C&D Constituição & Democracia Nº 9 (Novembro-Dezembro de 2006) DIREITO INTERNACIONAL DOS DDHH

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Nº 9 NOVEMBRO E DEZEMBRO DE 2006

R$ 2,00

C&D Constituição & Democracia Entrevista com o professor CANÇADO TRINDADE

Novo Direito Internacional para a humanidade pg 12

DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS


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CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | NOVEMBRO E DEZEMBRO DE 2006

EDITORIAL

Observatório da Constituição e da Democracia O tema deste número de Constituição & Democracia – direito internacional dos direitos humanos – é uma homenagem ao aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948. Reação à II Guerra Mundial, a Declaração é hoje compreendida como marco inicial da proteção do indivíduo em âmbito internacional. Grande parte dos artigos deste número de Constituição & Democracia abarca temas relacionados à percepção do indivíduo como sujeito de direitos no âmbito internacional, conquista que, de acordo com a entrevista de Cançado Trindade, é responsável pela humanização do direito internacional público. Na própria Declaração, encontramos a proibição da prática da tortura. É, todavia, indiscutível a prática da tortura no Iraque, seja durante o regime de Saddam Houssein, seja durante a ocupação norteamericana. Sabemos do julgamento do Saddam Houssein. E a tortura praticada pelas tropas de ocupação? Seletividade? Este é um dentre os vários aspectos examinados por Tarciso Dal Maso Jardim sobre aquele julgamento. Outro local em que graves violações aos direitos humanos vêm sendo repetidamente praticadas é Guantánamo. A relação entre direitos humanos e direito internacional humanitário é explorada, a partir deste caso, por Cristiano Paixão. Importante observar, sob este aspecto, que os Estados Unidos em seu relatório para o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas não abordou o tema, (re)afirmando acerca da ausência de jurisdição na região de Guantánamo. Responsabiliza-se Saddam Houssein e, com a atuação dos Tribunais Penais Internacionais para a exIugoslávia e Ruanda, muitos outros são também responsabilizados. Mas, e nós? Este o chamado que o artigo de Sven Peterke nos faz, aos demonstrar que há, ainda hoje, uma aceitação da tortura entre nós. Um mal necessário para salvaguardar o Estado Democrático de Direito de ataques terroristas? Uma ameaça em si ao Estado Democrático de Direito? A violação à integridade física do indivíduo é também tematizada por Janaína Penalva, ao tratar da condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Ximenes Lopes. A complexidade em que vivemos é bem retratada pela autora em seu artigo, ao explorar as (in)congruências entre a condenação de um país que é saudado por ter aberto as suas portas para a realização de uma sessão extraordinária da Corte em seu território e tem sua política pública de saúde mental reconhecida internacionalmente. Marina Siqueira e Bárbara Campos, por sua vez, apresentam-nos dados assustadores sobre o tráfico de pessoas, indicando inclusive as cidades brasileiras que estão mais diretamente relacionadas a esta prática. As autoras relatam as medidas recentemente adotadas pelo Estado brasileiro para o combate ao tráfico de pessoas. O reconhecimento do problema pelo Estado é em si significativo, já que, diante da dificuldade da caracterização do tráfico, as pessoas comercializadas são tratadas, em muitos Estados, como escravos, tal como comenta o artigo de Nicolau Dino. Como imigrantes indocumentados, em sociedades em que a mídia explora o medo do desemprego, da ausência de proteção dos direitos sociais pelo Estado, da violência, do terrorismo, estas pessoas têm seus direitos freqüentemente violados. Diante desta realidade, Cançado Trindade indica-nos a relevância da opinião consultiva da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o tema. Do mesmo modo, Boaventura de Sousa Santos revela em seu texto que o preço da segurança não pode ser o sacrifício real da democracia a qual a segurança há de servir. A mesma mídia que produz riscos nos aproxima. Neste sentido, este número problematiza questões que têm como pano de fundo a legitimidade ou, nos termos de Cançado Trindade, a humanização de um plano internacional normativo.

EXPEDIENTE Caderno mensal concebido, preparado e elaborado pelo Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito (Faculdade de Direito da UnB - Plataforma Lattes do CNPq). Coordenação Alexandre Bernardino Costa Cristiano Paixão José Geraldo de Sousa Junior Menelick de Carvalho Netto Comissão de redação Adriana Andrade Miranda Giovanna Maria Frisso Janaina Lima Penalva da Silva Leonardo Augusto Andrade Barbosa Marthius Sávio Cavalcante Lobato Paulo Henrique Blair de Oliveira Ricardo Machado Lourenço Filho Integrantes do Observatório Alexandre Araújo Costa Aline Lisboa Naves Guimarães André Rufino do Vale Carolina Pinheiro Damião Azevedo Daniel Augusto Vila-Nova Gomes Daniel Barcelos Vargas Fabio Costa Sá e Silva

Francisco Schertel Ferreira Mendes Guilherme Cintra Guimarães Guilherme Scotti Henrique Smidt Simon Jan Yuri Amorim Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros Juliano Zaiden Benvindo Laura Schertel Ferreira Mendes Lúcia Maria Brito de Oliveira Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira Marcelo Casseb Continentino Maurício Azevedo Araújo Paulo Sávio Peixoto Maia Pedro Diamantino Ramiro Nóbrega Sant´anna Renato Bigliazzi Rochelle Pastana Ribeiro Vitor Pinto Chaves

Contato observatorio@unb.br www.unb.br/fd

Sindicato dos Bancários de Brasília

Editor responsável Luiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS)

Diagramação Gustavo Di Angellis Ilustrações Flávio Macedo Fernandes

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Direitos humanos em tempos de terror: o caso de Guantánamo Cristiano Paixão – Professor da Faculdade de Direito da UnB, integrante dos grupos de pesquisa O Direito Achado na Rua e Sociedade, Tempo e Direito, doutor em Direito pela UFMG, procurador do Ministério Público do Trabalho em Brasília

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Globalização da insegurança Lúcia Maria Brito de Oliveira – Advogada, professora da Faculdade de Direito da UnB e mestre em Relações Internacionais pela UnB

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A OIT e os direitos humanos trabalhistas Ricardo Machado Lourenço Filho – Mestrando em Direito, Estado e Constituição na UnB, assessor de Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito

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Justiça restaurativa e conflitos armados: uma conciliação possível? Jan Yuri Figueiredo de Amorim – Mestrando em Direito, Estado e Constituição na UnB, advogado do Núcleo de Prática Jurídica e Escritório de Direitos Humanos e Cidadania da UnB

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Entrevista com Augusto Cançado Trindade Giovanna Maria Frisso – Professora substituta da Faculdade de Direito da UnB, mestra em Direito Internacional Público pela Universidade de Uppsala (Suécia), doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília e integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito

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Seres humanos à venda: aspectos sobre o tráfico internacional de pessoas Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira – Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental - SNJ/MJ, Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB, membro do Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito Bárbara Pincowsca Cardoso Campos – Assessora - SNJ/MJ, Bacharel em Relações Internacionais pela UnB, Graduanda em Direito - UniCEUB

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OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO: A Convenção da ONU contra a Tortura – e nós Sven Peterke – Professor visitante da Faculdade de Direito da UnB, mestre em Humanitarian Assistence e doutor em Direito pela Universidade do Ruhr, de Bochum (Alemanha)

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OBVSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO Quando é bom perder: o caso Ximenes Lopes e a primeira condenação do Brasil Janaína Penalva – Mestranda em Direito, Estado e Constituição na UnB

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OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Cidadania, Direito Humanos e Cortes Internacionais Adriana Andrade Miranda – Advogada, mestranda em Direito, Estado e Constiuição na UnB, integrante dos grupos de pesquisa Sociedade Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua Fabiana Gorenstein Bacharel em Direito pela UFPE, consultora do programa Turismo Sustentável e 20 Infância do Ministério do Turismo OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO Novos caminhos para o combate ao trabalho escravo Nicolao Dino C.Costa Neto – Procurador Regional da República, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, mestre em Direito pela UFPE; professor da UnB 22 O preço da segurança Boaventura de Sousa Santos – Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Projeto editorial R&R Consultoria e Comunicação Ltda

Editor assistente Rozane Oliveira

Saddam: onde está a verdade e a Justiça? Tarciso Dal Maso Jardim – Consultor Legislativo do Senado Federal em relações exteriores e defesa nacional, professor de Direito Internacional Humanitário (UniCEUB) e mestre em Relações Internacionais pela UnB

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Saddam: onde está

a verdade e a justiça? Tarciso Dal Maso Jardim

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ersonagem emblemático do final do século XX, Saddam Hussein construiu sua trajetória política por meio das armas e da violência. Para manter-se no poder por mais de duas décadas, atravessou conflito armado contra o Irã e a Guerra do Golfo, além de conter com mão de ferro divergências internas promovidas por curdos e xiitas. Somente caiu do poder em ato de agressão capitaneado pelos Estados Unidos. Os Estados Unidos, ao invadir o Iraque, acusou Saddam de manter armas de destruição em massa e justificou sua ação a partir da defesa e difusão dos princípios da democracia liberal e do combate ao terrorismo. Saddam, que possui ficha criminosa considerável, caiu do poder não em razão desses crimes, mas como vítima de poderoso país que atuou como juiz e carrasco simultaneamente, pois precisava manter o poder em geopolítica do Oriente Médio e sustentar seu controle sobre o petróleo. Provavelmente, se o Iraque pactuasse com os Estados Unidos, como fizeram outros países árabes, Saddam ainda estaria no poder. Em 14 de dezembro de 2003, Saddam foi detido pelos Estados Unidos, na condição de prisioneiro de guerra, e mantido incomunicável pela força multinacional no Iraque (MNF-I). Além de ter sido submetido a humilhações e maus-tratos, o ex-dirigente sunita, desde então, não possuiu condições de defesa satisfatórias. Inicialmente, sequer podia se comunicar com seus advogados, familiares ou autoridades judiciais. Antes da prisão, a potência ocupante já se preocupava com o julgamento de Saddam por crimes que de fato cometeu. Em 10 de dezembro de 2003, o Estatuto de um Tribunal Especial foi criado pelas forças de ocupação para julgar Saddam e onze com-

