#OCaminhoDoCoração - Passo 1: “No princípio, o Amor”

Page 1

Este livro é propriedade, no seu todo e em cada uma das suas partes, da Rede Mundial de Oração do Papa. O seu acesso, total ou parcialmente, é gratuito. O conteúdo não pode ser modificado, total ou parcialmente, sem autorização prévia concedida pelo Secretariado Internacional. A Rede Mundial de Oração do Papa autoriza a distribuição gratuita deste livro. O seu conteúdo pode ser reproduzido total ou parcialmente e apresentado em diversos suportes (virtuais ou físicos), mediante indicação da fonte Rede Mundial de Oração do Papa

É proibida a sua venda ou doação onerosa sem autorização expressa emitida pelo Secretariado Internacional

Passo 1 I NO PRINCÍPIO, O AMOR
2

QUERIDOS AMIGOS NO SENHOR

O Caminho do Coração é o itinerário espiritual proposto pela Rede Mundial de Oração do Papa É o fundamento da nossa missão, uma missão de compaixão pelo mundo Inscreve-se no processo iniciado pelo Papa Francisco com a Exortação Apostólica Evangelii gaudium, «A Alegria do Evangelho»

Constitui o resultado de um longo processo impulsionado pelo P Adolfo Nicolás, então Superior Geral da Companhia de Jesus No início elaborou-se um esquema, designado então de marco referencial, com uma equipa internacional liderada pelo P Claudio Barriga SJ Este itinerário foi apresentado ao Papa Francisco num documento intitulado Um caminho com Jesus em disponibilidade apostólica (agosto de 2014) Apresentava-se uma nova forma de compreender a missão do Apostolado da Oração, numa dinâmica de disponibilidade apostólica

O Santo Padre aprovou-o em dezembro de 2014

O Caminho do Coração é essencial para a recriação desta Obra Pontifícia como Rede Mundial de Oração do Papa Constitui um aprofundamento, para os nossos dias, da tradição espiritual do Apostolado da Oração, e articula, de uma forma original, elementos essenciais deste tesouro espiritual com a dinâmica do Coração de Jesus É a chave de interpretação da nossa missão Por isso apresentamos em 2017 um comentário a este itinerário espiritual, designado agora «Dinâmica interna do passo», para ajudar as equipas nacionais da Rede Mundial de Oração do Papa a entrar na dinâmica interior do Caminho do Coração e a aprofundá-lo

Passo 1 I NO PRINCÍPIO, O AMOR
3

Com o desejo de desenvolver o processo de recriação, sentimos a necessidade de ampliar os conteúdos escritos. Assim, iniciamos em 2017 um trabalho de elaboração e organização dos materiais que constituem hoje os 11 livros de O Caminho do Coração. Este trabalho realizou-se com uma equipa internacional liderada por Bettina Raed, diretora regional da Rede Mundial de Oração do Papa na Argentina e Uruguai. Assim, a partir da pátria do Papa Francisco, e com o apoio de diversos companheiros, quer jesuítas quer leigos, foi articulado este trabalho. Agradeço de modo particular a Bettina por toda a sua disponibilidade e pelo seu trabalho de elaboração e coordenação.

Agradeço também a TeleVid, das Congregações Marianas da Colômbia, pelo seu apoio na conversão deste material num suporte acessível ao nível digital e visual. www.caminodelcorazon.church (em castelhano).

Espero que estes conteúdos ajudem a propor a missão de compaixão pelo mundo com criatividade (em retiros espirituais, sessões de formação, os encontros das Primeiras Sextas-feiras, etc.). É o fundamento da nossa missão, o nosso modo específico de entrar na dinâmica do Coração de Jesus.

Diretor internacional da Rede Mundial de Oração do Papa

– inclui o Movimento Eucarístico Juvenil Cidade do Vaticano, 3 de dezembro de 2019, Dia de São Francisco Xavier e dos 175 anos do Apostolado da Oração

Passo 1 I NO PRINCÍPIO, O AMOR
4

Esquema para orientar o passo

Palavra-chave: AMOR

Objetivo: Reconhecer como somos amados

Atitudes-chave: Reconhecer aquilo que me dá vida, reconhecer a gratuidade do amor

O que se pretende alcançar – Fruto: Ser agradecido Dinâmica interna do passo: Do «não me dar conta» ao «reconhecer e maravilhar-me»

O amor na minha vida

Marco referencial

A Palavra primordial e permanente na nossa vida de fé é o amor eterno do Pai.

É o que Ele continuamente nos quer dizer e que se reflete em tudo aquilo que faz diariamente por nós: amo-te É essa a sua essência, «Deus é amor» (1 Jo 4, 8), não pode deixar de nos amar O AMOR é o modo como Deus nos olha e acompanha sempre, independentemente do curso que a nossa vida tenha tomado, mesmo que nos tenhamos afastado d’Ele pelo nosso pecado O seu amor é incondicional e imutável É o princípio e o fundamento do nosso caminho espiritual, pois a nossa vida começa graças ao seu amor, que a sustenta, e um dia será recebida no seu amor Reconhecer esse amor leva-nos a corresponder-lhe

Dinâmica interna do passo

No princípio, o Amor O que significa amar e ser amado? O que coloco dentro da palavra «amor»? Façamos um momento de silêncio

