público do Trabalho (Brasília-DF)

SindPD-DF

OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS OS DESAFIOS DA CAMPANHA: “QUEM NÃO DEVE NÃO TEME” Sara Côrtes – Professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Mestra em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante do grupo de pesquisa Direito Achado na Rua e Secretária da AATR – Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia e Juliana Neves Barros – Advogada da AATR – Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia 22 MORALES E A DEMOCRACIA Boaventura de Sousa Santos – Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

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CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JUNHO DE 2006

Estratégia e mobilização popular: quatro passos No intuito de potencializar os resultados e a mobilização popular em torno da Campanha, foram utilizadas concomitantemente 4 estratégias que se complementam: 1) estratégias jurídicas/institucionais (envio aos 417 municípios baianos da Petição da Cidadania Ativa aos promotores de Justiça pedindo que garantissem o direito de acesso às contas públicas municipais nos meses de abril e maio), 2) formação e mobilização, 3) informação e mídia e de 4) sistematização/diagnóstico, obtendo resultados em todas estas dimensões e em diversas regiões e municípios do Estado da Bahia. Abaixo, os principais resultados: Promotores de 412 municípios baianos receberam a “Petição da Cidadania Ativa” para que atuem junto às prefeituras e câmaras garantindo a efetiva abertura das contas ao público, como reza a Constituição Federal (CF) no seu artigo 31 parágrafo 3º; MUNICÍPIOS ATINGIDOS 118 municípios diretamente pela Campanha (aproximadamente 28% dos municípios da Bahia); ATIVIDADES DE FORMAÇÃO: 366 pessoas e 58 municípios (aproximadamente 49% dos municípios foram atingidos com atividades de formação); CARAVANAS E REUNIÕES -20 municípios (aproximadamente 17% dos municípios); LANÇAMENTOS – 40 municípios (aproximadamente 34% dos municípios); 01 LANÇAMENTOS ESTADUAL e 05 regionais: 510 pessoas; 377 correios eletrônicos; Promotorias de Justiça de 36 municípios RETORNARAM INFORMAÇÕES à secretaria da Campanha (aproximadamente 31% dos municí-

A fiscalização tem grande potencial emancipatório se a consideramos na sua dimensão capacitante, o que se tem chamado de empoderamento dos cidadãos e grupos

pios atingidos); Contatos de outros estados: 06 Estados (Pernambuco, São Paulo, Minas Gerais, Ceará, Pará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Goiás); Com relação ao ACESSO ÀS CONTAS MUNICIPAIS, temos que em 48 municípios a Campanha conseguiu diagnosticar como se deu o acesso (uma amostra de aproximadamente 40% dos municípios atingidos); Desta amostra total de 48 municípios: em 31 municípios as contas públicas foram disponibilizadas para o acesso de grupos e cidadãos, ou seja, em 26% da amostra houve acesso às contas públicas, sendo que destes, em 11 municípios as contas foram disponibilizadas mas com dificuldades de acesso aos grupos e cidadãos; em 17 municípios baianos as contas não foram disponibilizadas aos grupos e cidadãos, ou seja, em 14% da amostra; em 70 municípios ainda não houve retorno dos dados sobre a disponibilidade das contas; Em 16 municípios houve DENÚNCIA AO MINISTÉRIO PÚBLICO ou por que não houve acesso às contas ou porque foram encontradas irregularidades (em 14% da amostra). Apesar de constar na Constituição Federal desde 1988, as experiências vivenciadas atestam que até hoje o procedimento de livre acesso às contas municipais é muito incipiente e distante da realidade pois, em mais de 50% dos municípios diretamente acompanhados pela Campanha, ou as contas não foram disponibilizadas ou houve dificuldade no acesso. Ou seja, em mais da metade, absurdamente, o ato de “pedir as contas” soa como informação nova e inusitada. Revelou-se flagrante a falta de informações sobre direitos pertinentes à participação popular no poder público, especialmente sobre o acesso às contas públicas, sendo que na maioria dos municípios a fiscalização nunca havia sido realizada. Esbarrou-se no autoritarismo e no discurso de descrença e deslegitimação da atuação popular pelas autoridades; na resistência das instituições públicas em travar um diálogo mais direto com o cidadão comum, insistindo ainda no intermédio de “assessorias”; no burocratismo e tecnicismo estatal; na forte cultura da impunidade; no predomínio da lógica político-partidária na