panheiros seus de governo por crimes internacionais ou previstos pelo direito nacional. A competência temporal desse Tribunal, contudo, exclui qualquer possibilidade de julgamento dos crimes cometidos pelas forças ocupantes, como, por exemplo, as torturas e maus-tratos cometidos contra detidos em Abu-Graib ou a própria invasão dos Estados Unidos e potências aliadas. O Tribunal Especial Iraquiano, portanto, não foi criado pelas Nações Unidas, nem fazia parte do judiciário iraquiano, mas foi pensado e instalado pelos ocupantes. Em agosto de 2005, um ano após o início dos julgamentos, esse Tribunal foi aprovado pela Assembléia Nacional Iraquiana de Transição e rebatizado como Suprema Corte Penal. Apesar da incorporação, a imparciali-

dade do Tribunal é questionada, entre outros motivos, pelo fato de o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, mediante o Regime Crimes Liaison Office, ser partícipe das investigações, tradução de documentos e treinamento de advogados e juízes. Além disso, mortes de defensores, renúncias de juízes, potenciais enforcamentos, discurso de defesa da democracia e do Estado de Direito e testemunhas que não comparecem por medo abalam a credibilidade do Tribunal e do julgamento. Inicialmente, Saddam e seu staff foram julgados pelo massacre de 143 xiitas em 1982, ocorrido em Dujail, cerca de 70 km de Bagdá. Além das mortes, centenas de pessoas, incluindo crianças e mulheres, foram detidas arbitrariamente e torturadas, além de

terem sido destruídas várias palmeiras, cujo cultivo é a base da economia local. Outra acusação que paira sobre Saddam é o genocídio contra os curdos, cuja campanha foi batizada de al-Anfal, que significa butim, espólio de guerra. Nessas ações, que incluiram o ataque em 1988 à cidade curda de Halabja com armas químicas, estimase a morte de 180 mil pessoas, sem contabilizar torturas, deslocamentos forçados, destruição de plantações e detenções arbitrárias. Pode-se dizer que Saddam foi sentenciado à morte, oficialmente pelo que cometeu, mas, por detrás, está a intenção de condená-lo pelo que não fez: manter com o Ocidente uma aliança em nome do petróleo. Por vezes, confundem-se criminoso e vítima, ou juiz e carrasco.


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Direitos humanos em tempos de terror:

o caso de Guantánamo Cristiano Paixão

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s direitos humanos são direitos universais. Isso não significa que a compreensão dos direitos seja a mesma no mundo inteiro, ou que a sua eficácia seja similar em várias nações, comunidades ou povos. Diferenças de grau, alcance e aplicação continuarão existindo, até mesmo porque, na unidade da sociedade mundial, está pressuposta uma imensa pluralidade de formas de vida e orientações políticas. Mas, antes de tudo, os direitos humanos possuem uma dimensão universal e universalizável.

Eles pretendem estipular um patamar mínimo de proteção para todos os indivíduos. Um aspecto sensível – e também vulnerável – da coexistência entre comunidades e nações localiza-se no direito internacional dos conflitos armados. O tratamento a ser concedido a prisioneiros de guerra pode conduzir a situações de extrema crueldade, ausência de garantias institucionais e mera submissão do vencido à vontade do vencedor. Após a experiência de dois conflitos mundiais, a comunidade internacional parece ter constatado a importância de regulamentar as formas

de tratamento dos indivíduos tomados como prisioneiros em conflitos armados. As Convenções de Genebra representam o resultado dessa preocupação. Elas formam um conjunto de normas destinado à proteção dos direitos mínimos dos prisioneiros – pois eles também são titulares dos direitos humanos. As convenções partem do pressuposto de que é possível aprender com a experiência do passado. Um século que presenciou o confinamento e extermínio maciço de pessoas em campos de concentração deveria ter consciência da própria memória. O passa-

do não pode ter apenas a função do esquecimento. Não devemos, contudo, acreditar cegamente na capacidade de aprendizado das nossas sociedades. Certas vezes, parece que nosso tempo, como diz Hamlet, “está fora dos eixos”. Nações que foram oprimidas transformam-se em algozes. Povos que contribuíram para a libertação do mundo da ameaça totalitária assumem a vanguarda na violação dos direitos humanos. Procurando responder às ameaças do terrorismo, os Estados modernos aceitam a inevitabilidade dos “efeitos colaterais” da “luta contra o terror”.

O tratamento a ser concedido a prisioneiros de guerra pode conduzir a situações de extrema crueldade


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O ciclo de violência retoma o seu curso A face mais repugnante da reação à ameaça terrorista tem local e nome definidos: é o campo de prisioneiros instalado na base naval de Guantánamo, em Cuba, sob jurisdição e controle dos Estados Unidos da América. Levados para a ilha em 2002, após os combates iniciados em outubro de 2001, no Afeganistão, os detentos formam um grupo plural e multiétnico. Há cidadãos de 40 nacionalidades, de 18 idiomas diferentes. Várias greves de fome já foram realizadas e três prisioneiros suicidaramse em junho de 2006. O número de prisioneiros, que já atingiu a cifra de 600 pessoas, hoje estabilizou-se em torno de 450 indivíduos. O governo norte-americano planeja julgá-los por meio de comissões militares criadas após o início do conflito, sem nenhuma supervisão internacional e sem a possibilidade de recurso da decisão ao Poder Judiciário dos Estados Unidos. O governo já sofreu duas derrotas na Suprema Corte: em 2004, o tribunal permitiu que os prisioneiros de Guantánamo questionassem a legalidade de sua detenção nos tribunais federais norte-americanos. E em 2005 a Corte considerou ilegais as comissões militares – que haviam sido criadas por meio de decretos do Executivo, sem autorização do Congresso. Ainda que essas decisões possam ser consideradas como marcos importantes para a persistência dos postulados do constitucionalismo moderno, o fato é que, em termos práticos, a situação permanece a mesma. Não foi determinada a soltura de nenhum prisioneiro; apenas foram sustados os procedimentos de indiciamento nas comissões militares. Porém, logo após o resultado da decisão da Suprema Corte, o presidente George W. Bush reuniu a maioria de que dispunha no Congresso e conseguiu a aprovação das duas Casas para o funcionamento das comissões. Fica então a pergunta: a Suprema Corte autorizará os julgamentos dos detentos de Guantánamo pelas comissões militares, considerando suficiente a aprovação de uma lei para esse fim? A vida e a liberdade de 450 pessoas depende da resposta a ser conce-

dida pelo tribunal. As normas militares norte-americanas divulgadas após o conflito no Afeganistão contemplam a pena de morte. Já se iniciou a construção de um corredor da morte em Guantánamo, segundo noticiado pela imprensa dos Estados Unidos, por meio de um de seus maiores conglomerados de informação (MSNBC). Se os julgamentos forem permitidos, terá sido cometido um violento golpe ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos construído no pós-guerra. A iniciativa de regulamentação da situação dos prisioneiros de guerra por meio de convenções internacionais parte do pressuposto de que todo ser humano – qualquer ser humano – tem direito a um julgamento imparcial acerca de sua conduta e suas motivações, se o que está em jogo é a permanência dos direitos à vida e à liberdade.

O que vem ocorrendo, até o presente momento, é um julgamento coletivo. Todos os detentos são culpados, até que provem sua inocência. O ex-Secretário de Defesa Donald Rumsfeld afirmou que os prisioneiros de Guantánamo são “os assassinos mais perigosos, bem-treinados e odiosos da face da Terra”. Para o Vice-Presidente Richard Cheney, eles são “a pior parte de um lote muito ruim”. Em outra declaração, Rumsfeld defendeu que os guerrilheiros do taliban deveriam ser “assassinados ou aprisionados”, diante de seu envolvimento nos atentados do 11 de setembro. Essas declarações não são apenas bravatas ou palavras de ordem. Elas representam o pensamento das Forças Armadas e do governo norte-americano. É com base nessas premissas que os detentos de Guantánamo estão há mais de quatro anos aprisionados sem indiciamento válido ou perspec-

tiva de um julgamento imparcial. “Se você quiser uma definição deste lugar, é que você não tem direito a ter direitos”. Foi assim que um ex-detento francês se referiu à prisão na ilha. É uma descrição adequada. Os prisioneiros de Guantánamo foram privados da dimensão política, social e existencial que é distintiva dos seres humanos: eles estão suspensos no tempo e no espaço. Eles não têm previsão para a definição de sua situação; na verdade, não sabem mesmo se haverá uma definição. Com isso, o tempo se transforma num eterno agora, e o futuro se dissipa na ausência completa de perspectivas. O espaço em que estão confinados é estranho e hostil: os detentos foram transportados de territórios asiáticos (Afeganistão e Paquistão) para uma ilha isolada no Caribe. Eles não podem sair e tampouco receber visitas de suas companheiras, familiares e amigos. Com isso, a idéia de universalização dos direitos humanos encontra sua maior negação na contemporaneidade. A desumanização do humano atinge sua máxima expressão. A memória é ativada de modo seletivo: as duras lições que os conflitos do século XX nos deixaram não parecem ter sido assimiladas. Os líderes das nações que conduzem a “luta contra o terror” desprezam a comunidade internacional, ignoram os direitos humanos e transformam a justiça em pura vingança. William Faulkner escreveu certa vez: “o passado nunca está morto”. Para os prisioneiros de Guantánamo, essa é a mais dolorosa verdade.

