C&D Constituição & Democracia Nº 4 (Maio de 2006) JUDICIÁRIO E DEMOCRACIA

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Nº 4 MAIO DE 2006 VENDA AVULSA: R$ 4,00

C&D

Constituição & Democracia

José Eduardo Romão indica a mediação como alternativa democrática Página 6

Carolina Pinheiro: democracia no planejamento urbano Página 20

Fábio Sá e Silva reflete sobre a dignidade dos presos Página 14

Boaventura de Sousa Santos: constitucionalismos perversos Página 24

Entrevista com a Juíza Gláucia Falsarelli

Judiciário e Democracia Página 10


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EDITORIAL

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | DOMINGO, 7 DE MAIO DE 2006

ÍNDICE

Observatório da Constituição e da Democracia

DEMOCRATIZAÇÃO DO ESTADO E VALORIZAÇÃO DOS SERVIDORES José Geraldo de Sousa Júnior – Professor da Faculdade de Direito da UnB, membro do grupo Sociedade, Tempo e Direito e da Comissão de Defesa da República e da Democracia, do Conselho Federal da OAB HÁ DIREITO À PRESENÇA SOCIAL NOS DEBATES CONSTITUCIONAIS?

Poder Judiciário está em foco desde a promulgação da Constituição da República de 1988. Aquele poder que foi qualificado, numa famosa passagem de Hamilton, como o “ramo menos perigoso” da estrutura do Estado vem atraindo boa parte da atenção dos profissionais do direito, dos movimentos sociais, da mídia e da academia. Reflexões sobre a “politização do Judiciário” se multiplicam para além das escolas de direito; campanhas pela modificação na forma de nomeação de ministros do Supremo Tribunal Federal começam a ganhar força; sugerem-se motivações políticas nas decisões judiciais; insinua-se um clima de tensão entre Legislativo e Judiciário, a partir da imposição de limites ao poder investigatório das CPIs. Além disso, entra em atividade o Conselho Nacional de Justiça, após vários anos de debate na sociedade brasileira sobre a necessidade de implantação de um órgão de controle externo da magistratura. Logo em suas primeiras sessões, o CNJ se depara com questões sensíveis da história política, jurídica e institucional brasileira: o problema do nepotismo nos tribunais e a definição do teto dos subsídios dos magistrados. Em nosso Observatório, já tivemos a oportunidade de contar com a colaboração, no segundo número, do Conselheiro Paulo Luiz Netto Lôbo, que abordou a discussão do nepotismo sob o prisma das exigências da democracia. Neste nosso quarto caderno, escolhemos tratar o Poder Judiciário de forma ampla. A relação entre os juízes e a democracia, os direitos dos jurisdicionados e a capacidade das instituições brasileiras para propiciar o acesso à justiça estão entre os temas versados na presente edição. Gostaríamos de chamar a atenção para o tema da entrevista. A Juíza Glaucia Falsarelli é uma legítima representante de uma magistratura consciente, atuante e capaz de propor soluções legítimas e criativas para os déficits democráticos que vivenciamos em nosso cotidiano. E que não tem receio de enfrentar a crise de confiança que se apresenta ao Judiciário na contemporaneidade. Crise essa que encontra raízes na perda de referência acerca de sua função social e no esgotamento do paradigma da cultura legal da formação jurídica dos magistrados. No primeiro ano de vigência da Reforma do Judiciário, torna-se fundamental a construção de reflexão crítica e indagadora acerca de nossos tribunais, de suas carências, suas possibilidades, seus dilemas. É com esse espírito que o Observatório da Constituição e Democracia propõe a discussão em torno do Poder Judiciário.

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Grupo de Pesquisa Sociedade,Tempo e Direito Faculdade de Direito - Universidade de Brasília

Aline Lisbôa Naves Guimarães - Advogada e membro do grupo Sociedade, Tempo e Direito

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A MEDIAÇÃO COMO MÉTODO PARA RESOLVER CONFLITOS SOCIAIS José Eduardo Elias Romão – Advogado, professor do IESB, membro do grupo O Direito Achado na Rua da UnB e diretor do Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação do Ministério da Justiça

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A DEFENSORIA PÚBLICA E O EXERCÍCIO DA CIDADANIA Vitor Chaves - Mestrando em Direito na UnB, advogado e membro do grupo Sociedade, Tempo e Direito

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ENTREVISTA Com a juíza Gláucia Falsarelli Foley, coordenadora do Projeto Justiça Comunitária Condições Republicanas para a Democratização e a Modernização do Judiciário José Geraldo de Sousa Júnior – Professor da Faculdade de Direito da UnB, membro do grupo Sociedade, Tempo e Direito e da Comissão de Defesa da República e da Democracia, do Conselho Federal da OAB Carolina de Martins Pinheiro – Estudante de Direito na UnB, membro dos grupos de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua, da UnB

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OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO A REFORMA DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO: O PERIGO QUE VEM DO CONGRESSO Paulo Sávio Peixoto Maia - Mestrando em Direito Público na UnB, advogado

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OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO SOLTURA DE PRESOS MANTIDOS EM CONDIÇÕES DEGRADANTES Fábio Costa Sá e Silva - Mestrando em Direito na UnB, membro dos grupos Sociedade Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua, professor do IESB e coordenador-geral de Ensino do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça

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OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

EXPEDIENTE Caderno mensal concebido, preparado e elaborado pelo Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito (Faculdade de Direito da UnB - Plataforma Lattes do CNPq). Coordenação Alexandre Bernardino Costa Cristiano Paixão José Geraldo de Sousa Junior Menelick de Carvalho Netto Miroslav Milovic Comissão de redação Giovanna Maria Frisso Janaina Lima Penalva da Silva Leonardo Augusto Andrade Barbosa Marthius Sávio Cavalcante Lobato Paulo Henrique Blair de Oliveira Ricardo Machado Lourenço Filho Integrantes do Observatório Adriana Andrade Alexandre Araújo Costa Aline Lisboa Naves Guimarães Álvaro Luiz Ciarlini André Rufino do Vale Artur Coimbra de Oliveira Augusto dos Santos de São Bernardo

Carolina Pinheiro Damião Azevedo Daniel Augusto Vila-Nova Gomes Daniel Barcelos Vargas Fábio Comelli Dutra Fabio Costa Sá e Silva Francisco Schertel Ferreira Mendes Guilherme Cintra Guimarães Gustavo Costa Henrique Smidt Simon Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros Juliana Amorim de Souza Juliano Zaiden Benvindo Laura Schertel Ferreira Mendes Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira Marina Cruz Vieira Villela Marcelo Casseb Continentino Maurício Azevedo Araújo Paulo Sávio Peixoto Maia Pedro Diamantino Ramiro Nóbrega Sant´anna Renato Bigliazzi Rochelle Pastana Ribeiro Vitor Pinto Chaves

Diagramação Gustavo Di Angellis

A UTILIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO PARA QUESTIONAR A ADMINISTRAÇÃO Urbano Ruiz - Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e membro da Associação

Ilustrações Flávio Macedo Fernandes

Juízes para a Democracia

Contato observatorio@unb.br www.unb.br/fd

O JUDICIÁRIO, O AUTORITARISMO E O OFUSCAMENTO DA CONSTITUIÇÃO Juliano Zaiden Benvindo - Doutorando em Direito na UnB, mestre em Direito pela UnB, professor substituto da Faculdade de Direito da UnB, membro dos grupos Sociedade, Tempo e Direito e Pensamento Social.

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PRÁTICA DEMOCRÁTICA NO PLANEJAMENTO DE CIDADES Carolina de Martins Pinheiro - Graduanda em Direito na UnB, membro do grupo Sociedade, Tempo e Direito

Sindicato dos Bancários de Brasília

Roberto A. R. de Aguiar, Cristina Zackseski e Carolina Sarkis - Professores, Membros do Grupo de Pesquisa Ciência e Controle Social, do UniCEUB

Editor responsável Luiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS)

CONSTITUCIONALISMOS PERVERSOS

SindPD-DF

Assine C&D 3342-3937 www.constituicaoedemocracia.com.br

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CONSTRUÇÃO SIMBÓLICA DA SEGURANÇA PÚBLICA

Projeto editorial R&R Consultoria e Comunicação Ltda

Editor assistente Rozane Oliveira

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Boaventura de Sousa Santos - Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

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Democratização do Estado e Valorização dos Servidores JOSÉ GERALDO DE SOUSA JUNIOR

m seu artigo no nº 3 de Constituição & Democracia, Boaventura de Sousa Santos alude ao impacto de um choque desburocrático, assentado no que ele chama de um certo regresso do Estado, mas de um Estado diferente, em condições de resgatar da erosão que o discurso neoliberal minimalista causou a sua imagem, valores republicanos para a governança e espírito de serviço público para a sua atividade institucional, tal como sempre foi a sua representação no imaginário social. Trata-se, sugere o sociólogo, de uma nova forma de um possível Estado democrático, capaz de realizar ações institucionais que proporcionem igualdade de oportunidades e se abram à seleção de alternativas democráticas de participação aptas a estabilizar minimamente as expectativas de segurança e inclusão dos cidadãos, bloqueando o aumento exponencial da corrupção e do descrédito funcional conseqüente ao enfraquecimento político de sua capacidade de intervenção. Contra o discurso esgotado de um Estado ausente, que abriu ensejo para práticas acumulativas facilitadas por ações de corrupção que os sistemas de fiscalização precarizados e os controles judiciais não controlam, cuida-se de reconstruir um Estado em condições de articular, democraticamente orientado, a busca de uma redistribuição eqüitativa da riqueza socialmente produzida, sob acompanhamento contínuo da cidadania ativa e de uma burocracia re-institucionalizada

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estavelmente, capacitada e profissionalizada. A valorização dos servidores públicos se inscreve neste quadro de reconstrução solidária e participativa do Estado como agente de redistribuição. Contra o discurso neoliberal que deu sustentação ideológica a estratégias de solapamento da capacidade fiscalizadora que a burocracia realiza no interior do Estado, as suas entidades representativas vêm concertando um outro discurso, crítico e criativo, fundado na percepção de um protagonismo funcional em condições, diz Boaventura, de fortalecer o conteúdo democrático da articulação estatal. Uma nítida mobilização nesta direção, e uma das mais bem organizadas, tem sido a dos servidores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no Distrito Federal, por meio do processo de afirmação de seu estatuto funcional, representados nas propostas para seus planos de cargos e salários. A valorização dos servidores públicos – como a que estamos defendendo por meio da aprovação dos nossos PCS, o fim do nefasto processo de terceirização (tema também abordado no nº 3 do C&D) e a retomada do aprimoramento dos serviços públicos oferecidos à população – deve ser a marca de qualquer governo que se preze. Com esta tomada de posição (Revista Sindjus, ano XV, nº 32, abril de 2006, Editorial), o Sindicato da categoria, afirma não ignorar a procedência do discurso que busca desqualificá-la e que precisa ser politicamente enfrentado, e que se estruturou numa campa-

A valorização dos servidores públicos se inscreve neste quadro de reconstrução solidária e participativa do Estado como agente de redistribuição

nha contra os serviços e os servidores públicos como uma das marcas da devastação neoliberal no Brasil a partir dos anos 1990. Diretrizes para os PCS dos Servidores do Judiciário e do Ministério Público A ampla negociação que precedeu a definição destas propostas, primeiro no âmbito do Judiciário e do Ministério Público, depois nos Conselhos (Justiça e Ministério Público) e atualmente no Legislativo, trouxe a marca deste fenômeno novo – o debate aberto e democrático. O que não significa que uma das propostas mais debatidas da história da Federação, como é o caso do PCS, conforme reconhece a Fenajufe, embora revele a conquista de espaços para defender os servidores e estabelecer parâmetros para a sua valorização, esteja totalmente expurgada de obstáculos a uma plena republicanização institucional. Há, neste sentido, necessidade de se alterar o PL 6469/2005, encaminhado pelo Procurador-Geral da República, para que a proposição seja adequada à posição das entidades e do Conselho

Mobilização nesta direção, e uma das mais bem organizadas, tem sido o processo de afirmação do estatuto funcional, representado pelas propostas de seus planos de cargos e salários Nacional do Ministério Público da União, no tocante à regulamentação das funções comissionadas e cargos em comissão no MPU, com base na Lei 10.476/2002. É que a Lei n° 10.476/2002 define a natureza das funções comissionadas e quando estas podem ser ocupadas por quem não tem vínculo permanente com a Administração Pública. Entretanto, na proposta e na prática, o MPU, em todos os seus ramos, mantém ocupantes que não são servidores de carreira em funções para estes reservadas (FC-01 a FC-06), de forma indevida (Portaria PGR nº 592, de 27/10/2005), contrariando o espírito republicano que deve presidir, como princípio, a forma de provimento dessas funções, na linha de valorização dos servidores públicos estruturados em suas respectivas carreiras. Esta posição contraria en-

tendimento do Tribunal de Contas da União e do próprio Supremo Tribunal Federal (conforme acórdãos proferidos na Representação de Inconstitucionalidade n° 1.2824, Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1.143/MG, Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1141/MC/GO) e também, do Conselho Nacional do Ministério Público, na forma do voto do Conselheiro Hugo Cavalcanti Melo Filho no Procedimento CNMP n° 1.00.000.000123/2005-63. Sintonizar-se com estas posições significa aceitar as condições para a realização plena da condição republicana, em sua via democrática, que aponte para um caminho irreversível de substituição da cultura de favor pela cultura de direitos. E neste percurso, pelo menos desde 1988, vem se colocando sem desvios, a renovada instituição do Ministério Público.


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Há direito à presença social nos debates constitucionais? ALINE LISBÔA NAVES GUIMARÃES

m dos principais problemas da jurisdição constitucional deriva do déficit de participação democrática. Muitos processos são fechados aos cidadãos interessados, mas seus resultados atingem a sociedade como um todo. Foi o que aconteceu, por exemplo, no julgamento do “apagão”, da contribuição de inativos e do aborto de fetos anencefálicos, para citar os mais recentes. Como podemos ser obrigados a cumprir decisões de processos em que não fomos sequer ouvidos? É o que acontece em modalidade diferente de processo judicial, que é cada vez mais usada no Brasil. Desde a Constituição de 1988 cresce a utilização do chamado processo objetivo. Esse tipo de processo é usado pelo Supremo Tribunal Federal no controle de constitucionalidade de leis, em que é analisada a conformidade de leis em face da Constituição Federal. Pode-se verificar a constitucionalidade de uma lei com base em sua aplicação a um caso concre-

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to específico, ou, diferentemente, avaliá-la em abstrato, buscando prever a sua constitucionalidade nas várias situações em que será aplicada. O processo objetivo é o trâmite pelo qual desenvolve-se essa segunda forma de controle de constitucionalidade, o abstrato. Ocorre que determinadas questões, como as exemplificadas acima, envolvem centenas, às vezes milhares, de pessoas, todas com a mesma dúvida acerca da interpretação constitucional. Por exemplo, no julgamento do aborto de fetos anencefálicos, parcela da sociedade questiona o Supremo Tribunal Federal acerca da possibilidade de abortar esses fetos – a dúvida atinge religiosos, cientistas, profissionais da saúde e a população em geral. A fim de evitar que a Suprema Corte tivesse de responder a cada uma dessas pessoas interessadas, proferindo, portanto, um julgamento para cada uma delas, a Constituição previu o chamado processo objetivo, que permite ao STF analisar a questão de forma genérica e abstrata e julgá-la uma única vez, visando justamente aplicar a decisão a todas as

pessoas que de alguma forma estão relacionadas à questão debatida. O processo objetivo diferencia-se do projeto subjetivo, o mais comum entre nós, em que as pessoas diretamente interessadas são partes do processo e, por isso, têm plenos direitos de defenderem-se, suportando, ao final, os efeitos da decisão, que se restringem às partes envolvidas. Se, por um lado, o processo objetivo oferece a vantagem de resolver de uma só vez discussões que envolvem um grande número de pessoas, por outro, suscita profundos questionamentos a respeito da legitimidade dessas soluções. O principal problema reside no fato de que essas decisões devem ser cumpridas por pessoas que não participaram efetivamente do processo, ou seja, cidadãos que não puderam oferecer suas razões à Corte julgadora. Essa situação contradiz princípios essenciais dos processos subjetivos, por exemplo, o de que ninguém pode ser condenado sem que lhe seja dada a possibilidade de defesa. De fato, o próprio Supremo Tribunal Federal já esclareceu que os princípios

do contraditório e da ampla defesa, apesar de constitucionalmente previstos e tradicionalmente aceitos em nosso direito positivo, não são aplicáveis aos processos objetivos. Entretanto, é difícil afastar da sociedade a idéia de que a decisão que deve cumprir foi tomada sem a sua participação e sem as garantias processuais comuns às outras modalidades de processo. Tudo isso geralmente traz a sensação de que a decisão foi posta de forma arbitrária por parte do órgão julgador, uma vez que é vedado aos interessados defender seus argumentos durante os processos, mas é exigido o cumprimento das decisões proferidas nesses mesmos processos. Dessa forma, tal procedimento mostra-se no mínimo antidemocrático, na medida em que decisões de grande repercussão social e de cumprimento obrigatório são tomadas sem a participação da parcela da sociedade diretamente afetada pelos rumos do julgamento. Diante desse contexto, reconheceu-se que as discussões de grande repercussão não poderiam ficar restritas às partes processuais,

sendo necessário permitir que aqueles diretamente afetados pelas questões em pauta pudessem ao menos se manifestar nos processos. Para tanto, implementou-se no Brasil, em 1999, a figura do amicus curiae. O amicus curiae, amigo da Corte, é um terceiro capaz de municiar o Supremo Tribunal Federal de informações com o intuito de auxiliálo em sua decisão, podendo ser qualquer pessoa com representatividade social que demonstre interesse na questão debatida. Esse instituto permite aos interessados participar do debate constitucional, compartilhando com o Tribunal as informações que possuem e, muitas vezes, oferecendo-lhes a possibilidade de defender seus pontos de vista em processos que gerarão efeitos sobre eles. Ademais, essas informações acrescentam à Corte argumentos para embasar as decisões e oferecem dados relativos à opinião pública acerca do tema. Assim, o amicus curiae confere aos processos objetivos um certo grau de contraditório, além de inserir na discussão informações de interesse da sociedade.


