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A Tecedeira Invisível

A Tecedeira Invisível

Catarina Pereira Diretora Artística da CDMG e Artes Tradicionais d’A Oficina

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A memória é uma poalha de luz, deixada pela passagem do tempo. É como uma névoa que paira sob uma paisagem obscurecida pela ausência de cor e movimento. Ilumina rostos que se vão desvanecendo numa fotografia amarelecida, faz-nos reconhecer caminhos andados num par de sapatos velhos e pode dar-nos o tom da primeira nota que nos leva a trautear uma melodia inicial, ou que queríamos esquecida. Lembrar, esquecer, evocar, perder, recordar, memorizar, obliterar são acções activadas pela presença, ou ausência, de memórias que vamos acumulando ao longo da vida. Por outro lado, são apelidadas de «memórias transmitidas» aquelas que não provêm de experiências de vida da pessoa que retêm essas mesmas recordações, mas de relatos de outrem que, de facto, presenciou aqueles acontecimentos. Por exemplo, lembro-me de ter puxado o rabo a um cão, dos seus olhos esbugalhados, e da pata amarela que levantou e embateu contra o meu nariz, onde, ainda hoje, é visível a marca da sua força. A minha mãe diz-me que levei desta lição o respeito pelos seres vivos que me rodeiam, ainda não teria dois anos de idade. A maioria dos estudiosos da memória situa o período em que uma criança começa a guardar fragmentos de episódios passados entre os três a quatro anos de idade. Ora, por certo, a imagem memorizada da minha quase inconsciência, naqueles três segundos de luta com o canídeo da Dona Aninhas, adveio da troca de recordações familiares que começam com «E quando a…». Há, ainda, memórias que vamos construindo, ao ponto de não sabermos se são reais ou imaginadas. A memória que guardo da noite de 21 de Janeiro, do ano de 2012, é um exemplo disso mesmo. Não sei precisar se fiz parte da massa humana que, de tal forma compacta, não se movia no empedrado da calçada, talhada a quartzo e basalto, da Praça do Toural em Guimarães, para assistir ao momento de abertura de um ano singular para Guimarães, enquanto Capital Europeia da Cultura. Trata-se de uma memória que me foi passada pelos meus colegas de trabalho, que produziram o espectáculo, concebido pelo grupo teatral La Fura del Baus, escolhido para inaugurar o extenso programa cultural. Será uma recordação composta de descrições dos efeitos cenográficos e de imagens absorvidas pelo visionamento de uma larga sequência de vídeos no Youtube, e alteradas pela sensação imaginada de ter estado num Toural de cenários multiplicados. E, finalmente, chegamos ao registo das memórias que consideramos importante perpetuar, pois servem de testemunho de um determinado feito valorizado por um colectivo. Depois de uma década, o

que se quer recordar, nesta edição, é o impacto para Guimarães pelo facto incontornável de ter tido a capacidade de ter realizado um grande evento como uma Capital Europeia da Cultura. Neste momento, contudo, temos já olhar distanciado, colocados que estamos pelo tempo já em 2022, o que nos permite avaliar o seu legado cultural com mais detalhe e com todas as análises individuais, institucionais e políticas que isso implica. Pelo papel que desempenhei no antes e no depois do ano mais marcante na história recente da cidade, ainda me faltam elementos — e mesmo tempo — para reflectir sobre tudo o que a CEC 2012 originou, sobre o que permaneceu e sobre o muito que ainda necessita de ser feito. Neste texto, dedico-me, por isso, de forma muito breve, a observar apenas o percurso da Casa da Memória de Guimarães (CDMG), desde o seu projecto arquitectónico até à celebração do seu 6º aniversário. A edificação da CDMG foi uma obra incluída na chamada «vertente material» do plano de investimento de recuperação e construção de infraestruturas da CEC 2012. O projecto de arquitectura, da autoria de Miguel Guedes e de José Carlos Melo Dias, vencedor do concurso público promovido pelo Município de Guimarães, em 2010, inclui uma série de intenções que adviriam da intervenção: «Oferecer um espaço novo, transparente e universal à cidade. Um espaço que convida à entrada e feito para ser apropriado, um polo âncora de uma nova cultura urbana. (…) Oferecer espaços de memória com características espaciais únicas. Estes espaços contidos nas duas naves existentes, evocam a importância da indústria na cidade, ao mesmo tempo que surpreendem pelas qualidades espaciais e plásticas de grandes “hangares” industriais, proporcionando espaços de “abertura de espírito”. Fachada do edifício, na actualidade. Foto de Paulo Pacheco Oferecer um espaço verde que apele aos sentidos. (…) A presença da água, a sombra provocada pela vegetação que cobrirá as “ruinas” da estrutura das antigas coberturas removidas, a plantação de uma árvore que pontua a rua Pátria proporcionará um atravessamento com alma e carácter que estará sempre em constante mutação consoante os ciclos naturais (som, movimento, cor, sombra, cheiro, humidade).» Desde o primeiro momento de ocupação deste complexo arquitectónico que reconhecemos a sua grande flexibilidade na adaptação dos seus vários espaços à dinâmica cultural prevista para a CDMG. A rua, de circulação pedonal, entre a Av. Conde Margaride e a Praça Heróis da Fundação, dá um sinal de casa afável ao bairro e convida a entrar