A regulamentação da situação dos prisioneiros de guerra parte do pressuposto de que todo ser humano tem direito a um julgamento imparcial


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Globalização da Insegurança Lúcia Maria Brito de Oliveira

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s distâncias e os espaços foram reduzidos em um mundo globalizado. As informações que chegam em um volume considerável tornam a realidade cada vez mais complexa e heterogênea. Contudo, ter mais informações sobre lugares diversos do planeta não implica um real conhecimento sob os seres humanos, os lugares onde vivem e a relação desses com o meio ambiente. Ter mais informações sobre a realidade modificou a noção de instantâneo. A compreensão do imediato foi alterada: um acontecimento a milhares de quilômetros une os seres presentes no local e aqueles que recebem a notícia ou vêem as imagens. A diminuição dos espaços, a alteração da percepção do tempo e a aproximação do sentido de global e local significaram também um aprofundamento da rejeição com relação

ao diferente, ao desconhecido sobretudo após as rupturas advindas ao final do século XX com a queda do muro de Berlim e os atentados de 11 de Setembro de 2001 em Nova Iorque. Os cinqüenta e seis anos que separam o final da Segunda Guerra Mundial e os atentados às Torres Gêmeas significaram anos de profundo esforço coletivo para a construção de um sistema jurídico internacional de proteção dos seres humanos. Construção esta feita sob as bases da cooperação e do consenso. Contudo, no século XXI, em seus primeiros anos, estas idéias, aliadas às de complexidade e de heterogeneidade, passaram a ser entendidas como os pilares de uma oposição radical que se chamou ‘guerra’. Uma guerra que estigmatizou os direitos humanos. Ela os colocou como um conceito oposto ao de segurança em uma luta contra o ‘terror’. Os pilares ‘paz’ e ‘segurança’ constantes na Carta das Nações

Unidas não eram os mesmos da ‘guerra contra o terror’. Diferentemente, hoje, ela passa a se fundamentar no binômio suspeita e exceção. O mundo, que vivera os horrores da Segunda Guerra Mundial, e que percebera a necessidade da construção de um arcabouço jurídico internacional consensual, encontra-se perplexo e estático porque a realidade internacional não encontra nos conceitos e teorias instrumentos para entender os fatos que se apresentam. De um sonho multilateral que não se materializou em sua totalidade, o mundo passou a ter de lidar com o sentimento da globalização da insegurança e de seu processo de transnacionalização. A realidade que outrora era baseada numa separação ideológica do mundo passou a ser orientada por uma clivagem identitária do planeta. A diversidade que impulsionou a sofisticação e a complexidade dos debates sobre os di-

versos temas de direitos humanos passou a ser razão para o não debate. O difícil consenso e a dura cooperação para a solução dos conflitos e arestas foram substituídos pela disseminação e fragmentação da violência social internacional, com a introdução de outros atores que não só os Estados nacionais.

A insegurança globalizada permitiu que se fundissem as idéias de crime e de guerra na equação complexa do ‘terror global’


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Seres humanos tornaram-se vítimas Neste contexto, a construção e acumulação de direitos foi afetada. A ‘guerra contra o terror’ significou, em muitos casos, a supressão de alguns direitos. Numa visão da realidade baseada numa lógica ‘amigo/inimigo’, os seres humanos tornaram-se as reais vítimas: vítimas por encontrarem-se em meio a conflitos armados, por tentarem encontrar em outros lugares a sobrevivência que seu lugar natal não lhes proporciona, por fugirem de catastrófes ambientas, climáticas, por temerem o desconhecido representado por pessoas de outras culturas e religiões e por milhares de outros motivos. De cidadãos de um planeta mundializado passaram a ser vistos política e juridicamente como inimigos, como marginais, como criminosos. A insegurança globalizada permitiu que se fundissem as idéias de crime e de guerra na equação complexa do ‘terror global’. Com isso, hoje em dia, as leis antiterror têm seu foco em todos habitantes (nacionais ou estrangeiros) de um determinado espaço geográfico chamado Estado nação como potenciais ‘suspeitos’ e investigadores. Este duplo papel sublinha a erosão dos princípios da não culpabilidade e do devido processo legal em escala social. Ainda que a percepção da realidade internacional como ‘guerra’ fosse adotada, ou seja, longe do trinômio pluralismo, alteridade e multilateralismo, o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito Internacional dos Conflitos Armados não poderiam ser afastados, pois o foco de ambos é a proteção daquele que sofre, o ser humano em tempos de paz ou em tempos de guerra. Nessas duas faces do Direito Internacional, há previsão de respeito e preservação dos Direitos Humanos. Em tempos de paz ou de guerra, há de se respeitar um rol de direitos que estruturam a ordem internacional: direito à vida, a não tortura, a irretroatividade da lei penal, o não tratamento (ou pena) cruel, desumano ou degradante. Nem mesmo uma emergência pública relevante e mensurável poderá ser aplicada indiscriminadamente. Serem sempre preservados para que sejam concretizados com o seu exercício. Nem mesmo uma

‘Guerra contra o Terror’ pode fazer uso da excepcionalidade para eliminar direitos tão duramente construídos e que precisam ser quotidianamente mantidos. Desta forma, é a partir da percepção e aceitação da complexidade do mundo e da necessidade vital de respeito à diversidade e ao debate internacional dos temas de direitos humanos que a acumulação de direitos continuará a ser construída. Somente debatendo o real sentido da segurança como algo que nasce do respeito e valoração humanos e que tem como foco o próprio ser humano é possível entender que não é diminuindo direitos que se terá mais segurança ou paz. Paz e segurança que só encontram sentido e força se forem cons-

truídos para todos em todos os lugares deste planeta mundializado. A expansão e a densificação dos direitos humanos, muito mais do que um processo irresistível, são resultantes da sinergia entre demandas sociais nacionais e internacionais, das respostas que o sistema internacional complexo e do exercício histórico individual ou coletivo. Incorporar os direitos humanos como seu e de todos os demais seres que habitam este mundo é tarefa tanto dos indivíduos quanto dos diversos tribunais internacionais, regionais e nacionais. É na produção jurisprudencial que se fortalece a idéia de que os direitos humanos são mais que tudo fruto do exercício de todos os seres humanos e de sua elaboração coletiva internacional.

Nem mesmo uma ‘Guerra contra o Terror’ pode fazer uso da excepcionalidade para eliminar direitos construídos e mantidos diariamente


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A OIT e os direitos humanos trabalhistas Ricardo Machado Lourenço Filho

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Organização Internacional do Trabalho, desde sua origem, em 1919, desempenha um papel importante na defesa e na promoção dos direitos humanos. Sua estrutura tripartite viabiliza o diálogo social, por meio da participação de trabalhadores, empregadores e governos. Cria, assim, um espaço de discussão em que são estabelecidos os princípios e diretrizes para a efetivação e o reconhecimento internacional daqueles direitos. Mas, diante dessa breve explicação, duas perguntas podem ser feitas: (i) por que promover direitos humanos, em especial aqueles voltados às relações de trabalho?; e (ii) por que a OIT é importante nesse processo? Direitos humanos: proteção ao indivíduo e à sociedade Para responder à primeira pergunta, vamos, em princípio, formular outra: qual a função dos direitos humanos? A sociedade moderna é marcada, de um lado, pela presença de sistemas funcionais, como o direito, a política e a economia, e, do outro, pela ausência de fundamentos absolutos, como Deus ou a natureza. A posição na hierarquia social deixa de justificar, por si só, a atribuição de direitos e deveres ao indivíduo, que se depara, assim, com uma situação problemática. Antes, seus atos, seu comportamento, suas possibilidades eram globalmente determinadas pelo lugar ocupado na estrutura social. Agora, ele precisa ter acesso aos diversos sistemas funcionais (por exemplo, educação e saúde, além dos acima referidos), o que amplia seu campo de ação. É essa possibilidade de recorrer às diferentes esferas que permite ao indivíduo se determinar e, assim, buscar o reconhecimento social. Nesse sentido, os direitos humanos são importantes por dois motivos.

Em primeiro lugar, é por meio da institucionalização dos direitos humanos que se mantém aberta a porta de acesso aos sistemas sociais. Eles justificam reivindicações voltadas, por exemplo, à construção de escolas e hospitais, ao combate ao desemprego ou à obtenção de melhores condições de trabalho. Essas pretensões podem ser traduzidas como recurso aos sistemas da educação, saúde e economia. Assim, os direitos humanos constituem direitos de participação e, por meio desta, garantem a prerrogativa de auto-determinação do indivíduo. Em segundo lugar, conferem proteção contra inclinações de um

determinado sistema a impor sua lógica particular aos demais sistemas. Basta pensar no caso de um Estado Totalitário, em que a política atrai para si as operações dos diversos sistemas funcionais, o que significa que uma decisão no âmbito da educação (por exemplo, a construção de uma universidade) poderá ser tomada estritamente com base em argumentos de cunho político. Esse risco também pode ser colocado pela economia e se faria presente caso um hospital oferecesse tratamento diferenciado para pacientes com a mesma enfermidade, mas com condições econômicas diversas. Os direitos huma-

nos têm uma função importante exatamente contra essas tendências colonizadoras dos sistemas, protegendo, assim, a estrutura funcional da sociedade (além, é claro, dos próprios indivíduos).

Os direitos humanos têm função importante contra tendências colonizadoras


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Direitos Humanos: proteção a indivíduo e sociedade Não é difícil, então, identificar a importância da promoção de direitos humanos trabalhistas. O que justifica a luta pela inserção no mercado de trabalho (ou acesso ao sistema econômico), ou, ainda, o combate às formas degradantes de serviço (como o escravo ou infantil)? Como é assegurado o direito de auto-determinação do trabalhador? E mais: qual o fundamento último da reivindicação do empregado, que vê seus direitos suprimidos pelo empregador, ao argumento de que é necessário reduzir direitos para aumentar os lucros? Por que a imposição da lógica econômica em detrimento da garantia de direitos? O que protege a improvável diferenciação funcional da sociedade moderna? Mais do que uma mera justificativa de reivindicações, os direitos humanos constituem, portanto, garantias, tanto ao indivíduo (e, enquanto tal, ao trabalhador), quanto à sociedade. A importância da OIT na promoção dos direitos humanos trabalhistas Passemos à segunda pergunta, relativa à importância da OIT. Ela adquire relevância sobretudo num contexto de crise dos direitos trabalhistas e de crescente precarização das relações de trabalho. Nesse campo, a Organização atua em duas frentes principais. A OIT age no sentido de auxiliar os Estados a efetivar os direitos humanos ou fundamentais trabalhistas. Não se trata, portanto, de um mero órgão de elaboração de normas internacionais. A Organização desenvolve estudos e pesquisas com a finalidade de identificar problemas nas relações de trabalho e transgressões aos direitos humanos. A Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho, de 1998, destaca: a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociação co-

A OIT busca identificar transgressões aos direitos humanos

letiva, a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório, a abolição efetiva do trabalho infantil e a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação. A seguir, a declaração firma a obrigação da OIT de auxiliar seus membros a alcançar esses objetivos, inclusive mediante o oferecimento de cooperação técnica e de serviços de assessoramento. Esse dever de ajuda, por parte da Organização, também consta da Declaração Referente aos Fins e Objetivos da OIT (Declaração da Filadélfia), de 1944. A Organização também conclama trabalhadores, empregadores e governos ao diálogo e ao debate sobre as questões do mundo do tra-

balho, os quais são travados, entre outros espaços, na Conferência Geral da OIT, composta pelos representantes dos diversos EstadosMembros. Por meio dessa estrutura tripartite, a OIT franquia a participação dos interessados num espaço de discussão e de postulação de interesses, tendo em vista a fixação de princípios e diretrizes para a promoção dos direitos fundamentais trabalhistas. É essa a atuação mais relevante da OIT: chamar os atores sociais para o diálogo. Isso quer dizer que são os próprios trabalhadores, empregadores e governos que discutem os horizontes de ação para a realização dos direitos humanos

A OIT chama os atores sociais para o diálogo trabalhistas. Mediante a participação direta desses agentes, a Organização discute, portanto, os caminhos a serem seguidos para a efetivação desses direitos. Na estruturação desse espaço de debate, deliberação e de tomada de decisões reside a importância da OIT no processo de concretização dos direitos humanos do trabalho.