Tivemos a experiência de ser amados pelos nossos pais, pelos nossos amigos, por alguém? O Amor está no início, precede-nos, deu-nos vida, a vida, inclusive quando foi ferido Posso recordar os rostos das pessoas que me amaram, me quiseram e que, atualmente, me continuam a querer bem Disse São Paulo: «O amor é paciente, o amor é prestável, não é invejoso, não é arrogante nem orgulhoso, nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita nem guarda ressentimento. Não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais passará. As profecias terão o seu fim, o dom das línguas terminará e a ciência vai ser inútil» (1 Cor 13:4-8)

Passo 1 I NO PRINCÍPIO, O AMOR
6

Mesmo que eu não consiga reconhecer este amor na minha vida, há uma certeza, ainda que que não se apreenda de imediato: aquele que é a fonte da vida, do universo visível e invisível amou-me desde sempre e diz-me: «Amo-te» «Eis que eu gravei a tua imagem na palma das minhas mãos» (Is 49, 16) Ama-me, não de uma maneira geral, mas de uma forma concreta e pessoal, a ponto de ter dado a sua vida por mim e por nós até ao sangue, para que possamos reconhecer toda a altura, largura e profundidade do seu amor por cada um de nós O seu Amor é tão grande, que os oceanos não o poderiam conter nem os rios o poderiam apagar! Este Amor é impossível de traduzir e de transmitir, mesmo com os termos mais belos, pois é um encontro É como quem se enamora Todos nós lemos livros e romances sobre o tema do amor e há filmes sobre o mesmo que nos emocionam, mas quando uma pessoa se enamora, tudo muda, entra num mundo novo

Com a morte e ressurreição de Jesus Cristo surgiu um novo mundo. «A ressurreição diz-nos que o caminho do amor, seguido por Jesus de forma incondicional até à entrega da sua própria vida, não é uma senda que desemboca no nada, não é um beco sem saída. O caminho do amor também é o caminho que nos abre à vida» (P. Louis Evely) Em Jesus Cristo temos a certeza de que o amor existe e de que nós somos amados Diz-nos São João, na sua Primeira Carta: «Nisto conhecemos o amor: em Ele ter dado a sua vida por nós» (1 Jo 3, 16) O amor é o caminho, a verdade e a vida

Por conseguinte, é essencial reconhecer este amor nas nossas vidas e dar graças ao Senhor, fonte de todo o bem Reconhecê-lo é estar agradecido

Para aprofundar. Recursos. Anexo Um. «Amar. O que é Amar?»

Passo 1 I NO PRINCÍPIO, O AMOR
7

Entrada segundo a perspetiva bíblica

Que poderíamos dizer que não soe a repetição acerca da presença, na Bíblia, do Amor de Deus pelo seu povo? Onde quer que abramos a Bíblia, encontraremos diversas manifestações do Amor de Deus pela sua criação, especialmente pelos homens e mulheres criados à sua imagem e semelhança

A Bíblia encerra, em todos os seus livros, o relato da experiência do amor de Deus feito por comunidades, por homens e mulheres que reconhecem, nas suas vidas, a presença infinita do amor de Deus, que os precede, os abarca e os cumula É a narração da história de amor e de salvação do Criador para com as suas criaturas, inspirada por Deus e feita por quem viveu essa experiência nas suas vidas É uma Palavra para todos, que não passa de moda e que é dirigida a cada um em particular Palavra viva e eficaz, sempre atual para todos, que nos convida a fazer a nossa própria experiência de amor e salvação, descobrindo-a e tecendo-a com o Senhor, nos seus textos. O que têm para nos dizer estas palavras de amor dirigidas por Deus ao homem, noutros tempos? A experiência do amor de Deus narrada na Bíblia atualiza-se na vida de cada um.

Encontramos inúmeras imagens de Deus como amante eterno, sempre atento à sua criatura: «Amei-te com amor eterno» (Jr 31, 3); como Pai que cuida e protege os seus filhos com amor: «Porventura uma mãe esquece ou deixa de amar o seu próprio filho? Pois bem, ainda que ela o esqueça, Eu não te esquecerei, diz o Senhor; eis que Eu gravei a tua imagem na palma das minhas mãos» (Is 49, 15); «Tu és meu filho, eu gerei-te hoje» (Sl 2, 7) O Senhor é o pastor que cuida das suas ovelhas com um esmero incansável, sobretudo das mais frágeis e mais necessitadas do seu amor e ternura: «É como um pastor que apascenta o rebanho, reúne-o com o cajado na mão, leva os cordeiros ao colo e faz repousar as ovelhas que têm crias» (Is 40, 11)

A Bíblia é a história do amor de Deus pelo seu povo e das respostas, nem sempre de amor, dadas por este ao seu Criador e Senhor A Bíblia descreve-nos um amor que nos cria, que cuida de nós, que nos procura, para estarmos com Ele: «O Senhor é meu pastor, nada me falta. Em verdes prados me faz descansar e conduz-me às águas refrescantes. Reconforta a minha alma e guia-me por caminhos retos, por amor do seu nome» (Sl 23, 1-3). O amor do Senhor é um amor que fortalece, que reconstrói, que levanta o caído e que é fiel desde sempre. «Fui buscar-te aos confins da terra, chamei-te das regiões remotas Eu disse-te: «Tu és o meu servo Foi a ti que Eu escolhi, e não te rejeitarei»» (Is 41, 9)

