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J a n e l a
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M u n d o
EDIÇÃO ANUAL 2019/2020 Publicada a 21 de maio de 2020. A PACTA é a revista de teor científico do Núcleo de Estudantes de Relações Internacionais do ISCSP.
19ª EDIÇÃO
EDITORIAL É com muito orgulho para a equipa da PACTA que hoje apresentamos aos estudantes de Relações Internacionais e restantes leitores, esta que é a 19ª Edição da revista, a edição anual do ano letivo 2019/2020. A PACTA, enquanto revista científica do Núcleo de Estudantes de Relações Internacionais, trabalha todos os dias extracurricularmente, sempre na tentativa de manter os nossos leitores informados sobre os mais atuais quadros de discussão internacionais. É de realçar o quanto a linha progressiva de trabalho evolui de ano para ano, fomentando, também, o desenvolvimento e aprendizagens pessoais de todos os membros da equipa. A 19ª Edição da PACTA tem como grande temática um dos lemas da presente revista: “Uma Janela para o Mundo”, dando espaço para explorar as mais variadas regiões do globo, numa visão mais abrangente das problemáticas que sobrevoam o panorama internacional. Além disso, e como celebração do sucesso da Simulação do Conselho de Segurança da ONU, organizada pelo NERI no passado mês de novembro de 2019, a presente edição contará com dois artigos da autoria de dois participantes.
Esta edição conta com um ensaio sobre a União Europeia em tempos de pandemia, analisando a mais atual conjuntura europeia. Segue-se a observação estratégia de adesão turca à União Europeia. A viagem prossegue para o continente africano, colocando em perspetiva os dogmas de análise do próprio continente. A análise passa depois para a questão democrática, colocando em espetro de observação as presidências inconstitucionais na Ásia Central do século XXI. Dá-se por terminada a viagem abordando o tema nuclear e da urgência do desarmamento nuclear, impedindo que a temática seja banalizada e seja inserida nas relações internacionais com normalidade. Da minha parte, enquanto Coordenadora da PACTA, resta-me agradecer aos professores e alunos pelo tempo despendido e pela predisposição dos mesmos em colaborar connosco. A toda a equipa que embarcou neste projeto com a promessa de fazer mais e melhor, assim como ao restante Núcleo de Estudantes de Relações Internacionais, um especial aconchego de gratidão por acreditarem em nós e nos nossos planos. A todos, um muito obrigado por nos deixarem mostrar-vos o nosso olhar.
Cátia Pacheco Coordenadora da PACTA
EQUIPA Cátia Pacheco nº 223176 Fábio Vicente nº 225981 Francisco Carneiro nº 226011 Patrícia Santos nº 225992 Rita Costa nº 223463 Rita Fonseca nº 223435 Rodrigo Guimarães nº 225662 Simão Barbosa nº223218 Thomas Hoogerbruge nº225687
CONTACTOS ri.pelouro.investiga@gmail.com https: / / issuu.com/ pacta https:/ / www.neri-iscsp.wixsite.com/neri-iscsp/ blog
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DESING EDITORIAL Cátia Pacheco Mariana Afonso
ÍNDICE
01/
Ensaio Sobre a União Europeia em Tempos de Pandemia
06/
A Democratização Estratégica do AKP e a Adesão da Turquia à União Europeia
10/
O Estudo de África e o Looping Utopia-Distopia nas Relações Internacionais
Europa
Médio Oriente
África
15/
As Presidências Inconstitucionais Central do Século XXI
18/
Inverno Nuclear e a Urgência do Desarmamento Nuclear
na
Ásia
Ásia Central
SIMULAÇÃO DO CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU | NERI O OLHAR DOS PARTICIPANTES
21/
Chernobyl e Fukushima
23/
Conflito de Caxemira: A Posição da China
Ensaio Sobre a União Europeia em Tempos de Pandemia
Andreia Soares e Castro
Professora Auxiliar no Instituto Ciências Sociais e Políticas
Porque a escolha que os líderes de então fizeram há 70 anos continua a ser a melhor resposta aos desafios que enfrentamos. Comecei a escrever este pequeno ensaio no dia 9 de Maio, dia da Europa, dia em que se comemoraram os 70 anos da Declaração Schuman, a pedra de toque que deu origem à primeira das três Comunidades Europeias, a CECA, antecedentes da atual União Europeia (UE). 70 anos não parece ser muito tempo, se considerarmos os vinte séculos de vicissitudes permanentes da procura de uma paz duradoura. Em 1950, no pós-2ª Guerra Mundial, os líderes de então, a começar pelos da França e da Alemanha, escolheram participar numa experiência inovadora de integração e com ela revolucionaram para sempre o conceito de soberania, atribuindo o exercício de competências limitadas, mas decisivas, a um novo centro de poder. Com esta escolha, a da partilha de soberania e da participação num projeto cooperativo, e as seguintes, assentes no método de Jean Monnet, dos «pequenos passos», conseguiram reconciliar os povos e que a guerra se tornasse impensável. Essas escolhas trouxeram,
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ao longo dos anos, muitos benefícios, explicando as razões pelas quais devemos celebrar a UE[i]. Tal como há 70 anos, também hoje a UE, porque não é algo garantido nem eterno, continua a ser uma escolha, que nem sempre é fácil, nem evidente, sobretudo nos momentos de crise. Se olharmos para a última década, para não irmos mais atrás, designadamente para as crises do Euro, dos refugiados, do iliberalismo ou do «Brexit», notamos que a resposta da UE e dos seus Estados nem sempre foi a mais rápida nem a mais esperada. Contudo, esquecemos frequentemente que a UE não é um superestado e que, por isso, os seus processos e decisões são mais complexos e demorados, pois envolvem diferentes visões dos Estados e níveis de preparação das suas decisões. De facto, a UE não foi criada para reagir rapidamente a situações inesperadas. Só age com base numa atribuição de competências consagrada nos Tratados. Assim, quando surgem crises inesperadas e repentinas, a resposta cabe sempre em primeiro lugar aos Estados, que agem segundo interesses próprios, prevalecendo o intergovernamentalismo ao supranacionalismo e, por consequência, espelhando a falta de coesão, solidariedade e decisão coletivas,
prejudicando a imagem e a coesão política da UE. Só num segundo momento, a UE e as suas instituições, onde os Estados também estão representados, tentam adotar medidas comuns para responder às consequências dessa crise. Nalgumas, originando importantes desenvolvimentos e mais integração, como na crise do euro, apesar da união bancária ainda não estar acabada, noutras, nem tanto, como na crise dos refugiados. Também hoje vivenciamos uma crise, esta sem precedentes: a pandemia do Covid-19[ii]. Nas palavras do Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, a maior crise desde a 2ª Guerra Mundial[iii]. Neste tempo de confinamento, disrupção, grande incerteza e mudança, mas também de profunda reflexão, é importante afirmar que a escolha que os líderes de então fizeram há 70 anos continua a ser a melhor resposta aos desafios que enfrentamos. E que, apesar de a UE não ser perfeita, continua a ser o melhor instrumento para superar esta crise e para responder a todas as outras ameaças que continuam presentes: alterações climáticas, migrações, ciberataques, desinformação[iv], partidos populistas, terrorismo, etc. Os críticos da UE tiveram alguma razão quando perguntavam onde estava a UE no início desta crise, remetendo para a insuficiente ou falta de ação da organização. Acresce que à falta de coordenação e apoio da UE, somou-se a ajuda de atores externos, como a China e a Rússia[v], a alguns Estados-membros, contribuindo para desacreditar a UE. Porém, novamente, por detrás das críticas, e dos prognósticos de colapso, estão ideias incorretas sobre a UE, a sua natureza e o seu funcionamento. Compreender a UE é ter presente que integra Estados muito diversos entre si, com diferentes idiossincrasias e ideias de União e que esta não tem a capacidade de decidir ou fazer as políticas que entende. Como afirmou o então Presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso: “Em certos domínios, a Europa ainda não tem o poder de fazer o que esperam dela”[vi]. De facto, apesar das instituições
da UE terem um papel muito relevante, proporcionando um quadro duradouro para aquilo que a organização é hoje, sendo motores da integração e facilitando a ação coletiva, elas dependem dos Estados, que as criaram e lhes atribuíram as respetivas competências. Assim, e à semelhança das outras crises referidas atrás, também nesta a primeira resposta coube aos Estados, não tendo constituído surpresa, porque a primeira responsabilidade e competência em matéria de saúde, repatriamento de cidadãos, restrições à vida pública ou encerramento de fronteiras lhes cabe e não à UE. Por outro lado, com a resposta dos Estados à pandemia, emergiram não só diferentes abordagens e timings como egoísmos nacionais e a falta de solidariedade entre os países, patentes em medidas unilaterais[vii] como a proibição de exportação de material médico e de proteção ou na reintrodução dos controlos nas fronteiras internas sem consultar os países vizinhos, colocando em causa um dos princípios basilares da UE. Contudo, como o vírus não respeita fronteiras nem nacionalidades e exige respostas coordenadas e cooperação entre países para haver eficácia, só a nível transnacional, coletivamente, poderão ser dadas as melhores respostas, quer à crise sanitária, quer à crise económica decorrente da primeira. Sendo isto verdade para qualquer ator, muito mais o é para a UE, cujos Estados-membros partilham soberania, e o grau de integração económica, monetária, comercial e a interdependência são elevados. Nesta ordem de ideias, faz sentido a UE desempenhar um papel decisivo de apoio, coordenando a cooperação transfronteiriça e mobilizando fundos adicionais, até porque, em virtude da escala e da junção de recursos financeiros, possui instrumentos cruciais para o efeito. Depois de um início lento, quer os Estados, quer as instituições da UE[viii] estão a fazer tudo o que é possível para atenuar as consequências da pandemia. É importante referir que a adoção de medidas restritivas, como o confinamento, as
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restrições de viagem e a reintrodução de controlos fronteiriços, impactou grandemente a economia dos Estados, o funcionamento do mercado interno e o espaço Schengen, duas das maiores conquistas do projeto europeu. Assim, uma das primeiras medidas da Comissão Europeia foi a introdução de orientações relativas às medidas de gestão das fronteiras para proteger a saúde e garantir a disponibilidade de bens e serviços essenciais[ix], com o objetivo de manter-se o funcionamento do mercado único, em especial das cadeias de abastecimento. Outra medida foi a criação de uma reserva estratégica rescEU de equipamento médico (por exemplo ventiladores e máscaras de proteção) para benefício de todos os Estadosmembros e cidadãos[x]. É, pois, importante sublinhar que o rol de medidas já adotadas é imenso[xi] e, nalguns casos, inédito, como a suspensão do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Citem-se, entre outras, a flexibilização das regras da UE em matéria de auxílios estatais; a reorientação dos fundos da política de coesão e do Fundo Europeu de Solidariedade; as intervenções maciças do BCE[xii]; a criação de um fundo da UE para apoiar os regimes nacionais de desemprego (SURE), de uma nova linha do Mecanismo Europeu de Estabilidade e o papel reforçado do Banco Europeu de Investimento.