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Justiça restaurativa e conflitos armados:

uma conciliação possível? “... e o assassino é abraçado pela mãe da vítima, ambos chorando muito” Jan Yuri Figueiredo de Amorim

Difícil de imaginar a cena? Pois é justamente isso que ocorre durante as práticas da justiça restaurativa. Nela, busca-se a reconciliação entre a vítima e o seu ofensor. A punição não é o principal objetivo. O crime é visto como um ato contra um indivíduo ou contra uma comunidade, e não contra o Estado. Aliás, as expressões utilizadas aqui, como crime, vítima e ofensor, são evitadas em suas práticas, pois têm uma conotação negativa muito grande, servindo apenas para separar, excluir e pré-julgar. Assim, no lugar daquelas, as expressões “caso” e “partes em conflito” são mais apropriadas. Utilizando técnicas de negoci-

ação e mediação, as partes e até membros da comunidade participam coletiva e ativamente com o objetivo de encontrar soluções efetivas para o conflito, curar feridas, traumas e perdas, tentando ao máximo alcançar o consenso. A vítima tem a oportunidade de expressar o impacto que o crime teve em sua vida, de receber respostas, mesmo que parciais, sobre o ocorrido, bem como participar do processo de responsabilização da outra parte. O ofensor pode contar seu lado da história, o porquê de a infração ter ocorrido e também dizer como aquele evento afetou sua vida. Vítima e ofensor são colocados frente a frente, tendo ambos então a oportunidade de “solucionar” o con-

flito ocorrido e, ao máximo, tornar as coisas como eram antes. São comuns as expressões de remorso e os pedidos de desculpas pelo ofensor, que acabam ocorrendo naturalmente, servindo como uma espécie de compensação ou reparação para a vítima ou sua família, que também foi vitimada. Casos semelhantes são vistos na Corte Interamericana de Direitos Humanos - CIDH (sede em São José, Costa Rica), que esteve em visita ao Brasil, realizando, em Brasília, o seu XXVII Período Extraordinário de Sessões, entre os dias 28 e 31 de março de 2006. Aquela Corte tem produzido decisões exemplares, que são inspiradoras inclusive para a Corte

Européia de Direitos Humanos (localizada em Estrasburgo, França). A CIDH tem determinado, por exemplo, que o ofensor (no caso, o Estado) tome medidas tais como preservação da memória da vítima (colocando o seu nome em escolas, ruas e praças públicas) e que seja feito um pedido público de desculpas por um alto representante do Estado violador dos direitos humanos. Não é preciso ir longe para buscar exemplos de justiça restaurativa. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal - TJDF tem um projeto pioneiro em funcionamento no Juizado Especial de Competência Geral do Núcleo Bandeirante, cidade satélite do DF.

O sofrimento das vítimas deve ser considerado quando do julgamento de violações a direitos humanos


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O retorno à justiça restaurativa A justiça restaurativa busca trazer a administração do conflito de volta para os atores que de fato participaram do evento. Neste sentido, não é um modelo novo. Pode ser encontrado em civilizações antigas, como na Mesopotâmia, milhares de anos antes de Cristo. Ainda na Alta Idade Média, a liquidação de conflitos e a eventual restituição ao ofendido eram resolvidas entre os indivíduos, utilizando-se uma terceira pessoa para analisar a regularidade do procedimento levado a cabo pelas partes. Em um processo que amadureceu no século XII, foi ocorrendo a centralização do poder político nas mãos dos monarcas e a monopolização do poder de decidir litígios entre indivíduos. Finalmente, deste processo surge uma nova figura, o procurador, que se apresenta como representante do soberano, do rei ou do senhor. O crime deixa então de ser uma lesão a um indivíduo para se transformar numa lesão contra o Estado. O procurador se transforma numa espécie de dublador da vítima, que é substituída pelo Estado e vai se afastando mais e mais da administração de seu conflito. Este processo de “seqüestro” do conflito pelo Estado se desenvolveu e

se tornou complexo, perdurando até os dias de hoje, principalmente no ocidente. Hoje, não é comum e nem mesmo obrigatória a presença da família da vítima durante o julgamento de um indivíduo acusado de assassinato. Até mesmo no âmbito internacional percebem-se reflexos deste processo, como no caso do Tribunal Penal Internacional - TPI, que ainda focaliza demais o criminoso, esquecendo ou deixando à margem a vítima e as causas da sua vitimização. No século XX, a justiça restaurativa começou a tornar-se mais popular, mesmo que ainda ocupe posição periférica se comparada ao modelo de justiça criminal que todos estão acostumados a ver. Comunidades no Canadá, nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha, na Austrália e na Nova Zelândia instituíram programas de justiça restaurativa, com o objetivo de trazer a vítima de volta para o processo. Um dos objetivos da justiça restaurativa é a emancipação dos atores envolvidos no conflito, uma espécie de retomada da justiça feita entre os indivíduos, sem a mediação do Estado. Não se confunde com justiça privada, vingança: busca-se a compreensão do ocorrido, das suas causas, da reconciliação e o estabelecimento da paz social.

A aplicação em conflitos armados Se a primeira imagem deste artigo já foi complicada de se aceitar, parece ainda menos aceitável um círculo de reconciliação após um conflito armado. Poderia ser argumentado que a justiça restaurativa deve ser estabelecida em um nível mais local e não internacional. Os conflitos armados que marcam a atualidade, especialmente após os dois conflitos mundiais do século passado, são os conflitos de caráter local, onde violações dos direitos humanos são sistematicamente cometidas. Conflitos como o de Ruanda ou da ex-Iugoslávia, ainda que tenham contado com a intervenção interna-

cional, foram conflitos entre irmãos. Nos procedimentos levados perante o TPI para a ex-Iugoslávia, não era incomum observar cenas em que se viam, de um lado, o vitimado e sua família, e do outro, o criminoso de guerra, vizinho daqueles, e que na noite anterior ao conflito haviam jantado como amigos. A mera persecução penal, culminando com a punição daqueles eventuais culpados, não será capaz de trazer a paz, especialmente para um país que, após o conflito, busca se reestruturar e se restabelecer. No lugar da persecução penal e da aplicação de penas, as partes em confronto deverão chegar a um acordo

de modo a garantir a continuidade de seu país, onde diálogo e compreensão das causas do conflito, seguidos da vontade de virar uma nova página e fazer um novo começo, pode ser a melhor alternativa. O sofrimento das vítimas deve ser considerado quando do julgamento de violações a direitos humanos. Dele deve ser extraído o próprio Direito. A justiça, para a maioria das vítimas, não começa com a persecução e termina com a punição. Para muitas vítimas, a real justiça será feita quando de alguma forma o mal, seja ele físico, psicológico ou material, seja reparado, mesmo que de forma simbólica.

Vítima e ofensor são colocados frente a frente, tendo ambos a oportunidade de “solucionar” o conflito e tornar as coisas como eram antes


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O novo Direito Internacio Giovanna Frisso

A

Corte Interamericana de Direitos Humanos realizou em Brasília seu XXVII Período Extraordinário de Sessões entre os dias 28 e 31 de março de 2006. As audiências públicas aqui realizadas ofereceram ao público acesso a relevante parte do marco normativo interamericano para a análise do contexto brasileiro, ao abordarem temas que não são estranhos à nossa realidade: redemocratização e leis de auto-anistia, violação dos direitos dos presidiários e crianças soldados. Como a competência da Corte está condicionada à falha/omissão das instituições nacionais, aprender com a jurisprudência contenciosa e consultiva da Corte representa uma rica oportunidade de promoção dos direitos humanos em nível doméstico. Perguntamos ao Juiz e Ex-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Dr. Antônio Augusto CANÇADO TRINDADE, Professor Titular da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco, quais casos contenciosos decididos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, durante a sua segunda gestão como Presidente da Corte, deveriam ser destacados. Em minha segunda gestão como Presidente da Corte Interamericana (2001-2004), destacaria a Sentença quanto ao mérito do caso Hilaire, Constantine e Benjamin versus Trini-

