18ª Edição- Revista PACTA

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18º Edição- março de 2019

Estados Falhados

Mais que uma revista, uma janela para o mundo

(In)Definição State Fragility Mito ou Realidade?

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Editorial

É com imenso orgulho que a equipa da PACTA apresenta aos alunos de Relações Internacionais e aos demais interessados, a 18ª edição da sua revista cujo tema se prende na temática de State Fragility e Estados Falhados. A PACTA, enquanto revista científica de Relações Internacionais sediada no Instituto Superior de Ciências Sociais trabalha todos os dias, extra curricularmente, com o objetivo de fomentar o espirito crítico dos nossos leitores e de se apresentar como uma alternativa aos meios de informação clássicos, sendo portanto uma plataforma mais próxima dos alunos baseada numa relação de base constitutiva.

A presente edição conta com artigos de vários alunos e docentes iscspianos que contribuíram vivamente para a viabilização do projeto, aos quais agradecemos desde já. Por fim, deixo uma palavra de apreço ao Núcleo de Estudantes de Relações Internacionais por todo o apoio prestado à PACTA e respetiva equipa, juntos continuaremos a ser “mais que uma revista, uma janela para o mundo”.

Gonçalo Falcão Matos, Coordenador da PACTA

A presente edição enfatiza a relevância da temática State Fragillity de várias prespectivas, tendo sempre em conta a própria indefinição do conceito e todas as variáveis em questão.

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Equipa Cátia Sofia dos Mártires Pacheco, 223176 Gonçalo Marques Vidal Falcão Matos, 221663 Igor Gil Nunes Castro, 223205 Miguel Filipe Homem Ferreira CastelBranco, 221648 Miguel Nuno dos Reis Palma Perdigão, 221895 Rita Reis Gonçalves, 221677 Rui Miguel Busca Pinheiro da Silva, 221593 Simão Pedro Gonzalez Baptista Barbosa, 223218

Design Editorial Gonçalo Falcão Matos

Contactos: ri.pelouro.investiga@gmail.com https://issuu.com/pacta https://www.facebook.com/PACTARI/ https://soundcloud.com/user-684824092

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Índice

05/

Estados Falhados em África: Mito ou Realidade?

09/

Fragilidade de Estados e Integração Regional no Sudeste Asáitico

11/ Orientalismo e Propagação de Valores e Instituições “Ocidentais” em Sociedades “Não-Ocidentais”

16/ O Falhanço do Estado na África Subsariana

20/ Estados Falhados: Uma (In)definição Página 4 de 23


Pedro Borges Graça Professor Associado no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas- Universidade de Lisboa

Um dos elementos que mais têm marcado a

desse sistema e dever-se-ía antes designar

evolução das relações internacionais desde a

definir com maior precisão, com maior

segunda

objectividade, aquele legado.

guerra

mundial

é

a

aliança

“Anglobalização” para se caracterizar e

estabelecida entre ingleses e americanos. Niall Ferguson no seu impactante livro

O eixo anglo-americano ou americano-inglês

“Empire”, publicado a seguir ao 11 de

fundamenta-se pois desde a segunda guerra

Setembro, investiga profundamente e explica

mundial numa estrutura de poder tríplice:

muito bem como o sistema de poder nas

militar, económico-financeiro e cultural. O

relações internacionais contemporâneas foi

primeiro e segundo são evidentes; basta por

configurado pelos ingleses entre o século

exemplo olhar para a construção da NATO e

XVIII e o século XX, e como estes se

para a relevância das Bolsas de Nova Iorque

adaptaram à situação após a guerra enquanto

e de Londres. O terceiro é subliminar e

os americanos assumiram o seu legado e

manifesta-se em várias áreas, incluindo as

agarraram e protagonizaram a pilotagem do

antigamente denominadas cultura de massas

sistema, criando um eixo em oposição aos

e cultura de elites; e é neste contexto que

russos e seus aliados. Segundo Niall

podemos

Ferguson, a chamada Globalização resulta

“anglobalização científica” - redobrando aspas

em grande medida

no termo

falar

do

fenómeno

da

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"científica"- e definir operacionalmente este

No que respeita à África, principalmente

conceito como a realidade observada da

após o 11 de Setembro, a estas buzzwords veio

projecção

anglo-

juntar-se a de ungoverned spaces, isto é, espaços

americana por via da anglofonia e formatação

institucionais e geográficos que escapam à

da produção académica e científica na área

autoridade e controlo do Estado, e portanto

das ciências sociais e políticas, nas quais se

permeáveis à movimentação de terroristas e

incluem

Relações

tráfico de armas e drogas, constituindo assim

Internacionais, os Estudos Africanos e os

uma ameaça à Democracia e ao Direito

Estudos do Desenvolvimento.

Internacional e sobretudo à national security

mundial

entre

da

outras

cultura

as

dos americanos. Na passagem do milénio Expressões como failed state e weak state e

esta percepção foi consolidada com a criação

também rogue state são produtos típicos dessa

do

anglobalização científica em curso, de modo

designada security sector reform, criada pelos

mais intensivo desde a implosão soviética e

ingleses, em boa verdade no seio do MI6, e

queda do muro de Berlim. Difundidas

reforçada pelos americanos com a alteração

principalmente a partir dos anos 90 pelos

do paradigma de ajuda e financiamento do

americanos, são buzzwords que alimentam

desenvolvimento africano no quadro do

dinâmicas de pronto-a-pensar que de imediato

Banco Mundial, que passou a dar prioridade

jorram para os artigos académicos e

à segurança em vez da saúde e educação – não

científicos necessariamente escritos em inglês

há desenvolvimento sem segurança passou a ser o

e, para terem um suposto “certificado de

mote -, e ainda com a criação do Comando

qualidade”, obrigatoriamente publicados em

África em 2008 que veio na prática estender

revistas

ao Atlântico Sul e Continente Africano o seu

especializadas

anglófonas

movimento/política

segurança

de

cooperação

supostamente também credibilizadas pelos

perímetro de

definido

pela

peer-review.