A coordenação da UE está patente ainda na apresentação do roteiro europeu comum para o levantamento progressivo das medidas de contenção da Covid-19 [xiii], bem como no roteiro para a recuperação com o objetivo de construir uma Europa mais resiliente, mais sustentável e mais justa[xiv]. De ressaltar ainda que o Eurogrupo chegou a acordo sobre um pacote de estímulos no valor de 540 mil milhões de Euros, o maior programa de apoio económico da história do projeto europeu [xv], não sem divergências, muita discussão e impasses. O compromisso alcançado no Eurogrupo prova, de resto, a atualidade do método dos «pequenos passos» e o aperfeiçoamento da arte do compromisso e da negociação. É precisamente a surpresa do acordo, após horas intermináveis de divergências e negociações entre os Estados, acomodando diferentes interesses, quando já ninguém esperava, que prova a enorme resiliência e adaptabilidade da UE. Como Robert Schuman afirmou na Declaração Schuman: “A Europa não se fará de um golpe, nem numa construção de conjunto: far-se-á por meio de realizações concretas que criem em primeiro lugar uma solidariedade de facto”[xvi]. Efetivamente, o projeto europeu tem sido construído gradualmente, por necessidade, à medida dos compromissos possíveis e das vicissitudes, quer internas, quer externas.
Fonte: Comissão Europeia (2020) in https://ec.europa.eu/info/live-work-travel-eu/health/coronavirus-response/jobs-and-economyduring-coronaviruspandemic_pt#temporarilyliftingcustomsdutiesandvatonimports, acesso em 15.05.2020.
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Aquilo que sucedeu na reunião do Eurogrupo retrata a natureza e a normalidade do funcionamento das instituições da UE, que procuram permanentemente o interesse comum, bem como novos compromissos, novas formas de cooperação e integração entre os Estados. Todas as medidas já adotadas para responder à pandemia e às suas consequências demonstram uma forte vontade por parte dos Estadosmembros e das instituições de preservarem os pilares essenciais da UE, confirmando que apesar dos diferentes interesses, há uma base comum de entendimento, que no fundo se resume ao valor acrescentado da UE e da ação coletiva. Contudo, muito mais poderia ser feito, se os Estados assim o quisessem, como a atribuição de competências no campo da saúde pública, especialmente em situações de emergência, e a monitorização da introdução de medidas extraordinárias para prevenir e impedir tendências iliberais[xvii], designadamente sancionando o Estado que o fizesse. É importante referir ainda que à falta de solidariedade do primeiro momento juntaram-se atos de assistência mútua no tratamento de doentes, na partilha de equipamento médico ou no repatriamento dos cidadãos, provando a solidariedade entre os Estados-membros[xix]. Acresce que o Mecanismo de Proteção Civil da UE facilitou o repatriamento para a Europa de mais de 58 000 cidadãos da UE provenientes de todo o mundo, demonstrando outro exemplo de solidariedade europeia. Sendo a pandemia um fenómeno global, a respetiva resposta faz-se não apenas dentro da UE, mas também fora dela[xx]. Neste sentido, a UE está também a agir a nível internacional, prestando assistência aos seus parceiros na vizinhança direta e para além dela, particularmente aos mais vulneráveis. Os ministros responsáveis pelo Desenvolvimento aprovaram o lançamento de um pacote “Equipa Europa”, que ascende a mais de 20 mil milhões de Euros provenientes dos recursos da ação externa existentes[xxii]. Este é mais um exemplo
do valor acrescentado da ação coletiva ao nível da UE. Recorde-se que a UE é o maior dador de ajuda internacional ao desenvolvimento do mundo. Também a este nível, a UE tem uma oportunidade de liderar os esforços internacionais e ajudar a coordenar uma resposta global, provando que a solidariedade e a responsabilidade são dois princípios que descrevem o papel global da UE. É através desta agenda positiva, de solidariedade e abertura aos outros que a UE prova ser hoje um parceiro global indispensável. Exemplo disto foi o apoio dado à Organização Mundial da Saúde, num momento crítico de combate à pandemia[xxiii] e quando os EUA decidiram suspender o financiamento à organização[xxiv]. A Comissão, juntamente com outros Estados, no âmbito da “Resposta Mundial ao Coronavírus” convocou uma conferência de doadores onde foram angariados 7,4 mil milhões de Euros para garantir o acesso universal às vacinas[xxv]. Esta angariação de fundos é apenas o início, mas prova já uma forte cooperação internacional. Porque as pandemias e as alterações climáticas vieram para ficar vamos ter de lidar com elas no futuro. Também aqui a UE deve ter um papel central, se os Estados assim o entenderem. A resiliência da UE demonstrada até hoje dependerá no futuro de uma maior liderança das instituições europeias, maior capacidade de planeamento, preparação e partilha de informações entre os Estados, bem como do investimento em políticas essenciais para a segurança dos seus cidadãos. Apesar do objetivo da autonomia estratégica, tal como definido na Estratégia Global da UE de 2016 [xxvi], remeter para o reforço de capacidades na segurança e na defesa, faz cada vez mais sentido alargar o seu âmbito de modo a incluir outros setores como os da saúde pública, investigação e energia. Se, no pós-crise, os cidadãos acharem que a resposta da UE foi insuficiente, e ficou aquém das expectativas, a culpa não será da UE, mas dos
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Estados, que não quiseram dar esse passo. A Conferência sobre o Futuro da Europa[xxvii], que entretanto foi adiada para Setembro, será um excelente momento para fazer esse balanço, definir prioridades e dotar a UE da liderança e competências necessárias para poder responder imediata e eficazmente às futuras crises, porque só cooperação intergovernamental não é suficiente. Caberá aos cidadãos exigirem esta reforma, porque hoje, mais do que nunca, a UE continua a fazer sentido. A UE continua a ser a melhor forma de garantir as democracias, o estado de direito, a liberdade e os direitos fundamentais na Europa[xxviii] , assim como a segurança e a diversidade das nossas culturas nacionais. A UE deve continuar a ser a escolha, tal como há 70 anos atrás.
Notas de fim [i] Andreia Soares e Castro, Celebrar a UE face ao crescente populismo, 12.05.2018, Expresso online, in http://expresso.pt/opiniao/2018-05-12-Celebrar-a-UE-face-aocrescente- populismo, acesso em 17.05.2020. [ii] Ver https://www.ecdc.europa.eu/en/covid-19-pandemic, acesso em 17.05.2020. [iii] Antonio Guterres, Transcript of UN Secretary-General’s virtual press encounter to launch the Report on the Socio-Economic Impacts of COVID-19, 31.03.2020, in https://www.un.org/sg/en/content/sg/press-encounter/2020-0331/transcript-of-un-secretary-general%E2%80%99s-virtualpress-encounter-launch-the-report-the-socio-economicimpacts-of-covid-19, acesso em 17.05.2020. [iv]Ver https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/covid-19coronavirus-outbreak-and-the-eu-s-response/fightingdisinformation/, acesso em 17.05.2020. [v] Cfr. Jan van der Made, Russia and China 'exploit Covid-19 crisis' to discredit European Union, 5.04.2020, rfi, in http://www.rfi.fr/en/europe/20200405-russia-and-china-exploitcovid-19-crisis-to- discredit-european-union%E2%80%93-analyst, acesso em 17.05.2020. [vi] José Manuel Durão Barroso, Discurso sobre o Estado da União de 2013, 11.09.2013, p. 13, in https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/pt/SPEECH_1 3_684, acesso em 17.05.2020. [vii] Frédéric Simon, As Germany closes borders, EU warns of risks to basic supply chains, 16.03.2020, euractiv.com, in https://www.euractiv.com/section/coronavirus/news/asgermany-closes-borders-eu-warns-of-risks-to-basic-supplychains/, acesso em 17.05.2020. [viii] Ver Comissão Europeia, COVID-19: Comissão apresenta uma resposta coordenada a nível europeu para atenuar o impacto económico do coronavírus, 13.03.2020, in https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/pt/IP_20_459 , acesso em 17.05.2020. [[ix] Comissão Europeia, COVID-19: Orientações relativas às medidas de gestão das fronteiras para proteger a saúde e garantir a disponibilidade de bens e serviços essenciais, 16.03.2020, in https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/? uri=CELEX:52020XC0316(03), acesso em 17.05.2020.