Revelou-se flagrante a falta de informações sobre direitos pertinentes à participação popular no poder público, especialmente sobre o acesso às contas públicas forma de intervenção no poder local, dentre outros. Esbarrou-se enfim na surpresa pela exigência de transparência e quase impossibilidade de responsabilização. Por outro lado, deparamo-nos também nesse processo com oportunidades tais como o acúmulo de experiências, a existência de vários grupos de cidadania já consolidados e o próprio reconhecimento do cenário de atuação. De forma organizada ou como iniciativas isoladas, pessoais, observamos que muitas(os) cidadãs(ãos) já experimentam no seu dia-a-dia as vicissitudes e desafios do acesso às contas públicas e que vêem na Cam-

panha uma forma de reforço político para sua atuação local. A conclusão que chegamos com a leitura dos dados é a de que é possível fiscalizar as contas públicas, é possível ter acesso e é possível compreender as contas indicando mau uso e desvio de recursos públicos, especialmente em municípios com menos de 20 mil habitantes (cerca de 4.000 municípios no Brasil tem menos de 20 mil habitantes). É possível ter apoio do Ministério Público para ter acesso ás contas. Mas é difícil! É preciso organizar-se em grupo e persistir mais de um ano, no intuito de “educar” o gestor público e seus funcionários além de chamar atenção dos cidadãos, organizações e universidades para a importância do ato de buscar saber como, onde e para que estão sendo utilizados os recursos públicos em nosso país. Nesse sentido, invocando a bandeira “contra o desperdício da experiência”, este ano Lançamos a Campanha “Quem Não deve teme” ano II – 2006 acreditando que não é possível pensar e praticar a democracia sem controle social do Estado. Maiores informações no site www.controlepopular.org.br.


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CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JUNHO DE 2006

Nº 5 JULHO DE 2006 R$ 2,00

C&D Constituição & Democracia Direito de família

Mãe só tem uma? pg 16 Entrevista

Lavenére e o não ao impeachment de Lula

pg 8

Campanha política

Quem não deve não teme

pg 22

Morales e a Democracia Boaventura de Sousa Santos

P

ela terceira vez na história do país (1937, 1969, 2006), a Bolívia acaba de decretar a nacionalização dos seus recursos naturais. A medida terá, para já, um impacto económico significativo apenas no caso do gás natural, de que a Bolívia detém as segundas maiores reservas do continente. Qualquer democrata que se preze – ou seja, alguém para quem a democracia deve ser levada a sério, sob pena de ser descredibilizada e sucumbir facilmente a aventuras autoritárias – deverá saudar esta medida. Por três razões principais. Em primeiro lugar, porque ela foi uma das promessas eleitorais que levaram ao poder o Presidente Evo Morales. Se as promessas eleitorais não forem cumpridas, o que tem vindo a ser recorrente no continente, a democracia representativa deixará a prazo de ter qualquer sentido. Acontece que, neste caso, o não cumprimento da promessa eleitoral

seria particularmente grave porque os bolivianos mostraram de forma eloquente (com o sacrifício da própria vida) em várias ocasiões nos últimos anos a sua determinação em porem fim à pilhagem dos seus recursos: os protestos massivos entre 2000 e 2005, que levaram à demissão de dois presidentes e culminaram com o referendo vinculante de Julho de 2005, em que 89% dos participantes se pronunciou a favor da nacionalização dos hidrocarbonetos. A segunda razão para saudar esta medida é que se a democracia não é sustentável para além de certo limite de exclusão social, podemos dizer que a Bolívia está próximo desse limite, já que cerca de metade da população vive com menos de um euro e meio por dia. O empobrecimento agravou-se nas duas últimas décadas com o neoliberalismo, cujo cerco à sobrevivência do país não cessa de se apertar. Com a recente assinatura dos tratados bilaterais de livre comércio dos EUA com a Colômbia e o Peru, a ex-

portação de produtos agrícolas (sobretudo soja) para os países vizinhos terminará. É certo que a nacionalização não basta, porque se bastasse as nacionalizações anteriores teriam resolvido os problemas do país. Deve ser complementada com uma política progressista de redistribuição social e de investimento na saúde, na educação, nas infraestruturas básicas, na segurança social. Se tal complementaridade ocorrer, o contexto para a nacionalização não podia ser melhor, dado o aumento do preço dos recursos energéticos. Neste domínio, a democracia e a justiça social têm outro ponto de contacto: é moralmente repugnante que as empresas energéticas colham frutos fabulosos – a vender o barril de petróleo acima de 70 dólares com base em contratos de exploração em que o preço de referência é muito inferior a 20 dólares – enquanto o povo morre de fome e de doenças curáveis. A terceira razão para saudar o decreto do Presidente Morales é que esta nacionali-

zação é muito moderada (não envolve expropriação) e visa repor a segurança jurídica, que deve ser um dos pilares da democracia. As privatizações da década de 1990, além de terem sido ruinosas para o país, foram ilegais, como acabam de declarar os tribunais, já que os contratos de exploração não foram aprovados pelo poder legislativo, como manda a Constituição. Em termos jurídicos, a nacionalização é condição mínima para que o governo da Bolívia possa renegociar os contratos com as empresas energéticas de modo mais justo, a fim de que estas renunciem aos seus superlucros (não aos seus lucros) para que o povo empobrecido possa viver um pouco melhor. Perante a força destas razões, cabe perguntar pelo porquê da reacção hostil dos países muito mais ricos e aparentemente muito mais democráticos que a Bolívia. Será que quando a democracia interfere com os nossos negócios são estes que prevalecem?

Congresso

O que o povo deve fazer para legislar

pg 18


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