Doutrina de Monroe/Big Stick relativamente à América do Sul desde o século XIX. Página 6 de 23


aqui três elementos fundamentais interEste quadro, composto por uma semântica

relacionados:´

essencialmente securitária, favorece assim a legitimidade

de

possíveis

intervenções

a tripla complexidade da realidade

externas em África, concretamente pelo eixo

africana que ainda está em processo

anglo-americano (mas sem que os franceses

de integrar estruturas sociais pré-

consintam em serem ignorados nas suas áreas

coloniais, coloniais e pós-coloniais

de influência), partindo da percepção relativa

que

à incapacidade dos Estados africanos

tendencialmente conflituoso no dia-

desempenharem as funções de segurança

a-dia, como por exemplo no cadastro

próprias das constituições democráticas.

e aquisição da propriedade das terras,

interagem

de

modo

no recenseamento das populações, Ora, esta visão algo mítica da situação da

no analfabetismo e iliteracia, na

generalidade dos Estados africanos através

“conciliação”

daquelas buzzwords, com uma ou outra

autoridades tradicionais com as

excepção como a Somália ou mesmo o

administrações locais e centrais;

Congo, está profundamente desfasada da

das

designadas

os movimentos nacionalistas sem

realidade do problema do Estado em África

nação, ou seja, projectos nacionais

que é ainda estrutural. E para agravar a

que chegaram ao poder com as

situação, este está também actualmente, e

Independências num ambiente de

continuará pelo menos na próxima geração,

grande diversidade e complexidade

a ser confrontado com uma dinâmica de

antropossociológica,

explosão demográfica e falta de emprego

aliás uma dinâmica de ambivalência

para uma população maioritariamente jovem

cultural africana e europeia que

que ou segue o caminho da emigração para a

pressiona a integração vertical da

Europa

modernidade

ou

pega

em

armas

para

reproduzindo

urbana

com

a

paradoxalmente tentar sobreviver na miríade

ruralidade tradicional, cruzando-se

de existentes conflitos internos e potenciais

com a integração horizontal da

que caracterizam o período pós-colonial.

enorme variedade de complexos etno-linguísticos e culturais;

Na verdade, os problemas do Estado em

e

a

concepção

especificamente

África decorrem ainda da história muito

africana pessoal e patrimonial do

recente da sua colonização e descolonização

poder que consequentemente se

e dos quais muito sucintamente se destaca

encontra, numa perspectiva histórica, Página 7 de 23


em processo recente e demorado de mudança no sentido de passar do enquadramento pessoal das instituições para o enquadramento institucional das pessoas como vem acontecendo há já uns séculos no Ocidente. Por último, para ilustrar com um caso concreto, veja-se o fenómeno boko haram na Nigéria que é genericamente tido como um movimento terrorista islâmico actual. Boko haram significa “pecado” de quem aceita a educação ocidental, e remonta ao final do século XIX, início do século XX quando a administração

inglesa

tentou

transferir

abruptamente os alunos das escolas corânicas para o sistema de ensino colonial inglês. Na verdade, trata-se do ressurgimento de um movimento antigo de resistência cultural com foco principal na zona norte de fronteira com o Níger, Chade e Camarões, o qual requere um tempo demorado de diálogo de culturas mais que um tempo acelerado de conflito de

culturas,

de

“choque

de

civilizações”. A tripla complexidade da realidade social

Figura 1- Fragility MAP- National Audit Office

africana é um facto e não se compadece de soluções meramente securitárias induzidas por buzzwords como failed state e weak state. Não há desenvolvimento sem segurança, mas antes não há segurança sem educação e saúde.

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Nuno Canas Mendes Professor Associado no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas – Universidade de Lisboa Presidente do Instituto do Oriente Investigador do Projeto Crisea (H2020)

É já longo o debate sobre o tema e com uma genealogia que não interessa para aqui. O fim da Guerra Fria relançou a discussão sobre as funcionalidades do Estado num contexto de reemergência dos nacionalismos e de uma Pax Americana sempre animada pela ideia de que a difusão da democracia liberal poderia ser fundamento para a correcção de anomalias. Por esta altura ainda não havia pudor em usar a palavra ‘failure’ e mesmo a obra de referência de Robert Jackson, que viu a luz do dia em 90, ostentava o que hoje seria considerado muito arrojado título “QuasiStates”. A par de muitos estudos académicos que fixavam indicadores e mediam o estado de incapacidade e falência dos Estados, começou a delinear-se no Sudeste Asiático uma tendência que apontava para a concretização de um projeto de integração regional menos tímido do que até aí. No seio da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), surgiu, em 1992, a ideia de se lançar a iniciativa de criação de

uma zona de comércio livre, o primeiro passo para se avançar para uma comunidade assente num tripé económico, securitário e cultural que arrancou em 2015. Durante todo este período de quase um quarto de século, os métodos de atuação da ASEAN, nomeadamente o processo decisório por consenso e a adaptação de um soberanismo com raízes na coexistência pacífica às exigências da conjuntura, marcaram a agenda. A eficácia da organização como um todo e não como uma soma de partes marcou a agenda, tanto mais que se verificou uma mudança de peso com um impacto tremendo no equilíbrio do grupo: com efeito, a assimetria económica acentuou-se de sobremaneira quando foram admitidos os países do Sudeste Asiático ‘continental’, com os seus regimes que oscilavam entre o socialismo vietnamita e os desmandos da Junta Militar de Rangoon, no Mianmar, incluindo o Camboja e o Laos. Este alargamento e a fragilidade política, institucional, económica e social dos referidos países criou uma tensão entre a Página 9 de 23