Passo 1 I NO PRINCÍPIO, O AMOR
9

Deus toma a iniciativa: Ele ama-nos tanto e com tanta força que o seu amor é criador, não pode amar sem fazer com que o ser amado entre na sua vida No seu amor infinito, Deus comunica-nos a sua vida e convida-nos a entrar nela Assim, diz-nos o apóstolo João: «Nisto consiste o amor: em não termos sido nós que amámos a Deus, mas em ter sido Ele que nos amou e enviou o seu Filho» (1 Jo 4, 10)

O próprio Jesus nos fala do seu amor por nós e do amor de seu Pai: «como o Pai me amou, assim Eu vos amei» (Jo 15, 9)

Deus não pode deixar de amar e o seu amor não pode decrescer nem diminuir devido a qualquer acontecimento ou a qualquer ato nosso Na sua Carta aos Romanos, Paulo descreve longamente a profundidade e a qualidade do amor de Deus como uma realidade inimaginável, impossível de abarcar, tão forte que nada nem ninguém nos poderia separar dele. Para São Paulo, o amor de Deus traduz-se na entrega de Cristo Jesus, que deu a sua vida por nós, e nada nem ninguém nos poderá separar nem privar desse amor. Nada nem ninguém fará com que o Senhor nos ame menos.

«Quem nos separará, pois, do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada? […] Mas de todas estas coisas saímos mais que vencedores por aquele que nos amou Porque eu estou certo que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas presentes, nem as futuras, nem as potestades, nem a altura, nem a profundidade, nem nenhuma outra criatura nos poderá separar do amor que Deus nos manifesta em Cristo Jesus, Senhor nosso» (Rm 8:35-39)

● «Amei-te com amor eterno» (Jr 31,3)

● «Porventura pode uma mulher esquecer-se do seu filhinho, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas? Ainda que uma mulher se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria. Eis que Eu gravei a tua imagem na palma das minhas mãos» (Is 49,15)

● «Nisto consiste o amor: em não termos sido nós que amámos a Deus, mas em ter sido Ele que nos amou e enviou o seu Filho» (1 Jo 4,10)

● «Deus escolheu-nos em Cristo antes da criação do mundo» (Ef 1,4)

● «Nada nos poderá separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, Senhor nosso» (Rm 8,39).

Passo 1 I NO PRINCÍPIO, O AMOR
10

Exercício: Proponho-te que leias detidamente o Salmo 135 (136), saboreando as palavras que o salmista coloca na boca do povo de Israel Detém-te nas palavras que mais ressoem dentro de ti e repete-as no teu íntimo como uma música que acompanhe o ritmo da tua respiração

No fim, pega no teu caderno de apontamentos e põe por escrito a tua própria ação de graças, evocando a ação do amor de Deus na tua história pessoal

Passo 1 I NO PRINCÍPIO, O AMOR
11

A view from the perspective of Faith

O amor

«O Verbo de Deus, por quem foram feitas todas as coisas, Ele próprio feito homem entrou como homem perfeito na história do mundo, assumindo-a É Ele que nos revela que Deus é Amor» (Gaudium et spes, 38)

Em Cristo Jesus, nós, cristãos, reconhecemos «a imagem visível de Deus invisível» (Cl 1, 15). Por meio d’Ele vislumbramos, tanto aquilo que Deus é, como aquilo que nós, seres humanos, somos chamados a ser: plenitude de recetividade e de doação. Na doação total de Deus em Jesus e de Jesus em Deus manifesta-se o mistério «do qual todos recebemos graça sobre graça» (Jo 1, 16).

No princípio só era Deus e Deus é amor Amor que é um comunicar-se, um dar-se e, nessa autodoação, dá origem à criação, ao universo inteiro A nossa existência só se pode compreender sendo nós criaturas de Deus Criaturas fruto do amor de Deus

O Ser uno e único comunica-se a nós desde o mais profundo de si mesmo, como Fonte original (Pai), como Recetáculo com capacidade de acolher (Filho) e como Fluxo constante de devir, para deixar que os seres advenham, nasçam para si mesmos (Espírito) Somos convidados a participar desta relação, sem que em momento algum tenhamos deixado de estar nela Em Deus está contida toda a realidade Não existe realidade fora de Deus

No seu amor por nós, o Deus de Jesus Cristo quis revelar-se ao ser humano e fê-lo nesse antes e nesse depois, ali, na história, onde os afetos e as atuações se tornam episódios. O Deus eterno e omnipotente decide fazer-se história para nos convidar a travar um diálogo pessoal com Ele. O universo inteiro foi criado para que esse diálogo possa existir, ou seja, para que cada resposta nossa a Deus seja apaixonadamente aguardada e, depois, respeitada por Ele

«Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e me abrir a porta, entrarei em sua morada, cearei com ele e ele comigo» (Ap 3, 20). «Estar à porta» significa esperar e não existe espera sem tempo Mas o que é que Deus espera? Nada senão o bom acolhimento do seu interlocutor, o homem: entrar, sentar-se à mesa e cear com ele E o homem, com a sua resposta positiva, «ceará com Deus» A ceia comum torna igual a importância dos comensais e, nessa igualdade, Deus espera que modifiquemos a nossa atitude para com Ele, para com o mundo e para com todos os homens, de modo especial para com os mais desprotegidos

Jesus, sendo Filho de Deus no plano eterno, fez-se filho, no plano humano, para despertar em nós a capacidade de nos reconhecermos capax Dei, capazes do amor,

