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Guimarães 2012 – “cinema em concerto” ou uma afirmação do “sector vimaranense”

Guimarães 2012 –“cinema em concerto” ou uma afirmação do “sector vimaranense”

César Machado

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“A província do Minho, com uma população tão densa como industriosa e activa e reflectindo as qualidades admiráveis do substracto da raça, dá o aspecto – salvo o sector vimaranense - de se conservar alheia, indiferente, senão refractária não só aos problemas que agitam o pensamento moderno, mas também àqueles que dizem respeito ao seu passado étnico, histórico, artístico, ou interessam ao seu futuro, económico, científico, social. Por outras palavras: - dá a impressão de ter vivido num entorpecimento mental.” Manuel Monteiro, Revista “Mínia”, Braga, Janeiro de 1944.10

Dez anos passados sobre a Capital Europeia de Cultura (CEC), que fez de 2012 um momento único nas nossas vidas, surge o simpático convite de “Osmusiké”, que agradeço, para deixar um testemunho, uma abordagem que torne presente aquela grande realização que mudou Guimarães.

Opto por invocar o programa denominado “Cinema em Concerto”, uma iniciativa concebida e realizada, em parceria, pela Banda da Sociedade Musical de Pevidém e pelo Cineclube de Guimarães. Porquê? - Desde logo por realçar esse aspecto, que me é muito caro, da valorização e crescimento que a CEC permitiu a estas duas associações culturais de Guimarães, em concreto, como sucedeu com outras em diferentes programas e iniciativas. Ao criar a oportunidade de permitir colocar em acto muito do saber acumulado, em reserva, permitiu-se construir presente. Com o crescimento e valorização das associações culturais trabalhou-se a favor do futuro. E isto seriam já boas razões para justificar a escolha. Mas tem mais. Penso ser justíssimo salientar o lado do reconhecimento que aquele feito também traduz. O testemunho desse reconhecimento naquele contexto concreto e o modo como o grande público acorreu às várias representações do Cinema em Concerto também manifestam essa gratidão por tudo o que sucedeu até ali, por se ter feito chegar a cultura

10 “Manuel Joaquim Rodrigues Monteiro (1879-1952), ilustre escritor, arqueólogo, etnólogo, magistrado, diplomata e crítico de arte, cuja obra representa um património importante para a cultura nacional e um motivo de orgulho para os bracarenses.” Para além destas qualidades que também o abonam, entre inúmeras outras, e que o site da Biblioteca de Leitura Pública de Braga recorda, pode dizer-se que foi Governador Civil de Braga, na Primeira República, foi Ministro, de mais que uma pasta em diferentes governos.

em Guimarães àquele ponto de encontro, por terem sido as associações - em grande medida, e sobretudo até ao último quarto do passado século -, as grandes responsáveis por “aquele haver viagem”. Afinal, nada de inteiramente novo para o sector vimaranense, para usar a expressão que, já em 1944, o ilustríssimo intelectual e político bracarense, Manuel Monteiro utilizara. Valeria a pena perguntar: - o que havia em 1944, em Guimarães, que tornava o sector vimaranense um caso à parte? O que é que tem o Barnabé que é diferente dos outros? como perguntava Sérgio Godinho nessa tão notável quanto esquecida canção: - Barnabé! Seria um óptimo assunto. E se nos reportarmos a 1964, melhor ainda. Ou a 1984, 1994 e por aí fora. Não dando para mais, sintetizemos.

Imagem de Cinema em concerto de João Octávio Peixoto

Seja permitido um parêntesis para situar o contexto envolvente: - como é sabido, durante tempos e tempos os poderes públicos mantiveram-se totalmente alheados das preocupações com a cultura, não só em Guimarães como em todo o país. Não é um “julgamento”, é uma constatação. E quando vieram pela cultura adentro, sobretudo pela mão de António Ferro, fizeram-no numa atitude e com objectivos claramente “apontados”, definindo o que se queria e, sobretudo, o que não se queria nem permitia. Foram criadas