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[x] Ver https://ec.europa.eu/portugal/news/EC-creates-firstrescEU-reserve-for-medical-equipment-covid19_pt, acesso em 17.05.2020. [xi] Ver https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/covid-19coronavirus-outbreak-and-the-eu-s-response/timeline/, acesso em 17.05.2020. [xii] Ver BCE, ECB announces €750 billion Pandemic Emergency Purchase Programme (PEPP), 18.03.2020, in https://www.ecb.europa.eu/press/pr/date/2020/html/ecb.pr200318 _1~3949d6f266.en.html, acesso em 17.05.2020. [xiii] Ver Comissão Europeia, Coronavírus: Roteiro europeu mostra o caminho para um levantamento comum das medidas de contenção, 15.04.2020, in https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/pt/IP_20_652 , acesso em 17.05.2020. [xiv] Ver Comissão Europeia e Conselho da UE, Roteiro para a Recuperação, 21.04.2020, in https://www.consilium.europa.eu/media/43420/20200421-aroadmap-for-recovery_pt.pdf, acesso em 17.05.2020. [xvii] Ver Eurogrupo, Report on the comprehensive economic policy response to the COVID-19 pandemic, 9.04.2020, in https://www.consilium.europa.eu/pt/press/pressreleases/2020/04/09/report-on-the-comprehensive- economicpolicy-response-to-the-covid-19-pandemic/, acesso em 17.05.2020. [xviii] Ver https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/covid-19coronavirus-outbreak-and-the-eu-s-response/europeansolidarity-in-action/, acesso em 17.05.2020. [xix] Cfr. https://eeas.europa.eu/headquarters/headquartershomepage/76203/good-stories-consular-support-eu-citizensstranded-abroad_en, acesso em 17.05.2020. [xx] Comissão Europeia, Coronavírus: Resposta global da UE para combater a pandemia, 8.04.2020, in https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/pt/IP_20_60 4, acesso em 17.05.2020. [xxi] Ver https://www.consilium.europa.eu/pt/meetings/fac/2020/04/08/, acesso em 17.05.2020. [xxii] Cfr. https://ec.europa.eu/info/aid-developmentcooperation-fundamental-rights/recipients-and-results-euaid_pt, acesso em 17.05.2020. [xxiii] SEAE, WHO: High Representative Borrell speaks to Director General Tedros, 16.04.2020, in https://eeas.europa.eu/headquarters/headquartershomepage/77695/who-high-representative-borrell-speaksdirector-general-tedros_en, acesso em 17.05.2020. [xxiv] Andrew Gawthorpe, Trump's decision to cut WHO funding is an act of international vandalism, 15.04.2020, The Guardian, in https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/apr/15/trumpdecision-cut-who-funding-international-vandalism-coronavirus, acesso em 17.05.2020. [xxv] Comissão Europeia, Resposta Mundial ao Coronavírus: 7,4 mil milhões de EUR angariados para garantir o acesso universal às vacinas, 4.05.2020, in https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/pt/ip_20_797, acesso em 17.05.2020. [xxvi] Ver https://eeas.europa.eu/topics/eu-globalstrategy/17304/global-strategy-european-unions-foreign-andsecurity-policy_pt, acesso em 17.05.2020. [xxvii] Comissão Europeia, Shaping the Conference on the Future of Europe, 22.01.2020, in https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/IP_20_89, acesso em 17.05.2020. [xxviii] Andreia Soares e Castro, Algumas reflexões ainda a propósito dos 60 anos da assinatura dos Tratados de Roma, 29.03.2017, Expresso online, in https://expresso.pt/opiniao/201703-29-Algumas-reflexoes-ainda-a-proposito-dos-60-anos-daassinatura-dos-Tratados-de-Roma, acesso em 17.05.2020.
A Democratização Estratégica do AKP e a adesão da Turquia à União Europeia
Isabel David Professora Auxiliar no Instituto Ciências Sociais e Políticas
A Turquia sob o governo do AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento) foi, há alguns anos, louvada como um modelo para o Médio Oriente e para o mundo muçulmano pelo seu aparente sucesso em combinar democracia liberal e Islão. O AKP surgiu em 2001, definindose como um partido que defende uma democracia conservadora (assente na defesa de um secularismo que respeita a religião, ao invés de a suprimir) e que se distinguiria do sistema partidário existente até então, com um programa político que incluía: democratização, respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais, direitos das mulheres, Estado de direito, separação de poderes, direitos das minorias, economia de mercado, democracia intrapartidária e uma nova Constituição. Ao alinhar-se com os Critérios de Copenhaga (democracia liberal, economia de mercado e cumprimento das obrigações resultantes das políticas e regras da União Europeia), o AKP procurava assegurar a adesão da Turquia à União Europeia, pelo que, nos primeiros cinco anos no governo, começou a implementar o seu programa. Estas reformas permitiram à Turquia abrir negociações formais de adesão à UE em Outubro de 2005.
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Após 2007, contudo, as reformas democráticas foram gradualmente diminuindo, dando lugar a tendências autoritárias: islamização crescente (mudanças na educação que promovem o ensino religioso em detrimento do ensino científico e secular, legislação que bane ou limita o consumo de álcool); ocupação de cargos públicos por quadros pró-AKP; instrumentalização do sistema judicial; censura; prisão de jornalistas, culto de personalidade a Recep Tayyip Erdogan, líder do AKP; criação de um sistema presidencialista. Todas estas tendências se tornaram evidentes com a violenta repressão dos protestos do Parque Gezi, em 2013. Porque é que o AKP retrocedeu o processo de democratização? O meu argumento é o de que o papel das elites é fundamental para compreender a democratização. O AKP, enquanto elite, é o único actor que pode democratizar (ou não) a Turquia: o partido ganhou todas as eleições (legislativas, locais e presidenciais) desde 2002; controla o aparelho de Estado e retirou os militares do poder. Considero que o AKP nunca esteve interessado em democratizar o país, mas sim em consolidarse como o actor dominante na Turquia. Daí a sua actuação estratégica, escolhendo
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meticulosamente as variáveis da democratização que melhor serviam esse fim. Uma vez que a adesão à UE e as reformas domésticas necessárias para corresponder à condicionalidade europeia são equivalentes a um processo de democratização, as perspectivas de adesão da Turquia à UE são quase nulas e dependem exclusivamente de factores domésticos. Embora em todos os países os partidos compitam pelos recursos estatais e pelo estatuto de partido dominante, numa sociedade altamente polarizada como a turca não há incentivo para democratizar, uma vez que a competição política é sempre um jogo de soma zero. O compromisso inicial do AKP para com a adesão à UE fornece um exemplo muito relevante da actuação estratégica do partido, movido por uma visão ancorada nas teorias da escolha racional, procurando maximizar os seus interesses – tornar-se o actor dominante no país. As reformas feitas pelo partido para cumprir com os Critérios de Copenhaga atacaram directamente o coração do emalismo (institucionalizado na Turquia a partir de 1923, o qual ocidentalizava e secularizava o país, tendo sido mantido ao longo de décadas pelos militares, pelo sistema judicial, pelas constituições e pela presidência) e permitiram garantir a supremacia do AKP. A retirada dos militares da política foi a reforma mais importante. Os militares eram o pilar do Kemalismo, vendo-se como os protectores da República e da Constituição, como referido no artigo 35º da Lei de Serviço Interna das Forças Armadas, Este espírito levou os militares a fazer golpes de Estado em 1960, 1971, 1980 e 1997. O papel dos militares na política turca foi constitucionalizado após o golpe de Estado de 1960, com a criação do Conselho Nacional de Segurança (MGK). Como resposta à condicionalidade da UE, o governo do AKP promoveu uma série de reformas. Uma delas foi a criação da possibilidade de acção judicial contra os militares for ofensas cometidas durante os seus deveres, reforma essa que
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eliminou o incentivo para os golpes de Estado. O MGK tornou-se um órgão puramente consultivo dependente do poder político. Os militares perderam também a sua prerrogativas de nomear um membro do Conselho de Supervisão do Cinema, Vídeo e Música, um membro do Conselho do Ensino Superior (YÖK), um membro do Conselho Superior Audiovisual (RTÜK) e um membro do Conselho de Protecção de Menores. Os tribunais militares cessaram a sua jurisdição sobre crimes cometidos por civis em tempos de paz. A propriedade, o orçamento e os recursos e as despesas extra-orçamento das Forças Armadas passaram a estar sujeitos a auditorias estatais. Desde 2010, as decisões do Conselho Supremo Militar (YAS) relativas ao despedimento de pessoal militar estão sujeitas a revisão judicial civil. Outra reforma fundamental feita pelo AKP para responder aos Critérios de Copenhaga deuse na legislação partidária. A Comissão Europeia e o Conselho da UE insistiram no alinhamento da legislação turca com a prática no espaço da UE, nomeadamente as disposições relativas ao encerramento de partidos políticos e banição dos membros de partidos das actividades políticas. Até às reformas do AKP, a legislação turca sobre partidos políticos era uma herança do golpe de Estado de 1980. Esta legislação permitia a dissolução de um partido político se este violasse a independência do Estado, a sua indivisibilidade, os direitos humanos, a igualdade, o Estado de direito, a soberania da nação, a democracia, o secularismo, se tentassem estabelecer uma ditadura (de uma classe ou de um grupo) ou se incitassem os cidadãos a cometer um crime. Em caso de encerramento de um partido, os seus membros não poderiam envolver-se em actividades políticas por um prazo de cinco anos. Sob estas disposições, 23 partidos políticos haviam sido banidos desde 1983. As reformas feitas pelo AKP para corresponder aos Critérios de Copenhaga permitiram a criação de sanções alternativas ao encerramento permanente de um partido (como a privação total ou parcial de fundos públicos).