Passo 1 I NO PRINCÍPIO, O AMOR
13

criados para receber o Deus que se entrega, destinados a converter-nos no conteúdo em vista do qual fomos feitos recipientes

A interiorização de Cristo Jesus em cada um de nós converte-se-se na sua encarnação contínua, tal como é contínuo o ato criador de Deus

A experiência de sermos amados abre-nos à possibilidade de amar «Aquele que não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é amor» (1 Jo 4, 8) Escreve Santo Agostinho, na sua obra De Trinitate (PL 42, 957-958): «Estás a pensar o que Deus é ou como será Para que possas saborear alguma coisa, capacita-te de que Deus é amor, esse mesmo amor com que amamos Que ninguém diga: «Não sei o que é que estou a amar» Basta que ame o irmão e amará o próprio amor Porque, na realidade, uma pessoa conhece melhor o amor com que ama o irmão do que o irmão a quem ama. Porque nesse amor tens Deus, a quem conheces melhor do que ao próprio irmão. Muito melhor, porque está mais presente, mais próximo, mais seguro».

Em nós, seres limitados, quando amamos, Deus «habita» ou, se o preferirmos, quem ama «nasce de» Deus, é de Deus, de um modo filial Este dom do amor de Deus torna-nos semelhantes a Ele, para sermos seus interlocutores e cocriadores no seu plano de humanizar a criação.

Agiremos como Deus se Ele nos mover a assumir a mesma atitude que pôs em movimento o amor divino: a autodoação plena e gratuita.

Estamos inseridos no ser de Deus Aí nos criou o Amor, para que, estando n’Ele e tendo a experiência do Amor, possamos amar. Amar de forma real, da forma que conhecemos, com as nossas próprias limitações

Deus permanece em nós… Temos o incriado, o todo-poderoso, o absoluto… dentro de nós Não temos uma graça ou uma dádiva qualquer, um dom divino que nos foi dado por Deus Ele mesmo está imerso na nossa existência Ele é o seu próprio dom para nós.

Perante semelhante oferta, não ficarei agradecido?

Para aprofundar. Recursos. Anexo dois: «No meio de tormentas… Somente o amor».

Passo 1 I NO PRINCÍPIO, O AMOR
14

Entrada segundo a perspetiva espiritual

Examinar a vida significa contemplar a passagem de Deus pelo que nos toca viver em cada dia e descobrir de que modo o bom Deus se faz presente. Examinar é olhar, é observar, é permitir que aquilo que já se passou no tempo se torne novamente presente

Ao examinar, adotas uma postura de espetador de ti mesmo, é como se estivesses a ver o filme daquilo que estás a examinar Nesse «olhar», tornas de novo presente aquilo que já viveste Contudo, como observador, não serás neutro, adotarás uma perspetiva que estará tingida pelos sentimentos que habitem em ti no momento em que fazes o exame

O exame é, essencialmente, um modo de fazer oração Não é uma avaliação apenas intelectual nem um percurso puramente racional E também não é um reviver sentimental de vários acontecimentos Examinar é orar, é abrires um espaço de silêncio interior e dispores-te para o encontro com Deus. Assim, quando fazemos o exame, disponibilizamo-nos para nos encontrarmos com o Senhor naquilo que estamos a examinar. Por isso, falamos de «ver a passagem de Deus», referindo-nos ao exame.

Por se tratar de um tempo de oração, de um modo especial de orar, é muito importante iniciar o momento de exame fazendo-te presente a ti mesmo, tomando consciência de como te encontras e de que sentimentos te habitam Por que razão é importante essa tomada de consciência? Porque esses sentimentos atuais são potencialmente capazes de transformar os sentimentos que viveste nos acontecimentos que, durante o exame, voltas a contemplar Por outras palavras, se, no momento de examinares o teu dia, no teu coração houver alegria e entusiasmo, os momentos tristes que tiveres vivido poderão ficar tingidos dessa mesma alegria

O exame tem uma finalidade, que é descobrir de que modo o Criador trabalha na tua vida, se faz presente para ti, te habita, te acompanha, te ajuda, te consola e como também corrige o teu rumo e te adverte dos teus extravios. Tem também um marco, um enquadramento – ou «chave», se o preferirmos –, a partir do qual o realizamos e que nos dá uma perspetiva, um modo de contemplar aquilo que observamos e examinamos, uma orientação para o nosso olhar.

A experiência do amor de Deus, a descoberta de que Ele, na sua infinita misericórdia, nos ama até à loucura, representa o pontapé de saída e a perspetiva de leitura de todo o exame Um amor que se nos dá primeiro, que toma a iniciativa sem esperar

Passo 1 I NO PRINCÍPIO, O AMOR
16

que façamos alguma coisa para se manifestar é, na nossa vida, um amor concreto. É um amor que encarna nos acontecimentos que vivemos, que chega a nós e nos alcança

Se olharmos o dia com a «chave» desse amor, descobrimos que a vida que se nos dá é puro dom gratuito, manifestado em numerosos pequenos dons que, ao longo do dia, constituem uma dádiva Estar vivos, respirar, a saúde – pouca ou muita –, as pessoas que nos acompanham no caminho, o trabalho, a natureza, os nossos talentos particulares, as nossas capacidades poderíamos continuar a nomear tantos bens que recebemos e que não são fruto das nossas forças, mas nos foram dados

Depois de termos deixado passar pelo coração esta experiência de ter recebido tanto bem, surge o agradecimento como um impulso quase espontâneo da alma, que sabe que a sua vida é sustentada pelo dom. Reconhecer e agradecer o bem na nossa vida, como amor concreto que nos é concedido, constitui o marco inicial ou a perspetiva do exame, essa orientação ou chave de que falávamos alguns parágrafos antes.