iniciativas e fabricaram-se símbolos culturais que bem poderiam reflectir-se no famoso Galo de Barcelos, um ícone legado à Humanidade pela singularidade da artística veia lusitana! A cultura das Casas do Povo, a ópera para os operários, da Emissora Nacional, o nacional cançonetismo, poderia apontar-se um sem número de contributos para o que deveria ser uma cultura “eminentemente nacional”, com a “escolinha portuguesa”, a “casinha portuguesa”, muito ao serviço do “pobre mas honrado”, que procurou transformar a pobreza em virtude, como bem se entoava na célebre cantiga “Uma Casa Portuguesa- “(....)A alegria da pobreza / Está nessa grande riqueza / De dar e ficar contente (...) No conforto pobrezinho do meu lar / Há fartura de carinho / E a cortina da janela é o luar / Mais o Sol que bate nela / Basta pouco, poucochinho pra alegrar / Uma existência singela / É só amor, pão e vinho / E um caldo verde, verdinho / A fumegar na tigela”. À virtude do “pobre, mas honrado” ou “é tão bonito ser pobre”, preferiu o grande Alexandre O’Neil o “pobrete, mas alegrete”, ou o que diria no poema Portugal “(...) Portugal, questão que eu tenho comigo mesmo, / golpe até ao osso, fome sem entretém (...), feira cabisbaixa, / meu remorso, / meu remorso de todos nós”. Houve muitos intelectuais que, como O´Neil, não embarcaram naquele filme do pobrezinho. Presos, muitos deles, esquecidos e perseguidos, muitos mais, e –em tantos casos - exilados ou expulsos do país, ficou largamente comprometida uma possível cultura muito mais séria, adulta, contemporânea e não reduzida a caricaturas como o Portugal dos Pequenitos, o lado pindérico do desumanismo livresco de Coimbra, para recordar como Fernando Pessoa se referia a Salazar: era o produto de uma fusão de estreitezas. A alma campestremente sórdida do Santa Comba Dão alargou-se em pequenez pela educação do seminário, pelo desumanismo livresco de Coimbra. Neste contexto hostil, desenvolver cultura em estruturas que carecem de agregação, de conjunto, não é fácil. Nas Associações de Estudantes a Universidade revelou exemplos dessa frente. Fora dela, como assegurar cultura, como fazer cultura sem o “pão e vinho sobre a mesa”, à margem do caminho oficial, com a subversão possível ou, quando não, com a noção do risco de se estar a pisar o risco, que haveria de levar à perseguição de tantos agentes culturais? Foi ao associativismo que coube criar essa frente. A história dos Cineclubes por esse país fora é um excelente exemplo dessa actividade. E daqueles riscos. Fechado o parêntesis será bom dizer que em Guimarães não foi diferente. Ou, melhor, houve aqui algo diferente - a felicidade de se contar com um associativismo cultural de pujança singular que viria a constituir o tal “sector vimaranense”. E coube às associações, da mais variada espécie, assegurar a criação cultural que, de outro modo, nunca existiria. Sem a vitalidade das nossas associações culturais não teria sido possível fazer o caminho que se fez, teríamos muitos anos de ausência do teatro, do cinema, das artes plásticas, da música, da investigação histórica, arqueológica e outras, em suma, teríamos vivido muito mais pobres.

Defendo, claramente, que é este longo percurso, a cargo de muitos, agrupados em associações, a verdadeira força motriz que justificou e tornou necessárias as parcerias Associações/Município de Guimarães que viriam a realizar-se a partir de finais do século XX, e que permitiram um passo de gigante no panorama cultural vimaranense. É tão inevitável quanto justo referir que os últimos quinze anos anteriores à designação, em 2006, de Guimarães para a realização da CEC em 2012, foram marcados por uma importantíssima aposta do Município na área da cultura, quer por sua iniciativa e com os seus meios, quer em comunhão de esforços (parcerias) com as associações culturais, ou em termos de apoio financeiro à realização cultural por parte destas. Este último modelo – do financiamento directo a associações- já vinha sendo utilizado durante dezenas de anos, mesmo antes do 25 de Abril, é justo dizê-lo, e permitiu realizações que, sem esse apoio, dificilmente aconteceriam ou não sucediam, de todo. Esta última fase, de cerca de quinze anos, envolveu uma aposta de meios que apenas terá sucedido em raras cidades ou concelhos de dimensão semelhante à nossa. Ao contrário do que poderia pensar-se, não foi totalmente pacífica tal aposta decisiva, que não se resumiu aos fortes investimentos em equipamentos, e que veio ao encontro do movimento cultural que há muito emergia da chamada “sociedade civil” de Guimarães. Viria a tornar-se pacífica num momento posterior, pela força e em razão dos resultados; aí era já não era possível contestar a opção. Uma simples consulta pela imprensa local dos anos de 2001 a 2005 permitirá perceber claramente quanto a fronteira era demarcada e quão entrincheiradas se encontravam as fileiras, artificialmente denominadas de “cigarras e formigas”, para recordar alheia e infeliz expressão usada a abusada, à época. Mas já passou muito tempo, já prescreveu, tudo bem, nada de ressentimentos. Dir-se-ia, portanto, que a CEC não surgiu a partir do nada, de geração espontânea. Pelo contrário, a CEC tornou-se possível pela feliz conjugação de dois factores - o resultado de um longo processo que vem de tempos mais remotos, trilhado por variadíssimas associações e que aportam uma riqueza cultural associativa de grande relevância, criado ao longo de um tempo em que os poderes públicos estiveram ausentes do processo, por um lado. Por outro, a aposta afirmativa e oportuna decidida pelo Município de Guimarães na parte final do passado século tornando a cultura uma das suas prioridades, que se traduziu em investimentos de vária ordem, apontados, desde logo, à criação de públicos, ao apoio à criação de realizações culturais, à construção de equipamentos, etc. Nesta aposta revelou-se decisiva a presença das associações culturais que, com a Câmara Municipal, realizaram parcerias nas mais diversas áreas da cultura. Para além das parcerias, as associações contaram com apoios financeiros do Município que lhes permitiu desenvolver actividades que o tempo consolidou e se transformaram em âncoras de outras actividades que daquelas vieram a resultar. E o próprio Município viria a criar as suas estruturas internas, os seus serviços de cultura – antes inexistentes ou,

