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Zona de Couros e Capital Europeia da Cultura: Algumas memórias (de um arquiteto
Zona de Couros e Capital Europeia da Cultura: Algumas memórias (de um arquiteto)
Ricardo Rodrigues Arquiteto, coordenador técnico/científico da candidatura do Centro Histórico de Guimarães e Zona de Couros a Património Mundial
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No ano de celebração da Capital Europeia da Cultura, a Zona de Couros passou a relacionar-se mais com o restante centro da cidade. Novos acessos foram estabelecidos, através da Alameda de S. Dâmaso (terreiro de S. Francisco), pela antiga fábrica da Ramada (Instituto de Design), pela rua de Vila Flor (ligando-a, através da criação de uma nova Alameda, à rua Camilo Castelo Branco). Estas novas relações decorreram de estudos urbanísticos que serviram de referencial para as atuações no espaço público e em alguns edifícios estratégicos, em especial em antigas fábricas de curtumes, abandonadas e sem um sentido de recuperação/reutilização óbvio à primeira vista. Por outro lado, foram múltiplas as manifestações culturais desenvolvidas nesta área com a decorrente atração de um público que terá descoberto uma parte menos conhecida da cidade, pese embora a sua significância na história e no desenvolvimento de Guimarães.
Quando o termo “CampUrbis” surgiu, os estudos urbanísticos suprarreferidos tinham já sedimentado o que parecia fundamental assegurar: a preservação da memória industrial de Guimarães, adequando as antigas unidades fabris a novas utilizações, preferencialmente complementando a oferta já disponível, em termos de usos, na envolvente urbana. O CampUrbis, enquanto “campus universitário sem muros”, surge como uma oportunidade para alocar recursos e sinergias entre a Universidade do Minho e o Município. Do ponto de vista urbanístico, competiu sempre ao Município a gestão do processo. Em grande me- Alameda entre a rua Camilo Castelo Branco e a rua de Vila Flor (Antes da dida, o projeto geral recupera uma ideia já pre- intervenção). Foto Luís Ferreira Alves, 2009. sente em propostas iniciais para a Zona de Couros, decorrentes da iniciativa de classificação das antigas fábricas de curtumes como zona de interesse arqueológico-industrial, reconvertendo as unidades fabris em novos usos. No entanto, as condicionantes, de propriedade (e de subdivisão de propriedade, decorrente dos
processos de encerramento das empresas), localização (zonas inundáveis, acessos altamente condicionados), dimensão dos lotes, entre muitos outros aspetos, variáveis de caso para caso; implicam uma gestão altamente complexa, em especial tratando-se de propriedade predominantemente privada. A hipótese, que tem vindo a ser confirmada e reforçada, de introdução de valências universitárias/pedagógicas/institucionais usando este património, tem possibilitado a aproximação aos objetivos inicialmente previstos e, de uma forma mais alargada (no tempo e no Largo do Cidade (Antes). Foto Luís Ferreira Alves, 2010. espaço) aos objetivos de reabilitação e regeneração da cidade, através da multiplicação de polos de atratividade que contribuem para um equilíbrio funcional entre diferentes áreas urbanas e, assim, potencia-se a coesão territorial através da valorização das especificidades de cada área.



Centro Ciência Viva (Antes). Foto Luís Ferreira Alves, 2009.
Centro Ciência Viva (Depois). Foto Luís Ferreira Alves, 2011. Como vem acontecendo sucessivamente em Guimarães, o património urbanístico e o património edificado são valorizados através do uso e consideram tanto a vertente edificada como os espaços públicos. Alguns exemplos na Zona de Couros: o Centro de Ciência-Viva resulta da reconversão da Fábrica Âncora; o

Instituto de Design recupera, em termos gerais, o que reconhecemos até 2004 como a Fábrica da Ramada; a Pousada da Juventude instalou-se na casa d’O Cidade; o Centro de Formação Avançada Pós-Graduada, era a Freitas e Fernandes; o Parque de Camões abrange, para além de outras propriedades, a antiga Fábrica da Caldeiroa. Também ao nível do espaço publico a interação com o que outrora foi a Miranda Ferreira e Carvalho, no Largo do Cidade e, sobretudo, a criação de condições para que todas as fábricas possam ser uma parte ativa no sistema de espaços coletivos (públicos ou privados), gerando sequências espaciais potencialmente surpreendentes atendendo à quantidade (e tipo) de edificações industriais, à (omni)presença da água ao longo dos percursos, e a uma óbvia complexidade destes espaços, decorrente de séculos de ocupações que carecem ainda de maior compreensão. O que será oportuno referir, neste momento, e na qualidade de arquiteto responsável por alguns dos projetos concretizados nestes anos, em volta da Capital Europeia da Cultural, são aspetos de interação, de partilha e, por isso, a meu ver exemplares, na condução de algumas destas transformações. Destaco a coordenação entre os pontos de contacto entre a intervenção nos espaços públicos da Zona de Couros e a intervenção da Alameda e Toural. A concertação técnica permitiu uma continuidade “natural” entre os percursos. Foi criado um novo acesso que aproxima a Zona de Couros da cota intermédia da Venerável Ordem Terceira de São Francisco e bem como da cota, ligeiramente mais elevada, da Ala- Esquema Geral Espaços Públicos. Ricardo Rodrigues, 2009. meda de São Dâmaso. Foram milhares aqueles que usaram estes percursos para assistirem a concertos nas ruínas defronte da Pousada da Juventude, ao Largo do Cidade. “Isto é uma praça”, dizia-se. Mas não é. E não teve de ser para que pudesse ser o que funcionalmente cumpre a uma praça, em geral: ser lugar de encontro, de concentração e de reunião. E isso foi. E sendo, criou nos Couros uma nova dinâmica, talvez pela primeira vez: a de servir de palco à cultura “mainstream” da cidade: com concertos, apresentações de livros, comediantes, trovadores. Curiosamente, o largo que homenageia o Trovador, não foi, nem então, nem até à data, objeto de tal apropriação. Mas está lá, e desde 2012 passou a aguardar quem o procure para ali se expressar. Para os