O exame que fizeres deve ser iniciado tendo no coração esta perspetiva de agradecimento Reconhecer toda a beleza e bondade que há na nossa vida impele-nos a agradecer o amor gratuito de Deus Por isso, quando iniciares o teu momento de exame, interroga-te:

O que tens para agradecer? Que graça especial recebeste hoje? O que desejas agradecer ao Pai? Por quem desejas agradecer hoje?

E começa a contemplar a passagem de Deus ao longo do teu dia, olhando e reconhecendo tudo aquilo que seja dom e pelo qual desejes dar graças

Termina o teu exame dando graças a Deus por tanto bem recebido!

Passo 1 I NO PRINCÍPIO, O AMOR
17

Entrada segundo as palavras do Papa

«O bem tende sempre a comunicar-se. Toda a experiência autêntica de verdade e de beleza procura, por si mesma, a sua expansão; e qualquer pessoa que viva uma libertação profunda adquire maior sensibilidade face às necessidades dos outros. E, uma vez comunicado, o bem radica-se e desenvolve-se Por isso, quem deseja viver com dignidade e em plenitude, não tem outro caminho senão reconhecer o outro e buscar o seu bem

Assim, não nos deveriam surpreender frases de São Paulo como estas: "O amor de Cristo nos absorve completamente" (2 Cor 5, 14); "ai de mim, se eu não evangelizar!" (1 Cor 9, 16)

A proposta é viver a um nível superior, mas não com menor intensidade: "Na doação, a vida se fortalece; e se enfraquece no comodismo e no isolamento De facto, os que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança da margem e se apaixonam pela missão de comunicar a vida aos demais". Quando a Igreja faz apelo ao compromisso evangelizador, não faz mais do que indicar aos cristãos o verdadeiro dinamismo da realização pessoal: "Aqui descobrimos outra profunda lei da realidade: ‘A vida alcança-se e amadurece à medida que é entregue para dar vida aos outros’. Isto é, definitivamente, a missão". Consequentemente, um evangelizador não deveria ter constantemente uma cara de funeral Recuperemos e aumentemos o fervor de espírito, " a suave e reconfortante alegria de evangelizar, mesmo quando for preciso semear com lágrimas! ( ) E que o mundo do nosso tempo, que procura, ora na angústia ora com esperança, possa receber a Boa Nova dos lábios, não de evangelizadores tristes e descoroçoados, impacientes ou ansiosos, mas sim de ministros do Evangelho cuja vida irradie fervor, pois foram quem primeiro recebeu em si a alegria de Cristo"

Um anúncio renovado proporciona aos crentes, mesmo tíbios ou não praticantes, uma nova alegria na fé e uma fecundidade evangelizadora Na realidade, o seu centro e a sua essência são sempre o mesmo: o Deus que manifestou o seu amor imenso em Cristo morto e ressuscitado. Ele torna os seus fiéis sempre novos; ainda que sejam idosos,"renovam as suas forças. Têm asas como a águia, correm sem se cansar, marcham sem desfalecer" (Is 40:31). Cristo é a "Boa Nova de valor eterno" (Ap 14:6); sendo "o mesmo ontem, hoje e pelos séculos" (Heb 13:8), mas a sua riqueza e a sua beleza são inesgotáveis. Ele é sempre jovem, e fonte de constante novidade. A Igreja não cessa de se maravilhar com a "profundidade de riqueza, de sabedoria e de ciência de Deus" (Rom 11:33) São João da Cruz dizia: "Esta espessura de sabedoria e ciência de Deus é tão profunda e imensa que, por mais que a alma saiba dela,

Passo 1 I NO PRINCÍPIO, O AMOR
19

sempre pode penetrá-la mais profundamente". Ou ainda, como afirmava Santo Ireneu: "Na sua vinda, [Cristo] trouxe Consigo toda a novidade" Com a sua novidade, Ele pode sempre renovar a nossa vida e a nossa comunidade, e a proposta cristã, ainda que atravesse períodos obscuros e fraquezas eclesiais, nunca envelhece Jesus Cristo pode romper também os esquemas enfadonhos em que pretendemos aprisioná-lo, e surpreende-nos com a sua constante criatividade divina Sempre que procuramos voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, despontam novas estradas, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras cheias de renovado significado para o mundo atual Na realidade, toda a ação evangelizadora autêntica é sempre " nova "

Embora esta missão nos exija uma entrega generosa, seria um erro considerá-la como uma heroica tarefa pessoal, dado que ela é, primariamente e acima de tudo o que possamos sondar e compreender, obra de Deus. Jesus é " o primeiro e o maior evangelizador". Em qualquer forma de evangelização, o primado é sempre de Deus, que quis chamar-nos para cooperar com Ele e impelir-nos com a força do seu Espírito. A verdadeira novidade é aquela que o próprio Deus misteriosamente quer produzir, aquela que Ele inspira, aquela que Ele provoca, aquela que Ele orienta e acompanha de mil e uma maneiras Em toda a vida da Igreja, deve sempre manifestar-se que a iniciativa pertence a Deus, "porque Ele nos amou primeiro" (1 Jo 4, 19) e é "só Deus que faz crescer" (1 Cor 3, 7) Esta convicção permite-nos manter a alegria no meio duma tarefa tão exigente e desafiadora que ocupa inteiramente a nossa vida Pede-nos tudo, mas ao mesmo tempo dá-nos tudo