As restrições em caso de condenação pelo crime de incitamento ao ódio baseado na classe, raça, religião, seita ou território foram eliminadas. Os encerramentos de partidos passaram a depender de uma maioria de três quintos no Tribunal Constitucional. O partido em causa pode apelar da decisão. Estas mudanças foram fundamentais para assegurar o não encerramento do AKP, em 2008, quando foi apresentado em tribunal um processo de encerramento contra o partido, acusado de violar o princípio do secularismo. A dominação do aparelho de Estado pelos Kemalistas assentava também no controlo da máquina burocrática. A condicionalidade da UE apontava para vários problemas que a Turquia deveria resolver, os quais incluíam a corrupção (incluindo no recrutamento para a função pública), o favoritismo ou o tráfico de influências. Outra exigência da UE era a independência do poder judicial. O poder judicial foi fundamental para a aplicação de legislação que mantinha a hegemonia Kemalista. A importância do sector público era crucial. Num país onde cerca de 30% do emprego era no sector público no final dos anos 90, a Turquia sistematicamente não aplicava o princípio da proibição da discriminação (desde logo religiosa). Os funcionários públicos eram um dos pilares fundamentais do Kemalismo, com uma abordagem estritamente secularista. De facto, a “roupa moderna” era obrigatória, por exemplo, para quem trabalhava no sector audiovisual. Em resposta à condicionalidade da UE, a Turquia liderada pelo AKP assinou o Protocolo 12 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que proíbe a discriminação pelas autoridades públicas. O método de selecção dos funcionários públicos mudou em 2002. O controlo da função pública pelo AKP foi assegurado através da reestruturação, diminuição da idade de reforma (obrigando muitos pró-Kemalistas a reformarem-se) e legislação. Como exemplo, a Lei do Serviço Público alterou os princípios e os procedimentos para a nomeação, promoção, transferência ou aposentamento obrigatório de funcionários públicos.
Para alguns autores, a credibilidade do processo de adesão da Turquia à UE começou a diminuir em meados dos anos 2000, levando o AKP a desacelerar as reformas a partir de 2005. Um dos maiores argumentos neste sentido diz respeito à proposta, por Angela Merkel e Nicolas Sarkozy (então Presidente da França), de uma parceria privilegiada para a Turquia, em vez da adesão plena. Outro argumento no mesmo sentido é o bloqueio das negociações de adesão desde 2006, motivada pela questão do Chipre, dividido entre gregos e turcos. Também circula a ideia de que a UE é um clube cristão, que não vê com bons olhos a entrada de um país maioritariamente muçulmano na UE. Estas questões e condicionamentos levaram, de facto, a um decréscimo acentuado do apoio da opinião pública turca à adesão à UE. Do meu ponto de vista, estas considerações não explicam suficientemente a falta de comprometimento do AKP para com as reformas/democratização a partir de 2005. Primeiro porque a hostilidade para com a Turquia baseada em questões culturais não é nova. Segundo porque muitos Estados membros continuaram a apoiar a adesão da Turquia à UE – desde logo a católica Polónia. Assim, se a Turquia tivesse continuado com as reformas, não haveria razão válida para recusar a sua adesão à UE. Em terceiro lugar, a rejeição, pela UE, de algumas das políticas do AKP (como a criminalização do adultério) aumentou o sentimento anti-UE no partido. Em quarto lugar, os valores da UE diferem fortemente dos valores do AKP, colocando um obstáculo ao seu estatuto dominante na política turca, estatuto esse adquirido através das reformas efectuadas em resposta à condicionalidade europeia. De facto, a democratização e a democracia apresentam uma série de ameaças ao poder das elites dominantes e, nomeadamente, à posição hegemónica adquirida pelo AKP: porque a democratização cria múltiplos actores (partidos, agentes económicos, movimentos sociais, media);
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porque dá voz a actores previamente mudos (como as minorias – a Turquia tem várias minorias importantes, como os Curdos e os Alevitas); porque cria mecanismos de checks and balances; porque torna incerto o resultado das eleições (sobretudo em épocas de crise); porque abre múltiplos canais de acesso ao sistema político; porque evita a concentração do poder; porque torna a mudança institucional mais difícil; porque impõe a negociação; porque reduz a possibilidade do uso da violência de Estado. Todas estas condições implicam mais custos e recursos para assegurar o estatuto dominante.
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O Estudo de África e o Looping Utopia-Distopia nas Relações Internacionais Gabrieli Gaio Professora Auxiliar Convidada no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas
“Não estudamos África para resolver problemas africanos. Estudamos África para compreender o mundo.” Elísio Macamo, 2019. Notas Introdutórias Primeiramente, expresso minha alegria, satisfação e honra ao receber o convite da equipe do NERI para escrever sobre o continente africano na PACTA. Acrescento, ainda, o sentimento de surpresa – muito agradável - com o convite. Espero, sinceramente, que as palavras que se seguem neste breve texto não frustrem as vossas expectativas – farei o meu melhor! Em segundo lugar, é fundamental reconhecer o empenho e o comprometimento dos(as) estudantes com o conhecimento ao criarem e manterem uma revista que se dedica a explorar e fomentar a produção do corpo discente. É digno de celebração o esforço e a iniciativa subjacentes à criação da PACTA, uma vez que consolidam a vossa posição de sujeitos nas engrenagens do conhecimento desde cedo. Finalmente, cabe ressaltar a relevância da instituição que nos acolhe, o ISCSP, ao se mostrar receptivo, no âmbito do programa em Relações Internacionais, à incorporação de uma
unidade curricular obrigatória na licenciatura sobre as conjunturas africanas que precedem o projeto colonial. Não é necessária uma vasta investigação para notar que fato semelhante não se reproduz facilmente em universidades ao redor do mundo – sobretudo no seu centro, para usar a concepção wallersteiniana da palavra (Wallerstein, 1974). O que se estuda sobre África? O objeto de estudo sob reflexão Cabe-nos, tendo assegurado o espaço para se discutir as realidades sociais africanas, refletir sobre como temos feito uso dessa oportunidade. Não há melhor lugar para começar que não o começo em si: a construção do nosso objeto de estudo. Ou seja, do que estamos a falar quando nos propomos a discutir África? Certamente, estamos tentados a responder, de impulso, que tratamos de um continente ou um dado território. A definição territorial – ou territorialista, com o perdão do proposital paralelo – não se pode considerar equivocada, mas pode levar à esterilização um frutífero debate sobre África enquanto objeto de nossa análise. Para já, poderíamos recorrer a clássicos transdiscipli-
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nares como Appadurai (1990) e Deleuze & Guattari (1972), apreendendo os processos de deterritorialization que demarcam a nossa realidade cultural em tempos de globalização, desafiando formidavelmente uma concepção essencialmente geográfica dos estudos de área e das Relações Internacionais (RI) como um todo. Mas não é por esse caminho que proponho aqui estruturar nossa reflexão. Podemos recorrer à escola construtivista das RI, por exemplo, para repensar nosso objeto de estudo de uma forma mais crítica. Do construtivismo do jovem Alexander Wendt (1992) ao construtivismo de regras do veterano Nicholas Onuf (1989), temos o denominador comum epistemológico da realidade subjetiva, ou melhor, intersubjetiva. Pensamos, portanto, o continente africano enquanto objeto de estudo socialmente construído de forma intersubjetiva – passível de problematização em si mesmo. Trazendo o debate agente-estrutura para o centro das RI, Wendt (1992) impactou de forma irreversível esse campo ao afirmar que a “anarquia é aquilo que os estados fazem dela”. Será que não poderíamos nós indagar se aquilo que entendemos por África também não é, ao menos em parte, fruto do que lemos, absorvemos, narramos e projetamos sobre ela nas RI? Como representamos a África em RI? Buscando mitigar o caráter aparentemente abstrato da minha proposta e o risco de frustrar as vossas expectativas, partilho uma experiência enquanto aluna de graduação em RI há alguns anos no Brasil. No último semestre do curso, havia uma unidade curricular dificílima por cursar: Teoria de Relações Internacionais IV, a.k.a. Teoria IV – a última de todas as teorias! Textos grandes, densos, controles de leituras surpresa e exames exigentes. Entre as abordagens estudadas, estava o trabalho de Michael Shapiro, autor de um texto cujo título já denunciava a complexidade do conteúdo: “Textualizing Global Relations” (Shapiro, 1989).