novos Trovadores. Podem até não chegar ali. Ou podem não se interessar pelo espaço. Mas ali há espaço para que possa haver criação, reunião e partilha. Até um ano antes, era espaço de reunião de automóveis, por entre os quais caminhávamos com dificuldade, no irregular terreno e empedrado. Será preciso recuar ao “Guimarães: Passado e Presente” para ver crianças a brincar num dos lados deste largo, onde hoje há esplanadas, se ouvem gargalhadas e se sente o cheiro de cidade. De bairro, talvez, que é o que recorrentemente chamam a Couros.

Largo do Cidade — Antes e Depois. Foto Luís Ferreira Alves, 2009 e Paulo Pacheco, 2012.
Também no processo de estudo das antigas fábricas de curtumes apontámos sentidos de transformação, e de permanência, a parte das fábricas e, fazendo-o, arriscamos novos usos. Esses estudos permitiram concorrer a candidaturas e gerar novos equipamentos, como o Instituto de Design. Neste local, antiga fábrica da Ramada, sabíamos ter existido uma viela, de Soalhães. E no processo de projeto, os projetistas a quem foi adjudicado o projeto, quiseram saber mais. Conversar com quem há muito estuda e gere esta área. E ficaram interessados com a ideia de se poder criar uma praça coberta, e de reforçar essa praça coberta integrandoa no sistema de espaços coletivos, através da reabertura da viela de Soalhães (recuperar a ligação entre a rua da Ramada e a rua Padre Gaspar Roriz). Isso mesmo foi feito, e Guimarães ganhou uma nova praça. A primeira praça coberta. Local onde temos assistido a concertos, palestras, debates, apresentações. E também, em geral, à simples exibição de um espaço amplo, de fábrica, com os seus grandes “foulons” agora estáticos.


A ideia de integração dos antigos espaços fabris aplica-se a grande parte das propriedades onde a atividade industrial se desenvolveu. E por dois motivos: em geral, as fábricas estabelecem contacto com, pelo menos, duas vias públicas distintas. E a fábrica constitui-se, ela própria, como um percurso, em geral através de um pátio. Isso mesmo acontece numa fábrica, porventura a mais especial, do meu ponto de vista, por questões objetivas, de raridade (quantos edifícios similares conhecemos?); e subjetivas, de qualidade do espaço, dos materiais, das memórias que parecem mais fortes quando ali estamos. E, não posso esconder, pela oportunidade única que constituiu para trabalhar com Alexandra Gesta na recuperação deste tão relevante testemunho da Zona de Couros. Em geral, a visita ao Centro Ciência-Viva tem um acesso único, a partir da rua da Ramada, por onde entramos e saímos. Mas na verdade, há outro acesso, normalmente fechado, pelo Largo do Cidade. De modo distinto, mas na mesma linha de abertura entre o “miolo” do quarteirão e o espaço público, a reabilitação de edifícios privados, como foi o caso da “Ilha do Sabão”, ampliou a dimensão da Zona de Couros.
Instituto de Design (Antes). Foto Luís Ferreira Alves, 2010.

Ilha do Sabão (Antes). Foto Luís Ferreira Alves, 2009. Ilha do Sabão (Depois) Foto luís Ferreira Alves, 2012.

Ao escrever estas palavras, apercebo-me da condição de charneira entre o que é e o que poderá ser (mas ainda não é). De facto, também as palavras podem ajudar a constituir um sulco, como aquele que refere Carlos Poças Falcão no seu poema Rio de Couros, escrito na pedra, no Largo do Cidade. São formas sinuosas que, em especial na Zona de Couros, ainda aguardam definição. São já tantas as reabilitações quantas as ruínas, pese embora uma ruína possa ter uma presença mais marcante, e nem sempre positiva. Há-as (ruínas) de vários tipos: as que aguardam investimentos, e as que aguardam simplesmente que as compreendam e valorizem. Julgo que esse caminho não foi comprometido, na Capital Europeia da Cultura, e isso é positivo. A ideia de aproximação, de convergência e de concílio entre diferentes escalas, diferentes projetistas e decisores técnicos e políticos é um legado que a Capital Europeia da Cultura me recorda através de alguns dos projetos de intervenção na cidade e, em especial, dos debates gerados em torno dos mesmos, designadamente em torno dos chamados “5 Projetos” (e não apenas o debate mais destacado, centrado no Toural). Claro que, para lá dos projetos materiais, a CEC deixou um legado ao qual não será alheio o Bairro C, que dá continuidade à vontade de chamar mais e nova gente para pensar, discutir, criticar e atuar sobre este território. Não apenas como projeto cultural, mas como ideia de que é fundamental saber gerir os “vazios” da cidade e revertê-los, com ideias, com criatividade, recorrendo porventura ao inusitado, sem cair na facilidade de repetir fórmulas batidas. Se há algo que se espera, culturalmente, de Guimarães, é que seja isso mesmo: Guimarães. DeRua de Couros. Foto Luís Ferreira Alves, 2009. safio que não é pequeno.
