CUMANANA XLVI-POR

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CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE NICOMEDES SANTA CRUZ

EDIÇÃO DEDICADA AO SENEGAL

CAFÉ TOUBA: HERANÇA

MOURIDE NO SENEGAL E

SEU CONTRASTE COM A EXPERIÊNCIA PERUANA

NO SETOR CAFEEIRO

Katherine Pineda Marín

estudante 2do ano da acadeMia diPloMática do Peru

Ocafé é mais do que apenas uma bebida tradicional – representa um ato social, um símbolo de identidade e reflete uma história em cada xícara. Por isso, o café assume particularidades em cada país e reflete a cultura e a criatividade de cada comunidade. É o caso do Senegal e do Peru, que fizeram do café um elemento central de suas representações culturais. No Senegal, o café Touba é um legado de espiritualidade e engenhosidade, manifesto do legado Mouride; enquanto, no Peru, o café é sinônimo de tradição agrícola, orgulho nacional e potencial de desenvolvimento econômico. Portanto, é interessante mergulhar na história do café mais popular do Senegal e contrastar a experiência peruana no setor cafeeiro com o objetivo de promover a divulgação e comercialização desse café em todo o mundo.

Para conhecer a origem particular do café Touba, é necessário investigar a história de uma irmandade mística do Islã, derivada da ordem sufi. O sufismo é uma dimensão ascética do Islã, na qual seus seguidores procuram se unir ao seu deus por meio da devoção, meditação e purificação da alma. De fato, o Senegal é o país com o maior número de seguidores do Islã sufi entre os países de maioria muçulmana do mundo (Mbacke, 2016). O muridismo deriva desse ramo do Islã, ao qual pertence quase 28% da população senegalesa (Le journal international, 2015). Essa irmandade une os ensinamentos do profeta Maomé com a cultura wolof, uma cultura que mantém as tradições dos reinos originais senegaleses desde antes da colonização europeia.

DO CANDEEIRO E MESQUITA DE TOUBA, SENEGAL Fonte: flickr.com/jbdodan

No século XIX, o líder Mouride Sheikh Ahmadou Bamba fundou a cidade de Touba, que acabou se tornando a capital do muridismo (Filicori, 2022). Segundo relatos senegaleses, entre 1883 e 1902, quando o café já era muito popular no país, uma grande escassez dele causou sintomas de dependência na população. Fiéis à sua filosofia de trabalho árduo e disciplina como formas de devoção ao seu deus, os Mourides não se resignaram à crise. Ahmadou Bamba inventou uma alternativa: criar uma bebida que, embora contivesse café importado, fosse utilizada em quantidades menores e enriquecida com outras especiarias de fácil acesso que lhe conferiam um sabor picante e uma conotação espiritual, dando origem ao café Touba. Atualmente, esses grãos de café (arábica ou robusta) são importados da Costa do Marfim, Guiné e Togo; enquanto as principais especiarias, como cravo (gedj) e pimenta selim (djar), vêm da Guiné. A preparação é um processo especial: os grãos são torrados juntamente com as especiarias, moídos e filtrados em água quente, criando assim uma bebida única, resultado da criatividade senegalesa.

QUEDA

@TOUBACAFE,

Fonte: instagram.com/blackconsumerdirectory

O consumo de café Touba é frequentemente referido como o estímulo para a concentração e devoção, que fornece clareza mental para a meditação e oração. Por isso, durante grande parte do século XX, foi um elemento central nas cerimônias religiosas da irmandade Mouride. Além disso, sua preparação e consumo estão profundamente ligados à filosofia do serviço comunitário como expressão de hospitalidade. Por outro lado, estudos científicos recentes indicam que também possui propriedades medicinais, pois seus ingredientes favorecem a digestão e a criação de endorfinas, por isso também é considerado um antidepressivo natural.

Apesar de ter nascido como uma bebida religiosa e comunitária, a expansão do café Touba em todo o Senegal tornou-o um produto comercial de grande sucesso em bancas de rua e supermercados. No entanto, este café continua sendo um produto de nicho fora de suas fronteiras, especialmente na França, onde a diáspora senegalesa começou a popularizá-lo. Isso abre uma oportunidade para expandir sua comercialização internacionalmente, especialmente se forem implementadas estratégias semelhantes às utilizadas por outros países com forte tradição cafeeira que conseguiram posicionar seu produto nesses mercados.

No Peru, o café é um dos principais produtos agrícolas tradicionais de exportação, um pilar econômico que gera empregos em toda a sua cadeia de valor para mais de dois milhões de peruanos (Ministerio de Desarrollo Agrario y Riego del Perú, 2022). Suas regiões produtoras – como Cajamarca, Junín e San Martín – desenvolveram uma indústria cafeeira que exporta para mercados internacionais. É o nono maior produtor de café arábica do mundo (Promperú, 2023) e faz parte da Organização Internacional do Café (OIC), o que lhe permite participar da regulamentação e promoção do comércio e da sustentabilidade do setor cafeeiro globalmente. Por essas razões, apesar de o Senegal não ser um produtor de café nato e oferecer um produto semimanufaturado, o modelo peruano oferece lições valiosas em termos de marketing e posicionamento nos mercados globais, o que permitiria ao café Touba transcender seu consumo local e alcançar uma maior presença no mercado internacional.

Em 2024, as exportações de grãos de café torrados peruanos atingiram US$ 850 milhões, tornandose um ator chave no mercado global graças à sua estratégia de diversificação, que lhe permitiu consolidar-se em nichos de alto valor. Um exemplo dessa diversificação é sua liderança na produção e exportação de café orgânico, categoria na qual dividiu o primeiro lugar mundial com a Etiópia em 2022 (Ministerio de Desarrollo Agrario y Riego del Perú, 2022). Além disso, o fortalecimento da qualidade do café peruano o posicionou no segmento gourmet, com alianças estratégicas com torrefadores e cafeterias internacionais. Essa experiência torna o modelo peruano uma referência valiosa para o Senegal, pois mostra estratégias que podem posicionar o café Touba em novos mercados e aproveitar sua história e singularidade para atrair consumidores além da diáspora senegalesa.

Dado o amplo conhecimento e experiência do Peru na produção, comercialização e exportação de café, seria interessante fornecer cooperação técnica ao Senegal em um futuro próximo por meio de um programa de treinamento especializado em comércio e promoção do café. Este programa pode se concentrar em estratégias de diversificação, certificações de qualidade e acesso a mercados globais. Além disso, para facilitar a implementação deles, os treinamentos poderiam ser ministrados em inglês. Essa iniciativa beneficiaria ambas as partes: o Senegal receberia ferramentas fundamentais para expandir seu café globalmente, enquanto o Peru consolidaria sua posição como provedor de cooperação técnica, aumentando sua influência na África e promovendo o conhecimento e o consumo do café peruano em novos mercados.

Em conclusão, tanto no Peru quanto no Senegal, o café transcende seu status de bebida para se tornar um fenômeno social, um reflexo de profundas identidades culturais e uma oportunidade comercial com muito potencial. Apesar de suas diferenças culturais, ambos os países compartilham uma dimensão sociológica em que o café se destaca como um espaço de encontro e tradição. O valor cultural do café peruano e senegalês abre as portas para uma relação bilateral na qual o intercâmbio comercial, a cooperação e o aprendizado mútuo podem fortalecer os laços de amizade existentes. O Senegal, com sua rica herança cultural e identidade vibrante, nos lembra que a história do café é também a história dos povos que o cultivam, compartilham e transformam em um legado vivo. Que o aroma do café seja uma ponte entre estes dois países, um apelo à fraternidade e um testemunho da grandeza de ambas as culturas.

REFERÊNCIAS:

Filicori, L. (2022). Un café con pimienta en Senegal: El café Touba. Filicori Zecchini. https://filicorizecchini. com/es-es/blogs/magazine-fz-el-blog-de-philicorizecchini/un-cafe-con-pimienta-en-senegal-elcafe-touba

Fritzon, V. (2016). Religion and business: The Mourides of Senegal. The Perspective. https://www. theperspective.se/2016/02/25/africa/religion-andbusiness-the-mourides-of-senegal/

Gueye, A. (2001). De la religión en los intelectuales africanos en Francia. Cahiers d’études africaines, 162, 267-292. https://doi.org/10.4000/ etudesafricaines.87

Junta del Café. (n.d.). El café de Perú. https:// juntadelcafe.org.pe/el-cafe-de-peru/

Mbacke, I. (2016). The Mouride Sufi order. Berkley Center for Religion, Peace & World Affairs. https:// berkleycenter.georgetown.edu/publications/themouride-sufi-order

Ministerio de Desarrollo Agrario y Riego (MIDAGRI). (2023, noviembre 27). Perú es el primer productor y exportador mundial de café orgánico junto con Etiopía. Gobierno del Perú. https://www.gob.pe/ institucion/midagri/noticias/647409-peru-es-elprimer-productor-y-exportador-mundial-de-cafeorganico-junto-con-etiopia

Perfect Daily Grind. (2023). ¿Qué es café Touba y cómo se prepara? https://perfectdailygrind.com/ es/2023/01/07/que-es-cafe-touba-como-seprepara/

Piermay, J.-L., & Sarr, C. (Eds.). (2008). La ville sénégalaise: Une invention aux frontières du monde. Outre-Mers, 95(358-359), 351-354. https:// www.persee.fr/doc/outre_1631-0438_2008_ num_95_358_4336_t1_0351_0000_1

GUARDIANES DE LA MEMORIA: AARKÀTKAT YI FÀTTALIKU

Nas margens do Senegal, um griot canta enquanto toca a kora, uma harpa tradicional africana. A milhares de quilômetros de distância, na costa norte do Peru, um Cumananero improvisa versos que cativam seu público. Embora separados por um oceano, esses guardiões da memória compartilham uma missão: manter viva a história de seus povos.

Este ano marca o 50º aniversário das relações diplomáticas entre o Peru e o Senegal, uma ocasião para redescobrir a conexão entre duas comunidades que transformaram a tradição oral em um registro inestimável de sua identidade. Em ambas as nações, a palavra falada e finamente trabalhada resistiu ao tempo e transcende o ato de comunicar: é uma ponte entre gerações, um arquivo vivo de histórias e um testemunho de resistência cultural.

OS GRIOTS

No Senegal, os griots são muito mais do que apenas contadores de histórias: eles são os guardiões vivos do passado, que registram todos os momentos significativos da vida comunitária. Como explica Ngary Niang, um griot da aldeia de Ndiebene, na região de Saint Louis, no Senegal: "Somos os mestres da arte de falar: nossos bolsos estão cheios de segredos, nomes e façanhas, para que as histórias de nosso povo não caiam no esquecimento" (Feal, 2020).

Os griots antigamente, entre outras funções importantes, desempenhavam papéis como embaixadores e mensageiros de governantes, mediavam conflitos, conduziam cerimônias e aconselhavam soberanos. Hoje, após as mudanças introduzidas pela colonização, como explica Niang: "(...) nosso papel é conectar as pessoas, dizer-lhes quem são e o que as liga ao território e aos outros, recriar a rede que nos une" (Feal, 2020). Esses bardos, por meio de suas trovas, elaboram uma cronologia da comunidade para conectar o passado com o presente.

AGÊNCIA ANADOLU. (2023). O FAMOSO SENEGALÊS ABLAYE CISSOKO TOCA O INSTRUMENTO TRADICIONAL KORA EM SAINTLOUIS, SENEGAL

Fonte: Daily Sabah

Entre as crônicas mais memoráveis preservadas pelos griots, destaca-se a batalha de Safilème em 4 de setembro de 1826, episódio que Niang relata com especial orgulho: foi o dia em que o povo Gandiole conseguiu a primeira derrota da França em solo africano (Feal, 2020). Esta história, como tantas outras, não apenas preserva fatos históricos, mas também nutre orgulho e lança luz sobre o futuro da cidade.

Apesar das mudanças sociais e políticas, os griots adaptam suas histórias aos tempos modernos sem perder seu papel de guardiões da história. E é que " [o griot] também deve ter a capacidade de improvisar sobre eventos atuais, eventos casuais e tudo o que o rodeia" (Oliver, 1970).

Graças à sua sagacidade e profundo conhecimento da história local, os griots desempenharam um papel essencial na orientação do povo. Sua arte de contar histórias, conhecida no Senegal como guewel, também transmite valores fundamentais como solidariedade e unidade.

Fabricio aliaga león

OS CUMANANEROS

No Peru, os cumananeros desempenham um papel semelhante por meio da improvisação poética. Nas regiões peruanas de Tumbes, Piura e Lambayeque, outra tradição oral floresceu ao longo dos anos: o cumanana. Essa arte poética, cujo nome tem raízes na língua africana Kikongo , representa a confluência entre a herança espanhola da décima espinela e a criatividade afro-peruana (Romero, 1988).

Os cumananeros, verdadeiros menestréis populares, transformaram a improvisação poética em uma arte com nuances próprias. Sem a proteção da escrita, esses mestres da palavra constroem cumananas por meio de versos que captam a essência do cotidiano, do amor, da crítica social e da sabedoria popular.

Como diz o famoso Cumananero Belardo Alzamora (2018):

“Senhor, não Sei ler nem eScrever com minha memória o fiz com meu penSamento digo o que Sente aqui eSte peito”

As cumananas abordam uma ampla gama de tópicos, em alguns casos podem ser duelistas. Eles não são escritos, não são mantidos, são espontâneos, aparecem em reuniões sociais como brincadeiras e trocas farpadas. Às vezes é um duelo com malandragem em que duas pessoas improvisam versos em resposta uma à outra.