na parte inicial, praticamente reduzidos à responsabilidade pela parte logística das iniciativas- e, num segundo momento, em 1989, o surgimento da Cooperativa Cultural A Oficina, que se tornaria responsável pela execução de boa parte do que sucede no panorama cultural vimaranense, desde a programação de eventos culturais de enorme variedade à organização de festivais, ciclos programação, apoio a iniciativas de formação, etc., e, desde logo, a gestão de vários espaços culturais do concelho. Ora, no âmbito da CEC, o Cinema em Concerto foi iniciativa pensada, concebida, realizada e concretizada apenas por agentes locais, duas Associações Culturais de Guimarães – o Cineclube de Guimarães e a Banda da Sociedade Musical de Pevidém. Com o “Cinema em Concerto” ficou claro um facto há muito conhecido de muitos – sejam dados meios às nossas associações culturais e surgirão iniciativas de elevadíssimo nível, ao nível dos melhores. Também é de realçar a elevada participação com que a iniciativa contou, com o envolvimento directo de mais de cem pessoas – da Banda Filarmónica de Pevidém, da Orquestra Juvenil da Sociedade Musical de Pevidém e do Cineclube, desde logo.

Acresce que o “Cinema em Concerto” chegou a milhares de pessoas, um numeroso público que se deliciou nas várias exibições do programa. Desde a primeira sessão, no Paço dos Duques de Bragança, ao CAE São Mamede, ao Centro Cultural Vila Flor, à Praça da Oliveira, a Pevidém, etc., Houve o cuidado de conceber, igualmente, um outro espectáculo mais direccionado para o público mais jovem, que trouxe à cena os filmes e as músicas mais caros a esta faixa etária, interpretadas pela Orquestra Juvenil de Pevidém, uma diferente escolha de filmes, outra formação orquestral a executar as respectivas peças musicais, a preocupação com outros públicos que carinhosamente aplaudiram. Finalmente, opto por deixar testemunho desta iniciativa por uma razão pessoal que não posso deixar de referir – trata-se de um programa em que estive presente desde a primeira hora, com os amigos e companheiros Carlos Mesquita e Maestro Vasco Silva de Faria, pelo que se trata de recordar algo que conheço muito bem, sem correr o risco de falar de outiva. É justo recordar que, desde o primeiro encontro com João Lopes e o amigo Rodrigo Areias, proporcionado por este, ficou claro que, no que dependesse da programação da área do cinema estavam abertas todas as portas. O Rodrigo era amigo. O João Lopes passou a sê-lo. E foi dele a primeira iniciativa de abordar o Rui Massena, seu “colega” programador da área musical logo no dia do nosso primeiro encontro. A coisa tinha funcionado. Quando conversei pela primeira vez com o maestro fiquei com a ideia que a defesa do programa já tinha sido feita antes pelo João Lopes. Do apoio à iniciativa ao nascimento de uma nova amizade foi, também aqui, um curto passo. Os programadores das áreas do cinema e da música “compraram” a ideia ao

primeiro sinal. Um amor à primeira vista, a confirmar que pode ser tão simples fazer coisas complexas quando falta vontade de complicar. Como melhor resulta dos dois documentos publicados neste mesmo espaço e que então escrevi para apresentação da iniciativa, o Cinema em Concerto não se resumiu a mais uma interpretação de bandas sonoras. Foi muito diferente e foi muito mais, como espero vá traduzido naqueles textos. Há uma parte que não pode estar nos textos de apoio à iniciativa. Seria a descrição da aventura que este processo constituiu, desde as várias reuniões a três, na sede do Cineclube, com o Carlos Mesquita e o Vasco Faria a trocar ideias, escolher filmes, apontar temas musicais, ao prazer da partilha, de ver o crescimento do conceito que se transformaria no espectáculo, dos ensaios da Banda de Pevidém com as imagens por detrás, a surpresa da beleza que tudo aquilo trazia, o ar de felicidade de todos os envolvidos que crescia com o crescimento do projecto, enfim, o lado de dentro do espectáculo, um bónus suplementar para quem teve o privilégio enorme de participar neste Cinema em Concerto. Um enorme privilégio e uma grande honra este Cinema em Concerto.