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A proposta de Shapiro seria que olhássemos para as relações internacionais como quem interpreta um texto: cuidando para apreender que tipo de vocabulário é utilizado, quais palavras são frequentemente repetidas e em quais contextos, e como o seu significado pode ser mutável – originando imposições de significação relacionadas à composição de um discurso cristalizado, pretendente a neutro, real e não problematizável. Shapiro (1989) argumenta que a literatura e sua prática textual fazem mais do que meramente descrever a realidade social do internacional: trata-se de um processo cíclico de interpretação e constituição dessa realidade. Isso porque, ao pensarmos sobre a construção de um artigo científico, ativamos uma cadeia de elementos pré-textuais (como interpretamos a realidade que pretendemos abordar), textuais (como representamos essa realidade em nosso texto e como outros a interpretam) e póstextuais (o legado informativo que o texto deixa para a comunidade, condicionando futuras investigações). Estaria mentindo, entretanto, se dissesse que realmente compreendi a relevância do argumento de Shapiro (1989) quando da conclusão de minha graduação. Eu estava a terminar o curso com candidaturas encaminhadas para o (sonhado e muito desejado) mestrado em estudos africanos. Já havia elaborado minha agenda de pesquisa para o mestrado: como resolver o problema da corrupção africana, mais precisamente angolana. Não percebia como o tempo investido na reflexão acerca do discurso e do vocabulário utilizado na literatura científica poderiam ser úteis na minha missão. Mas e a África? O artigo era para ser sobre África... Entre a graduação em RI e o convite para colaborar hoje na PACTA, se passaram dez anos, um mestrado em estudos africanos, um doutoramento em ciência política, pesquisa de
campo, alguns congressos e meus primeiros anos de atividade docente. Nesses dez anos, estive sempre às voltas com investigação e atividade letiva sobre realidades africanas – em temáticas geralmente correlatas às RI, dado ser essa a minha formação de base. Ao longo dessa década, cresceu em mim a sensação de que uma parte significativa da investigação sobre o continente africano, especialmente no seio das RI pós-Guerra Fria, se encontraria presa em um looping utopia-distopia. Eu sei que vocês não me pediram para escrever sobre um feeling – me pediram um artigo científico. Eu avisei que não conseguiria escrever um artigo científico em menos de 2000 palavras, então estou fazendo (tentando fazer) uma modalidade híbrida com o devido embasamento. Vejam bem: no contexto do pósGuerra Fria, nós temos o fim da história de Fukuyama (1989) – o Consenso Neoliberal prevaleceu, há um modelo vencedor que traz consigo um referencial (utópico) de modernidade, alegadamente uma modernidade acabada e bem conseguida. Wittrock (2000) observa o epítome dessa modernidade: democracia liberal ou república constitucional (pilar político) e economia de mercado (pilar econômico). Derivados desse epítome, podemos encontrar os subprodutos da modernidade: boa governação, direitos humanos, livre concorrência, entre muitos outros. Para toda utopia, se fabrica uma distopia que dê sentido antitético à primeira (o inverso também procede). Dessa forma, temos que toda e qualquer realidade social que seja interpretada e representada como inadequada tendo em vista o referencial de modernidade acima mencionado, irá cair, necessariamente, no vão da distopia. O estudo sobre África será aqui alocado, construído a partir de uma lente distópica que se constrói sobre a utopia da “modernidade conseguida e acabada” europeia. É então que precisamos prestar atenção à forma como a África é interpretada, representada e narrada (não se esqueçam do Shapiro) nas RI - Que temáticas associamos ao
continente? Que abordagens utilizamos para estudar África? Ademais, qual seria a póstextualidade dessa literatura? Ou seja, de que forma, por exemplo, a produção de conhecimento sobre África está comprometida com (ou pelo) o processo de policy making? Enfim, como nós estamos construindo o nosso objeto de estudo (não se esqueçam do Wendt)? Chegamos, enfim, a uma agenda de investigação bem delimitada. Os tópicos abordados alimentam a distopia e fortalecem a utopia, ou seja, busca-se averiguar a alegada modernidade falhada africana por meio de temáticas que circundam a dificuldade do continente ao alcançar a democracia liberal e a economia de mercado, bem como seus subprodutos. A forma como se estuda é frequentemente normativa – sintomática do looping utopia-distopia: isto é, como corrigir/melhorar/resolver os problemas africanos e aproximá-lo do referencial de modernidade. Em 2019, esteve no ISCSP Elísio Macamo – proeminente e veterana figura nos estudos sobre África. No Seminário África 2019, intitulado “A ordem normativa dos Estudos Africanos”, Macamo (2019), com sua precisão e domínio admirável dos pilares que informam o conhecimento sobre África, revisitou em mim a sensação de looping utopia-distopia. Explanou a ideia de que o modo como concebemos nosso objeto de estudo está de tal forma espartilhado por premissas e conceitos pobremente definidos – ordem normativa – que pouco espaço sobra para a construção de um debate frutífero que conduza ao conhecimento. As palavras aqui importam – ou melhor, os conceitos que nelas incutimos. Em 2017, Macamo já havia alertado sobre as chamadas “palavras que pensam por nós”, especialmente no modo como concebemos a África: "Palavras que pensam (por nós) são termos tão ricos em significado, tão versáteis em seu emprego, tão amplamente utilizados que sua presença em qualquer afirmação é suficiente para atribuir sentido a um argumento. E isso
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ocorre mesmo quando tal afirmação é desprovida de significado. Essas palavras, que na realidade são conceitos, apresentam significados precisos nas ciências sociais a ajudam investigadores a articular um senso descritivo, analítico e interpretativo acerca dos fenômenos que estudam. Contudo, quando essas palavras são utilizadas no discurso público em geral ou de forma não problematizável por pesquisadores, elas assumem a função de pensar por aqueles que as utilizam.” (Macamo, 2017) A questão de fundo, aquela que precede todas as outras quando abordamos África, é que o acesso e o estudo desse continente estão previamente aparelhados por uma série de palavras ou termos que pensam por nós, como: democracia, direitos humanos, desenvolvimento, mercado, boa governação, entre outros. São termos – subprodutos da modernidade – tão repetidos na literatura que frequentemente deixaram de ter seu emprego acompanhado do devido debate conceitual e crítico. Adentram a arena do senso comum, configurando uma prática textual-discursiva que se pretende neutra, não-problematizável ou cristalizada – lembrem-se do Shapiro (1989), mais uma vez. Por conseguinte, o debate científico é esvaziado, inócuo, reduzido ao looping utopia-distopia. Limito-me, já ultrapassando o espaço que me foi concedido, a lembrar a discussão de Grovogui (2001) sobre a conceitualização e emprego do termo soberania nas RI. Esse vocábulo tão central para nossa área, exaustivamente reproduzido em pesquisas aplicadas, frequentemente carece de pensamento crítico e devida conceitualização quando se tratar de resolver a África. Partindo de uma utopia westfaliana que automaticamente aufere o sentido de plenitude soberana ao estado moderno europeu, fabricamos a distopia da soberania falhada do estado pós-colonial africano. A partir dessa premissa – não problematizada – emerge uma toda agenda de investigação sobre o estado frágil/falido africano (outro termo que pensa por nós).
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Não há tempo e espaço para aprofundar o rico argumento de Grovogui (2001) – entretanto, se optarem por não deixar que o gasto termo “soberania” pense por vós, fica o convite de leitura. Notas Finais Então, como desbloqueamos o debate bloqueado pela ordem normativa? Como saímos do viciante looping utopia-distopia? Talvez, o próprio Wittrock (2000) aponte um caminho interessante para interpretarmos esse referencial: a modernidade enquanto um conjunto de notas promissórias de caráter global. Por isso, considero aqui o referencial de modernidade enquanto uma categoria utópica – porque tal referencial não se verifica conseguido e acabado de forma plena em nenhuma parte do globo. Sob essa ótica, seríamos todos um “bocado distópicos”: em África, na Europa, na América do Norte, do Sul... Peço desculpas por não oferecer sequer uma tentativa no sentido de solucionar os habituais problemas africanos. Mas eu apelo para que tenham alguma receptividade relativamente às breves notas que partilho convosco e que tenham maior sensibilidade ao pensar e aplicar conceitos no estudo de África. Sabendo que buscamos aceder o continente africano com base “em termos basicamente tomados de empréstimo de outros lugares”, apelo para que reconheçam que “a verdade não é propriedade de nenhuma cultura; devemos apoderar-nos das verdades que precisamos onde quer que as encontremos” (Appiah, 1992, p. 21). Dessa forma, talvez, consigam vislumbrar a grande oportunidade que o estudo de África representa para a compreensão acerca da globalidade problemática que subjaz às Relações Internacionais.