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Cresce o desejo de participação popular “O amicus curiae não foi reconhecido como direito subjetivo da sociedade, a participação dos interessados depende da conveniência do relator, que não precisa nem mesmo explicar o porquê da negativa”. Inserida nesse contexto democrático, a própria disposição legal que implementou o amicus curiae no país o fez de forma abrangente e genérica, conferindo liberdade à sua aplicação, o que permitiria construir o instituto de acordo com a realidade e os anseios sociais. Com relação ao interesse da sociedade em participar, pode-se fazer um diagnóstico positivo. Apesar dos poucos anos de prática, já é possível identificar que nas questões de maior repercussão tem havido um número razoável de pedidos de intervenção, o que reflete a conscientização da sociedade organizada no sentido do reflexo das decisões a serem tomadas pela Suprema Corte e de como elas afetam diretamente seus interesses.

Como podemos ser obrigados a cumprir decisões de processos em que não fomos nem sequer ouvidos? Todavia, o que deveria ser interpretado como uma conquista democratizante da jurisdição constitucional brasileira, foi recebido pelo Supremo Tribunal Federal com desconfiança. Em diversas ocasiões, a Corte manifestou o seu temor diante de uma participação mais efetiva dos interessados, alertando que tal circunstância poria em risco o funcionamento do Tribunal, já assoberbado de trabalho. Essa postura defensiva pauta a todo o tempo a delineação do instituto do amicus curiae por parte do STF, que, apesar de reconhecer as vantagens da intervenção, vê problemas com relação à sua aplicação. Diante desse contexto, a solução adotada pelo Tribunal foi a de concentrar em suas mãos a apreciação da utilidade de cada uma das manifestações, bem como a forma como deveriam ocorrer. Entendeu não existir direito à participação como amicus

curiae, de modo que o oferecimento de informações no processo por parte dos interessados pode ou não ser aceito e nem sequer é necessário motivar a recusa. Fica, portanto, a cargo do relator admitir ou não os pedidos de manifestação e o único critério para tal análise é a conveniência, verificada em cada situação específica. A mesma resposta foi dada a questionamentos acerca da forma com que se daria a participação. Quanto à possibilidade de sustentação oral por parte do amicus curiae, entendeu-se que ficaria ao arbítrio do relator admiti-la, não havendo que se falar em direito a tal sustentação. Concluiu-se também pela inexistência de direito a recurso contra a recusa do pedido de manifestação. Dessa forma, o instituto do amicus curiae não foi reconhecido como direito subjetivo da sociedade. O mecanismo celebrado como capaz de democratizar os processos objetivos e permitir a efetiva participação dos interessados no debate das decisões relevantes atualmente não é um direito social, pois, ao contrário, depende da conveniência do relator da causa, que não precisa nem mesmo explicar o porquê da negativa. Foi o que aconteceu, por exemplo, no caso do aborto de fetos anencefálicos, em que o Supremo Tribunal Federal recusou reiterados pedidos de manifestação de entidades como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, a Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família Pró-Vida-Família, a Associação Univida e a Associação de Desenvolvimento da Família – ADEF. Esse entendimento retirou grande parte do conteúdo democrático do instituto, pois não há como falar em democratização e legitimação de decisões sem a existência de um real direito a mecanismos capazes de assegurá-las. Não pode ser democrática, tampouco justa, a participação arbitrariamente selecionada, cujo pedido pode ser recusado a qualquer tempo e sem nenhum motivo.

Entretanto, apesar de a participação no debate de temas constitucionais não haver sido reconhecida como um direito exigível pela sociedade civil, os pedidos de manifestação devem sempre ser apreciados tendo em vista a finalidade legitimadora do instituto. Assim, a tendência deve ser a de admitir a participação dos amici curiae e, além disso, permitir-lhes praticar todas as prerrogativas processuais admissíveis, a fim de que tal atuação seja exercida da forma mais plena possível. Importante frisar que a figura do amicus curiae faz-se necessária sempre que os efeitos de uma decisão extrapolarem as partes do processo. A finalidade do instituto é permitir que os futuros afetados pelo julgamen-

to possam participar do debate jurídico, impedindo, assim, que tais pessoas sejam obrigadas a cumprir uma decisão sem terem sido ao menos ouvidas no processo. Resguarda-se, portanto, a possibilidade de o amicus curiae ser aplicado também a processos subjetivos, caso verifique-se uma grande repercussão social da questão em análise. Imprescindível ressaltar que as conquistas já alcançadas no âmbito do amicus cu-

riae, e as que estão por vir, são resultado das pressões sociais, consubstanciadas tanto em críticas à falta de legitimidade das decisões que tratam dos temas constitucionais de grande relevância, quanto nos reiterados pedidos formulados visando à participação nesses debates. É a própria sociedade civil que tem de exigir seu espaço nos debates constitucionais, exercendo seu papel na construção de uma soberania democrática e popular.

O amicus curiae permite aos interessados participar do debate constitucional, compartilhando com o Tribunal as informações que possuem e defendendo seus pontos de vista em processos que gerarão efeitos sobre eles


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A mediação como método para resolver conflitos sociais JOSÉ EDUARDO ELIAS ROMÃO

ique tranqüilo. Pois este artigo não contém nenhuma mensagem evangelizadora sobre a prática redentora da mediação. De antemão aviso: a mediação que apresento não é remédio para todos os males que afligem a sociedade. É apenas um método de solução de conflitos diferente daquele outro — descrito como relação angular entre partes contrapostas — que predomina no Poder Judiciário. Portanto, não se quer aqui convencer ninguém de que a mediação é único método constitucionalmente adequado de resolução de conflitos sociais e ponto. A única pretensão é revelar a necessidade de se produzir novos procedimentos que propiciem um acesso à Justiça pelo agir comunicativo, pelo exercício partilhado da autonomia e pela força transformadora do diálogo. Todavia, como toda conversa sobre mediação começa desqualificando o modelo hegemônico, para não perder o costume, inicio este artigo expondo as “vergonhas” de nosso judiciário. Por isso, responda se puder.

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Uma sentença judicial é: - o início do drama recursal; - uma decisão que aplica o Direito posto; - uma decisão que aplica o Direito posto e, por conseqüência, a Justiça; - uma decisão que aplica a Justiça; - coisa nenhuma. A última resposta é evidentemente um exagero. Mas não é um exagero porque seria um absurdo ou um desvario marcar a letra “e”. É um exagero porque tal resposta exigiria considerações muito mais complexas do que sonha nossa vã dogmática, extrapolando os limites do sisteminha que o ordenamento jurídico configura. Em síntese, “coisa nenhuma” é resposta de questão dissertativa. Talvez alguém tenha caído na tentação de escolher a primeira resposta. Se cedeu ao realismo que a letra “a” encerra, também errou. Embora se possa demonstrar que é exatamente isso o que acontece na maioria dos casos, é possí-

vel argumentar que não se pode tornar absoluta uma predominância (ainda que dramática). Restam, pois, as respostas “b”, “c” e “d”. Quem já fez pelo menos um concurso na vida — vale o vestibular — ficaria propenso a descartar a resposta conciliadora contida na letra “c”. Porque se “a virtude está no meio” não é necessariamente nem a média e nem a mediana. Bom, agora ficou fácil. Porque a resposta correta só pode ser: uma sentença judicial é uma decisão que aplica o Direito posto; por-

tanto, letra “b”. Ficou na dúvida? Não, é claro que não. O que fica é a sensação de desconforto que provoca a letra “d”. Pois se uma sentença não aplica a justiça, por qual razão ainda hoje recorremos ao Judiciário como se lá pudéssemos obter soluções justas. Quando sabemos que a única justiça que o Poder Judiciário nos garante acesso é àquela estátua romana que fica na praça dos três poderes — e convém frisar — de costas para o Supremo Tribunal Federal. O mais difícil não é aceitar que o acesso ao Judiciário

não significa necessariamente acesso à justiça, difícil é reconhecer que cotidianamente milhares de advogados, juízes e promotores vendemos gato por lebre: uns dizem que dos males a ilusão do acesso é o menor, outros lamentam não haver alternativas. Contudo, existem alternativas à atuação do Judiciário. E por isso é provável que a “idéia” de Justiça sobreviva no Estado Democrático de Direito, ainda que sem juízo, sem lenço e sem documento. Noutras palavras, talvez uma certa justiça possa ser realizada por um procedimento absolutamente adequado

aos princípios constitutivos do Direito e da Democracia e, portanto, distinto da adjudicação (que é um modo de decidir caracterizado pela imposição de uma determinação, normativamente fundada, que favorece a uma das partes com a exclusão da outra). E qual procedimento é este que — observando os princípios da participação, da pluralidade e da abertura interpretativa que fundam o sistema de direitos, a partir da Constituição — poderia aplicar o Direito, resolver problemas “reais” e efetivamente realizar justiça?


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Características da autocomposição O procedimento de que trata este artigo é popularmente conhecido como Mediação. Mas o que é mediação? Cada autor que escreve sobre o tema quer adicionar a sua marca à definição de Mediação e, assim, não foi possível até agora produzir um só conceito; vale destacar também que ainda hoje no Brasil não há uma lei, ou melhor, uma definição legal sobre o que seja Mediação. Contudo, todo mundo reconhece que Mediação é meio autocompositivo e desta forma apresenta necessariamente as seguintes características: 1) a voluntariedade das pessoas envolvidas numa situação de conflito em participar do processo de decisão; 2) a intervenção de um terceiro destituído de autoridade decisória do qual os demais participantes esperam neutralidade e imparcialidade na coordenação das ações; e, 3) a sujeitabilidade dos participantes ao resultado mutuamente aceitável obtido no processo.

Uma sentença judicial é uma decisão que aplica o Direito posto Se enxergarmos a Mediação da perspectiva da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia de Jürgen Habermas, pode-se descrever a Mediação como um processo do qual participam necessariamente as pessoas envolvidas no conflito, argumentando e contra-argumentando em igualdade de condições discursivas, e pelo qual estas mesmas pessoas podem exercer sua autonomia como co-autores e intérpretes de um sistema de direitos constitucionais. Dito desta forma pode até parecer complicado, mas a mediação é infinitamente mais simples que a adjudicação. Sobretudo porque a mediação dispensa a figura do “especialista” jurídico, do famigerado causídico, do inflamado acusador e do sábio juiz. Porém, trata-se de um procedimento que dispensando o “especialista” não afasta a linguagem especializada do Direito. Pelo contrário, pois a importância da mediação está tanto no resgate da autonomia dos participantes com o reconhecimento de suas pre-

tensões normativas de base local e comunitária, quanto na validação do Direito positivo através da interpretação das normas, sobretudo, constitucionais adequadas ao conflito. É neste ponto que entra o mediador. O ofício do mediador, é bom que se esclareça, não tem nada a ver com a prática de uma “psicologia de boteco” ou com o culto do “deixa disso e do vamos dar as mãos”. O mediador deve promover a conexão entre a linguagem cotidiana e a linguagem especializada do Direito. Portanto, cabe ao mediador não apenas facilitar a aproximação discursiva dos participantes, mas atuar e intervir pela aproximação destes com o Direito democrático disposto na Constituição. Embora tenha como ponto de partida situações-problema vivenciadas em determinados locais e por determinadas pessoas, a mediação pode propiciar a transposição

A mediação dispensa a figura do “especialista” jurídico de visões tópicas e comunitárias — dependentes de estruturas conceptuais particularizadas —, à medida que conduz as pessoas ao encontro da Constituição. Neste sentido, tratar a mediação como meio “alternativo” de resolução de conflitos é um grande equívoco. A denominação “alternativo” não se justifica nem mesmo na comparação usual entre métodos judiciais e métodos extrajudiciais de solução de conflitos. Pois, enquanto estes possibilitam uma participação efetiva dos interessados no processo de decisão sobre o problema e, assim, uma conexão “forte” entre di-

reito e democracia, entre sujeito autônomo e sistema — tal como exige a Constituição vigente —, o processo judicial reduz, “dividindo” as pessoas em partes, as possibilidades de comunicação e de integração pelo direito. Ou seja, se pela adjudicação as pessoas acabam sendo incorporadas a uma ordem jurídica por meio de procedimentos estrategicamente organizados contra a ampla participação e a compreensão daqueles que demandam justiça, logo, são os métodos judiciais que aplicam um Direito “alternativo” àquele contemplado na Constituição. É possível ir mais além e compreender a mediação como uma “pedagogia da autonomia”. Pois se é no contexto do conflito, da liberdade, da decisão que se instaura a necessidade de exercício da autonomia, como ensinou Paulo Freire, e se é neste mesmo contexto que se estabelece o procedimento descrito, pare-

ce correto afirmar que a mediação é processo pedagógico de autonomização. Para terminar vale reiterar, em síntese, que o procedimento de mediação restabelece a autonomia como lastro do Direito e o recupera como processo de aprendizagem social para estabilização de expectativas de comportamento. Nesta perspectiva democrática referida à Justiça, a mediação se revela uma possibilidade de emancipação do sujeito, uma convocação para o exercício da autonomia.