No entanto, mais do que entretenimento, a cumanana é essencialmente um testemunho da resiliência e criatividade do povo afro-peruano. Em tempos de escravidão, encontraram na oralidade uma forma de transformar sua dor em arte. O ilustre Nicomedes Santa Cruz (1960) imortalizou essa tradição com versos que celebram a habilidade desses artistas:

"JograiS de pele eScura que entre aS fábricaS de cana-de-açúcar eleS repetiram oS feitoS de don vicente eSpinel. e nem palma nem louro, e nem mármore nem bronze. ronceS SutiS foram SuficienteS, depoiS da baJulação, o rum e deram Sua inSpiração oS negroS daquela época."

ANDINA. (2015). NICOMEDES SANTA CRUZ RECITANDO Fonte:Andina

Devido à sua importância, a cumanana foi declarada patrimônio cultural da nação peruana em 26 de novembro de 2004. Atualmente, além da transmissão familiar, há esforços governamentais para documentar e ensinar essa arte às novas gerações, garantindo que essa expressão cultural não se perca no tempo.

UMA PONTE CULTURAL

Os griots e os cumananeros são nossos guardiões da memória. A tradição oral tem sido um refúgio do esquecimento. No Senegal, os griots resistiram à perda de identidade após a colonização. No Peru, os Cumananeros, descendentes de africanos escravizados, usaram a poesia para expressar sua realidade e preservar seu legado.

Reconhecer esses laços é uma oportunidade para fortalecer o diálogo intercultural e reavaliar a riqueza de nossas tradições compartilhadas. Ao observar essa semelhança entre nossos povos, entendemos que a distância geográfica desaparece diante do reflexo compartilhado de nossas raízes no patrimônio imaterial.

Em um mundo globalizado, onde vozes marginalizadas lutam para serem ouvidas, essas tradições nos lembram que a memória coletiva não é apenas escrita, mas também cantada, recitada e improvisada.

A palavra é o fio invisível que une nossas histórias.

MÚSICA DE UM REINO AFRICANO: A KORA DO SENEGAL

Fonte:centerforworldmusic.org/

NOITES DA ÁFRICA PRODUÇÕES APRESENTAM SIAKA DIABATE

Fonte:lepointdevente.com

REFERÊNCIAS:

Alzamora, B. (2018). Voces Ancestrales: Poesía y Cánticos, Literatura oral afroperuana. Ministerio de Educación. https://hdl.handle. net/20.500.12799/7184

Anadolu Agency. (2023). O renomado senegalês Ablaye Cissoko toca o instrumento tradicional kora em Saint-Louis, Senegal. [Fotografía]. Daily Sabah. https://www.dailysabah.com/arts/music/koradying-instrument-fading-with-oral-history-ofwest-africa

Andina. (2015). Nicomedes Santa Cruz recitando. [Fotografía]. Andina. https://andina.pe/agencia/ noticia-congreso-peruano-rendira-homenaje-acultura-afroperuana-559034.aspx

Feal, L. (9 de enero de 2020). Los juglares africanos se llaman ‘griots’ y aún ejercen un oficio milenario. El País. https://elpais.com/elpais/2020/01/08/ planeta_futuro/1578477784_297707.html

Oliver, P. (1970). Savannah syncopators. Studio Vista.

Romero, F. (1988). Quimba, fa, malambo, ñeque: Afronegrismos en el Perú. Instituto de Estudios Peruanos.

Santa Cruz, N. (1960). Décimas. Editorial Juan Mejía Baca.

LIGAÇÕES PERU-SENEGAL: COMÉRCIO,

CULTURA E DESENVOLVIMENTO ALTERNATIVO

Ministro

1. INTRODUÇÃO

Na última década, a política externa do Peru mostrou interesse renovado em fortalecer seus laços com a África, no âmbito de uma estratégia mais ampla de diversificação das relações econômicas e consolidação da cooperação internacional. Nesse contexto, o Senegal emergiu como um parceiro importante na África Ocidental, não apenas por sua estabilidade política e liderança regional, mas também por sua abertura à cooperação Sul-Sul e seu compromisso com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

Ao mesmo tempo, o governo senegalês demonstrou interesse pelas experiências latino-americanas, particularmente as do Peru, em áreas como o desenvolvimento rural sustentável, a segurança alimentar e a transição para economias lícitas em áreas vulneráveis. Embora a relação bilateral ainda esteja em fase inicial, há oportunidades claras para articular uma agenda estratégica que vincule as lições aprendidas pelo Peru em desenvolvimento alternativo com as prioridades senegalesas em inclusão territorial e agricultura sustentável. Essas convergências representam uma base sólida para a formulação de uma agenda bilateral mais robusta, coerente e de longo prazo.

2. QUADRO HISTÓRICO E DIPLOMÁTICO

O estabelecimento de relações diplomáticas entre o Peru e o Senegal responde a uma política peruana de diversificação geopolítica e fortalecimento dos laços com a África Subsaariana. Essa orientação faz parte das diretrizes da cooperação Sul-Sul, que promove a troca de experiências entre países em desenvolvimento com desafios e contextos semelhantes.

Apesar de não ter uma embaixada residente em Dakar, o Peru mantém relações diplomáticas concorrentes por meio de sua embaixada em Rabat, Marrocos. A partir de Lima, o Ministério das Relações Exteriores, através da Direção-Geral para África, Oriente Médio e Países do Golfo, tem vindo a promover uma agenda de cooperação com o Senegal centrada em setoreschave como o desenvolvimento rural, a agricultura resiliente e a segurança alimentar.

Por sua vez, o Senegal tem demonstrado um interesse contínuo nos modelos latino-americanos de desenvolvimento social inclusivo, participando ativamente de fóruns multilaterais organizados por agências como o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), onde teve a oportunidade de trocar experiências com o Peru na área de desenvolvimento alternativo e luta contra economias ilícitas. Este diálogo político-técnico lançou as bases para uma maior coordenação bilateral em questões de interesse comum.

3. COMÉRCIO BILATERAL: SITUAÇÃO ATUAL E DESAFIOS

O comércio entre o Peru e o Senegal ainda é limitado e assimétrico. Em 2023, as exportações peruanas para o Senegal atingiram um valor estimado de US$ 646.000. Embora este montante seja modesto em termos absolutos, constitui um ponto de partida para a construção de uma relação comercial mais dinâmica. Entre os principais produtos exportados estão corantes de origem vegetal ou animal, certos alimentos processados e alguns manufaturados de baixo valor agregado.

Em contraste, as importações peruanas do Senegal são praticamente inexistentes, refletindo a baixa integração entre as duas economias. Essa situação é explicada por fatores estruturais como distância geográfica, falta de acordos comerciais bilaterais, conectividade logística deficiente

e baixo conhecimento recíproco das características e oportunidades de ambos os mercados.

Um dos principais desafios é a ausência de rotas logísticas diretas, o que aumenta consideravelmente os custos de transporte. Soma-se a isso a falta de plataformas institucionais que facilitem a aproximação e o investimento empresarial. A superação destas barreiras requer uma estratégia proativa de diplomacia económica, acompanhada de mecanismos de promoção comercial adaptados ao contexto africano.

EMBAIXADOR DO PERU ENTREGA CARTAS CREDENCIAIS AO PRESIDENTE DO SENEGAL Fonte:Gob.pe

4. DESENVOLVIMENTO

Uma das contribuições mais significativas que o Peru pode oferecer ao Senegal reside em sua experiência em Desenvolvimento Alternativo Integral e Sustentável (DAIS), implementado desde a década de 1990 como resposta à expansão dos cultivos ilícitos, particularmente a coca, na região de San Martín e no Vale de Monzón, reconhecido internacionalmente. Esse modelo, promovido pelo Estado peruano com o apoio de parceiros internacionais como USAID, UNODC, Alemanha e União Europeia, buscou transformar estruturalmente a economia rural, substituindo progressivamente os cultivos ilícitos por alternativas lícitas e sustentáveis, como cacau, café e dendê.

A abordagem peruana é caracterizada por uma combinação de assistência técnica, fortalecimento institucional, acesso ao mercado e participação da comunidade. A Comissão Nacional para o Desenvolvimento e a Vida sem Drogas (DEVIDA) lidera

esse esforço, que melhorou os meios de subsistência de milhares de famílias rurais, ao mesmo tempo em que contribuiu para a consolidação de uma economia lícita e resiliente.

Embora o Senegal não enfrente o mesmo padrão de economias ilícitas que o Peru, apresenta desafios ligados à agricultura de subsistência, à informalidade e às atividades ilegais associadas ao contrabando e tráfico de pessoas em certas regiões fronteiriças. Nesse sentido, o modelo peruano pode oferecer metodologias valiosas que podem ser adaptadas ao contexto senegalês. O planejamento participativo, o desenvolvimento da cadeia de valor rural e o empoderamento das comunidades locais são componentes replicáveis que podem enriquecer os programas de desenvolvimento territorial senegalês em áreas vulneráveis.

5. A DIMENSÃO CULTURAL: UMA PONTE PARA A COOPERAÇÃO ENTRE O PERU E O SENEGAL

A esfera cultural representa uma ferramenta estratégica para fortalecer os laços entre o Peru e o Senegal, especialmente em um momento em que as relações econômicas ainda são de baixa intensidade. A diplomacia cultural, entendida como o uso de expressões artísticas, heranças históricas e tradições compartilhadas para promover a compreensão mútua, pode desempenhar um papel fundamental na criação de uma narrativa comum entre as duas nações.

Tanto o Peru quanto o Senegal possuem patrimônios culturais ricos e diversos, reconhecidos internacionalmente por seu valor histórico, simbólico e espiritual. No caso do Peru, a diversidade andinoamazônica se manifesta em uma fusão de tradições indígenas, afrodescendentes e mestiças, expressas em sua gastronomia, música, danças, arte popular e rituais comunitários. O Senegal tem uma cultura vibrante, na qual se entrelaçam influências africanas, islâmicas e francófonas, com expressões musicais como o "mbalax", uma forte tradição oral e uma culinária baseada em produtos locais como painço, peixe e amendoim.

Esses elementos podem se tornar pontos de convergência. Por exemplo, a gastronomia como produto cultural e econômico oferece um terreno fértil para o intercâmbio. A cozinha peruana, reconhecida

pela fusão de técnicas e diversidade de insumos, poderia dialogar com a cozinha senegalesa no âmbito de eventos gastronômicos, festivais culturais ou programas de diplomacia culinária. Este tipo de atividade permite não só promover a identidade cultural, mas também posicionar produtos locais, incentivar o turismo e abrir espaços para indústrias criativas.

Há também oportunidades de cooperação educacional e artística. Instituições culturais e universidades de ambos os países podem desenvolver programas de intercâmbio acadêmico, oficinas de arte, residências artísticas ou projetos conjuntos de pesquisa sobre patrimônio e desenvolvimento. Esse tipo de iniciativa não apenas fortalece os vínculos entre os povos, mas também contribui para a construção de uma visão compartilhada de desenvolvimento do Sul Global, baseada no reconhecimento da diversidade e do respeito intercultural.

A cultura, nesse sentido, não deve ser considerada um elemento decorativo da relação bilateral, mas um componente central da integração entre o Peru e o Senegal, capaz de gerar confiança, coesão simbólica e sentimento de pertencimento entre os dois povos.

PERÚ SENEGAL

DIA DA AMIZADE PERUANO-AFRICANA COM A PARTICIPAÇÃO DOS EMBAIXADORES DE ANGOLA, ARGÉLIA, EGITO, MARROCOS, MAURITÂNIA, NIGÉRIA, SENEGAL E ÁFRICA DO SUL

Fonte:Ministério das Relações Exteriores do Peru

6. PERSPECTIVAS PARA A INTEGRAÇÃO ECONÓMICA SUL-SUL

O potencial aprofundamento das relações entre o Peru e o Senegal deve ser enquadrado em uma visão estratégica de cooperação Sul-Sul, baseada na reciprocidade, solidariedade e aprendizado mútuo. Organizações como a Agência Peruana de Cooperação Internacional (APCI) e a Agência de Cooperação Senegalesa (SenCoop) podem desempenhar um papel fundamental na identificação de projetos conjuntos, especialmente se forem articulados com parceiros multilaterais como a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) ou o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e o Crime (UNODC).

Da mesma forma, a inserção de ambos os países em plataformas multilaterais pode gerar sinergias adicionais. Por exemplo, o Peru poderia se tornar um país observador nos fóruns da União Africana relacionados ao desenvolvimento agrícola e às mudanças climáticas, enquanto o Senegal poderia participar mais ativamente da Aliança do Pacífico, promovendo o diálogo inter-regional. Estas instâncias permitiriam partilhar políticas bem-sucedidas, atrair investimentos responsáveis e explorar áreas como o biocomércio, as energias renováveis ou o turismo comunitário, com vista a uma maior diversificação económica.

7. CONCLUSÕES

Embora ainda modestas em termos quantitativos, as relações econômicas entre o Peru e o Senegal estão em um estágio crucial de expansão qualitativa. O interesse mútuo e a afinidade pelos objetivos de desenvolvimento sustentável abrem oportunidades para a construção de uma aliança mais profunda e estratégica, baseada na cooperação técnica e na troca de experiências.