Referências Bibliográficas Appadurai, A. (1990). Disjuncture and Difference in the Global Cultural Economy. Theory, Culture & Society, 7(2), 295-310. Appiah, K. (1992). Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto. Bauman, Z. (2017). Retrotopia. Cambridge: Polity Press. Deleuze, G.; Guattari, F. (1972). Anti-Oedipus: capitalism and schizophrenia, vol. 1. Nova Iorque: Continuum. Foucault, M. (1966). As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8ª ed. (2000). São Paulo: Martins Fontes. Fukuyama, F. (1989). The end of History? The National Interest, Verão 1989. Grovogui, S. (2001). Sovereignty in Africa: Quasestatehood and other myths in international theory. In: Dunn, K.; Shaw, T. (Eds) Africa’s challenge to international relations theory (pp. 29-45). Macamo, E. (2019). A ordem normativa dos Estudos Africanos. In: Seminário África 2019, ISCSP, Universidade de Lisboa. ___. (2017). Blinded by capitalism: words that think (for us). Review od African Political Economy, s/n, s/v. Disponível em: http://roape.net/2016/12/07/blinded-capitalismwords-think-us/ . Acesso em: 14 Maio 2020.
Onuf, N. (1989). World of our making: rules and rule in social theory and international relations. Columbia: University of South Carolina Press. Shapiro, M. (1989). Textualizing global politics. In: Der Derian, J.; Sahpiro, M. International/Intertextual Relations: postmodern readings of world politics (pp.11-22). Nova Iorque: Lexington Books. Wallerstein, I. (1974). The modern World System I: Capitalist Agriculture and the Origins of the European World-Economy in the Sixteenth Century. New York: Academic Press. Wendt, A. (1992). Anarchy is what states make of it: the social construction of power politics. International Organization, 46(2), 391-425. Wittrock, B. (2000). Modernity: one, none or many? European origins and modernity as a global condition. Daedalus, 129(1), Multiple Modernities (Winter, 2000), 31-60.
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As Presidências Inconstitucionais na Ásia Central do Século XXI
Tiago André Lopes Professor Auxiliar de Relações Internacionais no Departamento de Direito, da Universidade Portucalense Investigador da linha de investigação “Médio Oriente e Ásia Central” no Instituto do Oriente, do ISCSP-UL A Neo-Patrimonialização do Autoritarismo Competitivo no Uzbequistão e no Turquemenistão A contemporaneidade é talvez um dos conceitos temporais mais ambíguos, e, talvez por isso, um dos mais utilizados pela academia. A ideia do que é contemporâneo depende sempre da visão do leitor e/ou do autor. Para Santo Agostinho era “contemporâneo” o desafio posto pelo saque de Roma pelas forças de Alarico; para Damião de Góis foi “contemporâneo” o crescimento da relevância de Portugal na política europeia; da mesma forma, que para Tolstói era “contemporânea” a Guerra da Crimeia. O desafio de escrever sobre o contemporâneo começa, por isso, no balizamento daquilo que entendemos como recente. Não se assuste o leitor com este introito, que não é meu mister usar esta explicação para abordar a Guerra na Coreia, o regime dos Khmer Rouge no Camboja, ou a independência dos estados da Ásia Central pós-soviética. Mas, como docente de Política Internacional Contemporânea, acho importante termos clareza conceptual antes de nos lançarmos no desafio da análise das problemáticas contemporâneas.
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Na ordem internacional vestefaliana pósRevolução Francesa, a dimensão interna da soberania passou a ser circunscrita pelas Constituições. Mesmo os Estados que não têm Constituições escritas, como é o caso do Reino Unido, de Israel ou da Arábia Saudita, socorremse de vários documentos com natureza constitucional para cumprir essa mesma função. De modo simples, a Constituição estabelece as regras basilares do jogo político que têm de ser respeitadas por todos os atores políticos dentro do território no qual a Constituição vigora. Naturalmente, que as Constituições podem ser revistas, ou mesmo substituídas, de modo a responder ao devir histórico; mas estas mutações do elemento normativo organizador da dimensão interna da soberania dos Estados dispõem sempre, ou quase sempre, para o futuro. O não cumprimento da Constituição implica a nulidade, normativa pelo menos, de um ato no estado em que esta vigora. Não devemos excluir, obviamente, que a descodificação de certos artigos presentes nas Constituições contemporâneas se apresenta como ambígua, de modo a dar maior latitude quer aos agentes políticos quer aos decisores judiciais.
Nos regimes autoritários, a criatividade interpretativa assume o grau máximo, enquanto que nos regimes democráticos a latitude semiológica reduz-se. Mas se a interpretação lata de um artigo Constitucional ambíguo pode gerar factos políticos contraditórios, mas normativamente justificados, o mesmo não se pode dizer de quando se ignora um artigo constitucional para permitir um ato político. Passemos então da abstração dos conceitos, à análise dos factos. Gurbanguly Mälikgulyýewiç Berdimuhamedow é o segundo Presidente do Turquemenistão, desde que este estado se tornou soberano, a 26 de Dezembro de 1991. Gurbanguly chega ao poder após a morte de Saparmurat Atayevich Niyazov que comandou os destinos do estado entre 1985 (na altura ainda como República Socialista Soviética do Turquemenistão) e 2006. É importante dizer que em 1999, o Parlamento do Turquemenistão nomeou o Presidente Niyazov como “Presidente para a Vida”, e mais tarde como Pai da Nação Turquemena, mas este nunca nomeou um sucessor, evitando assim, para surpresa de muitos analistas, a tendência para a criação de dinastias políticas em Repúblicas autoritárias. A Constituição do Turquemenistão era bastante clara. O artigo 60 definia que deveria subir ao cargo de Presidente Interino, o Presidente do Parlamento, sendo que este estaria barrado de participar no ato eleitoral que elegesse o próximo Presidente do Turquemenistão. A 21 de Dezembro de 2006, dia em que Niyazov morre de paragem cardíaca, Gurbanguly é Vice-Presidente do Turquemenistão… O Presidente do Parlamento era Öwezgeldi Ataýew que, a 21 de Dezembro (nesse mesmo dia!), é afastado de todos os cargos pelo Conselho de Segurança do Estado do Turquemenistão, órgão máximo na área de defesa e com papel e poderes ambiguamente descritos na Constituição, que o acusa de abuso de poder e violação de direitos humanos, implicando mesmo que Öwezgeldi teria pressionado a nora a tentar suicídio. Quem dirigia na altura este órgão? Gurbanguly Berdimuhamedow.