É possível ir mais além e compreender a mediação como uma “pedagogia da autonomia”


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A Defensoria Pública e o Exercício da Cidadania VITOR CHAVES

Constituição Federal de 1988 trouxe importante inovação no que se refere à viabilização de acesso à justiça aos “necessitados”: a Defensoria Pública. Até então, a “assistência judiciária” era prestada pelo Ministério Público e, em alguns casos, pelas Procuradorias dos Estados membros da Federação. A partir da atual Constituição, a Defensoria Pública, definida como instituição essencial à função jurisdicional do Estado, passou a ter por finalidade principal a prestação de assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovem insuficiência de recursos. Dessa maneira, pode-se dizer que a idéia constante no texto constitucional visa propiciar uma igualdade de acesso ao aparato jurisdicional do Estado que não se restringe apenas à possibilidade formal e abstrata de todos os cidadãos ingressarem, ou se defenderem, com demandas no Poder Judiciário. Por isso que a discussão pública e aberta sobre o tema Defensoria Pública se configura como da mais alta importância para a democracia e, por conseguinte, para o exercício da cidadania, não podendo ficar adstrita aos profissionais das carreiras ou

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aos especialistas da área. A entrada em vigor da Emenda Constitucional 45/2004 dinamizou os debates constitucionais acerca do tema. Essa Emenda assegurou às Defensorias Públicas Estaduais autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária. Tal alteração no texto constitucional é de bastante relevância, uma vez que, ao menos em tese, propicia melhores condições estruturais de trabalho aos órgãos responsáveis pela assistência jurídica no âmbito das justiças estadual. A previsão das garantias de autonomia funcional e administrativa e da iniciativa de proposta orçamentária às Defensorias Públicas Estaduais vai ao encontro da valorização dos profissionais da área, da criação de um quadro estável de servidores – não apenas de defensores públicos – e da redução das ingerências político-eleitoreiras. Isso tudo potencializa um aumento de qualidade no serviço prestado e, conseqüentemente, concretiza, em plano institucional, as Defensorias Públicas como órgãos de acesso à justiça. Não é por acaso que em um curto período após o advento da Emenda 45 foram criadas Defensorias Públicas Estaduais e a realização de concursos públicos para de-

fensores e servidores em geral, como é o caso dos Estados do Ceará, Espírito Santo e São Paulo. Todavia, mesmo com a criação das garantias acima mencionadas e também em razão delas, a questão que perdura é se essas garantias são suficientes para que as Defensorias Públicas propiciem um efetivo acesso à justiça e, dessa forma, o exercício de direitos relativos à cidadania? Nesse contexto, uma discussão que cada vez mais ga-

nha espaço é a que diz respeito ao modelo de assistência jurídica que estaria em consonância com a realidade brasileira. Ou seja, qual é a Defensoria Pública adequada à noção de Estado Democrático de Direito prevista constitucionalmente? Nessa empreitada, não se descreverá um modelo estrutural ideal de assistência jurídica a ser prestado pelas Defensorias ou se fará qualquer comparação a outros modelos apresentados em outros

países. Objetiva-se aqui observar como determinadas palavras, que acabam por explicitar certas condutas, devem ser reinterpretadas no atual contexto constitucional. Entre elas destacar-se-á o sentido que muitas vezes é dado à assistência jurídica, clientela e necessidade. Dessa forma, não se ingressará nas distinções organizacionais entre as Defensorias Estaduais, do Distrito Federal e da União, nem nas peculiaridades de cada uma delas.

O direito constitucional à assistência jurídica gratuita Diferentemente do que previa a Lei nº 1.060/50 – que Estabelece normas para a concessão de assistência judiciária aos necessitados -, a Constituição Federal dispõe sobre um direito à assistência jurídica integral e gratuita, ou seja, não se restringe, como presente na mencionada lei, à assistência judiciária. Essas expressões, que à primeira vista podem parecer sinônimas, apresentam significados distintos. O termo constitucional assistência jurídica possui uma acepção ampla, que não se encerra no direito que o cidadão necessitado tem de ter sua demanda levada ao judiciário ou de ser defendido judicialmente. Assistência jurídica pode ser interpretada como o

direito que se traduz em um conjunto de ações que vão desde a atividade judicial, passando pela assistência em processos administrativos, até o assessoramento em diversas questões que envolvem direitos e expectativas de direitos, individuais e coletivos. Assim, a assistência jurídica no Estado Democrático de Direito deve estar conectada à cada vez maior complexidade social que acaba por ter que problematizar a existência de novas demandas que permeiam o direito contemporâneo. Esse é o caso, por exemplo, de demandas em que o próprio Estado é o principal “adversário” no âmbito judiciário, como o direito à saúde, à educação, à previdência social, à as-

sistência social, à moradia, parcela do direto do consumidor, entre outros ramos do direito. Em tais demandas fica evidenciada a necessidade de independência funcional e autonomia administrativa das Defensorias Públicas. Portanto, em um contexto em que se admite que o Estado seja um possível violador de direitos individuais, causa estranhamento o fato de que os serviços de assistência jurídica serem prestados por órgãos, como as Procuradorias Estaduais, responsáveis pela defesa e consultoria jurídica do Estado. Nessa conjuntura de redefinição, a importância institucional das Defensorias Públicas na efetivação de um novo

sentido de assistência jurídica é fundamental. Entretanto, é uma visão inocente considerar que uma Defensoria Pública eficiente para tal finalidade é composta por integrantes com formação jurídica. Cada vez mais é necessário se lançar mão de uma estrutura de pessoal interdisciplinar, capacitada a dialogar com inúmeras dificuldades oriundas de situações sociais que se tornam mais dinâmicas. Dessa forma, não é viável se acreditar que profissionais do ramo do direito estão plenamente capacitados a gerir situações sociais complexas que envolvem, por exemplo, a liberdade, as relações familiares, a saúde e a moradia. Pelo contrário, uma percepção abrangente dessa

perspectiva de assistência jurídica vem a corroborar com a necessidade de estarem presentes nos quadros funcionais das Defensorias Públicas profissionais de diversas áreas, tais como, assistentes sociais, psicólogos, contadores, etc.. Isso tudo confirma a idéia de que o simples oferecimento dos serviços de assistência jurídica gratuita, sem a preocupação com padrões mínimos de qualidade, é insuficiente para se concretizar a Constituição. É necessária, pois, uma preocupação constante acerca das possibilidades e dos limites da prestação desse serviço, o que somente é plausível com a participação do cidadão usuário nesse debate.


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Cidadãos ou clientes: Quem são os usuários dos serviços das Defensorias Públicas? A palavra cliente, empregada para se referir ao usuário dos serviços, é corriqueiramente utilizada na prática institucional das Defensorias Públicas. No entanto, tal palavra traz consigo cargas semânticas, as quais é interessante explorar. O problema central não é apenas de ordem terminológica, mas também pragmática e social. Diz respeito à instigante questão de como a utilização reiterada dessa palavra reflete uma visão de fundo sobre o papel da Defensoria Pública. A noção de clientela aponta para um distanciamento entre os pólos de prestação de serviços e o de destinação destes. Tal percepção é contraditória ao ideário, que permeia a construção de um Estado Democrático de Direito, de uma cidadania participativa que interage na prestação de serviços públicos. Daí porque existir o risco de que essa visão, que compreende o cidadão usuário como um cliente, se reflita em práticas assistencialistas. Ou ainda que a terminologia permita uma outra postura de caráter mercadológico na qual a assistência jurídica gratuita é um serviço prestado a “clientes” com baixo poder aquisitivo e que, em razão disso, justifique-se a eventual qualidade reduzida. Ambas as visões, mesmo que implicitamente, não enxergam que, na verdade, a assistência jurídica prestada pelas Defensorias Públicas é um direito e não um favor ou uma caridade estatal. A compreensão da assistência jurídica prestada pelas Defensorias Públicas como um direito do cidadão – cida-

dania que aqui não é entendida restritivamente no sentido da capacidade jurídica de votar e ser votado, mas sim como atributos de participação em geral dos destinatários dos direitos – envolve a necessidade de releitura dos papéis dos agentes públicos e dos cidadãos usuários. Por um lado, é muito importante que os agentes públicos tenham em mente que a prestação de um serviço tão relevante a um cidadão corresponde a um tratamento baseado no respeito e na consideração da igualdade, independentemente de grau de escolaridade e classes sociais. Isso significa que nessa relação de prestação de serviço a legitimidade da atuação dos profissionais não deve ser pautada somente pela autoridade, mas sim na qualidade do serviço prestado. Nesse sentido, o desenvolvimento, o aprimoramento e a independência de estruturas de ouvidorias e corregedorias são de suma relevância. Ou seja, os canais de comunicação entre prestadores de serviço e cidadãos usuários devem ser priorizados, de maneira a estarem constantemente abertos. De outro lado, o cidadão usuário desses serviços deve ter a consciência de que, por se tratar de um direito, não está recebendo um favor. Da mesma forma, deve observar que não se trata de um serviço privado, de sorte que a participação e a interação são deveres seus. Assim, o usuário deve substituir uma postura passiva por outra ativa, que se traduz no acompanhamento da dinâmica de seu caso e na facilitação do trabalho dos agentes públicos.

Necessidade ou miserabilidade: definição de usuários O inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição estabelece que a assistência jurídica integral e gratuita será prestada aos que comprovem insuficiência de recursos. Contudo, o direito brasileiro não define critérios “objetivos” para essa comprovação de insuficiência de recursos. A Lei nº 1.060/50, ao tratar sobre os benefícios da assistência judiciária, considera necessitado todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do

processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família. Essa lei elege como critério de aferição da necessidade a simples declaração, por parte do cidadão, afirmando a condição de hipossuficiente de recursos. Tal critério pode parecer precário, sobretudo quando se tem em vista o aumento de atribuições das Defensorias, porém, é menos problemático do que a tentativa de objetivação. Isso porque a li-

mitação do atendimento – como, por exemplo, o critério de salários-mínimos recebidos – tem o inconveniente, mormente quando realizada administrativamente, de ser insensível às peculiaridades do caso concreto, tendo em vista a confluência de inúmeros fatores que tornam os critérios objetivos insuficientes para se aferir a real necessidade do usuário. Dessa forma, a limitação para atendimento, por exemplo, a um máximo de rendi-

mento mensal fixo, como é feita em algumas localidades, pode reduzir o acesso aos serviços de assistência jurídica. Isso pode tornar apenas os miseráveis – pessoas abaixo do nível da pobreza – sujeitos desse direito, ao invés de englobar outros necessitados do acesso gratuito à justiça. Assim, a análise fundamentada da situação fática é crucial para a legitimação da prestação desse serviço. Essas rápidas pondera-

ções sobre um tema tão vasto tiveram como finalidade precípua o destaque de pontos cruciais para o debate público. Nesse sentido, o posicionamento no sentido de que o serviço de assistência jurídica desenvolvido pelas Defensorias Públicas é de grande relevância para um efetivo acesso igualitário à justiça teve como intuito ressaltar que a qualidade desse serviço não pode andar dissociada de uma ampla idéia de exercício da cidadania.


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ENTREVISTA

Condições republicanas para a democratização e modernização do Jucidiário O Professor José Geraldo de Sousa Júnior e a estudante Carolina de Martins Pinheiro, dos Grupos de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua, da Faculdade de Direito da UnB, entrevistam Gláucia Falsarelli Foley, Juíza de Direito em Brasília, Coordenadora do Projeto Justiça Comunitária 1.Um dos fenômenos que marcam a atual conjuntura é a atenção que desperta a atuação do Judiciário e dos juízes. A reforma do Judiciário no Brasil se insere num conjunto de reformas na América do Sul e na Europa, com a redefinição dos paradigmas de organização do Estado e suas relações com a Sociedade e o Mercado, mobilizando vultosos recursos de agências internacionais (Banco Mundial), para financiar reformas. Como vê esse fenômeno? A globalização impulsionou um movimento de retração do Estado, diante da centralidade do Mercado. As reformas do Estado e do Poder Judiciário sofrem interferência deste processo delineado pelos interesses do capital nacional e internacional. O teor do documento técnico n° 319 do Banco Mundial comprova este fenômeno. A sua constatação é a de que a Justiça não tem contribuído para o desenvolvimento do setor privado e que as reformas do Poder Judiciário na América Latina têm por objetivo conferir transparência e previsibilidade às decisões judiciais, fomentando ambiente propício aos financiamentos e investimentos. A segurança e confiança demandadas pelo setor privado parecem ter encontrado guarida, por exemplo, na aprovação da súmula vinculante, um instrumento que acentua a verticalização do Poder Judiciário, conferindo exagerada prevalência às decisões de sua cúpula. É interessante observar que a medida foi ratificada como ferramenta de combate à morosidade do sistema judicial, mesmo

após exaustivo debate no qual alternativas mais democráticas e mais eficientes foram oferecidas, como a súmula impeditiva de recursos. A constatação, porém, de um certo ajuste entre instrumentos aprovados com interesses do mercado não pode ensejar uma postura refratária às necessárias reformas que o Poder Judiciário deve sofrer para sua plena democratização. As recentes conquistas contra o nepotismo, a criação de novos métodos alternativos de resolução de conflitos que reconhecem e valorizam a pluralidade de ordens jurídicas e, ainda, a criação do Conselho Nacional de Justiça como um importante canal de aproximação entre o sistema judicial e a sociedade civil, provam o sentido positivo que as mudanças podem proporcionar e indicam que os setores comprometidos na criação de condições republicanas para a democratização e modernização do Judiciário também estão mobilizados.

A depender da reforma que vier, os MARC’s poderão perder potencial emancipatório Os contornos da Reforma ainda não estão consolidados. Há muitos tópicos que não foram debatidos e que merecem dedicação e compromisso. Refiro-me aos métodos alternativos de resolução de conflitos – MARC´s que, a depender do enfoque que conferido na Reforma,

poderão perder todo o seu potencial emancipatório. Isto porque, desde já se verifica certa resistência à proposta de se reconhecer, valorizar e estimular novos instrumentos para a democratização da própria realização da justiça, restituindo à comunidade e aos seus cidadãos o exercício da autonomia política, por meio da gestão dos próprios conflitos. Este é um dos debates mais relevantes cujo resultado pode contribuir – ou não – para a efetiva democratização e modernização do Judiciário. 2. A modernidade é marcada pelo mito da norma jurídica segura. Os juízes passaram a constituir “a boca da lei”, tendo sido a regulação social centralizada nas instituições. O Projeto Justiça Comunitária é inovador, ao propor que a própria comunidade desenvolva mecanismos de resolução de conflito. O que motiva uma juíza a se dedicar a um projeto que se afasta tanto da tradicional função julgadora do Poder Judiciário? A experiência de aproximadamente 3 anos junto à Justiça Itinerante (um Juizado Especial Cível, instalado em ônibus que percorre as comunidades do Distrito Federal desprovidas de Fórum) foi inspiradora. Quando o Poder Judiciário se dispõe a atender comunidades que produzem outras formas de normatividade, oferecendo a justiça formal e seus instrumentos de maneira mais rápida e eficiente, é possível constatar um descolamento entre a promessa da lei – que se pretende universal – e a realidade e aspirações locais. Como aplicar, por exemplo, a complexa engenharia do

“ônus da prova” quando, na maioria das vezes, os negócios jurídicos firmados são meramente verbais, sem qualquer preocupação com eventual produção de prova material, pericial ou mesmo testemunhal? Nesse contexto, a improcedência do pedido por falta de provas, embora muitas vezes inevitável, é resposta estatal frustrante, apesar de ágil, acessível e econômica. É verdade que o índice de acordo alcançado pelo Juizado Itinerante, naquela época, era bastante alto, em torno de 80%. Entretanto, muitas vezes a razão que imperava entre as partes era a instrumental, ou seja, a submissão ao consenso pela resignação de que a ausência de provas redundaria em sucumbência e não por força de eventual convicção quanto à justeza do acordo. A constatação deste descompasso converteu-se em necessidade de se buscar parceiros dispostos a refletir sobre alternativas de resolução de conflitos que pudessem, mais do que democratizar o acesso à justiça formal, democratizar a própria realização da justiça. Para tanto, representantes do TJDF, da Defensoria Pública, da Faculdade de Direito da Unb, do Ministério Público, da Secretaria de Direitos Humanos e, à época, da Comissão de Direitos Humanos da OAB-DF reuniram-se para desenhar o Projeto Justiça Comunitária. Em suas primeiras linhas, a proposta já

ostentava um objetivo claro, o de empoderamento das comunidades excluídas, tanto para viabilizar a busca da efetivação de seus direitos junto ao Poder Judiciário quanto para, nos casos onde a mediação fosse adequada, restituir aos cidadãos a capacidade de autogestão de seus conflitos, como uma manifestação do exercício da autonomia política. A intenção, portanto, não era a de reduzir o fluxo de processos do Judiciário, mesmo porque o objetivo era trabalhar com uma demanda reprimida. Nosso público alvo era uma camada da população que, por razões de ordem econômica, social, cultural e até mesmo simbólica, não usufrui do serviço judiciário. A motivação que nos inspirou e ainda nos embala é baseada na convicção de que, para além da rígida separação Estado - Sociedade Civil, há outras formas de sociabilidade – presentes nas relações familiares, nas escolas, nas comunidades, etc – nas quais o direito pode ser reinventado. Há que se explorar as possibilidades do litígio ser usado como oportunidade de compreensão das raízes do conflito e de criação de mecanismos de autocomposição de forma a criar comunidade. Criação de comunidade significa estimular seus membros a, sob a ética da alteridade, redirecionar os conflitos de forma a criar laços de solidariedade e de identidade social e cultural.