La trayectoria peruana en desarrollo alternativo ofrece un marco conceptual y metodológico adaptable a los retos de Senegal, en tanto que este país africano representa una puerta de entrada para el Perú a África Occidental, una región con creciente relevancia geoeconómica.

No entanto, para que essas oportunidades se concretizem, é essencial institucionalizar mecanismos de cooperação e comércio por meio de acordos específicos, esquemas de financiamento sustentável e estruturas de avaliação conjunta.

Só assim se pode consolidar uma relação econômica duradoura, que contribua para uma maior justiça econômica entre as regiões do Sul Global e para o fortalecimento de modelos de desenvolvimento mais inclusivos, resilientes e sustentáveis.

REFERÊNCIAS:

DEVIDA. (2024). Memoria Institucional 2023. Comisión Nacional para el Desarrollo y Vida sin Drogas.

Intracen (2023) Cooperativas agrícolas en Senegal impulsadas por insumos subvencionados y desarrollo organizativo productivo.

Trade Map / ITC (2023) Bilateral Trade Statistics between Peru and Senegal.

FAO (2022) Cooperación Sus-Sur y Triangular de la FAO 2022- 2025.

HOSPITALIDADE SENEGALESA: "TERANGA"

"A

verdadeira revolução

não

é

aquela que destrói, mas aquela que

O Ser Humano ou "Homo Sapiens", como nossa espécie é cientificamente conhecida, aparece na face da Terra há cerca de 200.000 anos [1], como mostram até agora os vestígios mais antigos encontrados na África, mais especificamente no Marrocos. Isso mostra que a origem de nossa espécie é, sem dúvida, o continente africano, berço da humanidade, mas não apenas do "Homo Sapiens", mas dos numerosos hominídeos que o precederam ou que em algum momento vieram a contemporizar com ele, no longo e impressionante processo evolutivo. Assim, os restos mais antigos, datados de cerca de 2,5 milhões de anos atrás [2]. A África, o berço indiscutível da humanidade, não apenas viu o surgimento do Homo sapiens, mas também de seus ancestrais mais remotos.

Estes antecedentes não podem ser deixados de lado quando se refere a este continente extraordinário, e observando a realidade atual dos seus habitantes, a sua situação social e cultural, política e económica, entre outros, referindo-se nesta ocasião a um dos países mais ocidentais do continente africano: o Senegal.

E quando se trata do Senegal, será feita referência a uma expressão cultural muito particular do seu povo: a hospitalidade senegalesa ou na língua wolof, a língua mais falada pela sua população: "Teranga". Esta manifestação cultural, profundamente enraizada na sua população, é antes uma filosofia de vida, simples e não pesada, mas muito prática na sua aplicação por este povo amigo e hospitaleiro.

Então, o que é "Teranga"? [3] Pois é uma aptidão desse povo, caracterizada pelo calor demonstrado no tratamento mútuo e que se estende a visitantes e estrangeiros, independentemente de sua origem. Estranhos são tratados como amigos e essa aptidão vai além da simples cortesia. É um modo de vida que mostra a generosidade e o espírito comunitário do povo senegalês.

Ministro conselheiro Miguel Fernando córdova cuba
Fonte: flickr.com
léoPold sédar senghor

Em todos os cantos daquele país, o visitante poderá encontrar um calor muito particular, com sorrisos autênticos e sinais de bondade. Essa hospitalidade se manifesta de diferentes formas, assim, por exemplo, oferecer sua comida, mas não se trata apenas de dar um lugar ao estrangeiro na mesa, mas busca fazer com que ele se sinta quase parte da família e em geral essa atitude se manifesta em cada interação com o visitante.

Uma série de expressões verbais nos faz ver o quão profundamente enraizado "Teranga" está na percepção da população senegalesa, que muitas vezes supera em gentileza as expressões usuais de cortesia no mundo ocidental. Assim, em vez de agradecer a outra pessoa pelo favor recebido com o conhecido "de nada" na fala ocidental, os senegaleses usam a expressão "ngoko bokk", que significa "estamos juntos" em sua língua.

A frase de boas-vindas ao lar, traduzida do wolof, seria: "hoje você é o dono da minha casa", uma expressão de cortesia que supera qualquer outra na cultura ocidental. Este sentimento de hospitalidade não se limita à esfera doméstica, mas se projeta em todas as áreas da vida social senegalesa.

"Teranga", uma manifestação cultural, profundamente interiorizada desde a infância e transmitida geracionalmente, constitui uma base essencial para a formação educacional e moral do povo senegalês.

Uma característica que torna "Teranga" única é que ela não faz distinção entre as pessoas. É praticado com a família, amigos, conhecidos e completos estranhos. Na visão de mundo senegalesa, não há outra: todos fazem parte da mesma comunidade. Se um estrangeiro está de passagem pelas cidades mais populosas, como Dakar ou Saint Louis, e pede ajuda a um local, o local geralmente se esforça para garantir que o visitante chegue ao seu destino. É até possível encontrar um vendedor ambulante que o convidará um chá enquanto explica pacientemente o caminho certo.

"Teranga" também se manifesta fortemente em pequenas aldeias, como a do País de Bassari ou na região de Casamance, onde a hospitalidade assume um caráter ainda mais próximo e íntimo [3].

Nesses ambientes, o visitante pode ser recebido como membro da comunidade, convidado a compartilhar refeições tradicionais, participar de atividades diárias e até mesmo assistir a cerimônias locais.

Ser convidado para uma casa e dividir a mesa com suas comidas típicas é uma das práticas mais comuns de "Teranga" e como são essas comidas tradicionais? [4] Bem, em primeiro lugar, é importante especificar que a culinária senegalesa é uma das melhores da África Ocidental, tendo uma fusão de influências da França, Portugal, Oriente Médio e América. Caracterizase por ser uma cozinha picante, saborosa e muito tropical. O ingrediente mais comum é o peixe, o que faz sentido devido à proximidade deste país com o mar. As espécies mais consumidas variam bastante, desde o atum, linguado, garoupa, barracuda, peixeespada, entre outras espécies marinhas.

Fonte: planesconduende.com

Os senegaleses não gostam muito de comer carne, embora consumam cordeiro, boi e cabra e frango como o alimento animal mais popular. Por outro lado, muitos de seus pratos contêm cereais como arroz, painço ou fôniô; ou vegetais como cenoura, tomate, berinjela, repolho, feijão-caupi (feijão); além de frutas abundantes: manga, mamão, goiaba, coco, abacaxi, banana, abacate, tangerina, tâmaras, entre outros.

Quanto à gastronomia ou pratos típicos, Thieboudinne, é considerado o prato nacional senegalês, preparado à base de peixe fresco e seco; mas também há o Pollo Yassa, originário da região de Casamance; o Caldou, o Bassi Salte, o Mafe, o Lakhou Bissap, nativo do Senegal central e ocidental; Firire ou Domoda, entre os pratos mais conhecidos. Da mesma forma, seus doces recheados com peixe se destacam nos doces deste país. Bissap é a bebida mais popular dos senegaleses.

Esta cultura da hospitalidade tem uma origem histórica, infelizmente ligada a um período sombrio e trágico para o povo senegalês: a colonização e o tráfico transatlântico de escravos. Como muitas outras populações africanas, os ancestrais desta nação foram vítimas desse sistema desumano. Por aproximadamente 315 anos, os traficantes europeus capturaram e negociaram homens e mulheres de várias regiões africanas, transportando-os em barcos por meio de viagens árduas, nas quais muitos não conseguiram sobreviver.

Como uma importante testemunha dessa época, a ilha de Gorée [5], localizada no Senegal, a menos de quatro quilômetros da costa de Dakar e um símbolo do comércio transatlântico de escravos. De lá, vários navios com escravos partiram para a América. A chamada "Casa dos Escravos" é hoje um local de memória visitado por centenas de turistas afrodescendentes que buscam aprender mais sobre esse passado trágico. Graças a estudos como os de Andrew Kahn e Jamelle Bouie, agora há uma compreensão mais profunda desse doloroso legado.

Depois de ter sido uma colônia francesa, o Senegal alcançou sua independência em 1960. Na época de sua constituição como república, o país possuía uma notável diversidade interna, marcada por diferenças religiosas, étnicas, culturais e linguísticas. Nesse contexto, surgiu a figura de seu primeiro presidente, Léopold Sédar Senghor, que promoveu a prática de "Teranga" como uma ferramenta social destinada a construir uma identidade nacional e fomentar a solidariedade entre os diferentes grupos que compõem a nação. Embora essa forma de hospitalidade não tenha sido uma criação de Senghor, seu mérito reside em ter resgatado e revalorizado esse antigo costume – concebido em tempos de escravidão – para integrá-lo ao projeto republicano. Esse propósito parece ter sido cumprido com sucesso, já que "Teranga" continua a ser uma prática viva na sociedade senegalesa contemporânea.

Fonte: commons.wikimedia.org
Fonte: commons.wikimedia.org

Como legado do fatídico período da escravidão, um profundo senso de comunhão e uma vontade de compartilhar o sofrimento surgiram no Senegal como uma forma de resistência coletiva e resiliência cultural. Longe de nutrir ressentimento em relação aos europeus responsáveis por aquele drama, o povo senegalês respondeu com generosa hospitalidade: transformou a dor em festa, o ressentimento em afeto e a injustiça em solidariedade. Essa hospitalidade não é apenas uma virtude cultural, mas uma lição de humanidade e uma filosofia de vida tornada prática com a qual o Ocidente ainda pode aprender.

Além disso, a Teranga foi reconhecida não apenas como uma virtude popular, mas também como uma ferramenta diplomática e projeção internacional. O Senegal conseguiu construir uma imagem positiva no exterior, em parte graças a essa tradição cultural que atrai viajantes, pesquisadores e organizações multilaterais. Em um mundo marcado pela polarização, o modelo senegalês de acolhimento representa uma alternativa baseada na dignidade, no respeito mútuo e no reconhecimento do outro como parte essencial da comunidade.

Em conclusão, "Teranga" não é apenas um costume hospitaleiro, mas uma expressão profunda da história, filosofia de vida e identidade nacional do povo senegalês. Nascido da dor, fortalecido na diversidade e projetado como exemplo de convivência, este tecido social senegalês de hospitalidade encarna uma sabedoria ancestral que convida o mundo a repensar a forma como nos relacionamos uns com os outros.

REFERÊNCIAS:

[1] National Geographic (2022), “¿Cuál es el origen de la humanidad según la ciencia?”. En Historia, National Geographic Society. Washington, DC.

[2]Harari, Yuval Noah (2022), “Un animal sin importancia”. En De animales a dioses - Breve Historia de la humanidad (p 16). Buenos Aires: Debate.

[3] Pág web: Planes con duende (2025).“Senegal”. En agencia de viajes Planes con Duende, Sevilla.

[4] Pág web: Senegal.es (2023), “Sabores de Senegal: Gastronomía y recetas tradicionales”.

[5] UNESCO (2024), “Gorée, la isla de la memoria”. En El correo de la Unesco, Paris.

TERANGA É UMA COMBINAÇÃO SENEGALESA ÚNICA DE GENEROSIDADE, HOSPITALIDADE E SOLIDARIEDADE QUE CARATERIZA A VIDA COTIDIANA
Fonte: bbc.com

A PALESTRA "NÉGRITUD ET AMÉRIQUE LATINE" (1974)

Julio Antonio ubillús RAmíRez

Conselheiro no serviço DiplomátiCo Da repúbliCa Do peru

SOBRE A CONFERÊNCIA INTERNACIONAL "NÉGRITUDE ET AMÉRIQUE LATINE"

REALIZADA EM DAKAR, SENEGAL

Em janeiro de 1974, o proeminente poeta e escritor Léopold Sédar Senghor, então presidente do Senegal, promoveu a iniciativa de realizar na cidade de Dakar, a conferência internacional intitulada "Negritude et Amérique Latine" (Negritude e América Latina). O evento, o primeiro do gênero realizado na África, foi organizado pelo Centro de Altos Estudos Afro-Ibero-americanos da Universidade de Dakar, e representou na época um esforço inédito para ligar a África e a América Latina por meio de laços comuns nas esferas histórica, cultural e intelectual, criados graças às contribuições da diáspora afrodescendente.

A proposta temática da conferência, animada pelo conceito de "negritude", cuja definição evoluiria e seria apresentada em 1980 pelo próprio presidente Senghor como "o conjunto de valores do mundo negro ... que foi além de suas abordagens literárias iniciais para se tornar uma forma de cultura, na autenticação, na identificação da cultura negra" (Ansón, 1980), gerou grande interesse na América Latina, particularmente de pensadores e artistas especializados no assunto.

Desta forma, a conferência "Négritude et Amérique Latine" procuraria promover uma reflexão e visão compartilhadas sobre o extenso legado cultural herdado da África pela América Latina, bem como sobre o sensível processo histórico da escravidão e seus efeitos em ambos os lados do Atlântico, com o objetivo de gerar um novo espaço de coesão e fortalecimento dos já históricos e extensos laços existentes entre ambos os continentes e seus países (Bournot, E. 2022. pp. 77 e 78).

Alguns dos participantes latino-americanos mais proeminentes foram o Prêmio Nobel de Literatura Miguel Ángel Asturias da Guatemala, Leopoldo Zea do México, Angelina Pollak-Eltz da Venezuela, Luis Adolfo Siles Salinas da Bolívia, Manuel Zapata da Colômbia, Pablo

Mariñez da República Dominicana, Clóvis Moura do Brasil e Benjamín Pinto Bull da Guiné-Bissau (Devés, E. 2023).