necessidade de os integrar num projeto e de lidar com o problema das assimetrias daí resultantes, impondo dinâmicas e ritmos bastante diferenciados. A questão voltou a pôr-se mais recentemente e não tem ainda um fim à vista: Timor-Leste, um dos Estados mais pobres da região e com um acentuado perfil de ‘fragilidade’ apresentou a sua candidatura à ASEAN em 2011. O grande contraste está em que tem havido uma resistência baseada acima de tudo na falta de capacitação que não existiu nos anos 90 para a entrada do arco dos países subtraídos à esfera da divisão importa pela Guerra Fria. E este é um ponto crucial que no fundo lança a questão sobre a dicotomia integraçãodesintegração: em que medida é que o caso daquele pequeno país dos confins do arquipélago de Sunda, a tocar na Austrália, é o reflexo sobre a indefinição e as flutuações não só sobre o presente e o futuro da integração regional no Sudeste Asiático, como sobre os efeitos da adesão de um Estado com vulnerabilidades bem identificadas. Em que medida é que mais um alargamento representa uma oportunidade ou, pelo contrário, uma fraqueza. O dilema está em cima da mesa e representa um teste à vitalidade, à coesão e ao rumo da ASEAN, que é um mercado gigantesco e com um potencial incomensurável. Os termos de um compromisso que criasse espaço para a inclusão e para o desenvolvimento de TimorLeste, com vantagens para ambas as partes, é a dúvida. Em termos genéricos é uma tema que ando a investigar para um projeto de investigação lançado no âmbito do H2020 onde participam várias universidades e centros de estudos da Europa e do Sudeste Asiático, cujo link para o respetivo site é o seguinte:

Figura 2- Horizon 2020 Project Logo

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Tomás Correia Presidente do Núcleo de Estudantes de Relações Internacionais ISCSP- Universidade de Lisboa

Desde a criação do Sistema de Vestefália e, decisivamente, a partir das Guerras do Ópio de meados do século XIX, o denominado “Ocidente” (conceito este que é vago e tem vindo a ser bastante discutido na academia das Relações Internacionais) apresentou-se como o principal ator e influenciador mundial, assim como o principal paragão de virtudes morais, consideradas universais pelos países ocidentais, entre os quais se inserem a liberdade (civil, social, económica, entre outras), a igualdade entre cidadãos e a democracia liberal.

No presente artigo, irei analisar a incapacidade destes mesmos valores e instituições ocidentais não estarem a ser efetivamente difundidos por todo o Mundo. Procurarei também analisar as causas e as falhas estruturais que explicam e impedem as culturas “não-ocidentais”, nomeadamente a islâmica e a asiática, de implementarem medidas e instituições que garantam que estes valores se entranham nas suas sociedades. Explorarei, ainda, alguns dos benefícios que a Ocidentalização poderá trazer a estas sociedades não-ocidentais.

Após a Queda do Muro de Berlim e, consequentemente, o término da Guerra Fria, o Mundo entrou numa nova fase de crescente interação entre Estados, através do crescimento exponencial de fluxo internacional de dinheiro, culturas e ideias. Este período de globalização, assente no neo-liberalismo e no institucionalismo liberal (teoricamente desenvolvido por Robert Keohane) como forma de conduta dos Estados e das relações entre os mesmos, permeou todos as camadas da sociedade internacional, assim como todos os agentes que a compôem.

O primeiro paradigma em análise é o caso islâmico. Por que razão fracassou a Primavera Árabe? Por que razão é tão complicado impôr valores ocidentais e democracias nestes Estados? Um dos principais problemas é a própria base onde se tentam estabelecer estes valores morais: o Estado em si. O Estado contemporâneo, de modelo ocidental, é contra-producente para o desenvolvimento e bom funcionamento das sociedades islâmicas. No pós-Segunda Guerra Mundial, as potências ocidentais limitaram-se a estabelecer fronteiras fixas, que não atendiam às reais diferenças etnoculturais dos povos que ocupavam, há já centenas ou mesmo milhares de anos, esses territórios.

~

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Simulaneamente, o mundo ocidental empoderou, através de claros atos de ingerência, governos sem capacidade (ou vontade) de governar em prol de uma população extremamente heterogénea na sua constituição. É precisamente esta heterogeneidade que leva à fragilidade de muitos Estados islâmicos. A Síria, a título de exemplo, alberga vastos números de minorias xiitas, curdos sunitas, yazidis, cristãos-ortodoxos, entre outros. Uma rápida análise demográfica de muitos outros estados islâmicos do Médio Oriente leva-nos a conclusões semelhantes. Consequentemente, esta ausência de uma identidade nacional comum leva a conflitos constantes entre as comunidades que compôem o Estado, opondo forças governamentais a minorias étnicas ou religiosas, contribuindo, desta forma, para a sua fragilidade. Este espírito de identidade nacional é contrastante com a realidade ocidental: um cidadão norte-americano de Washington sente-se tão norte-americano como um cidadão do Texas ou da Flórida. Um curdo sírio não se sente “sírio”; um yazidi sírio também não. Isto torna a governação das autoridades governamentais sírias, a título exemplificativo, praticamente impossível, pois os cidadãos que deveria proteger e sustentar não se revêem no Estado que habitam, nem se sentem representados pelo seu governo, rejeitando, muitas vezes de forma violenta, a sua autoridade. O segundo argumento fulcral nesta análise é o da tradição democrática. O mundo ocidental conheceu inúmeras experiências protodemocráticas, que contam com mais de 2000 anos de existência. Desde a democracia ateniense do século V a. C., passando pelas assembleias de homens livres dos povos germânicos, pelas Cortes de Leão e pelo Parlamento inglês, até à democracia liberal dos Estados Unidos da América do final do século XVIII, são vastos os exemplos de proto-democracias, um pouco por todo o mundo ocidental. Os europeus (onde podemos incluir os colonos norte-americanos) conviveram e experienciaram, desde cedo (e em primeira mão), o que é uma democracia, os valores morais e sociais nas quais esta assenta e os benefícios resultantes da sua implementação. O mesmo não poderá ser dito acerca do mundo islâmico. Desde a expansão muçulmana do século VII, contrariamente aos seus pares europeus e cristãos, não existe um único registo