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3. Ao estimular a comunidade a desenvolver mecanismos próprios de resolução de conflitos, o Projeto Justiça Comunitária propõe novos caminhos para a democratização da realização da justiça. Qual a repercussão desses caminhos na comunidade e nas instituições do Poder Judiciário e do Ministério Público? De que forma esses espaços públicos podem dialogar a partir do projeto? Estamos nos esforçando para que o Projeto estimule respostas comunitárias para problemas formulados pela própria comunidade. A parceria com o Ministério Público ganhará contornos mais consistentes, após o envolvimento dos Agentes Comunitários com a Central de Medidas Alternativas. Este programa tem contribuído muito para a articulação de redes sociais locais, para estabelecer um sistema de cooperação e diálogo entre instituições públicas e não governamentais, estimulando o intercâmbio de soluções comunitárias para problemas identificados pela comunidade. Esta parceria possibilitará a participação dos agentes comunitários nos “Fóruns para Instituições da Sociedade Civil” promovidos pela CEMA, o que trará benefícios recíprocos: os membros do Projeto Justiça Comunitária poderão contribuir com a promoção e agendamento das mediações comunitárias, e os Fóruns proporcionarão maior inserção dos agentes em suas comunidades, fazendo com que o mapeamento social da região tenha permanente atualizado. A articulação desta rede sempre foi uma das atividades previstas no projeto que se revelava de difícil implementação por falta de estrutura. Além disso, também estamos dialogando com o Núcleo de Perícia Social – NUPES do Ministério Público, para que algumas demandas que ofereçam potencial para uma mediação comunitária sejam enviadas aos Agentes Comunitários. A idéia é a de que sejam remetidos os casos para os quais somente a resposta judicial limita uma abordagem holística do conflito. Além das parcerias em processo de elaboração, o Projeto Justiça Comunitária

sempre contou com a contribuição da Promotoria de Justiça de Defesa da Comunidade – PROCIDADÃ, que promove as homologações das composições provenientes das mediações. Assim, na hipótese de um acordo não ser cumprido, a parte credora promove a execução do título extrajudicial, sem a necessidade do processo de conhecimento. Embora nosso objetivo seja evitar a judicialização dos conflitos, este é um aspecto importante que confere segurança aos participantes das mediações, sem que isto represente uma aposta no descumprimento do acordo. Por fim, o Projeto conta também com a participação da Defensoria Pública do DF e do Núcleo de Prática Jurídica da Unb que dão encaminhamento judicial às partes que procuram o Projeto, quando os conflitos não apresentam perfil adequado para a mediação; quando as partes não desejam o diálogo; ou simplesmente quando a mediação não redunda em consenso. Esta parceria se revela fundamental porque, ainda que não haja um acordo, as partes que buscaram o Projeto, sobretudo as que se submeteram a um processo de mediação, tiveram a oportunidade de se empoderar. Isto porque conheceram seus direitos; refletiram sobre as raízes dos conflitos; dialogaram, tive-

Nestes seis anos realizamos avaliações para a vizualização de erros e para os necessários ajustes. Uma das maiores dificuldades foi a construção de uma metodologia de viés efetivamente comunitário.

Na construção da Democracia, o papel do Estado deve ser o de parceiro e incentivador de cidadania ativa e empoderamento ram espaço para compreender a perspectiva do outro. A emancipação está no processo, não no resultado. Contudo, não havendo resolução do problema, é importante que se dê o encaminhamento judicial, porque o Projeto Justiça Comunitária se coloca como alternativa complementar. Nestes casos, é bem provável que as partes que encaminhadas ao Judiciário após o acolhimento pelo Projeto, demonstrem maior segurança e consciência no processo. 4. Em seis anos, avaliações foram feitas e o projeto Justiça Comunitária sofreu modificações. O que essas mudanças podem acrescentar à Justiça Comunitária em um futuro próximo? O caráter pioneiro do projeto impôs que realizássemos inúmeras avaliações para a visualização de erros e necessários ajustes. Uma das maiores dificuldades enfrentadas nestes seis anos foi a construção de uma metodologia de mediação que oferecesse um viés efetivamente comunitário. No Brasil, a maioria das escolas de mediação trabalha o conflito ora sob o enfoque das relações familiares, ora sob uma abordagem empresarial. O Projeto buscou aproximação com duas experiên-

cias brasileiras muito interessantes que também procuram desenvolver as mediações na esfera comunitária: os projetos “Pólos Reprodutores de Cidadania”, da UFMG e “Escritórios Populares de Mediação – JUSPOPULI”, em Salvador, Bahia. Estamos reformulando alguns procedimentos para que a equipe do Projeto possa oferecer melhor suporte na captação das demandas. Sem prejuízo de nossa participação nos Fóruns promovidos pela CEMA, estamos agendando visitas semanais abertas a locais estratégicos da comunidade – assim entendidos aqueles onde os seus membros se mobilizam em torno de alguma questão específica que afete o coletivo – para que os Agentes Comunitários, a coordenação, a equipe multidisciplinar e os parceiros possam expor os objetivos e o funcionamento do programa, além de estimular o Agente Comunitário a conhecer melhor a sua comunidade. Estas visitas fornecerão dados importantes a serem incorporados ao nosso mapeamento social e que direcionarão nossa atuação em busca de demandas efetivamente comunitárias, adequadas, portanto, ao nosso Projeto. Os Agentes Comunitários podem agendar sessões de mediação dos conflitos que a comunidade indicar e, ainda, manterão contato estreito com os diversos movimentos sociais e suas lideranças. 5. A autonomia do Projeto Justiça Comunitária em relação ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios é desejável? Integra expectativas em futuro próximo? O principal objetivo de qualquer projeto de justiça comunitária, é justamente a pro-

moção da autonomia política, por meio da reapropriação da gestão dos conflitos pela comunidade e seus membros. É proposta de radicalização da democracia. No entanto, em geral, mesmo aqueles modelos executados com total independência do Poder Judiciário desenvolvem algum tipo de regulação, estabelecendo vínculos com as organizações não-governamentais ou mesmo com Universidades. É necessário se questionar o tipo de autonomia que se pretende. O mero fato de ser comunitária não torna a experiência necessariamente emancipatória. É necessária uma dose de “desromantização” da comunidade para melhor compreendê-la. Ilustrando de forma exagerada, a justiça levada a efeito pelos “barões do tráfico de drogas” – os chamados fascismos societais na expressão de Boaventura de Sousa Santos – guarda a mais absoluta autonomia em relação ao Estado e nem por isso veicula qualquer elemento de cunho libertário. Ao contrário, este tipo de justiça opera com a violência, a exclusão e o medo. Daí porque este debate exige um certo cuidado e, a meu ver, enseja mais dúvidas que certezas. Ao adotar postura zelosa, não afirmo que a comunidade não tenha capacidade de construir de maneira autônoma os caminhos para a promoção de uma justiça de cunho emancipatório, até porque seria contraditório um Projeto desta natureza ter a pretensão de manter uma eterna dependência a um marco regulatório que lhe seja externo. Neste debate, há quem afirme que há um paradoxo intrínseco nos projetos de justiça comunitária articulados pelo Poder Judiciário. Discordo desta visão. Acredito que o papel do Estado na construção da democracia é o de parceiro e incentivador de experiências que promovam cidadania ativa, desde que as deliberações não violem princípios fundamentais e de dignidade da pessoa humana e, ainda, que não reforcem situações de disparidade de poder. O problema está em quem estabelece estes critérios. O que fazer quando um consenso é obtido sob ameaça, ainda que velada? Como equilibrar o poder entre as partes? Uma técnica interessante é a de se trazer para as sessões, representantes das minorias sociais que sejam parte do conflito, para que a própria comunidade crie mecanismos de autocontrole. Tal medida está sendo implementada nos círculos restaurativos, sob a articulação da Vara da Infância e Juventude de São Caetano do Sul, SP.


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OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO

A reforma do Recurso Extraordinário:

O perigo que vem do Congresso PAULO SÁVIO PEIXOTO MAIA

última convocação extraordinária de nosso Congresso Nacional recebeu muita atenção da opinião pública, e com razão, afinal consistiu em um notável exercício de gasto do dinheiro público acompanhado de um simultâneo fracasso em termos de resultados legislativos. O rol de matérias incluídas em pauta, esperando votação, era grande. O número de parlamentares presentes em Brasília, contudo, era ínfimo, principalmente no que toca à Câmara dos Deputados. Todavia, o trágico não foram as normas que deixaram de ser aprovadas, mas sim algumas que

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conseguiram aprovação. Aqui, neste curto espaço, nos concentraremos em uma dessas leis. Ela trata de um ponto específico da chamada Reforma do Judiciário, que foi implementada pela Emenda Constitucional nº 45, de dezembro de 2004. Tal ponto é a regulamentação do novo perfil do Recurso Extraordinário, que tramitou no Senado Federal em fevereiro sob o título de Projeto de Lei nº 12 de 2006, foi aprovada no mesmo mês e já se encontra na Câmara dos Deputados, onde terá que conseguir, também, aprovação para que possa ir à sanção presidencial. A novidade consiste em uma exigência adicional para que o Supremo Tribunal Federal conheça o Recurso

Extraordinário: a repercussão geral (CF art. 102, § 3º). De forma bem resumida: o Recurso Extraordinário é um meio pelo qual uma controvérsia judicial entre duas partes pode chegar ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal. Suas hipóteses de cabimento se encontram na Constituição (art. 102, inc. III), e, grosso modo, ele é cabível quando se contraria matéria ou texto constitucional. A repercussão geral já se encontra no texto constitucional. Foi incluída de forma discreta na Emenda nº 45: poucos perceberam a volta desse instituto. Mas cabe ao Congresso regulamentar o que é essa repercussão geral: esse é o objeto do Projeto que

aqui se discute. Com o estabelecimento da repercussão geral como requisito para o julgamento do Recurso Extraordinário, o Legislativo atendeu aos clamores de certos constitucionalistas que insistem em falar de uma “crise do Judiciário”, e que, por igualarem o Judiciário ao Supremo Tribunal Federal, usualmente repetem uma expressão elaborada pelo ex-Ministro Moreira Alves: “a crise do Supremo Tribunal Federal é a crise do Recurso Extraordinário”. Será? As antigas tribos de Israel tinham o costume de, uma vez por ano, soltar um bode no deserto para que ele se perdesse e assim nunca mais voltasse de onde partiu. A es-

se bode imputava-se a culpa por todos os males e impurezas que acometiam a comunidade, os quais se desejava exorcizar com esse sacrifício. É daí que se origina a expressão popular “bode expiatório”. Pois bem, o Recurso Extraordinário é o bode expiatório do Supremo Tribunal Federal. O desejo de se limitar o acesso à instância judiciária que cuida da constitucionalidade dos atos normativos (em último grau) ao argumento de conferir-lhe agilidade, esconde um outro lado que precisa ser abordado. Tentaremos fazê-lo aqui, ainda que precariamente. Antes, prestaremos uma homenagem à memória; a repercussão geral não é inédita entre nós: vejamos seu passado.


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O Regime Militar e a repercussão geral Uma das marcas da ditadura militar foi a centralização e a desconfiança em relação ao Legislativo. É possível detectar facilmente passagens que qualificavam o Parlamento como um lugar incapaz de gerar decisões, uma vez que seria composto por lideranças carismáticas sem habilidade técnica. Somente uma tecnocracia impessoal e neutra poderia gerar “governabilidade”. Por essa crença compartilhada pelos que detinham o poder, temos a explicação do porquê de a Constituição de 1967/69 ter funcionado como ferramenta de limitação do Legislativo e não dos outros poderes. Prerrogativas do Executivo e do Judiciário foram alargadas. No art. 119, III, parágrafo único, constava, sutilmente, previsão de que o Regimento Interno do STF poderia limitar o conhecimento do Recurso Extraordinário de acordo com “natureza, espécie ou valor pecuniário”. O Supremo usou a prerrogativa em 12/6/1975: através da Emenda Regimental nº 3, disciplinou as regras de recebimento do RE no art. 308 do Regimento, em que constavam as hipóteses aptas a barrar seu processamento. Quando o RE não consistia em uma dessas hipóteses, deveria se submeter ao teste adicional da argüição de relevância, semelhante à atual repercussão geral, cuja proposta de reedição se encontra na Câmara. O procedimento da argüição de relevância era bem autoritário. Para seu processamento, o STF se reunia em Conselho, com portas fechadas e, após, divulgava lista dos pedidos acolhidos e rejeitados; tudo sem fundamentação. Da decisão não cabia reapreciação. Em relato da época, o processualista Egas Dirceu Moniz de Aragão contestou, em 1981, a legitimidade doprocedimento. Relata que na sessão de 3/8/1981 o Conselho do STF julgou 345 argüições de relevância em 30 minutos! A pergunta é: será que os argumentos das partes eram levados a sério ou uma influente banca de advogados era o segredo da “relevância”? Será que ao recurso de um cidadão comum era dada a mesma atenção conferida ao recurso de uma instituição financeira? É possível existir uma questão constitucional irrelevante? Todos imaginamos a resposta. É preciso problematizar o uso passado da argüição de relevância. Ela possuía um lado oculto bem perverso. Ao

O Recurso Extraordinário é o bode expiatório do Supremo Tribunal Federal contrário do que a retórica oficial afirmou, ela não teve o escopo de reduzir o número de processos. Não teve o condão de fazer com que o STF julgasse somente casos “à altura de sua dignidade”. Sua finalidade foi outra: a argüição de relevância impediu o conhecimento de questões derivadas de violações a direitos fundamentais, como tortura. E isso em uma época em que o STF era exclusivamente composto de Ministros colocados pelo regime militar, e a ele leais. Em síntese, a argüição de relevância era uma espécie de acordo de cavalheiros. Por um lado, era um confortável mecanismo de escape de um Supremo Tribunal Federal comprometido com uma noção autoritária de “governabilidade”, porquanto era engajado em não conhecer questões embaraçosas para ele. Por outro lado, a argüição de relevância foi um artifício interessante para o governo federal da época. Uma vez que o STF não julgava questões ligadas a violações de direitos fundamentais, o governo não era constrangido a justificar os atos de mecanismos como o SNI e o DOI-Codi, situados à margem das estruturas legais. Porém, sabemos que a história não se repete; os eventos históricos são únicos em seu significado, sempre são modificações do que parece ser o mesmo. Não temos mais um estado de exceção. Como

entender a repercussão geral que o Congresso quer ressuscitar? O que ela traz de novo? Critério de julgamento A principal mudança que o Congresso quer efetivar em relação ao perfil atual do Recurso Extraordinário é a exigência de que a questão que se leva ao STF tenha relevância, tenha “repercussão geral”. O que o Projeto de Lei nº 12 de 2006 do Senado fez foi disciplinar como isso será feito. Só que, e para utilizar as palavras de seu relator, o Senador José Jorge (PFL-PE), o Projeto se pautou pela “regulamentação mínima”, ou seja, autorizou o STF a disciplinar o tema através de seu Regimento Interno. Foi concedida ao STFcarta branca para entender como bem queira uma “repercussão geral” (tal como no Regime de 1964). Na parte mais curiosa do parecer, observamos a justificativa de que ele assim procedeu após ouvir as ponderações dos Ministros Gilmar Ferreira Mendes e Cezar Peluzo (“os verdadeiros autores do texto”, como vemos no Parecer nº 118/2006), que manifestaram “preocupação com o excessivo detalhamento na regulamentação do tema”. Confuso? Vamos explicar. Em sua primeira versão, o Projeto de Lei nº 12 era mais detalhado, queria delimitar o que seria uma “repercussão geral”. O que de certa forma estabelece um limite à atuação do tribunal. E daí a preocupação: a “crise do STF” não poderia, caso se procedesse desta forma, ser resolvida ( para quem acredita nisso). Então, como informa o relator, os ministros deram uma sugestão diferente. O Senador acatou-a e substituiu a primeira proposta por outra, elaborada a partir das “sugestões

ministeriais”. Com o Projeto de Lei no estado em que se encontra, na versão do substitutivo de “coautoria” do Sen. José Jorge e demais Ministros, o reaparecimento da repercussão geral procura conferir um amplo espaço de conformidade para o Supremo Tribunal Federal legislar em causa própria. Os limites que o Legislativo impõe são quase nulos, uma vez que o critério estabelecido para o STF foi o de que a repercussão geral deve conter questão relevante do ponto de vista