Entre eles, Nicomedes Santa Cruz, um proeminente poeta, decimista, pesquisador e promotor da cultura afroperuana, participou em nome do Peru.

SOBRE A APRESENTAÇÃO DE NICOMEDES SANTA CRUZ, INTITULADA "CONTRIBUIÇÕES DAS CIVILIZAÇÕES

AFRICANAS PARA O FOLCLORE DO PERU"

A conferência, que durou cinco dias, reservou um espaço para que Nicomedes Santa Cruz, por meio de sua apresentação "Contribuições das civilizações africanas para o folclore do Peru", possa expor no Senegal elementos marcantes de nossa cultura afro-peruana e compartilhar suas reflexões sobre as origens e influências da África em sua gestação, desenvolvimento e consolidação.

NICOMEDES SANTA CRUZ - BIOGRAPHY Fonte: A Nova Crônica (1974).

O início de seu discurso talvez possa ilustrar as motivações de sua viagem a Dakar e sua presença na reunião. Nesse sentido, e como pode ser visto em seu discurso, o valor da conferência, ao invés de servir de marco para apresentar uma lista de fatos e especulações sobre a herança africana presente no Peru, foi além e apontou a oportunidade que o colóquio teve de servir como um espaço para avaliar precisamente o significado desse vínculo, tanto dentro da cultura africana, quanto de sua influência em nossa cultura (Santa Cruz, N. 1974, p. 370).

Com esse objetivo, Nicomedes Santa Cruz apresenta reflexões e argumentos que destacam o valor das manifestações culturais e artísticas herdadas da África e transmitidas ao Peru por meio da comunidade afrodescendente. Da mesma forma, destaca com exemplos concretos o papel decisivo que desempenhou em vários processos históricos desenvolvidos em nosso país nos setores demográfico, político e econômico, bem como nos campos da dança, música, gastronomia e fé, entre outros.

No que diz respeito ao objetivo de seu discurso, ou seja, sustentar a validade da influência cultural africana nas tradições culturais vivas no Peru, Nicomedes Santa Cruz compartilha com os participantes histórias documentadas, tradições orais, fatos históricos, registros do uso de instrumentos musicais e usos e costumes relacionados à dança e à música, coletados desde meados do século XVII (Santa Cruz, N. 1974, pp. 375, 376 e 377).

O Sr. Santa Cruz refere-se à presença em meados do século XVII de práticas de dança de origem africana presentes em Zaña -no norte do Peru- e entre as quais destaca o lundú, a fim de compartilhar suas reflexões sobre os processos que geraram seu desaparecimento, dando origem ao surgimento do tondero como seu herdeiro. De forma análoga, apresenta um conjunto de argumentos sobre uma evolução semelhante que se desenvolve no caso do landó e a influência que teve, juntamente com outras tradições musicais já presentes em nosso país, na gestação da zamacueca, que mais tarde seria rebatizada de marinera[1] (Santa Cruz, 1974, pp. 379–380; Rocca Torres, 2024, pp. 153–155)

Nicomedes Santa Cruz também fez questão de dar a conhecer aos participantes do evento no Senegal, a importância que a cidade de Zaña e sua população tiveram no desenvolvimento da cultura afro-peruana em nosso país, cidade que anos depois - precisamente 2017 - seria a primeira no Oceano Pacífico a ser reconhecida pelas Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) como "Sítio da Memória da Escravidão e do Patrimônio Cultural Africano" (Ministério da Cultura, 2017).

NICOMEDES SANTA CRUZ - BIOGRAPHY Fonte: A Nova Crônica (1974).
NICOMEDES SANTA CRUZ - BIOGRAPHY Fonte: A Nova Crônica (1974).

REFLEXÕES SOBRE A PRESENÇA DE NICOMEDES SANTA CRUZ NO SENEGAL E SUA PARTICIPAÇÃO NA CONFERÊNCIA INTERNACIONAL

Aobra "Nicomedes Santa Cruz, Zaña y África" do sociólogo peruano Luis Rocca Torres, contém um conjunto de entrevistas e testemunhos que apresentam uma ideia da importância que a viagem a Dakar teve na vida de Nicomedes Santa Cruz (Rocca Torres, 2015, pp. 40-45).

No que diz respeito à conferência "Négritude et Amérique Latine", pode-se notar que ela representaria uma oportunidade valiosa para o Sr. Santa Cruz compartilhar, em uma conferência realizada simbolicamente na África e diante de um público proeminente de personalidades internacionais especialistas no assunto, uma leitura peruana sobre os fortes laços históricos e culturais que uniram a África e o Peru no passado, bem como suas reflexões sobre a validade desses laços em diversas representações culturais ainda vivas em nosso país, especificamente nas artes musicais e na dança.

Destaca-se também o trabalho de Nicomedes Santa Cruz para tornar conhecida a relevância da conferência em nosso país.

A este respeito, através da coluna La Página de Nicomedes no jornal La Nueva Crónica, o próprio Sr. Santa Cruz publicou quatro partes intituladas "Colóquio sobre Negritude e América Latina" (20 de janeiro de 1974), "Negritude e América Latina" (27 de janeiro de 1974), "Negritude e América Latina (III)" (3 de fevereiro de 1974) e "Negritude, Consciência (IV)" (10 de fevereiro de 1974). Nessas publicações, ele apresentava aos leitores nacionais avaliações pessoais de sua viagem ao Senegal, relatando também os detalhes da evolução da conferência e compartilhando fragmentos do discurso que apresentou em nome do Peru (Santa Cruz, B. 1974).

Nicomedes Santa Cruz representa, sem dúvida, uma das vozes e personalidades mais relevantes da nossa história recente. Seu trabalho ativo e comprometido realizado por meio de ações culturais, poesia, música, jornalismo e arquivamento, entre outros, ajudou a recuperar, compreender, revalorizar e divulgar elementos valiosos de nossa herança afro-peruana.

De uma perspectiva mais ampla, e no contexto da iniciativa do presidente senegalês Léopold Sédar Senghor de estabelecer novas pontes de diálogo e intercâmbio intelectual e cultural entre a África e a América Latina, a participação de Nicomedes Santa Cruz na conferência internacional "Négritude et Amérique Latine" representou uma oportunidade única para dar a conhecer elementos culturais relevantes de nossa herança afro-peruana na África.

Assim, o Sr. Santa Cruz aproveitou o espaço que lhe foi dado na conferência de Dakar para se dirigir aos participantes e falar com eles sobre o lando, o tondero e a marinera, a mandíbula do burro e o cajón, o Senhor dos Milagres e San Martín de Porres, todos elementos valiosos que fazem parte da cultura do Peru. Este ato representou uma valiosa contribuição cultural, gerando na época um vínculo renovado entre o Peru e – através do Senegal – a África.

Como o mês da Cultura Afro-Peruana e o Centenário do Nascimento de Nicomedes Santa Cruz foram celebrados recentemente em 4 de junho de 2025, vale destacar o reconhecimento póstumo "Ordem dos Grandes Mestres da Cultura Peruana" [2] que lhe foi concedido pelo Estado peruano, como testemunho e reconhecimento de seu "legado como referência essencial para as novas gerações e ferramenta potente para políticas públicas no campo da memória, da justiça e da diversidade" (Ministério da Cultura, 2025).

NICOMEDES SANTA CRUZ - BIOGRAPHY Fonte: A Nova Crônica (1974).

CITAÇÃO:

[1] Em sua obra Malambo: História e Artes do Primeiro Bairro Afro-Peruano de Lima, Luis Rocca Torres explica o processo de transição da zamacueca para a marinera, citando em detalhes as variações e adaptações de instrumentos, estilos e passos de dança, bem como a campanha realizada pelo Sr. Abelardo Gamarra "El Tunante" durante o último terço do século XIX, para mudar o nome de zamacueca para marinera no contexto da Guerra do Pacífico.

[2] Em 2024, o Governo do Peru, por meio do Ministério da Cultura, criou o reconhecimento "Ordem dos Grandes Mestres da Cultura Peruana", com o objetivo de premiar e distinguir as personalidades de nossa história que dedicaram suas vidas a promover e revalorizar vários elementos que fazem parte do Patrimônio Cultural da Nação.

REFERÊNCIAS:

Ansón, L (1980, 12 de noviembre). Leopold Senghor: “La negritud es el conjunto de valores de la raza negra” (en línea). Obtido o 4 de junho de 2025 de https://elpais.com/ diario/1980/11/12/internacional/342831608_850215. html?event=go&event_log=go&prod=REGCRART&o=cerrado

Bournot, E. (2022). Négritude et Amérique Latine: From the Black South Atlantic to the Third World. En Comparative Literature Studies, Volume 59, Number 1 (pp. 77-93). Pensilvania, Estados Unidos: Penn State University Press.

Devés, E (2023). Redes intelectuales Sur-Sur: trayectorias y propuestas hacia el futuro (en línea). Obtido o 4 de junho de 2025 de https://dialnet.unirioja.es/descarga/ articulo/9048592.pdf

Ministerio de Cultural de la República del Perú (2025). Resolución Suprema Nº 012-2025-MC: Otorgan, a título póstumo, el reconocimiento Orden de los Grandes Maestros de la Cultura Peruana al señor Nicomedes Santa Cruz Gamarra, en la subcategoría promoción de los derechos del pueblo afroperuano (4 de junio de 2025).

Ministerio de Cultura de la República del Perú (2025).

Nota de prensa “Zaña es reconocido por la UNESCO como Sitio de Memoria asociado a La Ruta del Esclavo: resistencia, libertad, patrimonio” (en línea). Obtido o 6 de junio de 2025 de https://www.gob.pe/institucion/ cultura/noticias/5159-zana-es-reconocido-por-launesco-como-sitio-de-memoria-asociado-a-la-rutadel-esclavo-resistencia-libertad-patrimonio

Rocca Torres, L. (2015). Nicomedes Santa Cruz, Zaña y África. Lima, Perú: Centro de Desarrollo Étnico – CEDET.

Rocca Torres, L. (2024). Malambo: Historia y Artes del Primer Barrio Afroperuano de Lima. Lima, Perú: Fondo Editorial de la Universidad Pontificia Universidad Católica del Perú.

Santa Cruz, N. (1974). Aportes de las Civilizaciones Africanas al Folklore del Perú. Ponencia presentada en el coloquio “Négritude et Amérique Latine”. Dakar, Senegal (en línea). Obtido o 4 de junio de 2025, de https://www. nicomedessantacruz.com/ponencias.

Santa Cruz, N. (1974). La Página de Nicomedes. En La Nueva Crónica. Lima, Perú (en línea). Obtido o 5 de junio de 2025, de https://www.nicomedessantacruz.com/ ponencias.

NICOMEDES SANTA CRUZ: O HOMEM, O LEGADO E DAKAR

WAlteR AndRés zumARán dávilA

segunDo seCretário no serviço DiplomátiCo Da repúbliCa Do peru

1. INTRODUÇÃO

Em 4 de junho de 2025, celebrou-se o centenário do nascimento de Nicomedes Santa Cruz Gamarra (19251992), um dos intelectuais peruanos mais destacados do século XX – possivelmente o maior representante da afro-peruanidade de seu tempo. Pensador multifacetado, sua carreira foi marcada pela constante pesquisa e divulgação das raízes africanas no Peru, em diálogo com outras formas de identidade popular. A partir dos anos cinquenta, Nicomedes desenvolveu um papel que, sem renunciar ao humor ou ao ritmo da décima, colocou no debate nacional a situação racial e cultural em que se encontrava a população afrodescendente no Peru.

Aproveitando o fato de que esta edição da Revista Cumanana é dedicada à República do Senegal, gostaria de destacar a participação de Nicomedes Santa Cruz no Colóquio Négritude et Amérique Latine, convocado pelo então presidente do Senegal Léopold Sédar Senghor; o mesmo que aconteceu na cidade de Dakar entre 7 e 12 de janeiro de 1974. Este evento, nas palavras da pesquisadora Estefanía Bournot (Négritude et Amérique latine: Do Atlântico Sul negro ao Terceiro Mundo), "originou uma diplomacia cultural internacional articulada em torno da ideia de 'fraternidade racial' e solidariedade do Terceiro Mundo".

Como o primeiro encontro internacional dessa magnitude, o Colóquio representou um marco em sua carreira. Em Dakar, Santa Cruz não apenas compartilhou sua pesquisa sobre a cultura afro-peruana com representantes da África, América Latina e Caribe, mas também testemunhou um espaço onde a africanidade não era apenas uma contribuição, mas uma presença viva e reconhecida: o eixo central.

Nestas linhas, examinaremos o caminho de Nicomedes em Dakar, o significado cultural e internacional que esse colóquio teve para ele e como essa experiência consolidou nele uma visão mais transnacional da negritude.