de uma instituição proto-democrática nas suas fronteiras. Uma explicação para esta lacuna é a utilização do califado como forma de governo. O califado concentra numa só pessoa, o califa, a liderança política e religiosa de um vasto território. Tendo em conta que o califa representa a palavra de Alá e que esta palavra é absoluta e irrefutável, a necessidade de debate público e político era, não só desnecessária, como também blásfema. Desrespeitar a autoridade do califa era desrespeitar a autoridade de Alá. O Islão viveu praticamente toda a sua existência sob este regime político, tendo o último califado, o Califado Otomano, apenas sido extinto após a Primeira Guerra Mundial. Paralelamente, na Europa, ocorreu uma situação semelhante. Durante o período do Absolutismo dos séculos XVII e XVIII, assistiu-se a uma quebra brutal de instituições proto-democráticas, em virtude da concentração do poder político e religioso num só indivíduo. Isto leva-nos a uma conclusão relativamente clara: a religião islâmica não é um problema em si mesma; a sua promiscuidade com a política é, no entanto, o real factor condicionante da incapacidade de adoção das ideias ocidentais. O terceiro e último factor que impede a propagação da democracia e valores morais nestes países é precisamente esse mesmo contacto permanente da religião islâmica com os decisores políticos. O Islão, da forma como é interpretado e praticado atualmente por muitas das elites políticas muçulmanas, é inatamente causador de desigualdades e opressão, mostrando-se como um enorme factor condicionante do desenvolvimento do mundo islâmico. Os líderes islâmicos usam (ou pervertem) o Corão como instrumento de legitimação das suas ações, em virtude da defesa da maioria religiosa presente no estado que governam, oprimindo e perseguindo as restantes minorias religiosas. Agregado a este factor, surge a opressão brutal do sexo feminino, especialmente em países cujos governantes agem de acordo com a Lei Shari’a, como a Arábia Saudita ou o Irão. Qualquer tentativa de aplicar conceitos de liberdade de expressão, igualdade de oportunidades, igualdade perante a lei ou eleições democráticas será impossível enquanto a religião se sobrepor à governação. Apenas quando ocorrer uma verdadeira secularização do mundo Página 12 de 23


islâmico haverá a oportunidade para os valores ocidentais se expandirem eficazmente. Analisado o caso islâmico, passamos à análise do segundo paradigma em discussão: o caso asiático. Contrariamente aos estados islâmicos, em que exemplos de democracias estáveis, baseadas em valores morais universais (i.e. ocidentais) são praticamente nulos, na Ásia, a conjuntura é bastante mais eclética. Democracias estáveis, liberais e modernas, de estilo ocidental e com forte componente social, como a Coreia do Sul, o Japão e Singapura, demonstram que os valores e insituições ocidentais não são mutuamente exclusivas com os parâmetros socio-culturais asiáticos. Contudo, no Extremo Oriente ainda proliferam regimes autoritários em países como a China, o Laos ou a Coreia do Norte, regimes estes que tendem a ser a norma e não a exceção, visto que, embora existam um número razoável de democracias formais na Ásia, estas funcionam de forma demasiado deficiente para serem apelidadas de verdadeiras democracias (de acordo com o Índice de Democracia, formulado pela Economist Intelligence Unit). Da mesma forma que a herança islâmica condiciona a adoção de instituições e conceitos de moralidade ocidentais, a idiossincrasia confucionista da maioria das sociedades asiáticas impede a adoção plena destes princípios. O Confucionismo, com mais de 2500 anos de história, moldou toda a evolução histórica, social, cultural e institucional dos Estados asiáticos, cujas sociedades primam pela “valorização da autoridade, da hierarquia, da subordinação de direitos e interesses individuais, da importância do consenso, da esquiva do conflito, em suma, pela supremacia do Estado face ao indivíduo” (Huntington S. 1997). Este argumento é corroborado pelo espetacular sucesso chinês em manter e prosperar um regime não-democrático com relativamente pouca contestação interna. Os povos asiáticos, de um modo geral, tendem a dar prioridade aos ganhos a longo prazo, confiando nas ações das autoridades governamentais, contrastando com os ideais ocidentais de individualismo, contestação ao governo e ganhos no curto prazo. O caso japonês, no entanto, assume-se como principal outlier nesta tendência. Por que