O caso dos haitianos e dominicanos de origem haitiana na República Dominicana constituindo-se em embrião de um verdadeiro habeas corpus internacional

dad e Tobago (2002), em que o Tribunal determinou a incompatibilidade com a Convenção Americana da chamada pena de morte “mandatória”. Igualmente destacaria as medidas provisórias de proteção ordenadas pela Corte no caso da Comunidade de Paz de San José de Apartadó (2001), relativo à Colômbia, graças às quais encontram-se hoje protegidos os 1200 membros da referida Comunidade de Paz como um todo, além das pessoas que lhes prestam serviços (de saúde e transporte), em meio ao conflito armado interno que assola aquele país. Esta decisão foi precedida pelas medidas provisórias de proteção ordenadas pela Corte também no caso dos Haitianos e Dominicanos de Origem Haitiana na República Dominicana (2000), com incidência direta no livre movimento transfronteiriço de pessoas (sob o artigo 22 da Convenção Americana), constituindo-se em um embrião de um verdadeiro habeas corpus internacional. Em um caso contencioso sem precedentes, o da Comunidade Mayagna Awas Tingni versus Nicarágua (mérito, 2001), a Corte protegeu toda uma comunidade indígena, e seu direito à propriedade comunal de suas terras (sob o artigo 21 da Convenção); determinou a Corte que a delimitação, demarcação e titulação das terras da referida comunidade indígena deveriam efetuarse em conformidade com seu direito consuetudinário, seus usos e costumes. Enfim, no caso Myrna Mack Chang versus Guatemala (2003), a Corte estabeleceu a responsabilidade internacional agravada do Estado demandado, por ter planificado e perpetrado a execução sumária e extrajudicial da reconhecida antropóloga. Qual é a relevância das Opiniões Consultivas ou Pareceres da Corte Interamericana, e quais destes o senhor destacaria? Os Pareceres da Corte Interamericana têm expressado a interpretação autêntica de disposições da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e de outros tratados de direitos humanos que vinculam os países de nossa região, em relação a questões

de interesse geral de todos esses países. Dos 19 Pareceres emitidos até o presente, destacaria três deles, pioneiros e verdadeiramente históricos, por sua transcendental importância. O Parecer n. 16, sobre o Direito à Informação sobre a Assistência Consular no Âmbito das Garantias do Devido Processo Legal. Segundo o referido Parecer, existe hoje, cristalizado ao longo dos anos, um verdadeiro direito subjetivo à informação sobre assistência consular (consagrado no artigo 36 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares de 1963 e vinculado às garantias do devido processo legal sob o artigo 8 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), de que é titular todo ser humano (privado de sua liberdade em outro país). Em virtude desse direito, toda pessoa deve ser imediatamente informada pelo Estado receptor de que pode contar com a assistência do cônsul do país de origem, antes de prestar qualquer declaração ante a autoridade policial local. Agregou a Corte que, em caso de imposição e execução da pena de morte sem a observância prévia do direito à informação sobre a assistência consular, tal inobservância afeta as garantias do devido processo legal, e a fortiori viola o próprio direito a não ser privado da vida arbitrariamente, nos termos do artigo 4 da Convenção Americana e do artigo 6 do Pacto de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas. Em seu Parecer n. 17, sobre a Condição Jurídica e Direitos Huma-

Toda pessoa deve ser informada pelo Estado receptor de que pode contar com a assistência do cônsul de seu país, antes de prestar qualquer declaração ante a polícia local

nos da Criança, a Corte Interamericana sustentou a intangibilidade da personalidade jurídica internacional da pessoa humana, independentemente de limitações no exercício de sua capacidade jurídico-processual, em razão de determinada condição existencial (como a das crianças). E o célebre Parecer n. 18, sobre a Condição Jurídica e os Direitos dos Migrantes Indocumentados, veio amparar milhares de migrantes indocumentados em nossa região, ao sustentar que devem os Estados res-


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onal para a humanidade Observamos, nas audiências públicas aqui realizadas, a atuação dos peticionários, da Comissão Interamericana e dos Estados já no marco do novo e atual regulamento da Corte, adotado em 24.11.2000, sob sua Presidência. Esse regulamento tem assegurado a participação direta dos indivíduos demandantes em todas as etapas do procedimento perante a Corte. Como o senhor avaliaria esta experiência? Foi este um dos maiores avanços logrados no sistema interamericano de direitos humanos desde a adoção da Convenção Americana em 1969. O novo Regulamento da Corte Interamericana assegura enfim o efetivo acesso dos indivíduos à justiça internacional em todas as etapas do procedimento perante o Tribunal. O caso dos Cinco Aposentados versus Peru (2003) foi o primeiro a ser inteiramente tramitado sob o novo Regulamento. É esta uma bandeira que venho empunhando há muitos anos, vencendo resistências e angariando consensos. O novo Regulamento tem proporcionado mais transparência e melhor instrução dos casos, ademais de assegurar a igualdade processual das partes litigantes. Esta contraposição direta entre os indivíduos demandantes (como sujeitos do Direito Internacional) e os Estados demandados é da própria essência do contencioso internacional dos direitos humanos. Sempre entendi que, ao reconhecimento de direitos nos plano internacional, deve corresponder a ne-

peitar e assegurar aqueles direitos à luz do princípio geral e básico da igualdade e não-discriminação (pertencente ao domínio do jus cogens), e que qualquer tratamento discriminatório quanto à proteção e ao exercício de tais direitos gera a responsabilidade internacional dos Estados. Os trabalhadores migrantes indocumentados têm os mesmos direitos laborais que outros trabalhadores do Estado de emprego, devendo este último assegurar o respeito àqueles direitos na prática.

O novo Regulamento tem proporcionado mais transparência e melhor instrução dos casos, ademais de assegurar a igualdade processual das partes litigantes

cessária capacidade jurídica para vindicá-los. O reconhecimento e a consolidação da personalidade e capacidade jurídicas internacionais do ser humano satisfazem uma necessidade da comunidade internacional contemporânea. As normas internacionais não podem fazer abstração de seus destinatários últimos: os seres humanos. O próximo passo a ser dado - como venho insistindo há anos - é a transposição dessas reformas regulamentares a um Protocolo de Emendas à Convenção Americana, vinculante para os Estados Partes nesta última, para fortalecer seu mecanismo de proteção, cujo Projeto apresentei à Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 2001, e que continua na mesa de negociações das Delegações dos Estados Partes na Convenção Americana. O senhor, em seu recente Curso Geral de Direito Internacional Público ministrado na Academia de Direito Internacional da Haia (julho-agosto de 2005), defendeu a tese de um novo jus gentium. Foi a sua experiência na Corte Interamericana relevante para o desenvolvimento dessa compreensão do Direito Internacional Público? Ter participado na resolução de mais de uma centena de casos de direitos humanos no seio da Corte Interamericana certamente me ajudou melhor compreender a complexidade da condição humana, e a desenvolver a compreensão que hoje tenho do direito das gentes, tal como a aplico consistentemente naquele Tribunal Internacional. Em meu entender, o Direito Internacional experimenta hoje, ao início do século XXI, de certa forma um retorno às origens, no sentido em que foi originalmente concebido como um verdadeiro jus gentium, o direito das gentes, consoante o ideal dos clássicos (F. Vitoria, F. Suárez, H. Grotius, A. Gentili e S. Pufendorf) da civitas maxima gentium, constituída por seres humanos organizados socialmente em Estados e coextensiva com a própria humanidade. Com a superação definitiva da dimensão puramente interestatal da disciplina, modificações marcantes já se fazem sentir em

No século XXI, o ser humano reconquistou sua centralidade também no ordenamento jurídico internacional todos os seus capítulos, permeados por considerações básicas de humanidade, como busquei demonstrar em meu Curso Geral na Academia de Direito Internacional da Haia. Há, efetivamente, que dispensar um tratamento eqüânime às questões que afetam hoje a humanidade como um todo (a erradicação da pobreza, a proteção dos direitos humanos, a realização da justiça social, a preservação ambiental, o desarmamento, a segurança humana). Não há que passar despercebido que os atuais excessos do unilateralismo e o perigoso recrudescimento do uso da força que hoje testemunhamos não têm logrado impedir o desenvolvimento da rica jurisprudência protetora dos tribunais internacionais (Cortes Interamericana e Européia) de direitos humanos, nem a cristalização do velho ideal de estabelecimento de uma jurisdição penal internacional permanente. Minha percepção é no sentido de que o processo de humanização parece-me o grande legado do Direito Internacional ao século XXI, como assinalo em meu último livro (A Humanização do Direito Internacional, Belo Horizonte, Edit. Del Rey, 2006, pp. 1-439): o ser humano reconquistou sua centralidade também no ordenamento jurídico internacional. Estou convencido de que a fonte material de toda a evolução do Direito é a consciência humana, a consciência jurídica universal, que é, naturalmente, metajurídica. Emerge, neste início do século XXI, um novo jus gentium, em que a nova razão de humanidade passa a primar sobre a velha razão de Estado, conformando um novo direito internacional para a humanidade.


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Seres humanos à venda Aspectos sobre o tráfico internacional de pessoas Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira e Bárbara Pincowsca Cardoso Campos

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essoas estão à venda no mundo inteiro. Os motivos são os mais diversos e, na maioria dos casos, nunca mais voltam para seu país de origem, nunca mais vêem suas famílias. Deixam de existir e se tornam vítimas de uma rede invisível, porém espessa, de tráfico humano. As Nações Unidas, consciente desse problema mundial, em novembro de 2000, adotaram o primeiro instrumento que aborda todos os aspectos relativos a esse problema

mundial. “O Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição ao Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças”, mais conhecido como “Protocolo de Palermo”, foi aceito nos foros internacionais e teve o mérito de tratar o problema em todas as suas modalidades: tráfico para fins de exploração sexual, trabalho forçado, escravidão, servidão e remoção de órgãos. Os dados estimados sobre o tráfico internacional de pessoas são alarmantes. Há estudos que dizem ser

um negócio tão lucrativo quanto o tráfico internacional de armas e de drogas. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) calcula cerca de 2,4 milhões de vítimas em 2005. Na verdade, não é fácil mensurar sua real dimensão, dada sua natureza ilícita. No Brasil, ainda há poucos dados disponíveis. Um dos estudos mais importantes – e o único de abrangência nacional – foi a Pesquisa sobre o Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial (PESTRAF), realizada em 2002, que apontou 241 rotas de tráfico no país.

O Brasil começou efetivamente sua luta ao assinar, em 2001, projeto de cooperação técnica internacional entre a Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e o Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crimes (UNODC). Executado entre 2001 e 2005, concentrou-se estrategicamente nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e Goiás: os dois primeiros têm os maiores aeroportos internacionais do país; os outros foram identificados como importantes locais de origem de vítimas brasileiras.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que o tráfico de seres humanos fez aproximadamente 2,4 milhões de vítimas em 2005


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Pessoas estão à venda no mundo inteiro Seguindo os esforços somados durante o projeto com o UNODC, o Brasil iniciou em outubro de 2005 um processo de construção de uma política nacional de enfrentamento do tráfico de pessoas. O texto inicial, após ser discutido no âmbito do Poder Executivo Federal, foi levado à consulta pública para discussão com a sociedade civil. Finalmente, a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas foi aprovada, mediante o decreto presidencial n° 5.948, em outubro de 2006. Nela se estabelecem princípios, diretrizes e metas nas áreas de repressão e prevenção ao tráfico de pessoas, assistência e proteção das vítimas no Brasil. A partir desse marco, o assunto deixa definitivamente de ser tratado apenas no âmbito de pontuais projetos de cooperação internacional e se torna política de Estado, envolvendo não só a área de justiça e segurança pública, como tinha sido até então, mas também as diversas áreas e instituições afetas ao tema. Agora, a efetividade da política dependerá de um esforço permanente e coletivo de todos os parceiros, inclusive a sociedade civil. A Política Nacional representa, sem dúvida, um importante avanço, mas ainda é o início de uma longa caminhada. O próximo passo, já previsto no decreto, é a construção de um Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, uma etapa mais operativa, com ações prioritárias definidas, metas específicas e prazos estipulados, bem como os órgãos responsáveis por sua execução. Mas a verdadeira – e efetiva – luta contra o tráfico não requer apenas ações do lado brasileiro. Como se trata de um problema

transnacional, com implicações inclusive no âmbito das políticas de migração, os países têm que trabalhar em sintonia e de forma integrada para combater o tráfico de pessoas. E a cooperação técnica

A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas representa, sem dúvida, um importante avanço, mas ainda é o início de uma longa caminhada

internacional tem um papel fundamental como instrumento de intercâmbio de boas práticas e experiências bem-sucedidas na área. O mais importante é perceber que o enfrentamento do tráfico de pessoas não se resolve apenas com ações governamentais. Para que as políticas públicas sejam efetivas é preciso uma articulação ampla com os mais diversos movimentos sociais e setores da sociedade que atuam direta ou indiretamente na questão. Estado e sociedade devem agir de mãos dadas e olhar para um futuro comum - um futuro sem pessoas em oferta.