2. NICOMEDES SANTA CRUZ E A REIVINDICAÇÃO DA CULTURA AFRICANA NO PERU

Para entender as origens vitais e intelectuais de Nicomedes Santa Cruz, vou me referir a uma coluna de Hugo Neira Samanez publicada no jornal Expreso (6 de abril de 1964), intitulada Outra surpresa em Nicomedes: Ao universal pelo negro:

"Todos sabemos que a família Santa Cruz é um sucesso pela variedade de personalidades artísticas que tem oferecido ao país [...] Nicomedes, o mais jovem de todos esses gênios da família, foi ferreiro por 18 anos de sua juventude e maturidade. Mas o fogo da família forjou um temperamento cujo uso simples e feliz da [língua] não exigia academias [...], e quando chegou o momento oportuno, Nicomedes, o ferreiro, tornou-se sem surpresas Nicomedes, o decimista".

Nicomedes Santa Cruz, nascido em 4 de junho de 1925, era o nono de dez filhos de Nicomedes Santa Cruz Aparicio e Victoria Gamarra Ramírez. A paixão pela cultura e arte afro-peruana, sabemos, veio de casa.

O pãe de Nicomedes era um escritor de peças de teatro e, uma vez estabelecida a família, ele ganhava seu pão como mecânico industrial; ofício que aprendeu durante sua permanência prolongada nos Estados Unidos. Sobre Dona Victoria Gamarra, conta seu filho que, enquanto trabalhava como lavadeira, passava o dia cantando vários gêneros musicais de origem afro-peruana, incluindo a décima.

Tendo completado cinco anos de educação primária, em 1936, aos onze anos, Dona Victoria o apresentou ao mestre serralheiro Nicanor Zúñiga para aprender o ofício de ferreiro; uma ocupação que ele exerceria por vinte anos. Nicomedes chegou a abrir uma oficina na casa da família em 1953, que deixaria a cargo de sua família três anos depois.

Foi no final dos anos quarenta que Nicomedes conheceu Porfirio Vásquez, "O Patriarca da Música Negra". Foi Don Porfirio quem o apresentou ao mundo das décimas, um gênero literário-musical cuja tradição já estava morrendo; e ao qual ele já havia sido exposto em sua infância na voz de sua mãe.

Nicomedes, a partir de então, tornou-se discípulo de Porfirio Vásquez, superando até mesmo seu professor —isso nas palavras do próprio Santa Cruz—. Assim, em 1956, decidiu deixar a oficina de ferreiro que ele próprio tinha montado e viajar pelo país para "encontrar o seu destino". Nicomedes conta que ia de cidade em cidade improvisando poemas e, aliás, compilando as tradições orais desses povos.

Foi em 1957 que Nicomedes começou a conquistar um lugar nas artes peruanas. Primeiro, participando com a Companhia "Pancho Fierro" em shows em Lima, Arequipa e Chile. Em seguida, em outubro, participando do álbum "Gente Morena". E em novembro, começando no rádio.

Foi apenas no ano seguinte, em 1958, que alcançou reconhecimento nacional por meio de sua participação no rádio e na televisão; somado a um texto escrito sobre ele por Sebastián Salazar Bondy. Nesse mesmo ano, Nicomedes se consolidou como promotor cultural e divulgador das artes afro-peruanas ao fundar o Conjunto "Cumanana", que marcaria o início da carreira de sua irmã Victoria.

Já por ocasião da publicação de seu livro Décimas em 1959, o jornal El Comercio (25 de dezembro de 1959) aponta:

"Quanto ao conteúdo —os versos de Santa Cruz—, é desnecessário elogiá-los novamente: é um artista consagrado diretamente pelo povo."

NICOMEDES SANTA CRUZ - BIOGRAPHY Fonte: www.youtube.com/watch?v=Lcs4ufFZpTs

Em meio ao debate entre uma afirmação cultural ou uma reivindicação política da negritude – um debate que também se refletiria no Colóquio de Dakar – Nicomedes bebeu de ambas as fontes. Reconhecendo a desigualdade estrutural dos afrodescendentes, dedicou-se a resgatar a influência da cultura africana na sociedade peruana, sem deixar de fazer críticas sociais, mesmo em suas composições literárias.

A década de sessenta marcaria uma inclinação política de protesto na produção de Nicomedes Santa Cruz, que geraria uma passagem fugaz pela política e pelo descontentamento. Isso o levou a tomar a decisão em 1963 de ir para o Brasil, onde conheceu o escritor e etnólogo Edison de Souza Carneiro; especializado em cultura afro-brasileira. Dois meses depois, em agosto, retornou ao nosso país com toda a experiência e conhecimento adquiridos no Brasil.

Em Cumanana (1964), em sintonia com seus primeiros textos, Nicomedes reivindica a história afro-peruana com uma linguagem acessível e direta. A esse respeito, o jornal Expreso (4 de abril de 1964) destaca:

"Quem não conhece Nicomedes? Quem nunca ouviu uma decima dele em algum momento? Talvez se ele for o único escritor peruano que pode se dar ao luxo de jogar fora 10.000 cópias de um livro de versos, como acabou de fazer. Os versos geralmente não são para as grandes massas, mas Nicomedes —poeta popular— os escreve e sabe como transmiti-los."

Nicomedes se posicionou como intelectual, artista e divulgador da cultura afro-peruana por meio de suas pesquisas, suas décimas e sua encenação; bem como na sua participação no rádio. Inclusive, junto com sua irmã Victoria, ele reconstruiu uma herança afro-peruana que havia sido ignorada até então. Pelo que podemos ver em seus textos, sua visão de mundo começou a ser construída a partir da combinação de reivindicação e integração: defendeu a miscigenação peruana a partir de uma abordagem crítica, na qual ressaltou a importância de reconhecer a contribuição da população afro-peruana.

O convite para o Colóquio encontra, então, Nicomedes Santa Cruz em um estágio de maturidade intelectual e com o reconhecimento de sua contribuição à sociedade peruana. Dakar significava, nessas circunstâncias, não apenas um destino geográfico, mas o início de um diálogo civilizacional que contribuiria para definir seu lugar no mundo.

NICOMEDES SANTA

3. O COLÓQUIO DE DAKAR: UM ENCONTRO TRANSATLÂNTICO

NICOMEDES SANTA CRUZ

Nicomedes Santa Cruz foi contatado pela primeira vez em 1973 pelo sociólogo dominicano Pablo Maríñez, que entre 1971 e 1975 viveu no Peru dedicando-se ao ensino universitário —anos depois representaria seu país como Embaixador no México e no Chile—; para presenteá-lo com a oportunidade de participar do Colóquio Négritude et Amérique latine: um encontro entre intelectuais, artistas e acadêmicos afrodescendentes da América Latina, Caribe e África. Este convite e sua participação conjunta em Dakar marcariam o início de uma relação que se estenderia ao longo dos anos: eles não apenas mantiveram contato epistolar durante toda a vida de Santa Cruz, mas Maríñez também escreveria o livro Nicomedes Santa Cruz; Decimista, Poeta e Folclorista AfroPeruano (Município Metropolitano de Lima, 2000).

Vamos nos situar no tempo e no espaço primeiro: no Peru, desde 1968, estávamos no chamado Governo Revolucionário das Forças Armadas, chefiado pelo general Juan Velasco Alvarado; um governo que terminaria em agosto de 1975 após o Tacnazo do general Francisco Morales Bermúdez. O Senegal foi governado por Léopold Senghor, que foi eleito o primeiro presidente da república nascente em 1960; um governo que duraria até 1980. Ambos os países tinham em comum, entre outras coisas, sua participação no Movimento dos Países Não Alinhados; cuja Conferência de Ministros das Relações Exteriores seria realizada em Lima em agosto de 1975.

Senghor faz parte precisamente da criação do conceito de negritude na França nos anos trinta, com os intelectuais Aimé Césaire e Léon Damas, e coletando contribuições de personalidades como as irmãs Paulette e Jeanne Nardal, como um projeto que busca forjar uma identidade comum para a população afrodescendente.

Assim, o apelo do presidente Léopold Senghor para o colóquio Négritude et Amerique Latine pode ser entendido como a primeira oportunidade na África em que a intelectualidade afrodescendente da América Latina e do Caribe se reúne com representantes do continente africano para estabelecer um diálogo entre os dois povos.

Nicomedes Santa Cruz narra suas expectativas sobre a viagem (La Página de Nicomedes: Colóquio sobre Negritude e América Latina. Jornal A Nova Crônica, 20 de janeiro de 1974):

"A bordo do jato que nos levava do Rio a Dakar, meu companheiro de viagem, Pablo Maríñez, sociólogo, professor da Universidade de San Marcos e negro como eu, meditava taciturno. […] nós dois sabíamos perfeitamente bem o que o outro pensava:

O retorno à pátria! … Voltar a pisar em solo africano depois de quatro séculos. Ter saído em caravela e regressado de avião. Navios negreiros de cinco andares [...]. De repente, a aeromoça nos entrega copos de suco de laranja e, quando esticamos os braços, vemos nossos pulsos livres de grilos, embora o tilintar das correntes ainda persistisse em nossos ouvidos”.

Naquela ocasião, Nicomedes apresentou o artigo "Contribuições das civilizações africanas para o folclore do Peru", no qual defendeu com clareza e convicção a centralidade do componente africano na cultura peruana, particularmente no campo do folclore costeiro. Por meio de uma viagem histórica, identificou a presença africana em gêneros musicais como a marinera, a landó, o panalivio e a zamacueca. Ele destacou que muitos desses elementos, profundamente enraizados na vida cotidiana do povo peruano, foram resultado direto da contribuição das comunidades afrodescendentes trazidas para o Peru em condições de escravidão. Sua apresentação não foi apenas descritiva, mas também reivindicativa: Santa Cruz exigiu o pleno reconhecimento dessas expressões como parte do patrimônio cultural do país e do legado das civilizações africanas na América.

A participação de Nicomedes Santa Cruz possibilitou estabelecer pontes entre as vivências afro-americanas e suas origens culturais na África, articulando a herança cultural proveniente da "Pátria Mãe" – expressão que o próprio Santa Cruz usa para se referir ao continente africano – com as danças afro-peruanas. Assim, reafirmou sua posição não apenas como poeta e folclorista, mas também como intelectual afro-peruano com voz ativa nos debates sobre negritude, identidade cultural e memória histórica no continente americano.

Com base na criação da "Associação de Estudos AfroLatino-Americanos", aprovada pelos participantes do Colóquio, Nicomedes, assim que retornou ao Peru, buscou o estabelecimento de um "Instituto de Estudos Afro-Peruanos" em Lima, projeto que reformularia como "Revista de Estudos Afro-Peruanos". Ambas as ideias foram decididamente apoiadas por seu novo amigo Pablo Maríñez, embora infelizmente nenhuma delas tenha se concretizado.

No entanto, o impacto do Dakar em Nicomedes foi duradouro. A partir de então, sua produção intelectual e artística deu uma guinada em direção a uma visão mais internacional da cultura afrodescendente. A experiência na África o levou a reafirmar a existência de um núcleo comum nas expressões culturais afro-americanas, para além de suas particularidades locais. Essa perspectiva transnacional o levou a estabelecer novos vínculos com artistas, pesquisadores e ativistas de diferentes partes do

mundo, enriquecendo sua visão da negritude e seu lugar no futuro histórico.

Nicomedes não deixou de aludir a essa experiência em Dakar como um momento transcendental. O trabalho que apresentou em 1974 foi, nesse sentido, uma posição tomada: o legado africano não deveria ser apenas uma questão de estudo folclórico, mas uma parte ativa da reflexão sobre história, política e identidade na América Latina.

O Colóquio de Dakar, então, marcou para Nicomedes Santa Cruz não apenas um reconhecimento internacional de seu trabalho, mas também uma reafirmação pessoal e política de seu compromisso com a história e a cultura dos povos afrodescendentes. Nele, sua biografia, seu ativismo cultural e sua vocação como ponte entre continentes estavam entrelaçados. Foi, em suma, o ponto de encontro entre uma busca pessoal – pela própria identidade – e um projeto coletivo de dignificação e memória.

NICOMEDES SANTA CRUZ Fonte: Wikipedia.

Nicomedes Santa Cruz dedicou-se a muitas coisas ao longo de sua vida: foi escritor, locutor e apresentador de rádio, decimista, promotor das artes, pesquisador acadêmico e ativista da afro-peruanidade. Tudo isso, em torno de uma aspiração que o guiou ao longo de sua vida e de suas experiências profissionais: a reivindicação e o ressurgimento da cultura afro-peruana.

O trabalho de Nicomedes permite que hoje possamos falar da influência africana em nosso país. Ao vincular o passado com a riqueza do presente, Nicomedes não apenas tornou visível uma herança marginalizada: ele a colocou para dançar fortemente no centro de nosso imaginário nacional.

Também é importante lembrar, ao lado de Nicomedes, a valiosa contribuição que sua irmã, Dona Victoria Santa Cruz, deu à cultura peruana por meio do resgate das danças e expressões culturais afro-peruanas que chegam aos nossos dias.

5. RECONHECIMENTO

Este documento não poderia ser concluído sem resgatar a valiosa contribuição dos filhos de Nicomedes Santa Cruz: Mercedes, Luis Enrique e Pedro; que através da página www. nicomedessantacruz.com nos legaram um extenso e detalhado acervo bibliográfico sobre a vida de seu pai.

EXPANDINDO A AFRICANIDADE

O STEELPAN: O SOM DA RESILIÊNCIA E

IDENTIDADE EM TRINIDADE E TOBAGO

claudia giuliana betalleluz otiura

Ministra en el servicio diPloMático de la rePública del Perú.