motivo a adoção da democracia liberal e moralidade ocidental foi tão bem sucedida no Japão? Alguma contextualização é necessária para copmpreender totalmente o paradigma japonês. O povo nipónico, durante toda a sua história, sempre foi uma exceção no Extremo Oriente, primando pelo seu isolacionismo e pelo cultivo de uma cultura e tradições próprias, significativamente distintas das dos seus vizinhos confucionistas. Embora a religião/espiritualidade japonesa xintoísta tenha origens confucionistas, esta sempre se encontrou mais segregada da governação e conceitos morais japoneses e, consequentemente, teve um menor impacto na evolução histórica do Japão. O maior argumento para o sucesso japonês no estabelicemento das suas instituições é o distinto impacto que o confucionismo asiático e o xintoísmo japonês tiveram no pensamento moral e intelectual das sociedades onde se inserem. Enquanto que, em sociedades como a China imperial, o confucionismo levou a uma veneração divina do imperador, sob o pretexto do Mandato do Céus os céus (i.e. as divindades) abençoariam os bons imperadores e amaldiçoariam os maus imperadores -, no Japão a sociedade fragmentouse em dezenas de clãs menores, sem o reconhecimento de uma autoridade central e estável, com reais poderes sobre os territórios que dominava (com a exceção de algumas décadas do Império Japonês). Conceitos como a honra, o respeito pelos superiores, pelas tradições, assim como o trabalho em prol da comunidade estão hoje muito presentes na sociedade japonesa. No entanto, o background socio-cultural japonês levou a que esta mesma socieade se materializasse em conjuntos de comunidades como a família ou a empresa (não é incomum para os empresários japoneses adotaram adultos, de forma a manterem os seus negócios sob o domínio de “familiares”), levando a uma escala maior de atomização da sociedade, não a um nível estritamente individual, mas sim a um nível comunal. O “índividuo” no Japão é a empresa ou um conceito muito alargado de “família”, em contraste com o conceito de “indivíduo” ocidental, que significa uma pessoa singular. Esta ímpar atomização da sociedade levou a resultados interessantes na absorção japonesa de instituições ocidentais. O respeito pela tradicionalidade e a Página 13 de 23


procura do consenso, típica dos asiáticos (sendo que os nipónicos não são uma exceção), levou a uma democracia com falhas estruturais graves. Não é um mero acaso o facto do mesmo partido, o Partido Liberal Democrata, se ter mantido no governo durante quase 50 anos ininterruptos. Na verdade, os maiores atores políticos no Japão não são os partidos ou os governos, mas sim as famílias e as oligarquias que os condicionam de uma forma mais direta e aberta do que a que acontece na política ocidental. O povo japonês, na sua globalidade, não tem grande interesse pelas questões políticas, pois sentem que é à sua família/empresa que devem a sua lealdade, não ao governo do país. Posto isto, não é descabida a conclusão de que todo o sucesso económico, social e institucional, assente no liberalismo, tenha acontecido APESAR da adoção de morais e instituições do Ocidente, e não POR CAUSA das mesmas. Contudo, as tentativas de ocidentalização conheceram alguns sucessos importantes, que alteraram substancialmente aquilo que são as dinâmicas sociais e civilizacionais das sociedades recetoras. Um dos principais benefícios trazidos é o que denominarei por “efeito de spillover”. A globalização (no qual se insere, inerentemente, o movimento de ocidentalização) trouxe, agregada a si, a divulgação de conhecimento técnico e produtivo que, consequentemente, aumentou espetacularmente a capacidade produtiva do mundo não-ocidentalizado. Admitindo que o atual momento de globalização, assente em duas grandes premissas (o capitalismo neo-liberal e o institucionalismo liberal, sendo que o segundo apoia e sustenta o primeiro) se irá manter no longo prazo, a capacidade de integração destes Estados na economia mundial auxliam-os a não só reduzir o fosso de desigualdades produtivas entre ocidentais e não-ocidentais, como também a aumentar a qualidade de vida das populações não-ocidentais. É precisamente este aumento da qualidade de vida absoluta que é, talvez, o maior argumento a favor da ocidentalização. Há cerca de meio século, a maioria dos Estados nãoocidentais eram populados por grupos predominantemente rurais, que (sobre)viviam à custa do setor primário, com especial

predominância da agricultura, pesca e pecuária. Atualmente, em inúmeros Estados, especialmente os asiáticos, ocorreu uma mudança gradual do sector primário para o secundário e, especialmente, para o sector terciário. Sectores como a manufaturação, os serviços e as tecnologias desenvolveram-se exponencialmente, sendo prontamente assimilados pelas populações nativas, visto que estas viam na modernização de modelo ocidental uma forma de melhorarem a sua qualidade de vida através do trabalho e da iniciativa individual. Com esta modernização veio o aumento da capacidade produtiva. Com o aumento da capacidade produtiva veio o aumento dos recursos económicos dos Estados afetados pela modernização ocidental. Iniciou-se um efeito “bola de neve”, onde receita gerou mais investimento e investimento gerou mais receita. Como consequência, os Estados, agora dotados de uma capacidade económica e financeira vastamente superior, investiram em infraestruturas como, hospitais, universidades, estradas e saneamento básico. O aumento de capital e da qualidade de vida nos Estados nãoocidentais, por sua vez, diminuiu o hiato do desenvolvimento socioeconómico dos Estados, ainda que tenhamos de admitir que o mundo ocidental beneficiou fortemente com esta nova dinâmica de relações comerciais e produtivas, uma vez que ganhou novos mercados para escoação de produtos e mais opções produtivas, de baixo custo (devido à abundância de mão-deobra barata), de bens de complexidade cada vez mais elevada. No mundo globalizado do século XXI, surge o seguinte dilema: deverá o Ocidente continuar as suas tentativas (que frequentemente conheceram o fracasso) de “ocidentalizar” o Mundo ou, por outro lado, deverão as grandes potências ocidentais simplesmente deixar ocorrer a evolução natural das sociedades diferentes das suas, sob o prejuízo de se tornarem complacentes com aquilo que consideram “atentados aos Direitos Humanos” (na conceção eurocêntrica dos mesmos) nas sociedades não-ocidentais? É óbvio que a propagação global dos ideais e instituições ocidentais é uma realidade distante, havendo até um ceticismo latenta acerca do seu real potencial de universalização. Se há algo que a História nos ensinou foi que impingir um modo de viver Página 14 de 23