A argüição de relevância impediu o conhecimento de questões derivadas de violações a direitos fundamentais, como tortura econômico, político, social ou jurídico. Ou seja: mais que um limite, isso é uma autorização para que o STF tente relativizar a Constituição enquanto norma e para que se atenha a critérios não urídicos. Coisa que, aliás, já faz há muito tempo mediante o instrumento da ponderação de interesses em “questões emergenciais”, como o caso da taxação dos inativos ou do julgamento da MP que estabeleceu o “pacote do apagão”, em 2001. Em “questões emergenciais” o STF costuma descartar a aplicação da Constituição utilizando o argumento de finalidade, como um vidente: “se não for assim, o país vai parar”. O que observamos nesses casos é um nivelamento da diferença entre

direito e fato, direito e economia, direito e a vontade do Poder Executivo. O problema reside aí. Um tribunal constitucional só pode operar em consonância com o Estado Democrático de Direito, tendo a Constituição como critério. É perigosa a institucionalização por meio do direito de critérios para julgamento de causas constitucionais que não se apóiam na Constituição e no direito, mas em critérios econômicos e políticos. É a utilização do direito contra o próprio direito. Há no parecer uma tentativa de mensurar o direito a partir desses critérios, pois afirma que o objetivo é que o STF não venha a se manifestar em casos de “somenos importância, como brigas de vizinhos”. Será que em uma briga de vizinho uma questão de direito à intimidade não pode ser seu pano de fundo? Isso não é constitucionalmente relevante? Um outro ponto justifica o interesse que os Ministros do STF têm na aprovação do Projeto de Lei. Atualmente, os Recursos Extraordinários que o STF considera “idênticos” são julgados por lista. Uma Turma simplesmente elenca vários recursos e coloca em votação. Não são os recursos que são apreciados: é uma lista com vários recursos, 300 às vezes. Isso é julgado em dois minutinhos, muito rápido. Esse procedimento não é autorizado por lei, é disciplinado pelo próprio Regimento Interno do STF. Ora, com a regulamentação da repercussão geral, ele se livra das críticas que se faz a esse procedimento, pois terá uma autorização vinda da Constituição para fazer isso, uma vez aprovada pelo Congresso. Em suma, a prática de arbitrariamente dizer se um recurso é relevante ou não, para depois julgá-lo, é amplamente exercitada pelo STF. Riscos da repercussão geral Ao contrário da atitude das tribos de Israel em relação aos bodes, no Brasil não arremessamos o REde um desfiladeiro uma vez ao ano. Mas fizemos isso em 1975,e a experiência histórica nos diz no que isso deu. O argumento de que o STFprecisa de “filtros” para impedir que qualquer questão o alcance, e assim discutir só os “grandes temas nacionais” tem na recente história institucional do país uma testemunha em contrário, e tem cheiro de engodo, pois pretende legitimar práticas internas desfavoráveis para o jurisdicionado.


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OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO

Soltura de presos mantidos em condições degradantes FÁBIO COSTA SÁ E SILVA

á pelo menos duas décadas, o Poder Judiciário tem sido um dos espaços mais privilegiados no Brasil para se observar a tensão entre Constituição e Democracia. Das ocupações de terra às reivindicações por medicamentos anti-HIV, sobram exemplos de demandas que expressam o descompasso entre as garantias formais consagradas pela Carta Política e as intrincadas condições materiais de sua realização, numa sociedade cuja reprodução sempre se deu sob a marca da desigualdade. Judicialização da Política, Uso Alternativo do Direito, Positivismo de Combate, Ativismo Judiciário, muitos foram os rótulos utilizados para demarcar uma forma de “dizer o direito” que se recusasse ao formalismo e ao reducionismo dos conflitos e que, por entre acertos e desacertos, buscasse oferecer decisões cuja sofisticação fizesse frente aos desafios representados pelos problemas então emergentes. É evidente que apelar ao Judiciário para a conquista da Cidadania está longe de ser até mesmo uma opção segura, especialmente quando temos uma Magistratura que construiu para si tantas e tantas amarras de ordem cultural e organizacional. Num contexto em que a carreira de um Juiz é delineada de acordo com o número de decisões que lhe são confirmadas pelo Tribunal, ou em que uma maioria de causas ajuizadas vem a ser decidida pelo acolhimento ou rejeição de matérias preliminares, o enfrentamento do mérito de questões mais vastas e densas acaba sempre gerando algum mal estar, que não raramente se traduz na desqualificação do Julgador e na a reafirmação de um modelo anacrônico e insensível de justiça. Que fique claro, portanto, que não vale a pena adotarmos uma posição tão moderna quanto ingênua, de quem acredita que a resposta para todos os problemas do mundo está na jurisdição. Mas também não podemos duvi-

H

dar do importante papel que ela pode jogar, enquanto trincheira na disputa por concepções tão diversas quanto antagônicas sobre o que seja uma vida digna. É nos limites desse cenário movediço que merece ser analisada a postura adotada recentemente pelo Juiz Livingston José Machado, que inspirou imensa polêmica ao determinar a soltura de presos condenados recolhidos em Delegacias de Polícia no Estado de Minas Gerais adotando o fundamento de que as degradantes condições do ambiente atentavam francamente contra os seus direitos de cidadania. Polêmica esta, vale dizer, que além de censuras e protestos ao nível do senso comum, acabou por ensejar o seu afastamento pela Corregedoria do Tribunal, depois que ele procedeu à soltura de mais 07 (sete) indivíduos quando já havia sido proferida decisão da instância superior, “proibindo-o” de continuar com a prática. Mas afinal de contas, havia mesmo tanta “maluquice” assim nas decisões do Juiz Livingston, que justificasse a contundente reação desferi-

da pela opinião pública, pelo Governo Estadual e pela própria cúpula do Tribunal de Justiça de Minas Gerais? Há bem pouca dúvida de que as condições dos Distritos Policiais em que os presos estavam alojados eram efetivamente degradantes. O relatório da Comissão Pastoral de Direitos Humanos da Arquidiocese de Belo Horizonte dava conta de que, ao tempo da concessão dos alvarás, vários presos eram portadores de doenças de pele infectocontagiosas, o espaço reservado a cada um correspondia a 32 cm2 e de que alguns declararam ter projéteis de arma de fogo alojados na cabeça, na perna e até no olho, sem que lhes fosse dispensado tratamento médico adequado. Se não fosse o bastante, as paredes estavam mofadas, o teto em vias de desabar, o ambiente quase não era iluminado, o esgoto passava na porta da cela e os detentos viviam seminus. Também não pode haver muita controvérsia quanto a que, diante dessa situação, algumas garantias expressamente asseguradas em favor dos presos estavam sendo

francamente violadas. Afinal de contas, dentre várias outras promessas não cumpridas, a Lei de Execução Penal prevê que o condenado deve ser “alojado em cela individual que contará dormitório, aparelho sanitário e lavatório”, estabelecendo como requisitos mínimos dessas edificações a “salubridade do ambiente pela concorrência de fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana e área mínima de 6,00 m2 (seis metros quadrados)”. Ou seja: não há nada assim de tão “injurídico” ou “anti-jurídico” que autorize o desdém com que foram tratadas essas decisões. Ocorre que, assim como o coração, a Justiça e a Sociedade têm razões que a própria razão desconhece. Neste caso, a resposta à indagação passa por reconhecer que, conscientemente ou não, todo e qualquer processo de enunciação e realização de direitos dos presos está fortemente permeado pelo desvalor que lhes dispensamos. De fato, o criminoso sempre foi tido como alguém di-

ferente, merecedor de menor consideração, porque supostamente portador de algum fator psíquico ou social que alimentava a sua motivação transgressora. Por isso, sempre foi considerado como alguém que devesse ficar longe de nós, até que alguma forma de tratamento lhe devolvesse a capacidade de interagir com o nosso círculo de relações. Intervenções técnicas, exames criminológicos e laudos foram os instrumentos construídos em favor do Estado e da Comunidade para viabilizar e medir a superação dessa condição de “desvio” e promover o que se convencionou chamar de “ressocialização”. Talvez não seja fora de propósito associar toda essa condição a uma característica que de certa forma sempre esteve latente no sistema penal: a sua seletividade. Quando a maior parte do contingente prisional é claramente formada por segmentos excluídos da sociedade, torna-se fácil compreender porque todo esse arsenal teórico e prático tenha até hoje vindo a alcançar tamanha sobrevida.


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O fascismo societal e novos dramas na relação entre judiciário e democracia A novidade dos nossos dias está em que, na medida em que experimentamos um notável recrudescimento da pena de prisão enquanto estratégia de gestão de conflitos, essa vocação segregacionista que o sistema penitenciário sempre cultivou parece ganhar saliência até mesmo em prejuízo da idéia de “recuperação do indivíduo”. Nessa toada, a privação de liberdade tem sido cada vez mais dissociada de qualquer projeto de intervenção na vida do condenado a promoção da sua dignidade. Em outras palavras, pouco importa à sociedade se o preso está contando ou não com alguma forma de atenção por parte do Estado. O que importa é que esteja preso. A realização de direitos nas prisões se revela, portanto, como algo muito mais sutil que dispor de leis garantidoras da integridade física e moral dos presos ou mesmo de colocá-las em prática, como se tem o costume de dizer. Ela passa pela necessidade de construirmos uma nova relação de sociabilidade, na qual avancemos para um outro estágio de compreensão do crime e da pena e nos mostremos dispostos a reconhecer em favor dos apenados o direito de compartilhar do mesmo espaço que temos (ou a que julgamos ter direito) dentro da comunidade. É preciso, em suma, que deixemos para trás muitas das pré-concepções que nos têm dado os moldes de uma certa gestão prisional, na qual não há espaço para nada além de grades e carcereiros. Tudo isso leva a perceber porque a execução penal pode ser vista cada vez mais como um grande laboratório para estudarmos as incoerências de uma sociedade que, no dizer do Prof. Boaventura de Sousa Santos, vem se caracterizando como “politicamente democrática, mas socialmente fascista”. Uma sociedade que não hesita em utilizar dois pesos e duas medidas na relação com o infrator, ao melhor estilo do “faça o que eu digo [respeite as leis], mas não faça o que eu faço [desrespeite-as, quando se trata de realizar direitos de pessoas que quero longe de mim, como você]” e que assim contribui para que se configure uma “predominância estrutural de processos de exclusão a processos de inclusão”. Apesar de todos esses limites, não deixa de ser interessante prosseguir observando os caminhos ou descaminhos que serão percorridos pelo Judiciário frente ao problema, notadamente quando o seu papel de garantir direitos de certa forma coloca um limite objetivo à sua capacidade de tergiversar. Ainda que sem a mesma dramaticidade, mas com direção relativamente semelhante à do Juiz Livingston, outras posições jurisprudenciais prosseguem despontando como merecedoras de algum destaque. É o caso da concessão em massa de benefícios, que tem sido levada a efeito pelo Juiz Marcelo Tadeu Lemos de Oliveira (AL), ou da interdição de um grande estabelecimento prisional até que se demonstre haver ali condições razoáveis para a custódia prisional, como fez o Juiz Fernando Mendonça (MA). E isso sem falar nas ações de indenização que vêm sendo julgadas procedentes, condenando-se os Estados e o Distrito Federal por danos morais e materiais sofridos em decorrência de custódia prisional irregular. Resta ver, apenas, se darão em alguma coisa, ou se continuará tendo razão o bom e velho Foucault, que há muito tempo reivindicou a abordagem de classe como a mais pertinente para o sistema jurídico-penal.

[...] a execução penal pode ser vista cada vez mais como um grande laboratório para estudarmos as incoerências de uma sociedade que, no dizer do Prof. Boaventura de Sousa Santos, vem se caracterizando como “politicamente democrática, mas socialmente fascista”.


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OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

A utilização do Judiciário para questionar a administração URBANO RUIZ

mbora a reforma do Judiciário tenha propiciado alguns avanços, com o aumento da oferta de trabalho, sem mais permitir o represamento nos tribunais, impondo, pelo contrário a imediata distribuição dos recursos, sem paralisações nas férias, unificando os tribunais estaduais, eliminando as infindáveis discussões a respeito das dúvidas de competência e proibindo a destinação dos valores das custas e emolumentos às entidades privadas, essa mesma reforma fortaleceu a concentração de poderes na cúpula, fato bem visível com a possibilidade de edição das súmulas vinculantes. Não bastasse o privilégio de foro, que impede que a elite dirigente seja julgada criminalmente pelos juízes de primeiro grau, a súmula vinculante reforça ainda mais os poderes daqueles que dirigem o país. Os juízes de primeiro grau – tanto quanto os tribunais locais – perderam importância, pois a jurisprudência passará a ser editada da cúpula para a base, com força vinculante. E, exatamente nesse quadro, é preciso buscar mecanismos de reequilíbrio das forças, para valorizar os poderes que sobram aos juízes que não integram a cúpula do Judiciário. O caminho é o das ações coletivas. É preciso explorar melhor esse caminho a serviço do povo, democratizando o Judiciário, de modo a fazer dele um serviço público. Por meio de tais ações é possível, por exemplo, fazer com que o administrador crie vagas no ensino de primeiro grau, que melhore o transporte coletivo, amplie a distribuição de medicamen-

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A Reforma do Judiciário forteleceu a concentração de poderes, fato vísivel com as súmulas vinculantes

tos e serviços de saúde aos carentes e que promova obras indispensáveis ao saneamento básico, entre outras providências. É bem verdade que o prestígio às ações coletivas, de modo a permitir a utilização do Judiciário como meio de cobrar a implementação de políticas públicas demandaria investimentos na formação de um novo juiz, que deixasse de lado a postura meramente positivista, mediante aplicação mecânica das regras legais, para se dar conta da realidade brasileira, buscando atingir, também por meio da atividade jurisdicional, os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, previstos no art. 3º da Constituição Federal. Os casos adiante enumerados mostram a importância do Judiciário no desenvolvimento de políticas públicas: O Promotor de Justiça de Rio Claro, no interior paulista, apurou que no ano letivo de 98 cerca de 500 crianças deixariam de freqüentar o ensino de primeiro grau por falta de salas. A CF, nos arts. 211 e 212 obrigava a

Juízes e Tribunais podem perder a importância. A jurisprudência pode ser editada da cúpula para a base municipalidade a atuar prioritariamente no ensino fundamental, investindo 25%, no mínimo, da receita de impostos. Bem por isso, é obrigatório o ensino de primeiro grau, gratuito (art. 208), sem que qualquer criança pudesse ficar fora da escola (ECA, art. 208), tanto que os pais seriam responsabilizados criminalmente caso deixassem de matricular os filhos (Código Penal, art. 246). O Promotor promoveu ação civil pública para obrigar a Municipalidade a criar aquelas vagas e liminar foi deferida, o fato foi amplamente divulgado e o prefeito não teve como deixar de atender a ordem judicial, mesmo porque implicaria em crime de responsabilidade (DL 201/67) – (Proc.