"MINHA AVÓ VEIO DA ÁFRICA VESTIDA DE CARACÓIS, OS ESPANHÓIS A TROUXERAM EM UM NAVIO CARAVELA. ELES MARCARAM COM VELA, O CARIMBA ERA SUA CRUZ.

NA AMÉRICA DO SUL, AO RITMO DE SUAS DORES, OS TAMBORES NEGROS DAVAM RITMOS DE ESCRAVIDÃO.

NICOMEDES SANTA CRUZ

Na América, existem instrumentos musicais cuja história remonta aos escravos trazidos da África entre os séculos XV e XIX e às subsequentes proibições de seus tambores. Um deles é o steelpan, ou tambor de metal de Trinidad e Tobago, um símbolo da ilha caribenha que transcendeu o campo musical para se tornar um embaixador cultural de seu país no mundo.

Os tambores usados pelos escravos não apenas acompanhavam suas longas jornadas de trabalho, mas também desempenhavam um papel fundamental em suas cerimônias religiosas e expressões culturais. Além disso, tiveram um impacto crucial nas revoltas que surgiram na América desde o século XVIII, quando os escravos lutavam contra os abusos e ansiavam pela liberdade. A Rebelião de Stono, ocorrida em setembro de 1739 na colônia inglesa da Carolina do Sul, foi uma das mais representativas: nela, os escravos usavam os tambores como ferramenta de comunicação e coordenação. Outras revoltas também ocorreram em várias regiões do continente.

Caribe, as autoridades coloniais europeias, cientes do poder dos tambores e outros instrumentos africanos como ferramentas de comunicação e unidade, proibiram seu uso em várias ilhas para reduzir o risco de insurreição. Restrições semelhantes foram implementadas no Brasil, suprimindo práticas musicais de matriz africana, incluindo percussão e ritmos ligados a cerimônias religiosas. Nas colônias espanholas, foi a Igreja Católica que proibiu o uso de tambores por escravos. Situação semelhante ocorreu nas colônias francesas, especialmente em SaintDomingue (atual Haiti), onde em agosto de 1791 começou um levante coordenado que, após uma luta de doze anos, levou à independência do Haiti.

Em resposta às revoltas de escravos, as autoridades coloniais implementaram uma série de restrições para limitar o uso de tambores e outras expressões culturais africanas. Essas proibições buscavam impedir que os tambores fossem usados como um meio eficaz de comunicação entre os africanos escravizados, impedindo a transmissão de mensagens complexas por longas distâncias.

BANDA DE TAMBORES DE AÇO NA PRAIA, NO EAST WINDS INN, SANTA LÚCIA Fonte: atravelerslibrary.com.

Eles também visavam suprimir as práticas e identidades culturais africanas, cortando o vínculo dos escravos com sua herança, tradições e coesão social, tornando mais fácil para eles controlar e assimilar a cultura dominante. Outra razão por trás dessas restrições foi o medo da unidade. As sessões de percussão eram eventos comunitários que reuniam africanos escravizados, mesmo que viessem de etnias diferentes, promovendo a identidade compartilhada. Os proprietários de escravos temiam que essas reuniões pudessem inspirar revoltas.

No entanto, essas proibições impulsionaram a criatividade e a adaptação da população de origem africana, gerando novas formas de criar música e preservar sua herança cultural. Em resposta, surgiu a percussão corporal, como palmas e trabalho de pés, uma prática amplamente difundida na América. Novos instrumentos musicais também foram desenvolvidos. Apesar das restrições, os afro-americanos continuaram a usar a música como ferramenta de resistência, comunicação e preservação cultural. O legado da percussão africana, com seus ritmos e significado comunitário, perdurou e evoluiu, influenciando profundamente a música e a identidade cultural da diáspora africana nas Américas.

Em Trinidad e Tobago, no final do século XIX, tumultos durante as celebrações do carnaval levaram as autoridades coloniais a restabelecer a proibição de instrumentos de percussão. Diante dessa medida, a população afrodescendente recorreu ao uso de tubos de bambu em vez de tambores, pois ao atingi-los no chão produziam sons semelhantes. Essa prática foi mantida nas festividades carnavalescas até o final da década de 1930, com os característicos conjuntos Tamboo-Bambu, que desfilavam em procissões de rua acompanhados por bandas de metais e cordas.

Com o tempo, novos elementos foram incorporados a esses grupos, como latas de biscoitos usadas como instrumentos de percussão. Esses tambores de aço rudimentares abriram caminho para o desenvolvimento do steelpan, o icônico instrumento nacional de Trinidad e Tobago, que desde então evoluiu para uma variedade de instrumentos com faixas tonais variadas que compõem as steelbands -bandas de aço- modernas.

Os músicos descobriram que ao bater nas latas, originalmente convexas, produziam-se notas musicais, mas logo perceberam que podiam expandir o registro sonoro tornando-as côncavas.

Os primeiros steelpans tinham um alcance limitado e eram tocados com baquetas ou com as mãos nuas. No entanto, a busca por inovação levou à descoberta do tambor de aço, um instrumento mais durável e versátil. Inicialmente usado para armazenar óleo, este tambor evoluiu para o símbolo musical mais representativo de Trinidad e Tobago.

Em julho de 2024, o Parlamento de Trinidad e Tobago aprovou por unanimidade a Lei para a designação do steelpan como instrumento musical nacional da República de Trinidad e Tobago. Em fevereiro deste ano, o steelpan substituiu oficialmente as três caravelas no brasão nacional, consolidando seu lugar como emblema cultural do país.

Embora o steelpan tenha sido desenvolvido no século 20, sua essência vai muito além de seu tempo. É um símbolo de rebelião, resiliência e criatividade, refletindo o espírito indomável dos afrodescendentes em Trinidad e Tobago. Seu som é um eco do passado, lembrando-nos da dura realidade da escravidão, mas também da força daqueles que, apesar da opressão, nunca perderam suas raízes culturais.

STEELBAND DE TRINIDADE Fonte: gotourismguides.com
O BRASÃO DE ARMAS Fonte:otp.tt

APRENDA A ARTE DE TOCAR TAMBOR DE AÇO EM TRINIDADE

Fonte:tripjive.com/learn-the-art-of-steel-pan-drumming-in-trinidad/

REFERÊNCIAS:

História do Steelpan. (nd). Em Caribbeanz. Obtido em www.caribbeanz.org/history-of-the-steelpan

Steelpan & Slavery: Uma História de Ritmo, Rebelião e Resiliência. (2023, 31 de julho). No Caribe Excepcional. Obtido em https://exceptionalcaribbean. com/2023/07/31/steelpan-slavery-a-story-ofrhythm-rebellion-resilience

Mintz, S. (s.d.). Contexto histórico: fatos sobre o comércio de escravos e a escravidão. O Instituto Gilder Lehrman. Obtido em https://www.gilderlehrman. org/history-resources/teacher-resourcs/historicalcontext-facts-about-slave-trade-and-slavery

Santa Cruz, N. (1971). Ritmos Negros do Peru. Buenos Aires. Editorial Losada

Smith, C.D. (2024). História e Impacto das Proibições

de Bateria na Música Afro-Americana. Comunidade de Patterson.

Warner-Lewis, M. (2007, março). Herança Africana no Caribe (2ª Parte). Biblioteca Nacional, Trinidad e Tobago. Obtido em www.africaspeaks.com

A proibição eclesiástica de tambores africanos no Peru que resultou na criação do cajón flamenco. (nd). Em Marchena Secreta. Obtido em https:// marchenasecreta.com/la-prohibicion-eclesiasticade-los-tambores-africanos-en-peru-que-diocomo-resultado-el-cajon-flamenco

E SUSTENTÁVEL: IMPACTO NA ÁFRICA E NO

PERU E SUA LIGAÇÃO COM A GASTRONOMIA

Ministro do serviço diPloMático da rePública do Peru

O desenvolvimento alternativo posicionou-se como uma ferramenta fundamental para enfrentar problemas complexos como o tráfico de drogas, a pobreza rural e a degradação ambiental, particularmente em regiões onde as economias ilegais se enraizaram devido à falta de oportunidades viáveis. Nesse contexto, a África e o Peru oferecem cenários contrastantes, mas semelhantes em seus desafios: áreas rurais vulneráveis a economias ilícitas, ricas em biodiversidade e com forte tradição agrícola e culinária.

Este artigo examina o impacto do desenvolvimento alternativo inclusivo e sustentável na África e no Peru, com foco em como essas políticas contribuíram para conter o tráfico de drogas, reduzir a pobreza e fortalecer as culturas alimentares locais. Por meio da análise de experiências concretas – como a substituição de cultivos ilícitos por cacau em Gana, café na Etiópia e quinoa no Peru – são traçados paralelos entre os dois contextos em termos de transformação social, econômica e cultural. A implementação destes modelos teve um impacto direto na melhoria das condições de vida e incentivou a valorização dos produtos agroalimentares tradicionais, atuando como catalisadores do renascimento gastronómico. Dessa forma, o desenvolvimento alternativo se configura não apenas como uma estratégia eficaz contra o modelo de negócio do narcotráfico, mas também como uma plataforma para a afirmação da identidade culinária e a promoção de economias sustentáveis baseadas em conhecimentos e recursos locais.

QUINOA Fonte: boliviaagra.wordpress.com
QUINOA Fonte: worldcocoafoundation.org
QUINOA Fonte: theguardian.com
QUINOA Fonte: theguardian.com

1. DESENVOLVIMENTO ALTERNATIVO: CONCEITO E ÂMBITO DE APLICAÇÃO

De acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), o desenvolvimento alternativo é uma estratégia de longo prazo que visa promover o desenvolvimento rural sustentável em regiões afetadas pelo cultivo de drogas ilícitas. Seu principal objetivo não se limita à substituição de cultivos ilegais, mas busca transformar as estruturas socioeconômicas que sustentam essas atividades.

Em termos gerais, o desenvolvimento alternativo compreende um conjunto de políticas e programas destinados a fornecer meios de subsistência lícitos e sustentáveis como alternativa a práticas ilegais ou prejudiciais ao meio ambiente, como o cultivo de coca, papoula ou maconha. Essa abordagem é abrangente, pois incorpora dimensões econômicas, sociais, ambientais e culturais, com o objetivo de gerar condições estruturais que favoreçam a sustentabilidade a longo prazo.

Quando orientado de forma inclusiva e sustentável, o desenvolvimento alternativo transcende os indicadores puramente econômicos e incorpora aspectos como igualdade de gênero, proteção ambiental e valorização das culturas locais. A

participação ativa das comunidades na concepção, implementação e avaliação desses programas é essencial para garantir sua eficácia e legitimidade.

Em sua concepção mais inclusiva, essa estratégia reconhece as comunidades locais não como receptoras passivas, mas como atores-chave nos processos de transformação. A estratégia de desenvolvimento alternativo integral e sustentável tem quatro componentes principais: i) reconstrução do tecido social que se reflete na presença do Estado na segurança territorial, ii) intervenção integral que promova a diversificação dos meios de subsistência, a geração de emprego e a promoção do empreendedorismo, iii) economias lícitas sustentáveis que contribuam para fechar as lacunas socioeconômicas e a redução do espaço de cultivo de coca, e iv) mercados sustentáveis com base na abordagem da economia circular que promove produtos e serviços amigos do ecossistema.

UM AGRICULTOR EXAMINA MUDAS DE CAFÉ EM UM VIVEIRO
Fonte: tunodc.org

2. ÁFRICA: CACAU, CAFÉ E PROCESSAMENTO AGRÍCOLA

FORTALECENDO

Fonte: chocolopolis.com

Na África Ocidental, o desenvolvimento alternativo se concentrou em setores agrícolas estratégicos, como cacau, café e outras culturas de alto valor agregado. Países como Gana, Costa do Marfim, Etiópia e Nigéria implementaram políticas destinadas a fortalecer esses setores não apenas de uma perspectiva produtiva, mas também como eixos de transformação social, econômica e cultural.

Gana e Costa do Marfim, os principais produtores mundiais de cacau, impulsionaram processos de transformação sustentável por meio de políticas destinadas a melhorar a qualidade do produto, garantir preços justos para os agricultores e incentivar o consumo doméstico. Em Gana, por exemplo, o programa Cocoa Life, implementado pela Mondelēz International em parceria com governos e organizações não governamentais, vinculou sustentabilidade ambiental, empoderamento da comunidade e diversificação econômica (Mondelēz, 2020). Esta iniciativa promoveu práticas agrícolas responsáveis, educação nutricional e treinamento em empresas gastronômicas, incentivando a transformação do cacau em produtos de valor agregado. A crescente presença de chocolatiers artesanais em cidades como Acra e Kumasi é um reflexo tangível desses esforços.

Na Etiópia, o café arábica transcende seu valor comercial para se tornar um elemento de identidade com profundas raízes culturais. Programas promovidos com o apoio da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) têm

contribuído para melhorar a produção, promover rotas turísticas ligadas ao café e facilitar a integração de comunidades rurais em cadeias de valor mais inclusivas. Essas ações geraram aumento da renda rural, fortaleceram a identidade cultural e estimularam o consumo interno. Um caso emblemático é a Paisagem Cultural do Café da Etiópia, proposta como Patrimônio Mundial pela UNESCO, que demonstra como a produção agrícola pode ser articulada com o desenvolvimento territorial, cultural e gastronômico.