E essa coisa é que é linda!

Determinados temas musicais “tomaram” certos filmes e ficaram lá “agarrados”. Ou, certos filmes “agarraram” em determinados temas musicais e tomaram-nos como seus, apropriaram-se deles. E sucedeu isto de tal forma que não se ouvem algumas daquelas músicas sem passarem nos nossos olhos imagens do filme marcado. Como se não vêm certas imagens sem que a nossos ouvidos cheguem as melodias que delas “fazem parte”. Estas músicas não passaram por aqueles filmes. Nem estes filmes passaram aquelas músicas. Estas músicas são destes filmes e estes filmes são destas músicas. Fazem parte. Fazer parte – eis o que resultou de vários casamentos mais que perfeitos entre filmes e músicas, músicas e filmes. Ainda que algumas destas músicas fossem muito, muito anteriores, às películas. Ainda que alguns dos seus compositores não tivessem nunca visto os seus sons no cinema porque não viveram a época do cinema.

Faz parte de 2001, Odisseia no Espaço o som de Assim falou Zaratrusta ainda que, ao criá-lo em 1896, Strauss desconhecesse o espaço, o cinema ou Stanley Kubrick. Como Mahler passou a fazer parte, marcando o ritmo e dando andamento, a Morte em Veneza de Visconti. Ou como Oliver Stone colou, em Platoon, o adágio para cordas de Samuel Barber à ideia de morte que o cortejo de urnas marcou, qual cicatriz. Ou como As Time Goes By marcou Casablanca, embora Herman Hupfeld desconhecesse que a sua canção iria transformar-se num dos símbolos mais fortes de um filme que nasceria mais de uma década depois. Mas seria a Ponte do Rio Kwai o mesmo filme sem a sua peculiar marcha? Ou o Feiticeiro de Oz sem Over the Rainbow? Ou Fellini sem Nino Rota? Ou Leone sem Morricone? É que algumas músicas foram feitas de caso pensado para aqueles filmes e nasceram para eles. Um outro conceito, sem uma apropriação posterior, que nos casos mais felizes deu no mesmo encontro. Algumas destas músicas ganharam vida própria e continuam sendo tocadas sem o filme. Mas o filme ocorre logo que elas tocam. Naquelas como nestas há uma vida em comum que ficou estampada a partir de um filme. É este casamento que queremos celebrar. Melhor, este matrimónio. A diferença é que este último, sendo um sacramento e não um contrato civil, fica para a vida toda. Pelo menos, na pureza dos princípios. Do que aqui se trata é da pureza dos princípios. De como duas artes se abraçaram criando uma realidade terceira, a nova vida dada a uma certa música pela imagem, a riqueza dada à imagem pela música, e o que ambas ganham uma com a outra, incomparavelmente mais que a soma das partes. Uma outra coisa. E essa coisa é que é linda!

2011, César Machado

Onde está a música quando não a tocam?

Dizia Clara - a harpista do Ensaio de Orquestra, de Frederico Fellini - que perguntas destas só as crianças fazem. Onde está a música quando não a tocam?

As bandas filarmónicas, ao longo de dezenas e dezenas de anos, foram aos sítios e levaram a música. E disseram A música está aqui, vamos tocá-la.

E os sítios foram todos os sítios. São todos os sítios. Dos palcos urbanos mais engalanados aos humildes e simpáticos coretos dos mais distantes lugares, lá onde a música nunca chegaria de modo diferente, as bandas filarmónicas levaram a grande música antes da televisão, antes do rádio, antes que todos os outros. E formaram músicos nos sítios mais remotos porque foram elas próprias escolas de músicos, as únicas escolas de músicos em muitos sítios do passado.

Se falta resposta para a pergunta de Clara – onde está a música quando não a tocam? -, as bandas responderam sempre - A música está aqui, vamos tocá-

la.

É o que queremos continuar fazendo. A levar a música, a formar músicos a fazer a música. Com outros meios, com outra formação, com outra escola, a mesma missão de sempre. O mesmo serviço à música.

A Música? Está aqui, vamos tocá-la. Convosco, para vós, no nosso e vosso sítio.

2011, César Machado

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