Para que as políticas públicas sejam efetivas, é preciso uma articulação ampla com diversos movimentos sociais e setores da sociedade que atuam na questão


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OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO

A Convenção da ONU contra a tortura – e nós Sven Peterke

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homem é um ser capaz de ações e obras maravilhosas. Mas quem lê os julgamentos de tortura dos tribunais nacionais ou internacionais tem a impressão de que o ser humano é, na verdade, não mais do que um animal insuficientemente domesticado, cheio de ódio, insensível e impotente. A rigorosa recusa da tortura e de tratamentos semelhantes pelo direito é uma grande conquista civilizatória, mas, infelizmente, os dados demonstram que em aproximadamente 120 Estados, incluindo o Brasil, torturas acontecem. Evidentemente, até hoje o gênero humano não conseguiu extinguir esta horrorosa forma de desrespeito à integridade e à dignidade humana. A sondagem da BBC Em outubro deste ano, a BBC publicou uma sondagem sobre a aceitação da tortura baseada em uma entrevista de 27.000 pessoas em 25 países. No Chile, por exemplo, com sua sombria herança da ditadura de Pinochet, 22% dos consultados concordaram com a pergunta de que a tortura devia ser permitida “até certo ponto”. Na Alemanha, na qual as piores crueldades da história da humanidade aconteceram há cerca de 60 anos, são 21%. Em outras palavras: uma em cada cinco pessoas não quer distanciar-se de qualquer forma de tortura. Apesar das (diferentes) experiências históricas horrorosas que marcam estes dois povos, uma parte significativa destas populações se mostra insegura quanto à avaliação da tortura como um mal, capaz de provocar em suas vítimas muitos outros danos. Outros países,

cujas histórias deveriam – supostamente – também refletir uma forte recusa de quaisquer formas de maus tratos físicos, são os EUA e Israel. Segundo a sondagem da BBC, no ano de 2006 não menos que 36% do povo americano parecem achar que a tortura deve ser permitida “até certo ponto”; em Israel, são 43%. Nestes países, mais que uma em cada três pessoas aprova a “tortura light” (“tortura leve”).

Uma explicação para os diferentes resultados entre os dois grupos de Estados apresentados pode estar relacionado ao fato de que nos EUA e em Israel o combate contra o terrorismo tem uma importância maior do que no Chile ou na Alemanha. Os governos dos EUA e de Israel têm adotado “medidas enérgicas”, que ameaçam o Estado Democrático de Direito, para a eliminação da ameaça do terrorismo. Diante destas situa-

ções de ameaça – por um lado pelo terrorismo, por outro lado pelas respostas dos próprios governos – é necessário lembrar que a proibição da tortura serve para amparar não somente “nossos inimigos”, mas a nós próprios. Esta proibição representa um valor fundamental, que regularmente naufraga. O naufrágio desta proibição se dá em um tempo de justificativas relativistas, que tentam evitar confissões de excesso estatal.

Sondagem da BBC, este ano, mostra que 36% do povo americano acham que a tortura deve ser permitida “até certo ponto”


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Convenção contra a tortura... O que significam estes fatos e tendências à luz do direito internacional público e, em especial, da Convenção da ONU contra a Tortura (CAT)? Queria salientar três pontos:

da CAT ou de um dos outros tratados interacionais contra a tortura como, por exemplo, a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura de 1985.

Ponto Um: apesar das violações divulgadas, a proibição da tortura permanece válida – absolutamente e por todos os Estados. As falhas de efetividade do direito internacional público são um lugar comum, mas isto não significa que a proibição de tortura seja inválida. Violações da lei ocorrem em todos ordenamentos jurídicos e não negam sua validade. Por exemplo, no Brasil aproximadamente 30 000 mil pessoas são assassinadas por ano e a proibição do homicídio permanece. De fato, nenhum Estado contesta a validade da proibição da tortura. De se ressaltar que esta proibição na CAT é absoluta. Nos inconfundíveis termos do artigo II da CAT, os Estados “[e]m nenhum caso poderão invocar-se circunstâncias excepcionais, como ameaça ou Estado de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública, como justificação para a tortura”. Além disso, como a proibição da tortura se estabelece também no costume internacional, todos os Estados estão obrigados, mesmo aqueles que não são partes contraentes

Ponto Dois: na CAT articula-se um dos valores fundamentais da humanidade. Provavelmente, ainda é cedo demais para se falar de uma “ordem pública internacional”. Não obstante, quando cometidos no quadro de um ataque generalizado ou sistemático contra qualquer população, atos de tortura podem ser punidos como crime contra a humanidade resultando na responsabilidade criminal individual. Além disso, a proibição da tortura é uma norma do chamado “ius cogens”. Por isso, “[...] qualquer tratado existente que estiver em conflito com essa norma torna-se nulo e extingue-se” (artigo 64 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados). Tudo isso sublinha o fato de que a rigorosa recusa da tortura tem que ser considerada como um valor objetivo. Ponto Três: “tortura light” também é proibida pelo direito internacional público. Infelizmente, o combate contra o terrorismo levou alguns governos democráticos a esquecer o valor fun-

damental da proibição da tortura e a acreditar que a introdução de certas “medidas enérgicas”, antigamente recusadas, era agora inevitável. Eles argumentam que certas práticas não são proibidas pelo direito internacional público e, em especial, pela CAT, que nos oferece a única definição legal de tortura atualmente disponível. Conforme seu artigo I, caracteriza a tortura a prática de atos, pelos quais “[...] dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira, informações ou confissões

[...]”. Isto deixa espaço para interpretação. Todavia, por boas razões, a CAT também proíbe outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes – seu titulo oficial é “Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes”. Apesar de a doutrina divergir sobre quais atos podem ser considerados como tortura ou tratamentos desumanos ou degradantes, os órgãos judiciários internacionais determinam, sem entrar nesta distinção, se uma violação do respectivo instrumento ocorreu em um caso específico.

membros dos serviços secretos já admitiam, o uso da violência raramente faz terroristas falar – são estratégias inteligentes de interrogar que os fazem colaborar. Em vez de buscar identificar os desafios que o novo tipo do terrorismo apresentam para nossos sistemas jurídicos, que evidentemente não estão preparados para lidar com eles, muita inteligência é usada para legitimar o desumano. É um fatídico erro compreender a “tortura light” ou “tortura para a defesa” com um meio de avançar no combate contra o terrorismo. Infelizmente, este erro parece se propagar. Obviamente, a propaganda parece ter efeitos consideráveis – também na área acadêmica. Hoje, vários arti-

gos científicos em revistas reconhecidas tentam justificar a aplicação de tortura ou práticas semelhantes, fato, até então, impensável. Como bem sabemos, o homem também aprende a partir dos graves erros cometidos. Todavia, diante do quadro apresentado, o reconhecimento histórico da inadequação das práticas proibidas pela CAT tem sido amargamente apagado. Infelizmente, o homem é bastante esquecido. Para prevenir o esquecimento, requerer-se certos mecanismos – ou dizemos – “sistemas de alerta”. O novo Protocolo Facultativo à CAT de 2002 segue esta perspectiva ao estabelecer um procedimento preventivo. Um outro “sistema de alerta” é a

sociedade civil com seus membros críticos. Como “mecanismo extraconvencional”, a sociedade civil é muitas vezes a instância que mais ameaça os governos que agem com falta de “boa fé” em relação ao direito internacional público e alerta os governos que “dormem no ponto”. A retórica dos governos que procuram suavizar a recusa da tortura e outros tratamentos desumanos é especialmente designada para desligar este sistema de alerta – pelo menos “até certo ponto”. O que a sondagem da BBC indica é o fato de que estas tentativas ainda não puderam convencer a maioria das populações, já que há uma considerável “sleeper cell” dentro delas.

... e nós Diante desse quadro, devemos estar atentos às tentativas de justificação e legitimação de “certas práticas” proibidas pela CAT, tais como os “interrogatórios forçados”, que são ditos legais por causarem “dores menores” e serem absolutamente necessários nos “casos excepcionais”, quando a “segurança nacional” é ameaçada. O chamado “waterboarding”, uma prática utilizada para simular o afogamento da vítima, é – insuficientemente – também justificado com base nestes argumentos. Na verdade, todas estas práticas provam apenas a incapacidade e a incredibilidade dos respectivos governos de responder adequadamente às necessidades da luta contra o terrorismo. Como


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OBVSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO

Quando é bom perder O caso Ximenes Lopes e a primeira condenação do Brasil Janaína L. Penalva da Silva

D

esde suas primeiras edições, esse jornal vem demonstrando uma preocupação especial com a inclusão dos portadores de sofrimento mental no âmbito da cidadania, com o reconhecimento desses indivíduos como iguais e com a necessidade urgente de transformação das formas opressoras de se lidar com a loucura. Em outubro de 1999, no município de Sobral-CE, Damião Ximenes Lopes morreu em virtude da tortura que sofreu na clínica Guararapes, durante uma internação psiquiátrica. Ximenes morreu aos 30 anos. No final de 2005, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela violação dos direitos à vida e à integridade fí-

sica de Ximenes. A Corte determinou o pagamento de uma indenização por danos morais à família de Ximenes e impôs ao Estado brasileiro o dever de continuar desenvolvendo políticas públicas de atenção na área de saúde mental. A sentença proferida tem sido usada na Europa como indicativa das formas como a assistência em saúde mental deve ser feita para que proteja os direitos humanos dos envolvidos. Entre a morte de Ximenes em 1999 e a condenação do Brasil em 2005, o município de Sobral-CE foi duas vezes premiado por seu programa de atenção à saúde mental. Foram concedidos o Prêmio David Capistrano da Costa Filho, em 2001, por experiências exitosas na área de saúde mental e, em 2005, o Prêmio de Inclusão Social- Saúde Mental.