E também não deveremos entender a novidade desta missão como um desenraizamento, como um esquecimento da história viva que nos acolhe e impele para diante A memória é uma dimensão da nossa fé, que, por analogia com a memória de Israel, poderíamos chamar "deuteronómica" Jesus deixa-nos a Eucaristia como memória quotidiana da Igreja, que nos introduz cada vez mais na Páscoa (cf. Lc 22, 19). A alegria evangelizadora refulge sempre sobre o horizonte da memória agradecida: é uma graça que precisamos de pedir. Os Apóstolos nunca mais esqueceram o momento em que Jesus lhes tocou o coração: "Eram as quatro horas da tarde" (Jo 1, 39). A memória faz-nos presente, juntamente com Jesus, uma verdadeira "nuvem de testemunhas" (Heb 12, 1) De entre elas, distinguem-se algumas pessoas que incidiram de maneira especial no germinar da nossa alegria crente: "Recordai-vos dos vossos guias, que vos pregaram a Palavra de Deus" (Heb 13, 7) Às vezes, trata-se de pessoas simples e próximas de nós, que nos iniciaram na vida da fé: "Trago à memória a tua fé sem fingimento, que se encontrava já na tua avó Lóide e na tua mãe Eunice" (2 Tm 1, 5) O crente é, fundamentalmente, " uma pessoa que faz memória"» (Papa Francisco, Evangelii gaudium 9-13)

Passo 1 I NO PRINCÍPIO, O AMOR
20

Entrada segundo a perspetiva da oração

Habituámo-nos a pedir, a reclamar ou a exigir coisas aos outros Porquê? Talvez porque temos consciência de que, sem os outros, nos falta alguma coisa: somos um «produto» que não está terminado e precisamos deles para «nos completarmos»

Mas completarmos em que sentido? A intensidade com que exigimos aos outros «coisas», como afeto, atenção ou tempo, por exemplo, é proporcional à consciência de nos sentirmos incompletos. Podemos aprender mais ou menos rapidamente que precisamos dos outros, mas o mais importante é entender que ninguém nos deve nada! Não viemos ao mundo reclamar o que alguém nos deve. Os outros não estão no mundo para satisfazer as nossas expetativas.

Nós estamos aqui para aprender o que significa amar e ser amados, para sermos agradecidos O que nos falta é agradecer o amor que recebemos dos outros Também precisamos de aprender a agradecer o amor, o afeto, o tempo que os outros nos dão gratuitamente A melhor maneira de completar o que nos «falta» é aprendendo a ser agradecidos para com os outros Se não pusermos de lado a ideia de que «alguém» nos deve alguma coisa, seja ela qual for, nunca chegaremos a construir em nós esta atitude que é vital para o nosso desenvolvimento e crescimento pessoal Os outros ajudam-nos a completar em nós aquilo que nos falta quando recebemos o seu amor, devendo assim agradecer-lhes

O agradecimento constitui um ingrediente-chave da experiência de sermos amados e de amar. A pessoa com um coração agradecido sabe reconhecer o amor de Deus, que atua e se dá nos outros. Agradecer é dar lugar à dinâmica do Espírito de Deus, que renova a nossa vida no amor. Para entender a lógica do amor de Deus, devemos passar do âmbito do dever para o âmbito do dom. Sem este passo essencial, dificilmente chegaremos a ser agradecidos. O dever, em certas ocasiões, faz-nos perder de vista tudo aquilo pelo qual teríamos de estar agradecidos A nossa vida costuma estar cheia de projetos, sonhos e metas, lugares a que chegar, espaços a conquistar, cumes a alcançar, e corremos o risco de transformar a nossa alma numa parede onde pendurar medalhas, numa estante de trofeus ou num depósito de diplomas

Na nossa vida há algo mais do que cumprir deveres, precisamos de aprender que somos amados para lá dos nossos êxitos Sem esta aprendizagem, não saberemos nunca o que significa agradecer É «quase» impossível sentirmo-nos amados e perdoados se não aprofundamos o mistério do amor gratuito de Deus

Como aprender a ser agradecidos? Para isso precisamos de ser conscientes do Espírito de Deus que opera no amor humano. Existe mais amor de Deus a operar no amor humano do que aquilo de que podemos aperceber-nos. O homem e a mulher

Passo 1 I NO PRINCÍPIO, O AMOR
22

agradecidos são pessoas, sobretudo, com «olhos bem abertos», despertos. Quer dizer, conscientes, atentas ou, em poucas palavras, místicas Para gerar uma atitude de agradecimento, requer-se, da nossa parte, uma disposição interior para reconhecer o bom que acontece ao nosso lado sem que tenhamos feito alguma coisa para que tal aconteça Sem essa disposição, ser-nos-á difícil sair do dever para entrar no âmbito do agradecimento Precisamos de decidir, cada dia, viver agradecidos Isso não significa pintar a realidade cor-de-rosa, nem negar os problemas ou conflitos; do que se trata é de buscar e exercitarmo-nos em encontrar o dom que se oculta aos olhos pragmáticos e utilitaristas Quando tomamos a decisão de ser agradecidos, todas as circunstâncias da vida, ainda que pareçam trágicas, têm um «lado positivo» «Dar» e «dizer» graças ajuda a criar uma atitude completa em nós de sermos «seres humanos»

Para aprofundar. Recursos. Anexo três: «A vida… a partir do agradecimento»

Passo 1 I NO PRINCÍPIO, O AMOR
23

Exercício – Prática da releitura

Aprofundamento do primeiro tempo de releitura – Obrigado!