específico a sociedades que não estão dispostas a praticar uma mudança tão radical nem a fazer uma alteração estrutural dos seus pilares sociais está quase sempre condenada ao fracasso. Urge aos decisores políticos ocidentais compreender não só as dinâmicas civilizacionais dos povos, como também procurar novas maneiras de propagandear a mensagem ocidental sem derrubar os pilares fundamentais das sociedades não-ocidentais, em virtude da homogeneização mundial da liberdade, da igualdade e da democracia liberal. Em suma, os valores e instituições ocidentais não podem substituir a moralidade vigente nestas sociedades mas sim tentar co-habitar pacificamente com as mesmas, como no caso japonês; caso contrário incorre-se numa situação de enorme destabilização e fragilização dos Estados, aumentando exponencialmente a quantidade de Estados falhados causadores de instabilidade regional, paradigma que se demonstra contra-producente para o objetivo ocidental de homogeneização moral e institucional do Mundo.

Figura 3- Intelligence Unit Logo

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Leandro Lagarto Vice-presidente do Núcleo de Estudantes de Relações Internacionais ISCSP- Universidade de Lisboa

Na sua acepção mais técnica um Estado soberano é uma instituição à qual correspondem três características fundamentais: poder político, povo e território. Estas instituições têm, então, três fins: segurança, justiça e bem-estar. Assim, um Estado deve estar numa condição tal que consiga exercer o seu poder (numa concepção Weberiana através do monopólio da força legítima) a todo o seu povo e território, assegurando-lhes segurança, justiça e bem-estar nas suas mais variadas vertentes. Podemos ainda argumentar que um Estado é resultado de um processo longo e moroso de vários processos históricos. Resultam de alianças, lutas e dinâmicas de poder que emanam da sociedade numa tentativa de exaltação dos valores que partilha em si mesma. Na “África Negra” não se pode olhar a construção do Estado da mesma maneira que se olham os diversos Estados europeus.

Analisar as debilidades destas instituições sem ter como nota de rodapé que se trata de uma crise potenciada pelas ordens sociais e políticas instauradas durante décadas não faz qualquer sentido. Torna-se então fulcral conhecer três períodos históricos fundamentais para a compreensão da fragilidade estatal destes países: o período pré-colonial, o período colonial, e o período pós-colonial iniciado com as independências dadas pelos países europeus. No primeiro dos supracitados momentos, o período que antecedeu a colonização, as instituições políticas Africanas apontavam numa direção francamente diferente do molde Ocidental de Estado. Posto isto, podemos então deduzir que se o Estado é resultado de um longo processo histórico (onde se criam as bases e os alicerces sociais, culturais, entre outros que sustentarão a instituição política de organização social que daqui emanará) que aponta numa direção vincada, e se em África tudo indicava que o dito processo de formação de instituições Página 16 de 23


políticas apontava numa direção diferente, seria de esperar que a instituição organizadora da sociedade fosse antagónica, ou apenas diferente do molde Ocidental de Estado Weberiano. Nesta altura a organização fazia-se de forma bastante diferente no continente africano: não existia um cariz tão vincado de subordinação ou hierarquização mas sim uma espécie de relação ambivalente entre poderes centrais e não centrais numa forma de soberania partilhada (Herbst, 2000: 35-57). É com o período da colonização que se vai introduzir em África a ideia de que existe um poder político central que irá comandar todo um território e o seu povo de uma forma vertical, de cima para baixo. É neste ponto que nascem, a meu ver, os Fragile States de hoje em dia. Assumo isto por uma razão algo simples: a colonização interrompe de forma brusca e perigosa os processos de formação de unidades políticas que seriam diferentes das ocidentais, como expliquei acima, para impôr sistemas semelhantes a estes últimos, condenados ao fracasso desde o início visto que as bases culturais, sociais e ideológicas necessárias para os sustentar eram nulas ou inexistentes. Com a colonização foram impostos variados elementos alienígenas para os africanos: o carácter artificial das fronteiras impostas, a visão monolítica de soberania, as dinâmicas de dependência política e económica da colónia face à metrópole, a imposição de estruturas políticas diversas que entravam em choque com as instituições e formas de governação existentes anteriormente (Lange, 2004). Apesar de este choque entre duas formas distintas de poder ter sido severo em grande parte dos territórios denota-se uma sobreposição do modelo imposto pelas metrópoles significando isto uma nova hierarquização e uma nova forma de organização. Ainda no período da colonização podemos evidenciar mais uma das potenciais causas