Onde está o erro? Os prêmios foram injustamente concedidos ou o Brasil foi indevidamente condenado? Para ambas as perguntas, a resposta é não. A rede de saúde mental do município de Sobral-CE é exemplo de cuidado e atenção ao portador de sofrimento mental. E o Estado brasileiro deve ser responsabilizado pela violação aos direitos humanos no caso da morte de Ximenes. O que existe de paradoxal nessa questão não está na valorização e condenação do que, no Brasil, é feito pela saúde mental. A incoerência está na permanência de uma desvinculação entre o público e o privado. A violação dos direitos dos portadores de sofrimento mental, tristemente exemplificada pela morte de Ximenes, levou à primeira condenação do Brasil na Corte Interamerica-

na de Direitos Humanos. Essa decisão, além de firmar o compromisso internacional do Brasil com a proteção dos direitos humanos, lança luz para os riscos do retrocesso. A clínica Guararapes, na qual ocorreu a tortura que culminou em óbito, é um estabelecimento de saúde privado que tem convênio com o Sistema único de Saúde - SUS. A rede de atenção em saúde mental que foi premiada por duas vezes é parte do sistema municipal de saúde, ou seja, não possui apenas um convênio, mas é parte do próprio SUS. É verdade que os prêmios conquistados pelo município de Sobral foram concedidos após a morte de Ximenes, esse detalhe, todavia, não elide o fato de que em uma mesma cidade haja atendimentos públicos tão díspares.


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A Lei vale para todos e a saúde é pública A partir da década de 1970, o modelo manicomial de tratamento começa a ser combatido no Brasil por organizações e movimentos sociais. Apesar de a lei que rompe com esse modelo (Lei nº. 10.216/01) só ter sido promulgada em 2001, é possível afirmar que durante toda a década de 1990 as políticas públicas de todos os níveis da federação já se estruturavam sob outro paradigma, condenando o tratamento opressor e violento praticado nos hospícios. A Lei federal nº 10.216, de 6 de abril de 2001, que redireciona o modelo de assistência em saúde mental no país é um exemplo do potencial emancipatório dos direitos fundamentais. Essa norma garantiu igualdade aos portadores de sofrimento mental igualdade, incluindo esses sujeitos no âmbito da cidadania. Com essa nova regulação normativa, os chamados loucos, indivíduos historicamente expulsos do cenário dos direitos, passam a ter sua singularidade respeitada. Desde a promulgação da lei, a atenção em saúde mental do país vem sendo reformulada com uma ênfase especial para extinção dos manicômios e sua substituição por centros de atenção e cuidado, nos quais o tratamento é desenvolvido em liberdade. Os métodos de tortura deixam então de ser formas institucionalizadas de tratamento, a tortura está vedada como terapia para a loucura. Nesse sentido, já é possível afirmar que o Brasil é um país que garante os direitos dos portadores de sofrimento mental. A condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos aponta para duas falhas graves na atuação brasileira em relação à proteção aos direitos individuais. Em primeiro lugar: as instâncias nacionais responsáveis pela apuração e condenação dos culpados por crimes desse tipo falharam na realização de sua obrigação. Afinal, qualquer condenação nessa instância internacional só ocorre quando o país não atua devidamente, em uma atitude que demonstra descaso e negligência em relação aos direitos humanos. Em segundo lugar, a reforma psiquiátrica não foi ainda capaz de atingir a iniciativa privada e trans-

formá-la como a Constituição exige. Há pelo país milhares de “clínicas de saúde”, “clínicas de repouso”, “clínicas psiquiátricas”, “asilos de idosos”, etc que não passam de manicômios. Lugares nos quais há internações abusivas, aplicação de eletrochoque, tortura, abandono, violência, enfim, lugares em que a saúde parece privatizada. Saúde é um direito fundamental garantido constitucionalmente a todos. A prestação de saúde que se faz na iniciativa privada está, tanto quanto o SUS, limitada às diretrizes de uma política pública instituída legalmente. As determinações de uma legislação não podem se restringir aos espaços estatais, nos quais é o próprio governo que promove a saúde. To-

dos os âmbitos, principalmente os privados, são igualmente públicos, nesse sentido. A mudança na forma de se lidar com a loucura, a exigência de tratamentos que se desenvolvam em liberdade e com respeito não podem ser restritas ao poder público. O cidadão precisa ter seus direitos garantidos independentemente de quem está lhe prestando os serviços de saúde. Enfim, ser condenado não é perder, em algumas circunstâncias. Pode ajudar a identificar falhas, pode demonstrar que o retrocesso é sempre um risco. O mais importante, todavia, é que a condenação seja um aprendizado, um alerta de que há mais um ator no controle da proteção dos direitos humanos: o sistema internacional.

As determinações de uma legislação não podem se restringir aos espaços estatais. Todos os âmbitos, principalmente os privados, são igualmente públicos, nesse sentido.


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OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Cidadania, Direitos Humanos e Cortes Internacionais Adriana Andrade Miranda e Fabiana Gorenstein

A

atuação da sociedade civil brasileira junto aos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos tem sido determinante para a consolidação dos direitos humanos no Brasil. Após a Segunda Guerra Mundial, debates em torno da importância de criação de mecanismos capazes de proteger os cidadãos de violências praticadas pelos Estados deram origem aos sistemas global e regionais de proteção dos direitos humanos. O Sistema Global das Nações Unidas (ONU) é composto por seções, comitês, comissão e especialistas independentes contratados para mo-

nitorar a situação dos direitos humanos no mundo. Os Sistemas Regionais são formados por instrumentos criados em cada continente e com atuação limitada a eles, e são três: o europeu, o americano e o africano. O Brasil aderiu ao Sistema Global e ao Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos. Este último funciona na Organização dos Estados Americanos (OEA) e é composto por dois órgãos: a Comissão e a Corte. Ambos recebem denúncias contra o Estado que tem o dever de proteger e respeitar os direitos previstos nos tratados internacionais. Mesmo quando o Estado não está diretamente envolvido na violação dos direitos humanos sua responsa-

bilidade pode ser invocada pela via indireta, como ocorre, por exemplo, em casos de violência contra a mulher. Isto porque o Estado tem o dever de criar mecanismos e instrumentos internos de proteção dos direitos, bem como é responsável pela efetividade destes. Os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos são acessíveis a qualquer cidadão que deles queira fazer uso. Entretanto, a falta de informação generalizada sobre a existência e funcionamento dos sistemas, bem como a descrença na eficácia da justiça são obstáculo para a plana utilização desses instrumentos como ferramenta de consolidação dos direitos humanos.

Existem organizações não-governamentais que atuam para consolidar os direitos humanos no Brasil, através de programas de acesso à jurisdição internacional


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Acesso à Jurisdição Internacional No Brasil, existem organizações não-governamentais que atuam para promover a utilização desses instrumentos, através de programas de acesso à jurisdição internacional. Entre as organizações com atuação de maior destaque estão o GAJOP (Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares), em Pernambuco, o CEJIL (Centro pela Justiça e o Direito Internacional) e a Justiça Global, no Rio de Janeiro e Terra de Direitos, no Paraná. Estas instituições oferecem apoio e assessoria aos cidadãos, movimentos sociais e ONGs na promoção e proteção dos direitos humanos em âmbito internacional. Cada uma delas possui um programa específico e autônomo. Entre as ações merecem destaque as desenvolvidas pelas assessorias jurídicas: assistência jurídica e educação para os direitos humanos, com foco na capacitação para utilização dos mecanismos internacionais. As assessorias oferecem todo apoio jurídico necessário para envio do caso aos sistemas internacionais, o que inclui identificar os casos de violação de direitos; auxiliar na produção de provas; peticionar e acompanhar o processo junto ao órgão selecionado e elaborar e enviar para diversos órgãos relatórios sobre a situação de violação dos direitos humanos no Brasil. As ações na área de educação para os direitos humanos, por sua vez, contribuem para o fortalecimento de uma cultura que repudie violações de direitos e resgate a confiança do cidadão na justiça. Por isso, tais ações objetivam fornecer à população em geral informação sobre o potencial dos instrumentos internacionais, estimulando a sua utilização como mais uma ferramenta de garantia de direitos. Para tanto, são realizadas capacitações sobre a importância, o funcionamento e formas de atuação junto a esses sistemas. Atualmente, estão em andamento na Comissão Interamericana casos relacionados a grupos de extermínio, direitos dos povos indígenas, mulheres, crianças e adolescentes, proteção dos defensores de direitos humanos, violência no campo e policial. Para a ONU, além de comunicações individuais sobre os temas cita-

dos, foram enviados relatórios alternativos aos elaborados pelo governo brasileiro com diagnósticos sobre os direitos humanos no Brasil. Alguns desses relatórios foram publicados e estão disponíveis para consulta, como por exemplo, Tortura no Brasil, de 2000; Execuções Sumárias, Arbitrárias ou Extrajudiciais – Uma aproximação da realidade Brasileira, de 2001; Extrema Pobreza no Brasil – A situação do direito à alimentação e à Moradia adequada, de 2002. Embora se questione a efetividade das decisões dos mecanismos internacionais muitos avanços foram registrados desde o inicio da utilização desses instrumentos para a consolidação da democracia. Entre os ganhos destacam-se: mudança da constituição federal sobre imunidade parlamentar; solução amistosa negociada com o governo brasileiro em favor de famílias de adolescentes torturados por agentes policiais; implementação de medidas de proteção em favor de vários defensores de direitos humanos. O principal ganho da existência desses mecanismos internacionais é o fortalecimento dos canais de diálogo e cooperação entre os cidadãos com direitos violados e o Estado, com o objetivo comum de que violações sejam eficazmente prevenidas,