Olho para onde está presente a luz na minha vida, para tudo o que produz em mim abertura e me faz viver em profundidade (um gesto, uma palavra ou um sorriso, encontros ou eventos, etc ) É importante exercitar-se em reconhecer a vida nas mais pequenas coisas diárias, com o fim de reconhecer cada vez mais aquele que é a fonte da vida Sabemo-lo: a vida, o amor não fazem ruído; é por isso que temos tantas dificuldades para discernir a presença do Senhor Só aquele que ama reconhece o seu amado Quanto mais dou graças, mais razões encontro para dar graças

Prática da releitura temática – Que tens para agradecer hoje?

Distancia-te dos acontecimentos do dia. Para um pouco e procura um lugar tranquilo para fazeres o teu exame de hoje. O Senhor está à espera deste encontro contigo. Respira fundo e toma consciência do teu corpo, da tua respiração e de como te sentes nestes momentos

Percorre o teu dia, desde o amanhecer até ao momento presente Olha sem julgar, detém-te nos lugares que percorreste, nas pessoas com quem te encontraste, na natureza, no ar, no Sol, nos pássaros, nas cores etc Saboreia novamente os gostos e os odores de hoje

Reconhece os trabalhos que pudeste fazer, as ajudas dadas e recebidas, as tuas capacidades físicas e mentais e os teus sentimentos

Analisa as conversas que tiveste, escuta de novo as palavras, detém-te a recordar os gestos das pessoas. Aquilo que aprendeste.

Faz passar de novo pelo coração tudo o que viveste. O que tens para agradecer? Que graça especial recebeste hoje? Que foi para ti uma surpresa que te alegrou o dia? Em que momento te sentiste pleno?

Gasta o tempo necessário para dizeres ao Pai: «Obrigado, por isto por aquilo por esta situação » Toma nota daquilo que for significativo, e conclui a tua oração

Passo 1 I NO PRINCÍPIO, O AMOR
24

Recursos

Anexo um Amar. O que é amar?

«Jesus disse-lhe: O segundo mandamento é semelhante ao primeiro: Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Matthew 22:39)

Podemos dizer que, no fundo, o pecado prejudicou uma única coisa: o amor; e podemos também dizer que a graça de Deus, que Cristo, na Cruz, obteve, restaurou uma única coisa – o amor e, através deste, todas as outras coisas

Falta de amor: eis o nome da desgraça; plenitude de amor: eis o nome da vida

Porque Deus é amor

Com efeito, criados por amor, nós, seres humanos, temos como primeira referência, como linguagem primordial, como única felicidade e como esperança fundamental o amor Jamais, portanto, se pode sobrestimar a sua importância na nossa vida Equivocarmo-nos nisto, é equivocarmo-nos em tudo.

Primeira referência, porque o nosso próprio ser não foi negociado, mas simplesmente outorgado; dar, dar-se é como que a própria natureza do amor. Então, a primeira coisa que nos sucedeu chama-se amor e a partir desse primeiro facto fundamental olhamos e avaliamos os outros factos.

Primeira linguagem, porque desde que o amor tornou possível a vida, «a minha vida e a tua vida», a partir desse momento, abriu-nos ao outro e aos outros Desde que somos enxertados no ser, a única chave capaz de nos abrir chama-se amor As linguagens que depois aprendemos – a linguagem dos gestos, das carícias, o pranto, as palavras –, são sempre idiomas secundários, cuja força expressiva depende do idioma primordial do amor Quando este falta ou apresenta deficiências graves, nenhum gesto, nenhuma carícia, nenhum pranto, nenhuma palavra o conseguirá substituir

É a única felicidade, porque só no amor se detém o nosso conatural anseio por ser felizes Chamamos erradamente felicidade àquilo que acaba, àquilo que desilude, àquilo que se compra ou que não sacia A vida passa, esgota-se, desmorona-se e só continua a chamar-se vida aquilo que o amor construiu.

É a esperança fundamental, porque o apetite de amar e ser amado é o que esperamos encontrar naquilo por que ansiamos. Será aqui? Será ele? Será ela? Tudo depende do que se responda a uma pergunta: amar-me-á? Feliz quem pode responder «sim», porque o seu nome é amor.

Passo 1 I NO PRINCÍPIO, O AMOR
26

Anexo dois

No meio de tormentas… apenas o amor Passamos por momentos na vida em que nos sentimos abalados nas nossas seguranças e certezas Tempos de tormenta, nos quais a barca anda à deriva e caem por terra as realidades em que nos tínhamos apoiado Um acontecimento inesperado muda o cenário da vida Nesses momentos, assaltam-nos sentimentos de incerteza e vertigem, as nossas ideias deixam de ser claras, agitam-se os nossos sentimentos. São tempos de rutura, de mudanças, de crise, nos quais vivemos a experiência de que as ondas do lago da nossa vida estão embravecidas e se levantam muito acima das forças com que as contemos.