608/97, da 2ª. Vara Criminal, da Infância e da Juventude de Rio Claro – SP). Os trens de subúrbio da Grande S.Paulo viajavam com as portas abertas em razão do excesso de passageiros, transportados até sobre os vagões. Eram freqüentes mortes e mutilações. O MP também promoveu ação civil pública para obrigar a concessionária a oferecer serviços dignos, seguros e regulares. Terminou julgada procedente, com a aquisição de trens novos e a recuperação dos antigos, com melhorias significativas para os usuários (Ap.Cível 45.0285/5, 7ª. Câmara de Direito Público do TJSP). Idêntica ação foi promovida para obrigar a Administração Pública a distribuir gratuitamente remédios para pessoas carentes, sobretudo aidéticos que não tinham condições de adquiri-los (Ap.Cível 56.673-5/3, de Franca, 2ª. Câmara de Direito Público do TJSP). Também acolheu pedido do Ministério Público contra o Município e o Concessionário de serviço público municipal para impedir o lança-

mento de esgotos domésticos e resíduos industriais, sem tratamento, em curso d’água que abastecia a população (Ap.Cível 284.838.5/500 – 8ª. Câmara de Direito Público do TJSP). Esses fatos mostram a possibilidade de utilização do Judiciário para o desenvolvimento de políticas públicas, ou seja, por meio dele é possível exigir das autoridades que cumpram deveres, que tomem atitudes em prol da cidadania. Também serve para mostrar que o juiz deve ser visto pelo cidadão como um garantidor de direitos. Têm tratado do tema alguns de nossos melhores juristas, destacando-se Fábio Konder Comparato (RT 737/20), Rodolfo de Camargo Mancuso (in Ação Civil Pública – Lei 7.347/85 – 15 anos, SP, RT, pág. 707) e Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que abordou esse tema no seminário sobre os 15 anos da Ação Civil Pública, organizado pelo Ministério Público Federal e outras entidades, inclusive a Escola Paulista de Magistratura, realizado em S. Paulo, de 22.05 a 09.06.2000.


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Omissão implica em responsabilidade Bem explicou referida professora que a omissão implica responsabilidade civil do Estado, consoante o disposto no art. 37, § 6º da CF. É possível, pois, exigir do Estado que cumpra seu dever legal. Se o Judiciário pode controlar a ação, igualmente pode controlar a omissão. Estar-se-ia, por meio da ação coletiva, evitando ameaça de lesão. Há apenas que se verificar se a Administração estava obrigada a fazer (ato vinculado) ou se ela apenas tinha a faculdade (ato discricionário). Quando a atividade é vinculada é plenamente possível ir a Juízo exigir o cumprimento da obrigação de fazer ou de não fazer do administrador. Quando o ato é discricionário, não se pode exigir o cumprimento da obrigação de fazer. O poder de polícia, o disciplinar, o regulamentar, são discricionários. A Administração pode decidir quando fazer, a melhor forma de fazer sem, contudo, deixar de fazer. É que a lei já determinava que fizesse. O mesmo se diga com respeito aos serviços públicos, que não podem deixar de ser prestados pelo Estado. É importante lembrar que a obrigação de indenizar, de reparar o dano, tem por fundamento o universal princípio de que não se pode lesar ninguém (neminem laedere). É possível cobrar do Administrador público que não continue omisso que, em outras palavras, deixe de causar lesões. A utilização dessas ações coletivas valoriza o Judiciário, na medida em que faz dele instrumento de democratização e amplia o acesso da grande massa de excluídos àqueles serviços públicos. É preciso estimulá-las.

Quando o ato é discricionário, não se pode exigir o cumprimento da obrigação de fazer É importante acrescentar que o prof. Comparato mostra que o Judiciário também pode ser utilizado para questionar as políticas públicas desencadeadas pelo Estado. É possível, por exemplo, questionar as prioridades eleitas pela cúpula, como a de privilegiar

credores, a estabilidade monetária, o controle da inflação, a política recessiva, quando mais de quarenta milhões de brasileiros vivem em estado de miséria absoluta. Não se pode perder de vista que a independência dos magistrados é fundamental à democratização do Judiciário. Bem por isso, o prof. Comparato, em substancioso trabalho - “Os Obstáculos Históricos à Vida Democrática em Portugal e no Brasil”, questiona a possibilidade de democracia no Brasil: “As classes dominantes sempre atuaram por conta e no benefício exclusivo delas”. Nessa linha, a propósito, a pesquisa divulgada pela Folha de S. Paulo de 12.08.04, que reproduziu matéria divulgada pela revista britânica The Economist da véspera. Nos 18 países latino-americanos pesquisados, 71% estão convencidos

A independência dos magistrados é fundamental à democratização do Judiciário. Não se perder isso de vista que os governos beneficiam apenas a elite. “As classes inferiores foram consideradas supérfluas no jogo político, continua o professor Comparato. Sempre houve um equilíbrio sinalagmático entre as oligarquias e o poder central, à revelia do povo, quando a verdadeira essência da democracia consiste na ação prioritária dos Poderes Públicos em favor das classes pobres e dominadas. Tal significa dizer que a ação política prioritária em favor dos fracos e pobres, numa

autêntica democracia, supõe a existência de um Estado forte e bem organizado, constitucionalmente competente para impor a sua vontade às classes dominantes no interesse do país e às potências dominantes no plano internacional, ou seja, exatamente o oposto do Estado subserviente, engendrado pelo atual capitalismo globalizante”. Propõe, assim, de um lado, a ampliação da competência dos órgãos estatais, cujo preenchimento não está sujeito à influência das classes dominantes, como o

Judiciário e o Ministério Público, para que imponham ao Executivo e ao Legislativo a elaboração e a aplicação de políticas destinadas à realização dos direitos econômicos, sociais e culturais. Deposita esperanças reforçadas nos juízes e promotores independentes, que ascenderam aos cargos mediante aprovação em concurso, sem dever favores políticos e, por isso, qualificados para a defesa de valores que permitiriam uma sociedade mais justa, igual e solidária. É preciso, pois, que não decepcionemos.

A verdadeira essência da democracia consiste na ação prioritária dos Podere Públicos em favor das classes pobre e dominadas. Dignifica ação política prioritária em favor dos fracos e dos pobres


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O Judiciário, o autoritarismo e o ofuscamento da Constituição “A JULIANO ZAIDEN BENVINDO

aplicação do Código de Defesa do Consumidor seria um deletério do ponto de vista econômico e social” – assim se justificou o Ministro Nelson Jobim, do Supremo Tribunal Federal, para afastar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas operações tipicamente financeiras. Em seu voto, proferido recentemente na sessão de 22 de fevereiro, um dos importantes motivos para esse afastamento se deve à importância das operações financeiras para a economia do País, especialmente porque, por integrarem a política monetária, se enquadram dentro da denominada “política de governo”. À primeira análise, a decisão judicial parece não assustar. Afinal, o que o Ministro Jobim fez foi simplesmente adequar a decisão judicial a um aspecto relevante para a governabilidade, especialmente no que se refere à política monetária e à economia nacional. Ao julgar, o que se realizou foi uma tarefa de equilíbrio entre um pressuposto normativo – a aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas atividades bancárias, sem exceção – e um aspecto fático, relacionado à necessidade de adaptar esses pressupostos normativos aos requisitos do funcionamento do Estado e do exercício da atividade governamental. Dois argumentos, um resultado: sob o signo da interpretação conforme a Constituição Federal, o voto do Ministro Jobim estabeleceu que apenas certas atividades mais “corriqueiras”, como tempo de espera em filas, consulta de saldo e extrato bancários, se enquadrariam na classificação de relação de consumo; as demais, contudo, por estarem atreladas à política financeira, deveriam ter sua regulação realizada pelo Banco Central. Em síntese, na busca de uma interpretação mais “condizente” com a Constituição Federal, o argumento fático – a governabilidade, a política econômica - superou o argumento normativo, ou melhor, o pressuposto normativo foi proporcionalmente adapta-

do às circunstâncias fáticas da governabilidade. Em outro Tribunal, na discussão de um tema amplamente distinto – a validade do Programa de Demissão Voluntária (PDV) do Banco do Estado de Santa Catarina (BESC) -, a argumentação direcionou-se para um caminho próximo ao do Supremo Tribunal Federal. A Seção de Dissídios Coletivos do Tribunal Superior do Trabalho, em julgamento realizado em 21 de novembro de 2005, sustentou que a Orientação Jurisprudencial nº 270 da SBDI1, que afirma estarem quitadas exclusivamente aquelas parcelas e valores constantes do recibo – não se aplicaria se o PDV decorreu de negociação coletiva. Dois argumentos se destacaram nessa decisão: 1º) a maioria dos trabalhadores do banco desejava a implantação do programa, tendo ocorrido até panelaço para esse fim em frente ao Tribunal Regional do Trabalho; 2º) as indenizações pagas pelo banco tiveram valores consideráveis. A esses argumentos, foi acrescentada uma ressalva: a decisão não formaria jurisprudência a respeito de PDV. Os dois casos são emblemáticos. Sob diferentes enfoques, o resultado é bastante

semelhante: os pressupostos fáticos – a governabilidade, a política econômica, no primeiro caso; o panelaço dos trabalhadores e os valores das indenizações pagas pelo banco, no segundo – afastaram os pressupostos jurídicos que regulavam a situação, que, aliás, decorrem diretamente da Constituição Federal, como a proteção do consumidor e o princípio protetivo do trabalhador. De qualquer maneira, à primeira análise, os dois casos não transparecem nenhum problema mais sério. Afinal, houve alguma espécie de fundamentação nos julgamentos, mesmo que o argumento jurídico tenha sido afastado em razão de algum elemento fático ou econômico. Mas é assim que funciona o direito? Ponderação Será que a atividade de julgar é utilizar-se dos distintos argumentos e verificar qual tem o peso maior para aquele caso? O julgamento é tarefa de ponderação, de exame da proporção aplicada a um argumento para o caso específico? As aparentes normalidade e coerência das decisões judiciais acima passam despercebidas aos olhos de uma tradição do constitucionalis-

mo brasileiro que, já há bastante tempo, tem buscado equilibrar pressupostos normativos com situações fáticas, muitas vezes relacionadas ao tema governabilidade ou algum valor econômico. Na verdade, uma simples visita a uma livraria jurídica no Brasil mostrará que o discurso que predomina no constitucionalismo está ligado a conceitos como princípio da proporcionalidade, reserva do possível, interpretação conforme a Constituição, entre muitos outros. É quase um monólogo em que vigora uma tendência de buscar fazer um balanceamento de distintos fundamentos – normativos, fáticos, éticos, etc – no momento da aplicação do direito, sem uma verdadeira distinção da qualidade do argumento empregado. Assim, por exemplo, com fundamento no princípio da proporcionalidade, um determinado principio jurídico, historicamente consagrado e democraticamente debatido – muitas vezes constitucionalmente previsto -, torna-se um elemento em igual ou menor relevância para ser “calculado proporcionalmente” ao valor da governabilidade, da política econômica, do valor das indenizações, do panelaço realizado pelos tra-

balhadores. É um jogo curioso: de um lado da balança, tem-se o princípio constitucionalmente estabelecido e historicamente consagrado e, do outro, um valor qualquer que irá, nessa relação, proporcionar um resultado pretensamente ótimo nas condições fáticas de realização do direito. Porém, que “ótimo” é esse que se esquece da Constituição? Será que afastar a Constituição é realizar uma interpretação conforme a Constituição? Em termos mais amplos, existe democracia que permite o condicionamento da Constituição aos interesses governamentais, a sua política econômica? Por que o econômico, o fático torna-se, em muitos casos, mais importante ‘proporcionalmente’ que a Constituição na argumentação jurídica? Todas essas questões trazem à luz problema central no constitucionalismo brasileiro: que não é o Estado que precede a Constituição, mas a Constituição que deve preceder o Estado.

“No mundo realmente invertido, a verdade é um momento do que é falso” (Guy Debord)


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Com fundamento na interpretação conforme a Constituição, o STF, no julgamento apresentado, paradoxalmente, negou a Constituição. Adaptou-a aos aspectos fático-econômicos, relegando, em segundo plano, seus princípios, sua história. Em síntese, estabeleceu que a Constituição deve, sim, naquele caso em particular, estar condicionada aos fatores econômicos, pois esse condicionamento é necessário para o Estado funcionar adequadamente. O Supremo Tribunal Federal afirmou, mesmo que implicitamente, que seu pensamento direciona-se para transformar a Constituição em um instrumento balizado pelos interesses político-econômicos do Estado. Em última análise, isso significa que a Constituição torna-se um instrumento condicionado pelo jogo político e por interesses políticos do momento. Em síntese, a Constituição, por ser política, deve continuar sendo balizada pela política. Por sua vez, no julgamento do Tribunal Superior do Trabalho, o princípio protetivo do trabalhador, constitucionalmente consagrado, foi afastado em razão do valor da transação envolvida no PDV e de um panelaço realizado pelos trabalhadores em frente ao Tribunal Regional do Trabalho. Toda a história de julgamentos pretéritos sobre o PDV, em que se aplicava aquele princípio, foi relegada a segundo plano. A coerência – que é importantíssima para a segurança do direito e para a isonomia – foi menosprezada e com um agravante: criou-se a ilusão de que aquele caso era singular e, portanto, não servia para formar jurisprudência! Como julgar, contudo, sem pensar que aquilo é uma construção que servirá para manter íntegro o direito aplicado a casos semelhantes? Na crença da singularidade do caso, afastou-se a premissa de aperfeiçoamento da aplicação do direito em torno daquele tema. Houve, assim, a confissão clara de que o julgamento era incoerente e, portanto, não servia como base para próximos casos semelhantes. E tudo isso em razão de argumentos nada jurídicos, que deixaram a Constituição à míngua de qualquer efetividade. Em síntese, chegou-se ao absurdo de a Constituição e toda a coerência institucional de aplicação do princípio protetivo do trabalhador em casos de PDV ser afastada devido aos valores elevados da transação! E pior: chegou-se ao inacreditável de negar a Constituição e a coerência institucional devido a um panelaço! Agora, não é

nem o Estado que está acima da Constituição; é o valor da transação e o panelaço! Não é complicado perceber que ambos os julgamentos priorizam o Estado e enfraquecem a força da Constituição e da democracia. São nítidos exemplos de uma compreensão, mesmo que talvez imotivada, de que o Estado precede a Constituição. Porém, por mais que isso se evidencie a um olhar mais atento, é curioso verificar que muitas dessas decisões passam sem uma compreensão verdadeiramente crítica da sociedade, porque, de tão naturalizadas na cultura nacional, tendem a se normalizar como uma prática usual. Não se compreende e tampouco se estuda com cuidado o problema de se transformar a Constituição em instrumento maleável conforme os interesses e estratégias da política. Em rigor, a literatura jurídica brasileira pouco atenta para esse problema e, por pouco compreendê-lo, adquire um fascínio acentuado por técnicas que tentam “racionalizar” a aplicação do direito. Os dois casos apresentados aproximam-se por um resultado comum: o argumento fáticoeconômico na aplicação do direito apresentava, para os julgadores, peso maior como argumento. Esse balanceamento dos distintos argumentos conforme seu peso direcionou-se a um resultado que se considerava mais adequado ao caso. Não houve uma explícita preocupação com o processo de formação dessa argumentação e tampouco com a construção histórico-institucional dos pressupostos jurídicos. O que fosse melhor faticamente naquele momento ou o melhor resultado deveria prevalecer, independentemente se, para esse fim, se estivesse contrariando, nas entrelinhas, a Constituição. Outro caso, que é bastante usual, de adoção do princípio da proporcionalidade e da reserva do possível se verifica em algumas decisões que tendem a condicionar a aplicação do direito à observância de possibilidades financeiras do Estado. Nessas situações, normalmente observa-se que um direito constitucional fica a depender de uma pré-fixação orçamentária, muitas vezes limitando o exercício de um direito constitucionalmente protegido. Na argumentação jurídica, são apresentados, de um lado, o direito constitucional que o cidadão pleiteia, do outro, as possibilidades financeiras do Estado de garantir aquele direito. Com base no princípio da proporcionalidade, que se

apresenta como um critério nuclear de ponderação desses dois lados da balança, usualmente o Judiciário consegue apresentar uma justificação que permite afastar ou diminuir a importância do direito protegido e estabelecer, como valor a ser adotado na decisão judicial, a reserva do possível. O fato – o possível economicamente – é apresentado com um peso maior do que o direito constitucionalmente assegurado. Nesse jogo de pesos entre as duas perspectivas, o factual torna-se tão ou mais