A Nigéria, por sua vez, promoveu iniciativas de desenvolvimento alternativo focadas em culturas como gengibre e pimenta, promovidas pelo Banco Africano de Desenvolvimento. Esses projetos adotaram uma abordagem inclusiva, promovendo cooperativas lideradas por mulheres, que articulam agricultura sustentável, empoderamento de gênero e empresas culinárias locais.

Em conjunto, esses casos ilustram como o desenvolvimento alternativo pode gerar impactos positivos quando integrado a objetivos mais amplos de sustentabilidade, equidade e valorização cultural. A articulação entre agricultura, identidade e gastronomia permite não só diversificar as economias rurais, mas também fortalecer o tecido social e promover formas de desenvolvimento mais justas e inclusivas.

NOSSOS LAÇOS COM OS PRODUTORES DE CACAU EM ASAREKWAA, GANA

3. PERU: COCA, CAFÉ E A REVOLUÇÃO GASTRONÔMICA

No Peru, o desenvolvimento alternativo tem sido historicamente associado a estratégias de combate ao narcotráfico. Desde as décadas de 1980 e 1990, o país implementou vários programas de substituição de cultivos em áreas tradicionalmente dedicadas ao cultivo de folhas de coca, como o Vale do Alto Huallaga e o Vale dos Rios Apurímac, Ene e Mantaro (VRAEM), onde essa atividade era o principal meio de subsistência econômica de muitas comunidades rurais.

Graças aos programas promovidos pela Comissão Nacional para o Desenvolvimento e Vida sem Drogas (DEVIDA), culturas alternativas como o café conseguiram se consolidar não apenas como produtos de exportação competitivos, mas também como símbolos de uma cultura culinária emergente. Iniciativas como o concurso "Cup of Excellence" incentivaram a melhoria da qualidade do café peruano, posicionando-o nos mercados internacionais e gerando, ao mesmo tempo, um renovado sentimento de orgulho e identidade local entre os produtores.

O cacau seguiu uma trajetória semelhante. Por meio da articulação entre governos locais, organizações de produtores e empresas privadas, promovida por programas de desenvolvimento alternativo, sua

incorporação aos circuitos da alta gastronomia, tanto nacional quanto internacionalmente, tem sido facilitada. Essas culturas, antes associadas a regiões estigmatizadas pelo narcotráfico, tornaram-se motores de transformação econômica, territorial e cultural.

Esse processo coincidiu com o surgimento da gastronomia peruana contemporânea, liderada por chefs renomados como Gastón Acurio, Mitsuharu Tsumura e Virgilio Martínez. Esses chefs integraram produtos amazônicos e andinos em suas propostas culinárias, muitos deles vinculados a programas de desenvolvimento alternativo, estabelecendo conexões inovadoras entre produtores rurais e mercados urbanos e turísticos. Assim, a gastronomia se consolidou como uma plataforma de inclusão social, valorização cultural e comercialização de produtos agrícolas antes marginalizados.

De modo geral, a experiência peruana mostra que o desenvolvimento alternativo pode transcender sua dimensão agronômica inicial para ser integrado a processos mais amplos de desenvolvimento territorial, fortalecendo as identidades locais e a dinamização econômica por meio da gastronomia.

EL CAFÉ PERUANO Fonte: sca.coffee

EMPRENDEDORAS PIONERAS QUE TRANSFORMAN EL SECTOR AGROINDUSTRIAL AFRICANO

Fonte: lionessesofafrica.com/

A África e o Peru têm trajetórias convergentes no uso do desenvolvimento alternativo como estratégia para superar a pobreza, conter economias ilícitas e revitalizar identidades culturais por meio da gastronomia. Embora os contextos político, social e econômico sejam diferentes, coincidências estruturais podem ser identificadas nos seguintes aspectos:

4.1. SUBSTITUIÇÃO DE ECONOMIAS ILÍCITAS 4.2. INCLUSÃO SOCIAL E ABORDAGEM DE GÉNERO

Tanto a África quanto o Peru promoveram a transição de economias baseadas em cultivos ilícitos ou práticas de baixa sustentabilidade para cadeias de valor éticas, lucrativas e culturalmente significativas. Em ambos os casos, culturas como cacau e café têm sido utilizadas como alternativas viáveis, não apenas por sua lucratividade e projeção nos mercados globais, mas também por sua capacidade de se integrar a dinâmicas produtivas que fortalecem as identidades locais.

Os programas mais bem-sucedidos incorporaram uma perspectiva inclusiva, especialmente em termos de empoderamento das mulheres rurais. Na África Ocidental, as cooperativas lideradas por mulheres ganharam destaque em setores como gengibre e pimenta, principalmente na Nigéria e em Gana. Da mesma forma, no Peru, inúmeras associações de mulheres produtoras de café e cacau surgiram em regiões como a selva central, desempenhando um papel fundamental na transformação dos sistemas de produção e na valorização do trabalho das mulheres em contextos historicamente marginalizados.

4.3. A GASTRONOMIA COMO VEÍCULO DE IDENTIDADE E DESENVOLVIMENTO

Em ambos os cenários, o desenvolvimento agrícola tem servido de base para movimentos gastronômicos que revalorizam saberes ancestrais e produtos tradicionais. Na África, esse processo se manifesta na recuperação do fonio no Senegal ou na reavaliação do injera na Etiópia. No Peru, produtos nativos como quinoa, tarwi ou pimenta foram ressignificados no âmbito de uma narrativa gastronômica contemporânea que os projeta como símbolos de identidade nacional e patrimônio cultural. Essa ressignificação tem contribuído para gerar novas oportunidades econômicas em torno da gastronomia local e do turismo gastronômico.

4.4. ARTICULAÇÃO COM MERCADOS LOCAIS E GLOBAIS

O acesso ao mercado é um fator chave para a sustentabilidade do desenvolvimento alternativo. O Peru fez progressos significativos nesse sentido por meio da implementação de selos de qualidade, denominações de origem e estratégias de exportação gourmet. Em África, iniciativas como a Zona de Comércio Livre Continental Africana (ZCLCA) representam uma oportunidade emergente para fortalecer o comércio intra-africano de produtos agrícolas com potencial gastronómico, como o cacau, o sorgo ou o milheto, que ainda são subexplorados nos mercados globais.

5. IMPACTO NA GASTRONOMIA: ALÉM DO PRATO

A ligação entre o desenvolvimento alternativo e a gastronomia não é apenas econômica, mas também profundamente cultural. A revalorização dos produtos locais transformou os cardápios, os hábitos de consumo e a autoestima nacional.

No Peru, o uso de ingredientes amazônicos em restaurantes em Lima gerou novas formas de conexão entre o campo e a cidade. A narrativa do "chef como embaixador do território" reforçou a ligação entre a identidade nacional e a biodiversidade alimentar.

Na África, chefs como Pierre Thiam (Senegal) ou Selassie Atadika (Gana) estão liderando uma revolução culinária que recupera ingredientes tradicionais, práticas sustentáveis e narrativas de orgulho africano.

A gastronomia torna-se assim uma plataforma para a diplomacia cultural e o desenvolvimento econômico.

PIERRE THIAM É UM CHEF, AUTOR, EMPREENDEDOR SOCIAL E EMBAIXADOR CULINÁRIO, CRIADO NO SENEGAL E RESIDENTE NA CALIFÓRNIA Fonte: pierrethiam.com
PIERRE THIAM EM SEU ELEMENTO NATURAL Fonte: ninaroberts.net

6. A GASTRONOMIA COMO EIXO DE TRANSFORMAÇÃO

A gastronomia atua como uma síntese de identidade, biodiversidade e economia. Em ambos os continentes, chefs e produtores estão criando uma nova relação entre território e culinária. Das cozinhas de Lima aos mercados de Acra ou Adis Abeba, há uma profunda transformação do papel dos alimentos como motor de desenvolvimento.

O caso do Peru mostrou como um país pode construir uma marca país a partir de sua cozinha. A África, nesse sentido, caminha para sua própria valorização culinária, como demonstra o trabalho de chefs como Pierre Thiam (Senegal) ou Selassie Atadika (Gana), que integram ingredientes indígenas em cardápios de classe mundial.

A CHEF SELASSIE ATADIKA EM AÇÃO Fonte: eatforum.org
A CHEF SELASSIE ATADIKA EM AÇÃO Fonte: nataal.com/selassie-atadika

7. CONCLUSÕES

O desenvolvimento alternativo, quando inclusivo e sustentado ao longo do tempo, tem o potencial de transformar as estruturas econômicas, reduzir a pobreza, enfraquecer as redes ligadas ao tráfico de drogas e revitalizar as identidades culturais por meio da gastronomia. As experiências da África e do Peru mostram que a agricultura, longe de ser uma atividade marginal ou de subsistência, pode se tornar o eixo articulador de um modelo de desenvolvimento integral. Nesse modelo, a agricultura e a gastronomia se valorizam, gerando valor econômico, social e simbólico.

Ambas as regiões oferecem lições significativas para pensar em políticas públicas inovadoras: a importância de abordagens participativas que envolvam ativamente as comunidades locais; o papel estratégico do Estado no acesso a mercados, educação e financiamento; e a necessidade de vincular a produção agrícola à transformação gastronômica como forma de agregar valor. Nesse contexto, a gastronomia não se limita a ser uma manifestação cultural, mas se constitui como um catalisador do desenvolvimento econômico e uma ferramenta eficaz para a inclusão social.

Em suma, o paralelismo entre a África e o Peru nos permite imaginar um futuro compartilhado onde a riqueza biocultural e agrícola de seus povos se traduz em desenvolvimento sustentável, justiça social e fortalecimento do orgulho identitário. Por meio da alimentação, não apenas o bem-estar material é construído, mas também a dignidade, o pertencimento e a resiliência.

REFERÊNCIAS:

DEVIDA. (2024). Memória Institucional 2023. Comissão Nacional para o Desenvolvimento e Vida sem Drogas.

DEVIDA. (2024). Monitoramento da plantação de coca 2023. Comissão Nacional para o Desenvolvimento e Vida sem Drogas.

UNODC (2024) Guia Prático sobre Desenvolvimento Alternativo e Meio Ambiente.

UNODC. (2023). Relatório Técnico: Implementação de Programas de Desenvolvimento Alternativo na África. Documentação interna apresentada na 31ª reunião de chefes de agências antidrogas africanas.

UNESCO. (2021). Herança Gastronômica Africana e Desenvolvimento Sustentável.

CHEF RURAL NO GANA (FATMATA BINTA) Fonte: theguardian.com
PRODUTORA DE CAFÉ DE LAMAS, REGIÃO DE SAN MARTÍN Fonte: sca.coffee

A HARPA DO FILHO DE LOS DIABLOS: O KORA SENEGALÊS E O PROJETO DO MÚSICO

ADRIÁN LARA (ENTREVISTA)

Julio antonio ubillús raMírez conselheiro no serviço diPloMático da rePública do Peru

Como parte de seu trabalho de registrar o cotidiano de Lima e do povo limense do século XIX, o cronista Pancho Fierro retrataria em sua aquarela El Son de los Diablos essa dança bastante popular nos carnavais da época, e que era tocada com a ajuda da mandíbula de um burro. o violão, a caixa e a harpa (Barrón, J. 2018, p. 32). Além da aquarela de Pancho Fierro, há a obra Fiesta de San

Fonte: commons.wikimedia.org

Juan de Amancaes (1843) do pintor alemão Johann Moritz Rugendas, além de outros registros históricos que dão conta de danças pertencentes ao folclore afro-peruano tocado com harpa. Atualmente, o uso deste instrumento como parte das tradições musicais afro-peruanas perdeu presença, embora existam algumas iniciativas para sua recuperação.

Uma dessas iniciativas pertence ao músico peruano

Adrián Lara [1], que vive no Reino da Noruega há 12 anos. O Sr. Lara vem desenvolvendo um projeto que visa revitalizar o uso da harpa na música afroperuana, como parte de uma missão pessoal maior de promover a cultura de nosso país fora de nossas terras.

PANCHO FIERRO – O “SON DE LOS DIABLOS”
JOHANN MORITZ RUGENDAS – FESTA DE SÃO JOÃO DE AMANCAES (1984)
Fonte: infobae.com
ADRIÁN LARA E SANKUNG JOBARTEH INTERPRETANDO O KORA (OSLO, ABRIL DE 2024)

Sobre a história da harpa na música afro-peruana, às obras de Fierro e Rugendas juntam-se relatos documentados como o do marinheiro norte-americano William Waithman Ruschenberger, que em 1834 contaria em detalhes sua visita à chamada Fiesta de Amancaes em Lima, descrevendo a dança da "sama cueca" e os instrumentos nela utilizados, incluindo a harpa, dos quais não apenas as cordas, mas também a caixa foram usadas como percussão (Ruschenberger, W.S.W. 1835, pp. 301).

ADRIÁN LARA, NOEL ADRIANZÉN E A ALUNA CONJUNTA ARIANA SIESQUÉN (ETEN, MAIO DE 2024).

com instrumentos como o balafon e, para os fins deste artigo, o kora do Senegal.

O kora é um instrumento musical que tem suas raízes na África Ocidental, incluindo o Senegal. É composto por um corpo de abóbora coberto de couro bovino, um mastro de madeira e 21 cordas feitas de materiais resistentes, como linhas de pesca ou náilon.

O uso deste instrumento é generalizado no Senegal, Mali, Guiné-Bissau, Gâmbia, Guiné e Burkina Faso (African Music Library, 2025).