Curiosamente, e apesar da manobra política digna de um guião de Hollywood, o poder deveria ter seguido para o líder do Conselho do Povo, órgão legislativo abolido em 2008, mas tal não acontece. Gurbanguly Berdimuhamedow, que ascende ao cargo de Presidente interino sem a legitimidade constitucional para o fazer, garante a sua elegibilidade para a eleição presidencial de 2007 removendo, a 24 de Dezembro de 2006, o artigo que impedia a candidatura do Presidente Interino. Ora, apesar da materialidade dos factos poder ser justificada a jusante, no plano ético-moral podemos, e devemos fazer a reflexão crítica de que a candidatura de Gurbanguly Berdimuhamedow carece de legitimidade constitucional, uma vez que este ascende a um cargo que não era seu por direito e deturpa a natureza do mesmo para benefício próprio. As Constituições servem para organizar o jogo político no abstrato e não para o condicionar no concreto, para benefício de um único jogador. Importante dizer que todo este processo mereceu o silêncio da União Europeia, que mantém relações diplomáticas e económicas com a República do Turquemenistão devido às reservas de gás natural e hidrocarbonetos deste estado. Em 2016, dez anos depois do “assalto ao poder” de Gurbanguly Berdimuhamedow no Turquemenistão, o vizinho Uzbequistão passou por uma trama política não muito diferente. No começo de Setembro de 2016, Islam Karimov, Presidente do Uzbequistão desde 1989, morre deixando vago o mais alto cargo do estado uzbeque. Uma vez mais, a Constituição em vigor era clara: o sucessor interino seria o Presidente do Senado. Há época, o Presidente do Senado era Nigmatilla Yuldashev mas quem acaba por suceder a Karimov é Shavkat Miromonovich Mirziyoyev, na altura a ocupar o cargo de Primeiro-Ministro. O afastamento de Yuldashev é menos dramático, mas curiosamente mais difícil de justificar do ponto de vista Constitucional. Nigmatilla Yuldashev considera, a 8 de Setembro, que a experiência governativa de Mirziyoyev faziam dele um melhor candidato ao cargo de
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de Presidente Interino. O problema é que o alegado requisito é extra-constitucional e, portanto, do ponto de vista formal, carece de força legal. O “pontapé de saída” para a promoção de Mirziyoyev é dado logo a 2 de Setembro, dia da morte de Karimov, quando Mirziyoyev é nomeado como Responsável Máximo pelas Cerimónias Fúnebres do “Pai da Nação Cazaque”. Mais ainda, se Yuldashev não se considerava “apto” para o cargo, apesar da sua longa carreira em cargos administrativos e judiciais, quem lhe deveria suceder era a Presidente da Câmara Legislativa (câmara baixo do Parlamento Cazaque): Diloram Gafurjanovna Tashmukhamedova. O afastamento, por reconhecimento de menor competência de Yuldashev, e o afastamento por omissão de Tashmukhamedova, em nada validam a nomeação de Mirziyoyev para o cargo de Presidente Interino, a 8 de Setembro de 2016. Assistimos assim a uma neo-patrimonialização de estados com autoritarismos competitivos, em que em vez de termos novos “Reis-Sóis” que incorporam o estado si, passamos a ter Presidentes-Caciques que substituem: O Estado Sou Eu por O Estado é meu. Passamos a ter uma dinâmica de estado, gerido como se fosse a mercearia local, na qual a mudança de dono se pode fazer com recurso a mecanismos menos formais e coartados pelo normativismo constitucional. Porque razão decidi escrever sobre este assunto em Maio de 2020, em plena pandemia do COVID-19, com uma multitude de temas mais mediáticos e mais recentes? Primeiro, porque
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acredito ser função da academia promover uma reflexão crítica sobre os fracassos da arquitetura institucional de alguns regimes, que fragilizam a ideia de estabilidade e previsibilidade normativa que as Constituições deveriam introduzir. Segundo, porque enquanto investigador do Instituto do Oriente acho imperioso evitar o seguidismo das modas presentistas e manter o foco analítico nos factos políticos com relevância epistemológica e não apenas com impacto epidémico nas redes sociais e nos media mainstream. Apesar de terem passado 14 anos desde a chegada ao poder do segundo Presidente do Turquemenistão e 4 anos desde a chegada ao poder do segundo Presidente do Uzbequistão, nada altera a ausência de Constitucionalidade no modo como tomaram o poder de assalto. Se a formalidade dos atos normativos não é defendida pela academia instalada em estados democráticos como é o caso de Portugal, com todas as suas fragilidades e fraquezas, então não existe razão para o direito se manter como pilar da democracia. O que é grave não é a manutenção no poder de Mirziyoyev ou de Gurbanguly, o que é grave é o silêncio gritante da União Europeia e de muitos dos seus atores principais perante estes assuntos; a mesma União Europeia que em certos momentos entra em histerismos mediáticos pseudo-democrático contra os seus estados-membros por flutuações de estilo e não de forma.
Inverno Nuclear e a Urgência do Desarmamento Nuclear
Maria Francisca Saraiva Professora Auxiliar no Instituto Ciências Sociais e Políticas
A promoção do desarmamento nuclear é uma prioridade na agenda da comunidade internacional desde que a cidade de Hiroshima foi bombardeada com armas atómicas pelos Estados Unidos, em 1945. Desde esse momento os cientistas têm procurado estudar os efeitos da utilização das armas nucleares no ambiente global e na capacidade de sobrevivência do ser humano. Existem vários estudos sobre a possibilidade de um “inverno nuclear”, isto é, estudos que se debruçam sobre os efeitos climatéricos globais recorrentes do emprego de armas nucleares especialmente no que concerne a possibilidade de uma descida acentuada na temperatura, envolvendo a possibilidade de extinção da vida humana. Estes estudos foram impulsionados e amplamente utilizados pelos movimentos pacifistas tão em voga na década de 80 do século XX, no sentido de colocar na agenda internacional a necessidade urgente de promover o desarmamento nuclear. O Tratado de Não Proliferação Nuclear, que entrou em vigo em 1970, regula juridicamente a questão das armas nucleares e a necessidade de travar a sua proliferação para países que não pertencem ao chamado Clube Nuclear ao mesmo
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tempo que incentiva a utilização pacífica da tecnologia nuclear. Pode dizer-se que o regime instituído pelo tratado permitiu controlar de forma bastante satisfatória a proliferação deste tipo de armamentos, sendo de referir que países como o Brasil, África do Sul ou a Líbia acabaram por desistir dos seus programas clandestinos envolvendo armas nucleares e aceitaram ser Estados partes do tratado com o estatuto de Estado sem nuclear. Há contudo disposições do tratado que continuam a ser desrespeitadas, como é o caso do artigo VI do Tratado, justamente a única disposição juridicamente vinculativa que obriga o Clube Nuclear (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança) como países possuidores de armas nucleares, em virtude de terem testado armas nucleares antes de 1 de Janeiro de 1967, a um desarmamento geral e completo deste tipo de armas. Neste sentido, é da maior importância o Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares, concluído em 2016. Este Tratado cria um regime semelhante ao que existe para as armas biológicas e químicas proibindo o desenvolvimento, produção, posse, uso, ameaça de uso e ainda possibilidade de estacionar armas
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nucleares no território nacional dos Estados partes – recorde-se que há armas norteamericanas estacionadas no território de alguns países NATO -, exercendo pressão adicional sobre o Clube Nuclear para que procedam ao desarmamento geral e completo embora as potências nucleares e os países da NATO tenham recusado envolver-se no tratado. Estes desenvolvimentos fazem parte de uma agenda internacional muito específica que conta com o apoio de centenas de organizações não governamentais, governos e organizações internacionais que procura explorar a ideia de que as armas nucleares são contrárias ao Direito Internacional Humanitário, por serem desumanas e de impacto indiscriminado, pelo que não podem ser toleradas, para além dos impactos inaceitáveis que provocam no ambiente global. Na verdade, o Tribunal Internacional de Justiça reconheceu, em 1996, num parecer consultivo, que o uso de armas nucleares seria geralmente incompatível com o Direito Internacional Humanitário. Se é verdade que os arsenais nucleares dos Estados Unidos e Federação Russa são hoje substancialmente mais pequenos do que os existentes na guerra fria, em virtude das disposições de sucessivos tratados de desarmamento nuclear assinados bilateralmente ao longo das últimas décadas, tem que admitirse que continua a existir um número excessivo de armas nucleares sem que haja qualquer justificação estratégico-militar para a sua manutenção, bem como uma modernização dos arsenais que indicia que não há qualquer intenção de promover o desarmamento geral e completo. Mas a questão da posse e emprego de armas nucleares não está infelizmente circunscrita ao problema do Clube Nuclear. A hipótese de grupos terroristas poderem vir a ter acesso a armas nucleares é remota mas é um cenário que não pode ser descartado sendo urgente medidas para reforçar os esforços de não proliferação em relação a entidades não estaduais. Por outro lado, pouco ou nada se tem feito em relação à
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Índia, Paquistão, Israel, Estados que oficiosamente têm capacidade nuclear mas não pertencem ao Tratado de Não Proliferação Nuclear. Israel e a Índia, em particular, parecem gozar inclusivamente de uma certa simpatia internacional e tolerância em relação à sua política e arsenais ilegais, em particular por parte dos Estados Unidos que têm incentivado estas opções políticas. Há ainda a complexa problemática do Irão, país que desrespeitou os seus compromissos no quadro do Tratado de Não Proliferação Nuclear e com quem foi negociado um acordo em troco de levantamento de sanções que agora enfrenta o afastamento dos Estados Unidos, e a Coreia do Norte que anunciou que se retiraria do Tratado de Não Proliferação Nuclear em 2003 mas que muitos países consideram que continua a ser Estado parte e que tem tentado construir um arsenal nuclear próprio. A nuclearização da Coreia tem necessariamente um impacto negativo na região e o mundo. Caso não se consiga travar o processo é de esperar um fenómeno de proliferação nuclear na zona, nomeadamente a possível nuclearização da Coreia do Sul e do Japão, o que a acontecer traria instabilidade e imprevisibilidade ao sistema internacional e a possibilidade de eclosão de conflitos que poderiam escalar para o patamar de conflitos nucleares. Em suma, a possibilidade de um “inverno nuclear” vem por em evidência o absurdo poder destrutivo das armas nucleares e a imprevisibilidade das políticas nucleares assumidas pelos países. Note-se que a Coreia do Norte vê no nuclear a possibilidade de garantir a sobrevivência do regime e a hipótese de bter financiamentos e ajuda humanitária para fazer face à difícil situação do país. O problema fundamental desta opção, para além dos inconvenientes já apontados, tem que ver com a estratégia associada à posse das armas nucleares. Aparentemente, a Coreia pretende desenvolver uma estratégia de dissuasão nuclear mas ninguém nos garante que possa evoluir para uma estratégia de emprego efectivo, com
consequências terríveis para o mundo. Em conclusão, diríamos que o grande dilema estratégico do nosso tempo é parar a proliferação nuclear e evitar a “convencionalização” do nuclear, isto é a tentação de usar as armas nucleares em conflitos armados como se estas armas fossem, no essencial, semelhantes às armas convencionais, sendo certo que o seu emprego desrespeitaria as regras básicas do Direito Internacional Humanitário e teria consequências imprevisíveis para o ambiente global.