na exposição, que é visível pelo exterior. O pátio, coberto por uma frondosa ramada de glicínias, é um lugar de paragem e de encontros, como os dos alunos da escola profissional Cenatex que, nos dias ensolarados, ali se reúnem e fazem as suas refeições ligeiras. A dupla de arquitectos justifica, também, a escolha dos materiais de construção, nomeadamente os usados na «fachada revestida a reguado de madeira modificada e aplicado na vertical, pintado em cor escura pelas características de baixo impacto ambiental, pela durabilidade, pela afirmação de uma nova pele nas zonas alteradas dos edifícios e pela identificação com a arquitectura popular…». O que não é muito comum encontrar numa cidade de média dimensão, como GuimaExposição Território e Comunidade. Foto de Miguel Oliveira rães, são espaços industriais no centro urbano com uma grande amplitude espacial quer interior, quer exterior, que possam ser reconvertidos em sítios dedicados à fruição patrimonial, cultural e artística. A Casa da Memória é um desses lugares. A simplicidade dos materiais usados, a manutenção das grandes paredes em granito, em contraponto com a formação de pequenos abrigos, a transparência dos volumes edificados, rasgados por amplos vãos, tornam a CDMG num espaço desprendido e aberto à passagem e permanência das pessoas. No dia 25 de Abril de 2016, às 17h00, a Casa da Memória de Guimarães abriu as suas portas a uma torrente de pessoas que fluiu pela sua exposição Território e Comunidade, ao longo de várias horas. À saída, foram sugeridos conteúdos que, pela sua importância histórica, consideram-se de presença obrigatória na narrativa da exposição. Tal foi o caso da inclusão, no núcleo «Cronologias», da data de início da Guerra Colonial (1961), que foi colocada logo na semana seguinte. Depois de um primeiro mês intenso de visiInauguração da Casa da Memória. Foto de Paulo Pacheco tação, havia que implementar programas que

estimulassem o retorno à CDMG. Deambulámos pela exposição e descobríamos, a cada passo, novas leituras. Ficámos deslumbrados com o número infindável de relações que se poderiam estabelecer entre os objectos, imagens e documentos com histórias e memórias que poderiam ser recolhidas com recurso a fontes escritas ou orais. Ao vaguearmos entre a exposição, o pátio e a sala onde cresceria a Mesa da Memória, feita com madeiras que deram corpo a outros móveis de casas que já não existem, conseguimos percepcionar a essência da Casa da Memória.