do falhanço do molde estatal europeu em África. Com a questão do mapa cor-de-rosa foram divididos territórios por forma a beneficiar as metrópoles que os detinham, sem qualquer tipo de preocupação com a possível divisão de culturas, com a separação de nações (pessoas que defendam valores semelhantes e partilhem uma visão comum para o futuro) que podiam vir a organizar-se por forma a que hoje não existissem conflitos nestas zonas, ou com a junção de duas ou mais sociedades cujos valores defendidos apontassem em direções opostas potenciando violência e conflitos a nível étnico por exemplo. De facto, as fronteiras foram criadas por agentes externos, ignorando o exemplo da formação das fronteiras na Europa (processo longo que ficou marcado por diversas batalhas por forma a que a cada território correspondessem valores semelhantes e num caso mais otimista uma nação), e ignorando ainda o seu desconhecimento acerca das dinâmicas sociais vividas no continente mais a sul. Isto fez com que se enclausurassem dentro de um território com poder político central exprimido muitas vezes através da coerção vários possíveis conflitos que iriam eclodir assim que o poder político não se fizesse sentir de forma tão vincada. Tudo isto em prol do benefício económico da metrópole, que tentou em muitos casos politizar as diferenças culturais vividas dentro das suas colónias e noutros casos objetificar as tradições e costumes através dos quais os chefes locais deveriam governar. No período das independências evidencia-se então uma continuidade do sistema que havia sido imposto pelas metrópoles ao invés de uma ruptura para que estes países subsarianos pudessem voltar ao seu processo de formação de instituições políticas próprio. Isto no sentido em que o aparelho estatal mantido pela metrópole foi adotado e controlado por uma elite local que o perpetuou em grande medida o seu modus Página 17 de 23


operandi. No entanto, como foi dito acima o único alicerce que permitia que este sistema funcionasse, regra-geral, bem em África era o poder e o peso que a metrópole tinha na colónia, agora país, Estado soberano que não depende de forças externas e tem que se auto-gerir. Visto que este molde de instituição política não resulta de um fenómeno de evolução histórica dos povos africanos mas é antes um enxerto feito pelo processo de colonização que o mantinha intacto, não existiam traços culturais, valorativos, ideológicos, entre outros que ligassem as comunidades, as sociedades e o próprio indivíduo a esta forma de organização pelo que esta não tinha uma base sustentada tornando-se assim frágil e passível de cair face aos conflitos que surgiriam por razões explanadas acima. Passa-se de uma administração indireta feita pela metrópole (país poderoso o suficiente para governar tal território sem ondas subversivas) para uma administração local onde o estado é frágil e sem alicerces para se governar qualquer que seja o território. De facto, o poder político único e central deixado pela metrópole vai ser alvo de cobiça por parte das elites locais que foram surgindo. Uma vez no poder estas nunca serão capazes de perpetuar o sistema, pois: os ideais democráticos ocidentais não se verificam nestas sociedades, por norma uma democracia nasce do povo e nunca de um poder que a impõe a outrém, sem saber se esta funcionaria, apenas porque acredita que é o único modo correto de vivência; a instabilidade vivida dentro dos territórios destes pseudo-Estados democráticos nunca deixará que os fins do Estado se cumpram e nunca o poder político será efetivo e assertivo; as elites governantes não sabem governar este modelo pois a sua génese sociológica apontava para outro tipo de governação que não este, deixando por isto os governos mais expostos e propensos à corrupção; e a existência destas fronteiras que “enjaulam” povos antagónicos

alimentando conflitos dentro do território de um Estado cujo poder político não pode controlar faz com que não se consiga voltar ao processo de evolução pré-colonial, apostando-se ao invés em missões de peacebuilding e state-building que poderão resolver problemas conjunturais, mas perpetuam a ideia de que o modelo Ocidental de Estado democrático está certo e terá de vigorar nestes territórios, apoiando-se na ideia de que one size fits all, não percebendo que o problema estrutural é o de que o ideal de Estado Ocidental não resulta pois os povos diferem entre si e cada evolução histórica aponta numa direção que ainda que ligeiramente diferente pode fazer a diferença. É importante realçar que à luz do sistema de Vestefália estes são estados dotados de soberania, apesar de, empiricamente, o papel fundamental de um estado para com as suas populações fique, em grande medida, por realizar. Para sustentar este caso podemos ainda olhar, a título breve para alguns casos específicos: no Gana por exemplo tem-se mantido uma democracia algo estável pois as dinâmicas sociais pré-coloniais não se afastavam assim tanto do modelo europeu, no entanto esta semelhança de dinamismo não é condição suficiente para uma democracia sustentada e funcional, tomemos por exemplo o caso do Ruanda ou da Libéria onde existia uma espécie de poder central no período que antecedeu o colonialismo. Outro pilar importante é o do sentimento de pertença ou o nacionalismo: acreditou-se que neste período, qualquer que fosse a elite que tomasse o poder, baseandose na tese construtivista, poderia criar um sentimento de nação no seu povo (Clapham, 2001). No entanto, se olhar-mos a República Democrática do Congo concluímos rapidamente que apesar de existir algum sentido e noção de nação, este fenómeno não é suficiente para que se mantenha um verdadeiro regime democrático sustentável.

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Em suma, o conceito de Estado Frágil ou Estado Falhado, admite o Estado como entidade funcional, dissociada dos processos históricos e das relações de poder que enformam as relações políticas e sociais. “A normalidade histórica da fragilidade e do colapso é ignorada e desvalorizada, em favor de uma abordagem que – mesmo não expressando verbalmente ou reconhecendo conscientemente esta ideia, tende a encarar a fragilidade como um desvio do processo “normal” de formação dos Estados ocidentais, como um falhanço de modernidade, pretendendo-se prosseguir um ideal de “como deverá ser a aparência, estrutura e funcionamento de um Estado” (Patrícia Magalhães Ferreira, 2014)

Figura 4-Seca: "Muitos dos países mais severamente afetados devem conter seus déficits fiscais e criar uma base sustentável de impostos" (Feisal Omar / Reuters/)

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descrever a proliferação de conflitos internos num Estado que poderá levar ao

Rúben Abrantes Licenciado em Relações Internacionais pelo ISCSPUniversidade de Lisboa Mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa

O século XX ficou na história como um

o colapso das suas instituições, à recessão

século sem precedentes. Os Estados

económica e à deterioração das condições

multiplicaram-se, a população aumentou

de segurança, quer a nível individual,

a um ritmo avassalador, a riqueza

regional ou mundial.

polarizou-se nos povos e nas nações, e o

Alguns Estados, como a Somália, o Haiti,

poder internacional, dominado pelos

a Bósnia, ou até o Kosovo, entram para a

interesses, concentrou-se em poucos que

lista dos países que estão em risco de se

tomam a decisão pelo todo.

tornarem Estados Falhados1, e por isso, os

É neste mesmo século, na década de 90,

Estados Unidos da América (EUA),

que o termo “Estado Falhado” entra para

actuando como “polícias do mundo”,

o discurso normativo, tendo como intuito

intervêm com o objectivo de proceder a operações de “State Building”2.