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SIMULAÇÃO DO CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU | NERI O OLHAR DOS PARTICIPANTES
Chernobyl e Fukushima
Carolina Gil Estudante da Licenciatura de Relações Internacionais no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Participante na Simulação do Conselho de Segurança da ONU organizada pelo NERI em Novembro de 2019 Em 1986, Chernobyl tomou o mundo de assalto, tornando-se a maior catástrofe nuclear, atingindo o nível 7 na escala INES (Escala Internacional de Acidentes Nucleares). Em 2011, Fukushima tornou-se no 2º evento da história a ter este nível. Experts e cientistas divergem entre qual dos dois foi o mais danoso. De imediato, com uma pesquisa superficial na internet, conseguimos descobrir que existiram mortes diretamente relacionadas ao acidente de Chernobyl (cerca de 30) e que o mesmo não no se verificou em Fukushima. Mas o problema maior, em qualquer caso de acidente nuclear, é o problema de saúde pública. No “The New York Times” a doutora Helen Caldicott disse que cerca de 1 milhão de pessoas poderão ter morrido devido ao desastre de Chernobyl, mas que, no entanto, Fukushima poderia ultrapassar este número. Apesar disso, até agora, não se verifica tal problema. A rápida resposta por parte do governo japonês, desde a evacuação até à limpeza dos locais mais afetados, que decorre ainda hoje, foi crucial para assegurar o impedimento da propagação das consequências. Em Chernobyl um reator explodiu e incendiou, mandando para a atmosfera uma nuvem tóxica que se propagou por toda a região.
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A radiação espalhou-se rapidamente pois os reatores não tinham nenhuma estrutura que os envolvesse. Tudo isto contaminou a vegetação e a água, afetando gravemente os habitantes locais e também a cidade vizinha de Pripyat. Como já havia sido dito, estima-se que cerca de 30 pessoas tenham morrido nos 3 meses seguintes, vítimas diretas da exposição à radiação. Além disso, é estimado que dezenas de milhares de pessoas tenham sido afetadas grandemente por este desastre, correndo o risco de desenvolver doenças oncológicas. A falta de informação à volta do leite contaminado, gerou, nos últimos anos, imensos casos de cancro na tiroide. Com uma área de 30km evacuados, só nos últimos anos é que a zona tem sido aberta, mas ainda não é possível habitar a área, sendo que se encontra, de momento, limitada a visitas. Cerca de 200.000 mil pessoas tiveram de abandonar as suas casas e partir. Em Fukushima, segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), não houve mortes relativas à exposição direta à radiação. No entanto, com a evacuação de cerca de 100.000 pessoas, cerca de 1000 morreram devido ao stress e ansiedade, a maioria já com cerca de 66 anos.
SIMULAÇÃO DO CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU | NERI O OLHAR DOS PARTICIPANTES Fukushima também foi vítima de incêndios e explosões, no entanto a estrutura desta central nuclear estava melhor preparada para conter os materiais radioativos e, devido a isso, os danos não chegaram ao nível de Chernobyl. Fora da zona de evacuação, com cerca de 20km, a OMS confirmou que em termos de saúde pública, o desastre não representou um grande risco, embora só tenham passado 8 anos desde o acidente, não podendo ainda verificar as consequências reais de tal catástrofe. O impacto no ambiente foi bastante mais baixo, sendo que a localização geográfica do Japão é oportuna, tendo o material radioativo se espalhado pelo oceano pacifico. A situação do Japão é imensamente diferente da de Chernobyl pois, somente 8 anos depois, o governo japonês já começou a incentivar exresidentes a ocupar algumas cidades da zona de evacuação. O governo tem feito todos os esforços para remover a camada superior do solo, limpar casas e estradas, cortar arvores, etc. Uma reportagem feita pelo National Geographic mostra que alguns residentes voltaram para as suas cidades, que foram, entretanto, reconstruídas, com novos edifícios, infraestruturas e escolas modernas, para melhor receber os seus ex-residentes. Nas escolas em questão, toda a comida é testada todos os dias, averiguando os níveis de radiação. Não obstante, Fukushima ainda é debatido. Muitos experts dizem que a crise está ainda a começar. O professor Tim Mousseau, um cientista que estuda o impacto genético da radiação de Chernobyl há mais de uma década, diz que não há ainda informação acerca do impacto a longo termo da radiação para garantir um retorno seguro da população às suas localidades. “O que podemos dizer, no entanto, é que é muito provável que haja impactos significativos a longo prazo derivados da exposição prolongada.” (McNeill, 2011). É de notar que o governo japonês tem sempre apostado numa política menos transparente, tratando sempre como crucial a imagem e reputação do seu país.
A atitude que toma agora é coerente com as que tem tomado nas últimas décadas. Não só neste tópico, mas como em muitos outros, encobrindo opiniões menos positivas e ignorando ou negando acusações – um exemplo seria “as mulheres de conforto” coreanas da II Guerra Mundial. Os oficiais demoraram um certo tempo até verdadeiramente admitirem que existiam várias habitações perto da central de Fukushima que não poderiam ser habitadas durante 1 ou mais gerações, algo que vários experts já tinham confirmado. Existem regiões afetadas fora da zona de exclusão que não receberam qualquer tipo de compensação. Zonas estas que baniram várias atividades extracurriculares para crianças, para que estas não estejam na rua, desprotegidas. (McNeill, 2011) O governo diz, no entanto, que a evacuação dessas áreas não é necessária, enquanto cientistas como Tim Mousseau o contradizem. Ambos estes desastres mostram uma realidade críptica, e a sociedade navega-a com uma certa dificuldade, não sabendo o que está ao virar da esquina. Chernobyl foi o primeiro dissabor, a inexperiência levou a mortes desnecessárias. E, não aprendendo com o passado, não podemos negar a possibilidade de Fukushima se encaminhar pelo mesmo. Será que é a ignorância que está a ditar o regresso de imensas famílias japonesas às suas casas? Ou o governo japonês está realmente certo de que é seguro?
Referências Bibliográficas McNeill, D. (2011). Why the Fukushima disaster is worse than Chernobyl. The Independent. [online] 28 Aug. [1] Shellenberger, M. (2019). It Sounds Crazy, But Fukushima, Chernobyl, And Three Mile Island Show Why Nuclear Is Inherently Safe. Forbes. [online] 7 May. Weisberger, M. (2019). Chernobyl vs. Fukushima: Which Nuclear Meltdown Was the Bigger Disaster? [online] livescience.com. Npr.org. (2019). NPR Choice page. [online]
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SIMULAÇÃO DO CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU | NERI O OLHAR DOS PARTICIPANTES
Conflito de Caxemira: A Posição da China
Thomas Hoogerbrugge Estudante da Licenciatura de Relações Internacionais no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Participante na Simulação do Conselho de Segurança da ONU organizada pelo NERI em Novembro de 2019 - Prémio Delegado Excecional A posição da República Popular da China quanto ao conflito na Caxemira, tal como o próprio Estado chinês, é uma posição sui generis, onde existem interesses em ambos os intervenientes do supramencionado conflito pela parte chinesa. Portanto, envolvidos de forma direta neste conflito, além do próprio território da Caxemira, temos Índia e Paquistão, ambos estes Estados suscitam interesse por parte da China em termos económicos e geopolíticos. Por um lado, temos as relações comerciais entre as duas Nações mais populosas do globo terrestre, sendo muito importantes, tanto para Índia, quanto para China. Ambos estes Estados são parte do grupo de países emergentes, conhecido como BRICS e também do pacto de Shangai, uma organização de cooperação económica de grande importância, pois articula a economia do subcontinente Indiano, parte do sudeste asiático, China, Rússia e Estados centro-asiáticos que eram parte da antiga União Soviética, como é o caso do Cazaquistão. Por outro, temos as relações entre Paquistão e China, que apesar de consistirem em números menores do que a relação sino-indiana, por questões geopolíticas acabam por ser tão
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importantes quanto a numerosa relação sinoindiana. Adquirem importância pois concedem à China acesso ao Oceano Índico através de portos paquistaneses e acima de tudo, permitem à China concretizar um dos seus maiores objetivos na atualidade, a construção da nova rota da seda, algo que seria extremamente benéfico para a China e, também, para o Paquistão, pois o mesmo teria um crescimento económico sem precedentes devido ao investimento direto chinês. Além das questões económicas, existe também a ameaça de eclosão de um conflito maior na região sendo a Índia e o Paquistão, potências com acesso a armas nucleares. Caso este conflito ocorresse, as consequências seriam gravíssimas, visto que apesar do poderio militar chinês ser em muito superior a ambos os Estados mencionados, após o uso de armas nucleares os danos seriam duradouros, podendo ser inclusive irreparáveis. Em suma, o interesse da China, consiste em manter o status quo atual da região, sem que entre em grandes atritos com nenhum dos intervenientes, de modo a aproveitar da melhor forma possível as vantagens económicas e geopolíticas que usufrui ao se relacionar com a Índia e o Paquistão.
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