interrompidas ou indenizadas. Um caso exemplar e que apresentou resultados concretos foi o que trata da violência doméstica sofrida por Maria da Penha Fernandes, levado ao Sistema Interamericano pelo CEJIL, em 2001. Maria da Penha lutou durante anos para ver seu exmarido cumprir a pena pelas lesões que a deixaram paraplégica. A Comissão Interamericana reconheceu a responsabilidade internacional do Brasil pela omissão em oferecer uma punição justa e célere ao agressor, afirmando ser dever do Estado implementar ações que reduzam o padrão de violência doméstica sofrido pelas mulheres brasileiras. Em agosto de 2006 a Lei n. 11.340/06 – Lei de Violência Doméstica Contra a Mulher – entrou em vigor no Brasil e foi batizada como Lei Maria da Penha, em homenagem a luta desta brasileira por justiça, igualdade de gênero e dignidade. Os programas brasileiros de acesso às instâncias internacionais privilegiam casos exemplares que retratam situações cotidianas de violações de direitos humanos vividas por segmentos inteiros da população e não priorizadas pelo Governo. Um caso assim pode ter impacto suficiente para mudar a legislação, estabelecer novas políticas públicas ou

mesmo reconfigurar um conceito sobre a garantia de direitos. A existência de mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos firma padrões mundiais para mediar o relacionamento entre cidadãos e estados. Esses mecanismos estimulam os Estados a atenderem demandas locais sob o risco de sofrerem constrangimento internacional. Além disso, permitem à sociedade civil ter a sua voz ouvida em condições de igualdade sobre assuntos de máxima relevância em um espaço político privilegiado.

Os programas brasileiros de acesso às instâncias internacionais privilegiam casos exemplares que retratam situações de violações de direitos humanos não priorizados pelo Governo


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OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Novos caminhos para o combate ao trabalho escravo

Nicolao Dino C. Costa Neto

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Brasil do século XXI ainda convive com a chaga da escravidão, tendo sido motivo para o Governo Federal editar em 2003 o Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo. Apesar do reconhecido empenho de entidades como a CPT e da equipe móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho, o aliciamento é uma dura realidade nos rincões do País, arrebanhando homens para árduas jornadas de trabalho sem a observância de direitos básicos, tais como liberdade de ir e vir, alimentação adequada, repouso digno e remuneração. O sistema do “barracão” ainda funciona, endividando o trabalhador-escravo, num ciclo aparentemente sem fim. Algumas propostas legislativas sinalizam uma boa rota na eliminação das “neo-senzalas”. A PEC n° 438, de 2001, por exemplo, visa à alteração do art. 243 da Constituição, para viabilizar a expropriação de propriedades rurais ou urbanas onde for detectado trabalho escravo. A alteração prevê expropriação sem direito à indenização, com a destinação das terras à reforma agrária ou a programas de habitação popular. A matéria foi votada em primeiro turno na Câmara dos Deputados em agosto/2004, aguardando, desde então, votação em segundo turno. É injustificável a falta de empenho do Governo em promover o fim dessa via crucis legislativa, já que se trata de uma das prioridades anunciadas no Plano Nacional lançado há mais de dois anos. Além dessa PEC, tem-se o PLS n° 108, de 2005, da Senadora Ana Júlia Carepa. O Projeto objetiva proibir a concessão de crédito e a contratação por licitação a pessoas físicas ou jurídicas que tenham incorrido em ato configurador de trabalho escravo. Trata-se de cristalizar no plano legal a chamada “lista suja do trabalho escravo”, prevista na Portaria nº 540, de 2004, do Ministério do Trabalho e Emprego. A formação desse cadastro, além de tornar visíveis os empreendimentos que utilizam mão-de-obra escrava em sua cadeia produtiva, propicia ao Poder Público o conhecimento necessário à definição de outras estratégias, como, por exemplo, recomendações aos agentes financeiros para não concessão de crédito supervisionado pelo Ministério da Integração Nacional a quem promove formas de escravidão contemporânea.

A PEC 438 objetiva proibir a concessão de crédito e a contratação por licitação a pessoas físicas ou jurídicas que tenham incorrido em ato configurador de trabalho escravo


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Fim da polêmica: atribuição é federal A erradicação do trabalho escravo requer atuação orgânica e sincronizada do Poder Público e da sociedade, com a demonstração de vontade política efetiva e comprometimento ético. No cotidiano das atividades sociais e econômicas, impõe-se a abolição de práticas degradantes e acintosas aos direitos humanos nas relações de trabalho. Impõe-se, também, a recusa a bens de consumo oriundos de atividades em cuja cadeia produtiva se evidencie a utilização mão-de-obra escrava. No tocante ao Sistema de Justiça, Ministério Público e Judiciário possuem papel fundamental no campo da promoção de responsabilidades – civil e penal. A Constituição define os espaços de atuação, fixando as atribuições do MP na esfera judicial em consonância com a repartição de competências no âmbito do Judiciário. Mas até data recente perdurava polêmica em torno da competência (Justiça Federal ou Justiça Estadual?) para processar e julgar crimes contra a organização do trabalho e de redução à condição análoga a de escravo, daí resultando enormes pendências em torno da atribuição para o exercício da ação penal (Ministério Público Federal ou dos Ministérios Públicos dos Estados?) A discussão muito se alongou, potencializando cenário adverso de impunidade. Mas no último dia de novembro de 2006, o Pleno do STF concluiu – finalmente – o julgamento do recurso extraordinário n° 398.041, reconhecendo, por ampla maioria, a competência da Justiça Federal. O Ministro Joaquim Barbosa, relator, considerou competente a Justiça Federal, sob o correto fundamento de que “quaisquer condutas que violem não só o sistema de órgãos e instituições que preservam coletivamente os direitos e deveres dos trabalhadores, mas também o homem trabalhador, atingindo-o nas esferas em que a Constituição lhe confere proteção máxima, se enquadram na categoria dos crimes contra a organização do trabalho, se praticadas no contexto de relações de trabalho”. Sublinhe-se, ainda, na linha do voto do Min. Celso de Melo, que o Brasil, na condição de signatário de compromissos internacionais relativos à erradicação do trabalho

forçado (Convenções 29 e 105, da OIT), instituiu órgãos incumbidos da prevenção e repressão à exploração do trabalho escravo, deixando claro que tais comportamentos violam, sim, interesses diretamente tutelados pela União. Sanada tal controvérsia, espera-se, agora, maior agilidade na repressão ao trabalho escravo, sem estéreis discussões paralelas sobre a periférica questão da competência jurisdicional.

Quaisquer condutas que violem o homem trabalhador, atingindo-o nas esferas em que a Constituição lhe confere proteção máxima, se enquadram na categoria dos crimes contra a organização do trabalho


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O preço da segurança Boaventura de Sousa Santos

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os países mais desenvolvidos está em curso uma mudança profunda nas prioridades dos governos, com enormes implicações para o relacionamento entre cidadãos e governos. A mudança pode resumir-se assim: do bem estar social para a segurança. Até à decada de 1980, o bem estar social tinha total prioridade na acção governamental. A qualidade das políticas sociais na área do trabalho, saúde, educação e segurança social era o critério por que se aferia a qualidade da governação. A segurança dos cidadãos frente à violência, o crime e os acidentes estava intimamente ligada ao bem estar, sendo vista como resultando dele. Por sua vez, a segurança colectiva estava assegurada pela ordem internacional multilateral assente na Guerra Fria. Com o triunfo do neoliberalismo e o colapso da União Soviética, tudo começou a mudar. As políticas sociais começaram a perder prioridade e deixaram de ser vistas como um factor de segurança. Esta passou a ser vista como a nova prioridade dos governos, ao mesmo tempo que a segurança internacional foi confiada aos EUA. O aumento da criminalidade, a imigração e, por fim, o terrorismo vieram dar força acrescida a esta mudanca. Aumentaram os orçamentos públicos da segurança, ao mesmo tempo que surgiu uma nova indústria, a indústria da segurança, hoje uma das mais rentáveis. Esta mudança tem um impacto múltiplo. Na área do bem estar social, passaram a dominar duas ideias: pode faltar dinheiro para as políticas sociais mas não pode faltar para a segurança; o declínio do bem estar (e o aumento das desigualdades) não é considerado um factor de insegurança. Nas relações entre cidadãos, as solidariedades básicas, a hospitalidade, a curiosidade desprevenida e a entreajuda vão sendo substituídas pela suspeita e temor de estranhos, xenofobia, preferência pelo familar e privado, condomínios fechados e, no limite, guerra civil. O vizinho passou a ser um estranho e, potencialmente,

um inimigo. E o mesmo se passa nas relações internacionais. Para além da lógica belicista e do unilateralismo, floresce a moda dos muros, transformando os países igualmente em condomínios fechados. Muros planeados ou em curso: 747 km entre Israel e a Palestina; 814 km entre a Arábia Saudita e o Iraque; 1120 km entre os EUA e o México. Por último, a prioridade absoluta da segurança pode vir a ter um impacto devastador na democracia, porque torna possível o ataque à democracia em nome da defesa desta. A vigilância começa a ser permanente e indiscriminada (por exemplo, as

contas pagas com cartões de crédito são globalmente monitoradas). Em resultado, os governos sabem cada vez mais sobre as acções dos cidadãos e os cidadãos, cada vez menos sobre as acções dos governos. Em nome da guerra contra o terrorismo, cometem-se atrocidades jurídicas, de que o exemplo mais extremo é “a lei das comissões miltares” que acaba de ser promulgada nos EUA. Nos termos desta lei, qualquer não cidadão que seja declarado “combatente inimigo ilegal”, pode ser detido indefinidamente, torturado em violação da Convenção de Genebra, e a confissão obtida sob tortura utilizada como

prova. Mas a medida mais extrema é a eliminação do habeas corpus, uma garantia dos acusados desde o seculo XII. O detido não pode conhecer as razões da detenção nem questionálas perante um juiz independente. Isto significa que, se alguém for detido por engano (erro de identificação) não tem nenhuma instância a que recorrer para o dizer e provar. Um advogado americano, almirante na reserva, declarou no Congresso que, com esta lei, os EUA se transformavam numa república das bananas. Este tipo de leis, cuja eficácia é duvidosa, suscita esta pergunta: até onde é possível desfigurar a democracia?


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