Instrumento condicionado pelo político e por interesses de momento: um perigo para a Constituição importante do que o direito assegurado constitucionalmente ou, o que poderia isso representar normativamente, a lei orçamentária é apresentada com um valor ponderado maior do que a Constituição. Essa espécie de julgamento é bastante usual quando a causa versa sobre precatório e se exige que o ente público pague, conforme estabelecido na Constituição, sua dívida. É fato que a Constituição é bastante minuciosa no delineamento do pagamento de precatórios, chegando mesmo a definir prazos e medidas coercitivas para esse fim. Porém, não raramente o Judiciário irá afastar a aplicação da Constituição ou minorar sua força normativa com

fundamento na reserva do possível, nas possibilidades fáticas que o ente público tem de pagar aquela dívida. Se, por um lado, se pode entender que essa é uma característica inerente à atividade de julgar, por outro, os riscos desmesurados de uma incompreensão do valor que a Constituição tem de assumir nessa atividade podem levar à própria desconstituição da Constituição. O que se observa, na verdade, é que o argumento do factualmente possível tornou-se um jargão naturalizado pelo constitucionalismo brasileiro e é usado sem maiores critérios. Por mais que haja situações em que o factualmente possível torne complexa a aplicação imediata da Constituição, não se pode, em hipótese alguma, torná-la um simples joguete argumentativo, relegando-a a segundo plano conforme os interesses do julgador. O arbítrio que nasce dessa perspectiva é evidente: a construção constitucional, historicamente referenciada em um amplo debate público que deu ensejo à criação da norma constitucional, pode se tornar letra morta por um pensamento estratégico adotado pelo julgador. Em síntese, a estratégia torna-se o critério da atividade judicante, não a democracia e a Constituição que ela deve preservar e ampliar. O argumento da reserva do possível muitas vezes vem camuflado por outros termos construídos pelos constitucionalistas e que estão, de fato, na moda. Um bastante interessante, já antes indicado, é a interpretação conforme a Constituição. O termo já é es-

tranho: existiria, afinal, interpretação desconforme a Constituição dentro de algum critério de legitimidade democrática? O leitor mais atento percebe, facilmente, como a construção terminológica do constitucionalismo parece mesmo necessitar de reforços para dizer: “estamos julgando conforme a Constituição!”. Se a democracia é o parâmetro, é preciso estar continuamente reforçando essa necessidade de que a interpretação está conforme a Constituição? É um nítido caso de pleonasmo vicioso. Mas o mais grave é que se utiliza a interpretação conforme a Constituição para se julgar contrariamente à Constituição! Ou seja, novamente, cria-se um imaginário de que se está julgando com bases democráticas – enfatizando que se está de acordo com a Constituição -, quando, na verdade, a realidade aponta para a afirmação do autoritarismo pelo Judiciário. O caso ilustrado do Supremo Tribunal Federal é o típico exemplo de interpretação conforme a Constituição que é, paradoxalmente, desconforme a Constituição. A Constituição deve prevalecer na aplicação do direito, ainda que em casos complexos. Não se nega a importância dos fatos, nem dos valores sociais. Eles entram também no jogo argumentativo, mas em uma interpretação que valorize o direito e sua história institucional. Porém nos casos apresentados, o fato econômico foi utilizado para enfraquecer a Constituição. Quando isso ocorre, a democracia entra em crise, decorrente do autoritarismo.


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Prática democrática no planejamento de cidades CAROLINA DE MARTINS PINHEIRO

| tualmente, mais de 80% da população brasileira vive em cidades. A imagem consolidada dos grandes centros urbanos é de violência, poluição, favelas, moradores de rua, bairros sem infra-estrutura adequada e serviços públicos precários. Esses quadros, ao mesmo tempo em que incomodam, são assimilados na vida cotidiana da população, tornando-se invisíveis. Com isso, perdemos a capacidade de refletir sobre padrões urbanos complexos e integrados como são as próprias cidades. Nesse contexto, foi instituído o Estatuto da Cidade, em julho de 2001. A nova lei estabelece diretrizes para uma política urbana que garanta o direito de todos a cidades sustentáveis, definido legalmente como o direito das presentes e futuras gerações à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura, ao transporte, aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer. Para que todos tenham direito a usufruir os recursos da cidade, é necessário compatibilizar crescimento urbano, proteção do meio ambiente e qualidade de vida aos habitantes. Essa tarefa é traduzida no Estatuto da Cidade na exigência de um planejamento elaborado, implementado e fiscalizado com intensa participação popular. A relevância de um planejamento para as cidades advém da necessidade básica de instrumentos de gestão para que ações não sejam empreendidas de maneira caótica, o que além de desperdiçar recursos humanos ou materiais, causa danos irreversíveis ao meio ambiente natural e cultural. Normalmente, verificamos a realização de obras nas cidades quando a demanda se apresenta urgente. Essas operações “tapa-buracos” não prevêem respostas duradouras referentes às causas, mas tão somente lidam com seus efeitos em um ciclo vicioso, adiando para um futuro sem datas, soluções reais e adequadas. A importância de um planejamento participativo decorre da possibilidade da po-

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pulação diretamente afetada pelo planejamento de sua cidade vivenciar a complexidade das variáveis técnicas, econômicas, sociais, naturais e culturais envolvidas no espaço urbano. Uma cidade em que todos possam ter condições dignas de vida demanda tanto multidisciplinaridade de saberes profissionais, quanto interação entre linguagens técnicas e saberes leigos, proporcionando uma troca de critérios, visões e necessidades, cujos benefícios repercutem não só no resultado final do planejamento, como no aprendizado de se viver diretamente a democracia. A democracia participativa, para além de uma democracia representativa, é a chave de compreensão do Estatuto da Cidade. Mas não podemos esperar que um cidadão possa, de um dia para o outro, ter voz para se fazer escutado, quando se encontra imerso em mecanismos indiretos de participação e tradicionalmente excluído dos espaços

de decisão política. Nesse contexto, devemos conhecer, aplicar e avaliar a nova norma quanto à sua capacidade pedagógica de desenvolver cidadãos autônomos, conscientes de seus direitos e ativos na formulação de opções. Instrumentos de participação popular no Estatuto da Cidade Estabelecidos os princípios do planejamento participativo das cidades, o Estatuto da Cidade cria vários instrumentos de política urbana, entre os quais se destaca o plano diretor, que é previsto pela Constituição Federal como o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana. Sua importância é central porque as prioridades nele definidas para o ordenamento da cidade deverão, necessariamente, estar contidas também no plano plurianual, nas diretrizes orçamentárias e no orçamento anual do município. Todas as cidades com mais de 20.000 habitantes, in-

tegrantes de regiões metropolitanas ou em que haja pretensões por parte do governo de diferenciar o tratamento de solos subutilizados deverão elaborar seu respectivo plano diretor até outubro deste ano. O plano diretor deverá dispor sobre as áreas urbanas consideradas subutilizadas ou não utilizadas e sobre as conseqüências relacionadas ao uso, parcelamento e edificação do solo, às possibilidades de desapropriação para reforma urbana e à cobrança de tributos. É no plano diretor também que poderão ser incluídos, por exemplo, critérios de destinação de áreas para construção de escolas, centros de lazer ou comerciais, bem como sobre abertura de novas ruas e linhas de transporte público. Para garantir a participação da população na elaboração do plano diretor, o Estatuto da Cidade estabeleceu a realização obrigatória de audiências públicas, nas quais os debates devem ser travados com cidadãos e represen-

tantes de grupos organizados dos mais diversos segmentos da comunidade. Os documentos relacionados ao processo de elaboração do plano diretor são públicos e devem estar ao alcance de qualquer interessado. A responsabilidade de assegurar a participação popular é atribuída aos poderes legislativo e executivo, sob pena de os agentes públicos incorrerem em improbidade administrativa. As audiências públicas não se referem somente à fase de formulação do plano diretor. Após a aprovação pela Câmara Municipal (no caso do Distrito Federal, a Câmara Legislativa), os debates com a sociedade continuam nas fases de aplicação e fiscalização do plano. Trata-se da gestão democrática das cidades, que deve contar também com a instituição de órgãos colegiados de política urbana em nível nacional, estadual e municipal, e com a iniciativa popular de projeto de lei, planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.


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Autonomia: pressuposto e objetivo da participação popular Procedimentos legais que prevêem a participação popular significam grande avanço democrático. No entanto, não há garantia quanto ao real funcionamento de tais instrumentos. Como o próprio Estatuto da Cidade sugere, a análise de uma lei não pode se ater a aspectos textuais, pois toda norma apenas pode ser compreendida se integrada ao contexto em que é promulgada. É imprescindível analisar as possibilidades da elaboração participativa do plano diretor na conjuntura das sociedades modernas. O modelo de desenvolvimento moderno baseia-se na democratização política por meio do voto de todos os cidadãos. Esse foco acabou por consolidar a ideologia da competência técnica para ocupar espaços de decisão política, ou que a cidadania foi configurada de maneira sempre mediada pelo Estado. Aprendemos a nos recolher diante decisões tecnicistas e elitistas para problemas sociais. Diante desse quadro, como efetivar a participação dos excluídos do direito à cidade nas discussões sobre o planejamento urbano, quando são eles que tiveram sua cidadania historicamente reduzida ao voto? Se o intuito do Estatuto da Cidade é modificar o padrão urbanístico baseado na exclusão social, é preciso lembrar que elementos básicos de cidadania ativa não são vivenciados por aqueles com os quais queremos dialogar. Saber é poder. Os saberes profissional, científico e legal, formam a linguagem sem a qual não há como alcançar esferas de decisão. Ignorância técnica e falta de auto-estima geram sensação de impotência. Não por acaso, a participação democrática exige tanto o reconhecimento por si mesmo e pelos outros da con-

dição humana e cidadã do participante, quanto uma base instrumental, definida por conhecimentos técnicos e populares com os quais seja possível criticar a realidade. Tomemos o Distrito Federal. A Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Habitação (SEDUH) publicou a revista da 1ª Audiência Pública Geral do Plano Diretor de Ordenamento Territorial do Distrito Federal (PDOTDF), disponibilizando histórico, estudos, mapas da cidade; princípios, objetivos e descrições do processo de elaboração do PDOT-DF. Foram realizadas 160 audiências locais e regionais que subsidiaram a audiência geral em processo que contou com a participação de 13 mil pessoas. Todo esse registro é fundamental para cumprir com os requisitos de publicidade e transparência do plano diretor, não deixando dúvidas de que qualquer cidadão pode ter acesso ao material. Contudo, se tal divulgação indica a igualdade entre todos os envolvidos no processo de elaboração do plano diretor, ela não dimensiona índices qualitativos relacionados aos setores que se fizeram representar. Não é possível avaliar os reais interesses daqueles que, conscientes da precariedade de sua situação na cidade, não possuem autonomia

para expressá-la ou mesmo para comparecer às discussões públicas. A tarefa de compatibilizar planejamento das cidades com participação popular exige, para além do cumprimento estatístico da norma, habilidades pedagógicas que possam mobilizar a camada mais pobre da população, mediar interesses conflitantes sem impor soluções verticais e, por fim, coordenar um processo cuja importância não deve se ater somente aos resultados, mas principalmente na aprendizagem democrática verificada ao longo dos debates. Democracia direta Em busca de novas habilidades pouco exigidas pela democracia representativa, parcerias foram instituídas e estratégias diferenciadas de consultoria foram traçadas desde a publicação do Estatuto da Cidade. Os Ministérios das Cidades e da Ciência e Tecnologia lançaram edital para que grupos de extensão de Universidades Públicas e Confessionais apresentassem planos de elaboração e revisão de Planos Diretores Participativos. Cinqüenta projetos foram selecionados no início de fevereiro e dois milhões de reais serão gastos até outubro de 2006. Organizações não governamentais, como o Ins-

tituto Pólis, prestam assessoria a vários municípios e realizam cursos para capacitação de profissionais e leigos sobre o Estatuto da Cidade e para elaboração de planos diretores. Vários manuais foram publicados no intuito de munir prefeituras e cidadãos de orientações técnicas e pedagógicas para a elaboração efetivamente participativa dos respectivos planos. Tais iniciativas constituem ponto de partida para a construção de modelos participativos de planejamento urbano. O sucesso da implementação do Estatuto da Cidade, todavia, dependerá da capacidade dos governos, das universidades, da sociedade civil organizada e de outros grupos sociais de desconstruírem mecanismos aparentemente democráticos, que não estimulam, de fato, a participação social. Nos locais em que já há mais acúmulo de experiências de mobilização, organização e negociação, o diálogo entre os vários atores sociais tende a ser mais consolidado. Porém, mesmo nestes locais, é premente a implementação de projetos de educação popular que possam estimular o desenvolvimento de subjetividades sufocadas ao longo do tempo. Essa reflexão aprofunda o sentido constitucional de participação democrática, na

medida em que redimensiona a participação no plano diretor para a efetivação da democracia direta: o planejamento das cidades não mais é elaborado para, mas com os indivíduos excluídos do direito à cidade. Não se trata mais de estabelecer medidas assistencialistas, que conduzem cidadãos e não geram autonomia e responsabilidade cívica. A autonomia apresenta-se como função que não se concretiza por sua mera definição em normas e programas institucionais, mas em seu exercício cotidiano, onde há a possibilidade de reunir detalhes da situação e construir propostas e soluções coletivas, sem ficar na dependência daquele que detêm mais saber técnico ou maior influência política. Esta deve ser a medida de legitimidade das audiências públicas previstas no Estatuto da Cidade. O critério de aferição da participação popular no processo de elaboração dos respectivos planos diretores deve ser baseado, portanto, na abertura e organização dos atores sociais envolvidos para compartilhar conhecimentos técnicos e populares. Somente com uma visão pedagógica desse processo é que cidadãos excluídos da cidade podem se conscientizar de sua cidadania ao mesmo tempo em que a exercitam.

Para que todos tenham direito à cidade, é preciso crescimento urbano, proteção do meio ambiente e qualidade de vida aos habitantes

Educação para além de novo padrão urbanístico As exigências do Estatuto da Cidade não são meramente procedimentais, mas relacionais, ou seja, requerem uma análise da qualidade das relações dos participantes entre si, e deles com sua realidade. Diante de tais requisitos, é preciso ter em mente que o novo instrumento normativo

das cidades pode de fato alcançar seu objetivo e estimular a criação de mecanismos construtivos que mobilizem a população para formas organizativas e, com isso, gerar uma esfera pública pujante de desejos e interesses de cidadãos que não temos o costume de escutar. Contudo, pode

também servir para reduzir esse universo aos que têm poder para se fazer escutados e perpetuar um padrão urbanístico altamente excludente e predatório. Enfim, a efetiva inserção daqueles que se encontram em situações precárias em relação à moradia, saneamento

ambiental, transporte público, serviço escolar, acesso a locais de lazer, entre outros, e a manutenção de um ambiente de qualidade nas cidades para as futuras gerações não serão possíveis em relações verticais ou assistencialistas. A via para as cidades sustentáveis, parafraseando Paulo Freire, é a da

educação, que justamente por ser educação, tem de ser corajosa, propondo ao povo a reflexão sobre si mesmo, sobre seu tempo, sobre suas responsabilidades, sobre seu papel na construção, não só de um novo padrão urbanístico, como de novos rumos para a democracia no Brasil.


