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A Capital Europeia da Cultura de Guimarães
A Capital Europeia da Cultura de Guimarães
Ana Bragança Gestora e mediadora cultural, co-fundadora da ondamarela
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Em 2012, Guimarães viveu muitos momentos inusitados e excepcionais. O Vitória arrancou mal a época, o Manoel de Oliveira foi visto a filmar na praça homónima, o Christian Boltanski tomou café no Milenário e a Cláudia Cardinale veio cá passar um fim-de-semana. Será que ainda nos lembramos porquê? Como estava o ano organizado? O que foi projectado? Em 2012, Guimarães ousou liderar à escala internacional a definição de um novo modelo de desenvolvimento social, económico e urbano, que pudesse ser seguido por outras cidades da sua dimensão, afirmando-se perante a Europa e o mundo pela sua identidade, a sua história e modernidade. Guimarães consolidou o esforço de investimento na cultura e no património transformando-se definitivamente numa cidade criativa de relevância europeia. Em 2012, Guimarães definiu-se no mapa. Democratizou a cultura. O programa artístico organizou-se em clusters, estrangeirismo que, na altura, orientava o pensamento do designado empreendedorismo criativo, salvação utópica das cidades. Trocando por miúdos, o programa artístico organizou-se em grupos, em diferentes áreas de actuação. A Comunidade foi o cluster que iniciou o seu trabalho mais cedo, logo em 2010, num extenso e denso programa que se estendeu por todo o território vimaranense.
Cidade foi o nome escolhido para o programa que tinha como elemento central a criatividade e a inovação humana e a sua relação com o espaço urbano e a competitividade e atractividade do território. Os Tempos Cruzados foi o programa desenvolvido pelo meio associativo vimaranense, que teve como missão a valorização das “práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões da comunidade local, reforçando a sua legitimação cultural e social”. O Espaço Público constitui também um programa isolado, com a apropriação das praças e ruas da cidade enquanto palco principal das celebrações maiores deste ano extraordinário. O programa dedicado às Artes Performativas partiu do conceito de Residência enquanto ideia
transversal, dinâmica e agregadora, com projectos de itinerância intra-municipal e aproximação ao sistema educativo nacional. A área da Música reforçou competências e meios ao nível da produção artística profissional, alavancando o esforço já realizado. Colocou ainda a música ao serviço da vida social, como instrumento de celebração, de inclusão, de diversidade, de aproximação entre as pessoas. O Cinema e Audiovisual apostou em novas produções de cinema, numa estreia na história das Capitais Europeias da Cultura, com a ambição de transformar Guimarães num novo centro de criação e produção cinematográfico. O programa de Arte e Arquitectura organizou-se em diferentes ciclos distintos, ocupou e reinventou diferentes lugares, desde fábricas a museus, ao Castelo ou à rua, num processo de investigação, curadoria e montagem de exposições, sem descuidar a dimensão da palavra. De forma transversal ainda houve o programa educativo que fez o importante trabalho de mediar, de criar pontes entre público e obras e objectos artísticos. O programa cultural assumiu assim a produção e o consumo cultural como centro da transformação pretendida, através de: - Um forte envolvimento e participação da comunidade; - Novas criações de artistas nacionais e internacionais num modelo de residência artística; - Reforço do sentimento europeu através de parcerias e permutas; - Forte orientação para a educação criativa; - Aposta na utilização artística das tecnologias de informação e comunicação; - Ênfase nos recursos locais e regionais (património simbólico); - Ideia de invadir e reimaginar o espaço público. A cidade de Guimarães, em 2012, queria ser: - Um excelente lugar para viver, trabalhar, investir e estudar; - Um lugar onde as pessoas estão primeiro; - Um lugar onde o conhecimento e a cultura são para todos e estão ao serviço de um desenvolvimento sustentável; - Um lugar onde o passado, presente e futuro estão entrelaçados e presentes no quotidiano; - Um lugar animado, dinâmico e vibrante; - Um lugar onde produção e consumo cultural são interdependentes e inseparáveis.
Mas será que se conseguiu cumprir com todos estes desígnios? Soube Guimarães aproveitar a oportunidade de uma Capital Europeia da Cultura e mobilizar os cidadãos e as instituições em torno do projecto
colectivo de consolidação do trabalho desenvolvido, de mudança de patamar, quer ao nível da exigência quer ampliando os domínios de acção? Aproveitando uma matriz cultural e um património de forte identidade, com base no conhecimento e nos desafios da criatividade, posicionou-se Guimarães no espaço europeu e internacional como Cidade de Criação Contemporânea? É ainda necessário (será sempre) refletir, conversar, manter o diálogo aberto na cidade. Avaliar o melhor, mas também o pior. O que está bem e o que está mal, continuar a alimentar esta crença na importância dos modos de criar, de produzir, de fazer, de debater. Modos de arregaçar as mangas, criar comunidade e fazer acontecer. É, com certeza, ainda necessário consolidar para a cidade um carácter cultural que fortaleça o sentido crítico, depure o olhar estético, potencie a democracia, que abra a cidade que se abre a novos olhares. E é minha convicção que é pela prática artística intensa, regular e inclusiva que essa trajetória cultural, e até ética, se consolida. Ou seja, uma aspiração a uma política cultural focada na construção do desenvolvimento integral do indivíduo, reforçando a postura qualitativa e competitiva dos cidadãos e da cidade e funcionando não como mero promotor de espectáculos, mas como pólo de formação, criação e disseminação culturais. Contudo, a proposta que faço é que, tal como em Zaira, a cidade invisível de Ítalo Calvino, entendamos que uma cidade é feita das relações entre as medidas do seu espaço e os acontecimentos do seu passado, “(...) mas a cidade não conta o seu passado, contém-no como as linhas da mão, escrito nas esquinas da rua, nas grades das janelas, nos corrimões das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos postes das bandeiras, cada segmento marcado por sua vez de arranhões, riscos, cortes e entalhes.” Uma descrição de Guimarães, tal como é hoje, deve conter todo o seu passado. “(...) É desta onda que reflui das recordações que a cidade se embebe como uma esponja e se dilata”. (CALVINO, Ítalo – Cidades Invisíveis. 2002:14). Guimarães é assim constituída pelas recordações de quem nela habita ou habitou, são os acontecimentos do seu passado e presente que a constroem; por isso, falar sobre 2012 e sobre a Capital Europeia da Cultura é entender as memórias que criou, as marcas que deixou e saber contar essas histórias, boas ou más, contar glórias ou fragilidades.