Afigurou-se-me a minha posição como a de uma tecedeira que urde e compõe a partir do imaterial, do património intangível, do pensamento artístico e científico, do saber-fazer e das tradições o seu tecido, para depois tentar estender pela memória de todo o concelho de Guimarães, a partir da sua exposição Território e Comunidade. Mas a sua teia não se faz, somente, dos conteúdos em exposição e é um labor em contínuo, através da criação de uma forte dinâmica de participação coletiva. Vamos tomar como exemplo o seu projecto âncora, que assenta numa grande Pergunta ao Tempo, que é feita, anualmente, por cerca de trezentas crianças provenientes de várias freguesias do concelho de Guimarães. A cada ano lectivo, são convidados a nele participar os agrupamentos escolares de Guimarães, com catorze turmas do 4º ano, tantas quantos os núcleos da exposição permanente Território e Comunidade. Depois de visitas à exposição e de oficinas nas escolas, orientadas seguindo metodologias científicas de recolha de património cultural, segue-se o trabalho de campo, no qual alunos, professores, pais, familiares próximos e membros de instituições das freguesias se mobilizam para o processo de recolha e registo de memórias locais. Objectos; documentos; imagens; antigos registos sonoros; novos registos audiovisuais; recolhas de velhas histórias e cantares; etc., vão saindo de dentro de baús, das prateleiras das vitrinas, das brumas da memória dos mais velhos e da criatividade dos mais novos directamente para a sala de aula. No final do ano lectivo, os trabalhos são expostos em diálogo com a exposição. Outro fio lançado pela Casa da Memória está relacionado com a produção de novo conhecimento — científico, criativo e artístico — junto não só do indivíduo, mas também das escolas, academias e comunidades, através da partilha de documentação, de registos e de informação. O seu Repositório tem uma vocação arquivística para o tratamento, digitalização, organização e disponibilização (em formato digital) de acervos, cuja sinalização contribua para uma melhor compreensão da história e do património local, associada ao desenvolvimento de linhas de investigação nos campos da história da arte, da arquitetura, de temas da história contemporânea, da etnografia, da antropologia e da ecologia, interpretando-os no sentido da vivência do território de Guimarães na atualidade.

Mas também é preciso desatar nós: por exemplo, desconstruindo o conceito de “memória coletiva”, mais orientado para o património cultural imaterial, e isso faz-se através de momentos de experiência que nos levem a questionar como nos colocamos neste processo a partir de dentro — como valorizamos as nossas tradições? Como as reinventamos? De que forma é que as podemos sentir? Para esta incursão, desenvolvemos atividades que nos façam recuar sensorialmente a histórias, práticas, sabores, sons, gestos que fazem parte do legado imaterial comum. No desenho deste grande tecido, sobressaem as memórias vivas: aquelas que estão claras no horizonte de um indivíduo ou do coletivo; ou aquelas que renascem porque esse mesmo grupo acha necessário que sejam reativadas. Com os habitantes de cada freguesia de Guimarães, criamos programas que nos levam a resgatar memórias para a sua vivência quotidiana, na qual os recursos de cada território são, também, parte integrante deste processo de revisitação. No canto inferior esquerdo do computador, o relógio marca 22:47 | 25-04-2022, enquanto nos preparamos para regressar a casa, após um dia pleno de visitas, oficinas de teatro, de leituras, de culinária, concertos e encontros há muito adiados, tudo para tornar grandiosa a festa do 6.º Aniversário da Casa da Memória. O tempo permitiu-nos deixar memória em 2022, no rescaldo de uma crise pandémica e numa Europa que vive o início de uma guerra de proporções incalculáveis e de desfecho muito incerto; e que, como todas as crises que pontuam a história, arrastam-nos para o poço das dificuldades financeiras do qual continuamos sem ver o fundo. Que futuros se vislumbram a partir das grandes janelas da Casa da Memória? A sua exposição propõe-nos imaginar lugares utópicos, saídos de uma projeção ficcional de futuro idealizado e inatingível. Leva-nos a pensar o território considerando o presente, o passado e o futuro, o que envolve estabelecer ligações entre as memórias passadas e as utopias futuras. Desafia-nos a enfrentar a distopia, a opressão e o totalitarismo nas suas várias faces. O tecido de Guimarães, estendido desde a Casa da Memória, continua a crescer a cada palavra dita ou repetida, a cada gesto replicado, a cada nota dedilhada, a cada conversa, a cada homenagem, a cada livro, a cada exposição, a cada documento inédito que se descobre e às vivências que cada visitante decide partilhar. E eu sou apenas mais uma tecedeira invisível, ainda que goste de pensar que uma parte pequena desta grande obra nasceu e continua pelo meu esforço.

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