Uma primeira tentação deste tempo é a de que o nosso olhar se deixe prender pela imensidão das ondas que nos rodeiam De que os nossos pensamentos se enredem na magnitude das dificuldades, na dimensão das perdas ou nos problemas que nos espreitam Se ficamos por aqui, o nosso coração ficará aprisionado no desespero e não conseguiremos dar o passo necessário para atravessar a tormenta

Uma saída, nestes tempos difíceis, será fixar o olhar e pousar as mãos no leme da nossa barca, dispositivo que nos permitirá manobrar o barco para nos esquivarmos às ondas e sairmos dos problemas Quem maneja o leme das nossas vidas? Onde depositamos a nossa confiança e as nossas seguranças?

E não se trata de pensar em coisas más ou maléficas. Muitas coisas boas podem amarrar e escravizar o nosso coração – o trabalho, os amigos, os esforços pessoais, as coisas bem adquiridas, determinada situação de vida – quando se transformam no centro da nossa existência. Muitas vezes as tormentas que afundam essas realidades constituem oportunidades para «recalcularmos» o itinerário e centrarmos de novo o coração

Quando, no meio de tormentas, algumas coisas boas se afundam, é saudável deixarmos de olhar para a magnitude das perdas e interrogarmo-nos sobre o centro da vida, sobre quem maneja o leme da barca

Somente a experiência do amor de Deus, de nos sentirmos criaturas amadas até ao infinito – trazidas a este mundo para sermos amadas por Deus e para vivermos em fraternidade, ajudando quem precisa de nós –, poderá encher a nossa vida e ajudar-nos a «recalcular o nosso rumo» no meio de tormentas Diz um sábio ditado que muitos «finitos» jamais poderão saciar a nossa sede de infinito Só Deus preenche os nossos espaços vazios. Só Deus basta.

Passo 1 I NO PRINCÍPIO, O AMOR
27

Anexo três

Avida… segundo a gratidão

«Obrigado» é uma das palavras mais carregadas de significado positivo Tanto que, ao pronunciá-la e ao recebê-la, se forma uma aura em torno daquilo que se agradece, que afrouxa os corações, os abranda, os enternece, fazendo-os começar a bater de forma mais compassada…

Olhar as situações, as pessoas, os pormenores, as vivências segundo a gratidão significa reduzir o território do nosso juiz interior; é como que preparar-nos para olhar aquilo que abunda, aquilo que nos é dado, contemplando a realidade a partir do dom, da oportunidade e da dádiva

E ainda: olhar as expetativas e os desejos segundo a gratidão é como viver aquilo por que anseio como se o tivesse, como se já mo tivessem dado É como começar a desfrutar antecipadamente daquilo por que ansiamos, como convidar o nosso desejo a que, com a sua força, construa realidade Agradecer aquilo que desejo, como se já fosse uma dádiva concreta e palpável

Olhar a realidade com gratidão, seja qual for a sua cor, significa reduzir o espaço ao juízo crítico, ponderar o que cada circunstância tem de valioso, apercebermo-nos da exceção quando nos parece que tudo (mesmo tudo?) sai mal. Agradecer é resgatar, inclusive nas calamidades, a presença do dom de vida e de encanto que a realidade tem… porque existem exceções de bondade, mesmo no meio daquilo que parece ser uma calamidade.

O olhar agradecido é um estilo que se forja, que se treina, que se deseja, que se quer viver estilo esse que aceita a realidade tal como é, clara-escura, e que decide viver segundo a claridade de que dispõe E o coração, no fim, acabará por desejar o agradecimento incessante, como impulso e ímpeto de vida, do olhar inicial

O olhar agradecido dilata a alma, alegra o coração, permite reconhecer o valor, o manancial e a cascata do amor que nos rodeia, nos nossos rostos, nos nossos gestos, nas cores, na minha vida, na vida do meu irmão, nos risos, nas lágrimas e em cada oportunidade onde a vida nos faz saber que há vida e que nós fazemos parte dela

Passo 1 I NO PRINCÍPIO, O AMOR
28

Olhar com agradecimento, dar graças, reconhecer o que nos é oferecido, continuar a agradecer sem cessar significa atrevermo-nos a viver de um manancial que não se esgota, a desafiar as trevas e as dores, porque o amor ganhou a partida e, portanto, haverá sempre, (sim, sempre!) um dom para agradecer

Olhar com gratidão e alimentar o olhar de agradecimento significa descobrir o Deus do pormenor, o Deus do pequeno, o Deus próximo, nosso vizinho, que se deixa encontrar

Ter uma atitude de gratidão significa ganhar terreno às atitudes de julgamento e de crítica, significa falar com Deus de tudo aquilo de que desfrutamos e que queremos continuar a receber d’Ele, para que nunca deixe de no-lo dar, como se quiséssemos recordar a esse Deus de amor que nos alimentamos dos seus dons e que queremos continuar a recebê-los. Agradecer, inclusive por antecipação, como se forçássemos a generosidade do Pai (se isso fosse possível!), para Ele se enternecer perante o pedido dos seus filhos amados.

Olhar com gratidão, viver da gratidão é, simplesmente, viver do Deus presente em toda – sim, toda! – a nossa vida, tão preciosa e abundante

Passo 1 I NO PRINCÍPIO, O AMOR
29

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.