Como nos lembra Tolentino de Mendonça, “podemos amar uma cidade idealmente, emoldurando-a para que permaneça fixa numa imagem de glória, e desejando que esta não se modifique jamais. Ou podemos amar uma cidade, um lugar, como algo que, precisamente por estar colocado dentro da história, sujeito aos seus solavancos, está exposta a tantos riscos. São dois amores diferentes. Podemos amar pela força ou amar pela fragilidade.” Mas eu acredito que quando é o reconhecimento da fragilidade a inflamar o nosso
amor, a chama é muito mais pura. E com Guimarães é este o maior desafio e é também esta a maior oportunidade. Com toda a certeza que a Capital Europeia da Cultura não teve o impacto desejado por toda a gente. Não cumpriu com todos os desígnios inicialmente ambicionados, deixando muitos sonhos por cumprir. No entanto, diz-me a memória que não tivemos uma Capital Europeia da Cultura em Guimarães, mas antes uma Capital Europeia da Cultura de Guimarães. A cidade cresceu sobre si as suas margens, experimentou novos modos de fazer e de encarar os problemas e implicações desses modos de fazer. Somou às suas representações tradicionais, icónicas, o valor da cidade como um todo vivo e em transformação, e deixou marcas, recordações, montando um programa em que todos puderam “Fazer parte”. E recordo-me de tantos momentos que nos encheram o coração, que nos fizeram sentir comunidade, passar do eu para um nós, ter esperança e ser invadidos, em diferentes momentos, por um estado de felicidade genuíno. O orgulho de fazer parte de uma coisa maior do que nós, de falarmos desde este burgo medieval, de dimensões pequenas, para uma Europa maior, cumprindo e sendo exemplo dos seus valores. Em 2012, Guimarães viveu muitos momentos inusitados e excepcionais. Desta Guimarães temos, ainda hoje, a Outra Voz, cujo trabalho e crescimento seguimos entusiasticamente, em registos cada vez mais arrojados e contemporâneos, numa abordagem de trabalho de participação e envolvimento comunitário que nos comove. Temos tantas novas estruturas culturais que é difícil contar. Empresas criativas que nasceram depois de 2012, inspiradas pela possibilidade de criar a partir daqui, deste lugar. Novas bandas musicais, independentes, frescas e a gritar pertinência na cena musical global. Fábricas adaptadas e ocupadas à criação artística, à mostra contemporânea, ao acolhimento de outros artistas, à escolha da residência artística a partir de Guimarães e das histórias que daqui se podem contar. Temos o Bando à Parte e o Rodrigo Areias a liderar a produção cinematográfica nacional. Uma plataforma de produção de cinema, aqui, em Guimarães. Temos ainda, e sempre, a memória. E aqui, destaco a que mais me marcou ao longo desse ano único de Guimarães. Aquele final de tarde de 8 de setembro de 2012, a Operação Big Bang, no Parque da Cidade, num concerto que juntou milhares de pessoas, sem que se conseguisse distinguir público de artistas, numa comunhão única onde só o nós se fazia ouvir.
Operação-Big-Bang_©João Octávio Peixoto1JPG

A minha cidade é feita disto tudo, posso ser exigente com ela, provocar transformações e debates e, ao mesmo tempo, amá-la pelo que é, na glória e na fragilidade como “um chão de palavras pisadas”. “A cidade é um chão de palavras pisadas a palavra criança, a palavra segredo. A cidade é um céu de palavras paradas a palavra distância e a palavra medo.
A cidade é um saco, um pulmão que respira pela palavra água, pela palavra brisa A cidade é um poro, um corpo que transpira pela palavra sangue, pela palavra ira.
A cidade tem praças de palavras abertas como estátuas mandadas apear. A cidade tem ruas de palavras desertas como jardins mandados arrancar.” José Afonso, A Cidade
O programa “Capital Europeia da Cultura” é um dos mais sucedidos programas até hoje lançados pela União Europeia. Desde 1985, 63 cidades foram já designadas Capital Europeia da Cultura, cumprindo com o objectivo inicial de “valorizar a riqueza, a diversidade e as características comuns das culturas europeias e permitir um melhor conhecimento mútuo entre os cidadãos da União Europeia”. Este evento, que dura todo o ano, provou constituir um extraordinário instrumento para o desenvolvimento cultural, social e económico de grandes, médias e pequenas cidades. No modelo actual, duas cidades europeias ostentam o título em cada ano. Em 2027, Portugal voltará a ter uma Capital Europeia da Cultura sendo que, à data de redação deste texto, foram pré-selecionadas na competição para o título Aveiro, Braga, Évora e Ponta Delgada, ficando o resultado conhecido mais para o final deste ano de 2022. Será mais uma oportunidade para Portugal.