1

Nos anos 90 o conceito de “Estado Falhado” focava-se nas violações graves ao direito humanitário e aos direitos Humanos.

2

State Building “é o nome dado a um conjunto de atividades complexas e multidimensionais que tentam promover o funcionamento e a

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Com o 11 de Setembro de 2001 e a “guerra

organização internacional de investigação

ao terror”3, as políticas de segurança e

independente, o Fundo para a Paz,5 que se

defesa mudam drasticamente e é então que

dedica à análise desta problemática usando

os EUA intervêm na política interna dos

12

Estados que tenham uma “aparente

demográfica;

incapacidade de controlo sobre o seu

refugiados

território” (Call, 2008:1493) e com isso

internamente),

venham a constituir uma ameaça

ao

económico; desenvolvimento económico

sistema internacional4. O conceito de

desigual; fuga de cérebros), políticos

“Estado falhado” torna-se assim um tema

(legitimidade

central na discussão do desenvolvimento

públicos; direitos humanos e estado de

dos

“agências

direito), militares e de coesão (aparelho de

governamentais ocidentais e organizações

segurança; divisão das elites; reclamação

internacionais, devido ao desafio que

de grupos), classificando os Estados de

constituem em áreas como a segurança e a

acordo com a sua “vulnerabilidade para

cooperação para o desenvolvimento”

com conflitos internos violentos” (Brad,

(Nay, 2012:1). É também neste período

2009).

Estados

pelas

que Think-Tanks e académicos começam a procurar uma definição para este fenómeno estadual, contudo, não se chega a um consenso. De um modo geral podese

afirmar que um estado falhado se

traduz na ineficácia e/ou incapacidade de impor a lei e a ordem, e a impossibilidade de conseguir fornecer bens e serviços básicos à sua população. Uma definição ampla demais. Por isso, apesar das variadas definições, constituiu-se uma

criação de Estados funcionais. O objetivo principal da construção de Estados é construir Estados que tenham sido classificados como frágeis ou falhados, a fim de garantir sua viabilidade futura e que cumpram seu papel soberano, seja em relação às suas populações, seja em relação à sociedade internacional.” (https://statebuildingandfragilitymonitor.word press.com/state-building/ ).

indicadores:

sociais

(pressão

intervenção

externa;

e

pessoas económicos

do

Estado;

deslocadas (declínio

serviços

De acordo com Brad (2009), os Estados falhados “são mais predominantes em África, mas também aparecem na Ásia, na Europa de Leste, América Latina e no Médio Oriente.” Em 2018 a organização “Fundo para a Paz” classificou a República Democrática do Congo, a República Centro Africana, a Síria, o Iémen, a Somália e o Sudão do Sul como os piores classificados, os denominados países em “alerta muito elevado”, mas de 3

“War on Terror” No pós 11 de Setembro de 2001, e devido à complexificação da análise destes fenómenos, o conceito de Estado Falhado consistia num aglomerado de diversos factores que podiam causar o seu falhanço. http://fundforpeace.org/fsi/indicators/ 5 http://fundforpeace.org/fsi 4

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notar que há outros 70 países que se

Devido à globalização económica, aos

encontram classificados como frágeis e em

imperialismos, aos autoritarismos, às

risco de piorar as suas condições

tecnologias da informação e comunicação

domésticas,

“alerta

(e libertação), e à escassez de recursos, os

máximo”, “alerta”, “aviso alto” e “aviso

estados apresentam-se cada vez mais

elevado”67.

frágeis, e por isso é cada vez maior a

classificados

em:

De acordo com a mesma organização, num prazo de 5 anos8 a Venezuela, a Líbia, a Síria, a Turquia, a Ucrânia e o Brasil foram os estados que apresentaram o pior agravamento

das

suas

probabilidade de falharem. Como afirma Jacques Chirac10: “Antes os líderes mundiais preocupavam-se com a acumulação de poder e hoje preocupamse com a sua ausência".

condições

domésticas.9 Os

resultados

desta

organização

demonstram o perfil da nova (des)ordem mundial, no século XXI, e “demonstram que o problema dos (…) Estados falhados é muito mais sério do que pensa” (Brad, 2009) E é por isso que por representarem um perigo para a segurança internacional, foram

encontradas

internacionais,

nos

organismos

especialmente

no

Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, soluções entre as quais: a restrição involuntária da sua soberania por um período de tempo, sanções de carácter económico e político e a presença militar estrangeira no seu território.

6

8

http://fundforpeace.org/fsi/2018/04/24/fragile -states-index-2018-annual-report/ 7 Portugal encontra-se no grupo dos “sustentáveis”, com uma das maiores classificações de 2018 (15º lugar)

9

Período entre 2013-2018 http://fundforpeace.org/fsi/decade-trends/ 10 Foi primeiro-ministro da França, de 1974 a 1976 e de 1986 a 1988. Foi também presidente de França, de 1995 a 2007.

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