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Construção simbólica da segurança pública GRUPO DE PESQUISA “CIÊNCIA E CONTROLE SOCIAL”

análise do significado do referendo recém ocorrido sobre a comercialização de armas e munições no contexto da participação cidadã perpassa, necessariamente, a propaganda eleitoral gratuita das frentes parlamentares “pelo direito da legítima defesa” e “por um Brasil sem armas”. Esta afirmação não decorre de uma crença idílica na capacidade dos programas eleitorais em fornecer instrumentos e capacitar o cidadão para sua tomada de decisão, mas da percepção de que se pode buscar, a partir da disputa daqueles que são, aparentemente, dois projetos hegemônicos que figuraram na recente campanha do desarmamento no Brasil, os interesses envolvidos na discussão e que representam uma parte do problema da segurança, tanto pública quanto privada. Mencionamos dois projetos hegemônicos, pois, numa primeira aproximação, as propagandas gratuitas refletem visões de mundo diferentes: enquanto o “programa do NÃO” transmitiu a idéia de que o desarmamento representava a tentativa de diminuição de direitos individuais, o “programa do SIM” se baseou num suposto consenso da sociedade civil a respeito do papel das armas de fogo na referida problemática da segurança. A problemática levantada pressupõe, portanto, a descrição dos argumentos expostos pelas frentes parlamentares que conformaram a discussão nacional sobre o desarmamento. Pressupõe também, e principalmente, a verificação daquilo que não foi discutido pelos partidários do SIM e do NÃO. Logo de início, o que pôde ser observado nas propagandas das frentes parlamentares foi o “tom” dos apresentadores e locutores dos programas. O programa do NÃO foi marcado por uma apresentadora que, por sua postura e tom de voz, transmitia valores masculinos como raiva, intolerân-

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Frente Parlamentar Pelo Direito da Legítima Defesa: - A proibição da venda de armas representaria a supressão de um direito individual; - O desarmamento alcançaria apenas o “cidadão de bem”. O “bandido” não seria desarmado; - O desarmamento do “cidadão de bem” aumentaria a quantidade de crimes, pois os “bandidos” teriam a certeza de que não encontrariam reação armada; - O governo não investiria em segurança pública e quereria retirar do cidadão a sua possibilidade de defesa; - A quantidade de armas de “cidadãos de bem” que cairia nas mãos de “bandidos” seria ínfima; - Pessoas do Norte e interior dos estados brasileiros não poderiam se defender dos “bandidos”.

Frente Parlamentar por um Brasil Sem Armas: - Os jovens brasileiros estariam morrendo vítimas de armas de fogo; - A quantidade de armas de fogo em circulação no Brasil seria enorme (17.000.000, 21.000.000, 17.500.000 – conforme as variações de fonte); - A maioria das vítimas das armas de fogo não seriam “bandidos”, mas “cidadãos de bem”; - Arma na mão de um “cidadão de bem” representaria um risco maior de dano para si e sua família; - “Cidadãos de bem” armados poderiam tornar-se criminosos (alvos preferenciais – mulheres) - As armas compradas legalmente cairiam - em grandes proporções – nas mãos de “bandidos”; - Desde o início da campanha do desarmamento, as estatísticas criminais apontariam a redução do número de mortes por armas de fogo; - A proibição do comércio de armas reduziria o número de armas em circulação; - O desarmamento faria parte de uma estratégia de segurança pública.

Em relação ao que não foi discutido, destacamos: cia, deboche (quando o assunto era o programa do SIM). Já o programa do SIM foi caracterizado, inicialmente, pela presença constante de chavões da cultura de paz reproduzidos por atores e atrizes. Na última semana de veiculação dos programas gratuitos, o programa do SIM passou por uma reformulação naquilo que foi identificado acima como “tom” da propaganda: diante de pesquisas que indicavam que a comercialização de armas e munições não seria proibida, o pro-

grama da frente parlamentar “por um Brasil sem armas” incorporou aquilo que, segundo se diz, seria um dos grandes trunfos da campanha do NÃO – a intolerância com o “bandido” e a superexploração do medo e da sensação de insegurança. A partir desta reformulação da propaganda veicularam-se frases como “quem tem direito à arma é quem pode comprá-la”, ou seja, “trata-se da defesa dos direitos dos ricos”, assim como a repetição de estatísticas sobre a quantidade de

“armas de cidadão de bem que foram parar nas mãos de bandidos” e a exposição grotesca de vítimas de acidentes com armas passaram a ocupar o espaço antes destinado a um pseudodebate sobre a paz. De forma geral, os principais argumentos levantados pelas frentes parlamentares apontam para a idéia que, entendemos, caracterizou a discussão: a idéia de proteção, vinculada ao senso comum sobre a criminalidade. Nos referimos, pois, aos seguintes argumentos:

- As possíveis conseqüências normativas da vitória do SIM ou as possíveis conseqüências normativas da vitória do NÃO; - Os mecanismos (ou a ausência destes) de controle de armas no Brasil; - O controle do arsenal das empresas de segurança privada; - O controle e treinamento das pessoas contratadas pelas empresas de segurança privada (que podem utilizar armas de fogo); A fabricação de armas no Brasil; - E o mais importante: O que de fato seria proibido, se a compra de armas já era – como regra – altamente restrita?


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CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | DOMINGO, 7 DE MAIO DE 2006 Os problemas relacionados ao referendo são o ponto de partida para a reflexão sobre democracia e segurança. Neles encontramos pressuposições sobre a dinâmica da criminalidade e participação popular, pois a forma com que foi proposta e conduzida esta campanha é muito reveladora da visão da população, dos políticos e do governo sobre democracia e segurança. Os instrumentos de realização da democracia direta devem ser incentivados a fim de que não caiamos em mera formalidade participativa em eleições. A primeira regra para não queimar essa oportunidade é a de oportunizar a decisão cidadã sobre temas relevantes para a vida nacional. A segunda é a clareza dos problemas a serem tratados, que deve ser cuidadosamente definidos. Infelizmente não foi isso que aconteceu no referendo recém realizado. Poucos eleitores conheciam o teor do Estatuto do Desarmamento, os limites e as condições que impunha para o porte e registro de armas, sendo levados a crer que votavam pela liberdade de comércio de armas ou sua proibição. O próprio legislador, quando elaborou a Lei 10826/03 e o Decreto 5123/04 também não levou em conta a condicionalidade do referendo e regulou o comércio de armas pelos estabelecimentos comerciais. Como ficariam os artigos 4º da lei e 20 e 21 do decreto no caso da vitória do SIM? Esses dispositivos normatizam o comércio de armas e suas condições. Como o referendo se referiu ao artigo 35 da lei mencionada, fica evidente o problema sistêmico da lei e seu caráter paradoxal. Os problemas continuam no próprio procedimento de aferição da vontade popular, quando a pergunta ao eleitor é construída reproduzindo o conteúdo legal do artigo 35 da lei, com evidente efeito deformador, pois, metodologicamente, não se faz uma sondagem de opinião pela negativa quando a resposta é SIM ou NÃO, pois isso transforma a negação em afirmação e a afirmação em negação. Rigorosamente, quem não quer armas diz SIM e os que as querem dizem NÃO. Tal situação assumiu uma complexidade ainda maior com o sorteio, que introduziu um problema adicional para a ordem costumeira do discurso de senso comum: numerar o NÃO com 1 (um) e SIM com 2 (dois). Essa prática serve para candidaturas e não para duas posições supostamente contrárias perante um problema. A prática do marketing tão

comum nas eleições foi introduzida no referendo cuja campanha produziu um conjunto de dados errados, de cenas emocionais, de conceitos distorcidos, de lacunas planejadas que, no lugar de esclarecer o eleitor, o envolveu em argumentos afetivos, em visão ultrapassada de direito, como a do esquecimento da primazia do direito público sobre o privado, do direito coletivo sobre o particular, além de não mencionar o fundamental direito à vida que é a base de nosso ordenamento. O entendimento marqueteiro segundo o qual a imagem é mais forte que as palavras levou à apresentação de artistas que podem ser muito bons no que fazem, mas não são os mais adequados para

A primeira regra é a de oportunizar a decisão cidadã sobre temas relevantes para a vida nacional esclarecer. É sempre bom lembrar que os espetáculos trabalham com a sentimentalidade passageira, com a emoção descartável e não com a verdadeira solidariedade. Além disso, dividir a sociedade entre “pessoas de bem” e “bandidos”, além de ser uma atitude preconceituosa, nega a realidade que mostra a significação maior de acidentes, lesões e mortes por armas de fogo, justamente entre as denominadas “pessoas de bem”. Com essas práticas o referendo assumiu mais o caráter de um espetáculo futebolístico do que uma aferição democrática da opinião da cidadania, além da superficialidade no trato dos temas envolvidos. Como se não bastassem esses problemas, o governo federal resolveu assumir uma

das posições. O pano de fundo dos problemas do referendo se traduz pelo fato de tratar questão que não enfrenta o problema da violência no Brasil. A questão da segurança pública provoca vários sentimentos. O primeiro é o de medo, o segundo é de orfandade, o terceiro é o de dependência nos momentos de violência, o quarto é o de impotência. Não existe um sistema de segurança que abarque as Corporações, os Governos, o Poder Judiciário, o Ministério Público, as Defensorias Públicas e a Sociedade Civil. A juventude brasileira faz parte da agenda dos detentores do poder na atualidade, mas não pelo viés da necessidade de proteção e sim pelo viés punitivo, tal como a proposta de plebiscito para decidir sobre a redução da maioridade penal. Já o acolhimento e a prevenção, como se vê, estão fora de questão. Quando o “bandido” aparece nas falas de grupos articulados em torno de reivindicações punitivas ele prescinde de definições, pois se parte do pressuposto (não equivocado) de que há uma visão geral sobre a caracterização e as possibilidades de identificação dos marginais. Muitas vezes está implícita exatamente a juventude que os caracteriza e identifica como responsáveis pela violência letal, que se procurou combater com a proibição da comercialização das armas e munições. Podemos identificar como conseqüência desta campanha o reforço de estereótipos que orientam o controle social formal (referente ao Estado e ao sistema penal) e informal (referente ao sistema social, religioso, educacional etc.). Tais instâncias de controle atuam segundo determinadas expectativas sóciopolítico-econômicas que estão estreitamente relaciona-

das às visões do senso comum sobre as causas da violência. Trata-se de uma visão bastante restrita de violência e de suas origens e responsabilidades, onde não se cogita a identificação do próprio sistema de controle como produtor e reprodutor de violência, inclusive com grande responsabilidade sobre o tráfico de armas, que alimenta e está relacionado a um dos grandes problemas da atualidade brasileira, que é o tráfico de drogas.

O problema do referendo é não enfrentar a questão da violência no Brasil É neste sentido que pensar na proibição da comercialização e não na proibição da fabricação de armas se torna a saída mais óbvia, pois não é interessante que as armas deixem de existir, dentre outras razões pela participação das mesmas nas exportações brasileiras, nem é interessante que haja um controle mais cuidadoso da circulação das armas, pois este controle poderia prejudicar o comércio ilegal que se faz com armas legais, inclusive da polícia e do exército. Existem mecanismos de controle que não fizeram parte da discussão ocorrida com o referendo, como é o caso do rastreamento, que consiste em verificar a procedência da arma desde a apreensão, percorrendo-se toda a cadeia de proprietários, venda, até a fabricação. Informações decorrentes de rastreamento poderiam desvendar o caminho percorrido pelas armas, as rotas do tráfico e os momentos em que o controle deve ser mais efetivo para im-

pedir que as armas cheguem ao crime. A proibição acabaria com os poucos registros de que podemos dispor para identificar a procedência das armas, dificultando ou impedindo o controle. Em nosso sistema penal o crime é visto como um fenômeno individual e a arma nele envolvida figura apenas como prova material no processo ou no inquérito, desconsiderandose a análise da origem e das formas com que foi disponibilizada. Acreditamos que a segurança é pública quando está a serviço da coletividade e não de interesses particulares. O que se vê, no entanto, com a tendência privatizadora na área penal (essencialmente pública), que atinge atualmente tanto o sistema de segurança quanto o sistema prisional, é a elitização e a mercantilização da proteção social, uma vez que a restrição ao comércio de armas e munições não atingiria as empresas privadas de segurança, cujos membros são, muitas vezes, policiais expulsos das corporações por condutas irregulares ou criminosas. O que esta restrição alimentaria, por fim, é uma ilusão de segurança, de controle e de ação do poder público para resolver o problema das mortes e lesões causadas por armas de fogo no Brasil, grande parte das quais é produzida pela própria polícia. Trata-se, portanto, de uma construção simbólica da segurança pública, por não ter uma função real que justifique as perdas produzidas para a democracia, decorrentes de um debate e de uma campanha mal conduzidos. Trata-se, também, de uma tentativa de produzir significados democráticos para o debate em torno de uma falsa questão. O fato de sermos contra qualquer tipo de armamento não nos impede de pensar desta forma.


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Constitucionalismos perversos BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

s últimos vinte anos foram abundantes em processos constitucionais – assembleias ou comissões constituintes convocadas com o objectivo de elaborarem novas Constituições – na Europa Central e de Leste, na América Latina, na África e na Ásia. Assistimos a uma onda de constitucionalismo que provavelmente está agora a chegar ao fim. As razões que estiveram por detrás deste movimento constitucional variaram de país para país, mas estiveram em geral relacionadas com a criação ou restauração de regimes democráticos depois de períodos de governo autoritário, do fim do comunismo na Europa e das ditaduras civis e militares na América Latina ao fim do apartheid na África do

O

Sul e do governo revolucionário de Moçambique. Esta onda constitucional, de que Portugal e Espanha foram iniciadores, criou expectativas democráticas em muitos milhões de cidadãos para quem a democracia era um sonho todos os dias esmagado por governos discricionários e por vezes corruptos. Entre tais expectativas, as mais elementares eram as seguintes: governo livremente eleito, sujeito à Constituição e à lei e às opções dos cidadãos regularmente manifestadas; garantia do respeito dos direitos humanos e da promoção do bem-estar da população, em geral, e da mais vulnerável, em especial; sistema judicial independente e eficiente com garantia de efectivo acesso ao direito e à justiça; ausência de discriminação com base no sexo, raça, etnia ou religião; serviços

públicos fornecendo aos cidadãos bens colectivos básicos (saúde, educação, segurança social, transportes); política e administração pública transparentes e livres de corrupção. Apesar de elementares, estas expectativas têm sido frustradas na grande maioria dos casos: governos autoritários sob fachada democrática; sistema judicial ineficiente e dependente do poder político; corrupção generalizada; degradação do bem-estar; privatização dos serviços públicos e aumento da desigualdade social. Em geral, pode dizer-se que a última onda constitucional não conseguiu estabelecer uma articulação virtuosa entre democracia e bem-estar social. Pelo contrário, sondagens na Europa pós-comunista e na América Latina e na África revelam que, para sectores sig-

nificativos da população, a democracia significou a queda do nível de vida. Mais preocupante ainda é o facto de o constitucionalismo ter sido, em tempos recentes, manipulado por poderes políticos interessados em beneficiar da legitimidade democrática que ele confere para atingir objectivos que redundam na redução da democracia. O ano de 2005 conheceu duas dessas tentativas, muito diferentes entre si, mas convergentes na orientação política, no instrumento de que se serviram (o referendo) e também no facto de ambas terem fracassado. Na União Europeia, os franceses e os holandeses disseram não a um projecto constitucional redigido nas costas dos cidadãos europeus e mais interessado em constitucionalizar o mercado que a democracia. Ao final de dezembro

os Quenianos disseram não a um projecto constitucional que nasceu como um dos mais progressistas e participados de África, mas que nos últimos anos fora totalmente adulterado pelo Presidente Kibaki para concentrar em si e no governo central poderes excessivos e pouco susceptíveis de controle democrático. O facto de ambas as tentativas terem falhado é, em si mesmo, animador. Significa que, quando o processo constitucional é usado para virar a soberania do povo contra o povo e o exercício da cidadania contra a cidadania, dizer não à Constituição é acto de afirmação democrática. Que isto aconteça tanto na Europa como em África é sinal de que a globalização dos mercados livres terá de conviver cada vez mais com a globalização de cidadãos livres.


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