Da mesma forma, o renomado músico italiano Claudio Rebagliati coletaria em sua obra Álbum sudamericano de 1870, um conjunto de zamacuecas -além de yaravíes entre outros- arranjados para piano, especificando que estes eram originalmente tocados com violão, harpa e cajón (Rebagliati, C. 1870, p. 1).

Mais tarde, Nicomedes Santa Cruz descreveria a dança do tondero durante uma conferência internacional no Senegal em 1974, indicando que "precisa de um ou dois cantores; secundado por um acompanhamento de duas guitarras mais o ritmo dado por um cajón de madeira percutido com a mão nua (...). Até há poucos anos, tocavase harpa em vez das guitarras e o ritmo era conseguido por outro músico que batia com as mãos na tampa do tampo harmónico deste mesmo instrumento" (Santa Cruz, N. 1974, p. 378).

Quanto ao projeto de recuperação da harpa dirigido por Adrián Lara, ele explorou várias fontes, como o repertório barroco colonial para harpa na América Latina, bem como outras tradições afro-latinas nas quais o uso deste instrumento é atual. Da mesma forma, sua pesquisa também foi alimentada por tradições musicais da África, particularmente aquelas que são executadas

KORA FEITO POR MAMADOU KOUYATÉ, SENEGÂMBIA (METROPOLITAN MUSEUM OF ART)
Fonte: amis.org

Para Lara, o kora é o instrumento musical africano com maior semelhança sonora com a harpa, apesar de seus aspectos físicos diferirem acentuadamente. A este respeito, ele especifica que este "é um instrumento diatônico e hoje em dia é frequentemente encontrado com uma afinação compatível com instrumentos ocidentais. Isso significa que, em princípio, é possível tocar com a harpa da mesma forma que é tocada com o kora. Esteticamente, pode-se observar que o kora tradicionalmente realiza improvisações em diferentes tipos de ostinatos com uma polirritmia muito rica, da mesma forma que acontece com vários de nossos gêneros afro-peruanos como o festejo, o landó, o panalivio, o son de los diablos e o contraponto de zapateo, entre outros" (Lara, A. entrevista pessoal, 07 de junho de 2025).

As características sonoras e as tradições musicais africanas associadas a ele fazem do kora uma ferramenta útil para o trabalho de Lara, e do qual ele empresta música para desenvolver fórmulas para enriquecer o processo de criação de um repertório afro-peruano que inclui a harpa. Com esse mesmo objetivo, ele trabalha com a ajuda de Sankung Jobarteh, músico gambiano radicado em Oslo e especializado em kora, a fim de verificar a proximidade e compatibilidade entre as tradições musicais afro-peruanas e a execução do instrumento senegalês.

Os avanços práticos das explorações de Adrián Lara - que incluem o kora - para recuperar a harpa nas tradições musicais afro-peruanas são consultados e alimentados graças ao apoio e opiniões de músicos peruanos especialistas na área, como Alfredo Valiente Martínez, Rony Campos, Ivón Muñóz e, especialmente, Noel Adrianzén Palacios, harpista e pesquisador de Piura. que Adrián Lara entrevistou para documentar seus estilos musicais na harpa.

Ao mesmo tempo, as descobertas e criações sobre a harpa são compartilhadas por Adrián Lara com uma jovem harpista de Etén, no norte do Peru, estudante que também despertou seu interesse pelo projeto de recuperar a harpa nas tradições musicais afro-peruanas.

[1] Adrián Lara é um músico peruano que foi treinado como cantor lírico (contratenor), tendo dedicado parte de seu trabalho como estudante na Noruega a explorar o repertório barroco latinoamericano. Posteriormente, ele usou a harpa para obter seu mestrado livre na Academia Norueguesa de Música (Norges musikkhøgskole), para o qual se concentrou em canto, harpa e percussão, bem como no repertório da diáspora africana na América Latina.

Em sua tarefa de recuperar o uso da harpa nas tradições musicais afro-peruanas, o Sr. Lara estuda várias fontes e instrumentos como meios de aprendizagem, entre os quais está o kora do Senegal. Assim, sua pesquisa também inclui o estudo de outras tradições musicais como o Son Jarocho do México, bem como parte do repertório da era colonial espanhola como zarambeques, cumbés, paracumbés, canarios e villancicos de negrilla, entre outros.

REFERÊNCIAS

History of the Steelpan. (s.f.). En Caribbeanz. Obtido de www.caribbeanz.org/history-of-the-steelpan

Steelpan & Slavery: A Story of Rhythm, Rebellion, & Resilience. (2023, 31 de julio). Em Exceptional Caribbean. Obtido em https://exceptionalcaribbean. com/2023/07/31/steelpan-slavery-a-story-ofrhythm-rebellion-resilience

Mintz, S. (s.f.). Historical Context: Facts about the Slave Trade and Slavery. The Gilder Lehrman Institute. Obtido em https://www.gilderlehrman. org/history-resources/teacher-resourcs/historicalcontext-facts-about-slave-trade-and-slavery

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Smith, C.D. (2024). History and Impact of Drum Bans on African American Music. Patterson’s Community.

Warner-Lewis, M. (2007, março). African Heritage in the Caribbean (2nd Part). National Library, Trinidad and Tobago. Obtido em www.africaspeaks.com

La prohibición eclesiástica de los tambores africanos en el Perú que dio como resultado la creación del cajón flamenco. (s.f.). Em Marchena Secreta. Obtido de marchenasecreta.com/la-prohibicioneclesiastica-de-los-tambores-africanos-en-peruque-dio-como-resultado-el-cajon-flamenco

ADRIÁN LARA, EXECUÇÃO DA HARPA

NOSSA COMUNIDADE PERUANA NA ZÂMBIA:

UMA HISTÓRIA NO CORAÇÃO DA ÁFRICA

daniel torres Pinguz

segundo secretário no serviço diPloMático da rePública do Peru

A migração é um fenômeno social que se desenvolveu de forma constante quase desde o estabelecimento das primeiras entidades políticas em vários cantos do mundo.

A busca de novas oportunidades, seja a nível económico, profissional ou social, plasmou o tecido das diferentes sociedades, tanto das quais provêm os migrantes como daquelas que os acolhem. Como é sabido, a migração e o assentamento de comunidades peruanas no exterior são uma parte essencial de nossa sociedade e, claro, da ampla gama de responsabilidades do Ministério das Relações Exteriores.

Devido ao seu grande número, é conhecida a presença, relevância e identidade de nossas comunidades em países como Estados Unidos, Espanha, Chile, Argentina, Austrália e outros. No entanto, existem comunidades peruanas em várias partes do mundo, mesmo em lugares muito distantes do Peru. Este é o caso da nossa comunidade na Zâmbia.

Localizada no sul do continente africano, a Zâmbia alberga cerca de 400 nacionais, a grande maioria deles localizados na província de Copperbelt, uma região com reservas significativas de cobre e cuja capital é a cidade de Kitwe, a segunda com maior nível de desenvolvimento e população depois da capital do país, Lusaka.

O que motivou a mudança inicial e o crescimento da comunidade peruana na Zâmbia? A ligação entre o Peru e este país africano é a mineração. Os primeiros trabalhadores e mineradoras peruanas começaram a se estabelecer no país no início da primeira década do novo milênio. Atualmente, existem 7 empresas peruanas que realizam atividades extrativas (perfuração, exploração e manutenção em minas de cobre) no Copperbelt e, de acordo com as informações gentilmente fornecidas pela Seção Consular de nossa Embaixada na África do Sul, cerca de 70% dessa população são homens e são profissionais e técnicos em áreas dedicadas à mineração, além de engenheiros, mecânicos, eletricistas e outras profissões relacionadas. Além de nossos cidadãos, eles também empregam, de acordo com várias fontes, cerca de 4.000 trabalhadores zambianos.

CERIMÔNIA DO DIA DO TRABALHO E RECONHECIMENTO DOS TRABALHADORES DE DESTAQUE DA EMPRESA TAURO MINING. ARQUIVO PRÓPRIO. Fonte: Arquivo próprio

O trabalho no setor de mineração é uma tarefa intensa e altamente complexa, no entanto, como país minerador, os membros da comunidade peruana que trabalham nessas empresas se destacam por suas habilidades, conhecimentos e profissionalismo, que compartilham com seus pares zambianos. Como em outras partes do mundo, o talento peruano no setor de mineração é reconhecido e apreciado, pois essa atividade representa um componente essencial do desenvolvimento de nosso país.

Nesta ocasião, há o testemunho do Sr. Guillermo Vega López, nascido em Cerro de Pasco, que nos conta sua história. Guillermo chegou à Zâmbia em 2006, depois de ter trabalhado na empresa Doe Run no Peru, após um telefonema de um engenheiro com quem já havia feito contato. No início, como é comum em qualquer processo migratório, a adaptação à nova sociedade, gastronomia e idioma apresentaram desafios que Guillermo aceitou e decidiu enfrentar.

WILLIAM, O PROTAGONISTA DA HISTÓRIA, COM SEUS COLEGAS ZAMBIANOS.

Fonte: Arquivo próprio

Embora a língua oficial da Zâmbia seja o inglês, existem línguas nativas, destacando-se Bemba e Nyanja, línguas que influenciam efetivamente o sotaque, como é o caso de nós, falantes de espanhol. No entanto, como nos conta Guillermo, seu entusiasmo e interesse o levaram a aperfeiçoar não apenas a língua inglesa, mas também a se comunicar em alguns dos dialetos nativos da Zâmbia, o que lhe permitiu se integrar mais facilmente. Também contribuiu, ele nos diz, a personalidade amigável e prestativa dos zambianos, que facilitam esse processo.

Assim, depois de algum tempo, em 2010, William conheceu sua companheira, uma mulher da Zâmbia, e se casou dois anos depois. O protagonista desta história nos conta que atualmente eles têm três filhos (Guillermo, Alejandra e Israel) e sua esposa está estudando na Índia, e

eles mantêm comunicação constante.

Nosso compatriota também nos falou sobre gastronomia, ele mencionou que pratos como nshima, uma espécie de massa ou purê feito de farinha de milho, junto com diferentes condimentos e picles, representam uma alimentação saudável, útil para o trabalho nas minas. Ele também diz que a província de Copperbelt é uma área segura, onde seus filhos podem crescer, e ele é muito grato pela oportunidade que a Zâmbia lhe ofereceu e onde ele pôde criar uma família peruano-zambiana.

Além da história de Guillermo, e da mesma forma que nos diferentes lugares onde as comunidades peruanas se reúnem, na Zâmbia, foi possível manter e promover a cultura, as tradições e as raízes com o país onde nasceram.

Embora a migração peruana ainda seja jovem, com o apoio das empresas que empregam nossos nacionais, foi possível organizar diferentes atividades para famílias peruanas e zambianas, incluindo competições esportivas, festivais gastronômicos com ingredientes peruanos, apresentações e competições de danças peruanas,

incluindo desfiles e carros alegóricos. Da mesma forma, é realizado um evento para os Feriados Nacionais, onde esses elementos se reúnem. É importante notar que, em muitas ocasiões, os cidadãos que viajam para a Zâmbia para iniciar seu trabalho o fazem com suas famílias, o que facilita a transição de uma vida no Peru para uma nova etapa em outro país.

APRESENTAÇÃO DA CELEBRAÇÃO EM COMEMORAÇÃO DOS FERIADOS NACIONAIS 2024

Fonte: Arquivo próprio

As relações diplomáticas com a Zâmbia são conduzidas a partir de nossa Embaixada em Pretória, África do Sul. Embora haja registro de uma embaixada peruana em Lusaka, que fechou em 1975, o embaixador Jorge Félix Rubio, residente em Pretória, foi o primeiro embaixador peruano a apresentar credenciais desde o fechamento em 2022.

A presença e integração da comunidade peruana na Zâmbia representa um importante elo com este país, que se espera que continue crescendo, permitindo que se destaque o perfil dos profissionais peruanos do setor de mineração, um dos mais importantes para o país, em nível internacional.

FRANGOYASSA

Prato icônico da culinária senegalesa, o frango yassa seduz paladares em todo o mundo com seus sabores requintados.

INGREDIENTES:

- 1 kg de frango

- 3 cebolas

- 3 dentes de alho

- 3 limas

PREPARAÇÃO:

1. Lave e corte o frango em pedaços iguais. Esprema os limões para extrair o suco. Descasque e corte as cebolas em rodelas finas. Amasse o alho (até obter um purê).

2. Em uma tigela, misture o suco de limão, metade das cebolas fatiadas, o alho amassado, a mostarda, o sal e a pimenta. Coloque os pedaços de frango nesta marinada e deixe descansar pelo menos duas horas na geladeira.

- 2 colheres de sopa de mostarda forte

- 4 colheres de sopa de amendoim ou óleo vegetal

- Caldo de galinha ou cubo Maggi

- Pimenta verde (opcional)

- Sal e pimenta

3. Aqueça o óleo em uma frigideira ou frigideira grande e doure os pedaços de frango até dourar bem (sele o frango). Em seguida, remova-os e reserve.

4. Na mesma panela, refogue as cebolas restantes com um pouco mais de óleo, se necessário, até ficarem translúcidas (para suar). Adicione o pimentão fatiado se preferir uma versão picante.

5. Adicione os pedaços de frango dourados às cebolas. Despeje o resto da marinada e o caldo de galinha sobre a mistura. Tampe e cozinhe por cerca de uma hora (leve para ferver). Sirva com arroz.

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