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Dez anos depois, a cidade continua o seu caminho

Dez anos depois, a cidade continua o seu caminho…3

Filipe Fontes

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Convictamente, tenho 2012 como um ano feliz para Guimarães. Inevitável e evidentemente, não o único na sua história. Forçosa e consensualmente, o mais significativo no seu tempo recente. Ano feliz não por ter constituído a causa única e global de um futuro melhor, nem por se afirmar o efeito natural de um passado bem construído. Ano feliz porque oportunidade de continuar a “fazer cidade”, acrescentando mais uma camada de conhecimento, afectividade e expectativa ao território vimaranense, aproveitando recursos até então desconhecidos e nunca experimentados, rentabilizando a energia instalada e a vontade de fazer, acrescentando um futuro tão ambicionado quanto ambicioso.

É também convicção de que, passados estes dez anos, ainda não se encontram verdadeiramente assimilados a natureza, a dimensão e o âmbito da profunda intervenção urbana registada em Guimarães no ano de 20124. Entre crises e pandemia, entre um afrouxar natural de recursos e energia e um reacerto de estratégias e actores, hoje, perpassa um sentimento ambivalente pelo território vimaranense: muito se fez, muito se gerou e esperou, ainda se caminha à procura de alcançar tudo o que foi ambicionado e desejado. Nada começou há dez anos5. Esse ano foi a oportunidade de “fazer acontecer”. Simplesmente, mais um tempo sobre o Tempo da cidade… mais uma etapa do caminho inacabado que representa construir uma cidade.

3O texto em causa fixa-se na dimensão urbana de Guimarães, capital europeia da cultura 2012 e é produzido por quem esteve directamente envolvido neste processo. Provavelmente, não será possível, de todo, a imparcialidade e a isenção desejáveis. Declaradamente, persegue-se um esforço de distanciamento e uma leitura disciplinar inerente à formação profissional do autor. E, enquanto cidadão, afinal, a verdadeira e maior dimensão comum a todos aqueles que habitam e usufruem a cidade… 4A intervenção urbana e infraestrutural global fixa-se em oito edifícios / equipamentos (plataforma das artes e da criatividade, laboratório da paisagem, casa da memória, centro de ciência viva, instituto de design, centro avançado de formação pós-graduada, extensão do museu Alberto Sampaio e residências para artistas) e cinco espaços públicos (conjunto urbano formado pela praça do Toural, alameda São Dâmaso e rua Santo António, veiga de Creixomil, largo Martins Sarmento (Carmo), monte Latito e espaço público da zona de Couros). 5“a autarquia de Guimarães, de há algum tempo a esta parte, vem trabalhando, no âmbito do planeamento e urbanismo, num conjunto de projectos de reabilitação e qualificação urbanas que se revelaram profundamente articulados com os objectivos do programa da CEC.” (candidatura ao título de capital europeia da cultura, Guimarães 2012, página 112).

Previamente, ousou-se materializar mais uma camada de cidade, feita das características intrínsecas do “ser vimaranense”, feita da leitura grave e crítica do território que abraçamos e usufruímos. Da conjugação da história (que garante e perpetua a memória e a identidade da cidade, reforçando o afecto dos habitantes pela sua urbe), da comunidade (enquanto expressão de um bairrismo6 ímpar e defesa incontornável dos valores locais) e reinvenção (reaproveitando, de modo singular e criativo, o que possui para ultrapassar crises e dificuldades), projectou-se uma larga operação urbanística de consolidação do valor patrimonial em presença como bem excepcional e único; de extensão da sua área central urbana, escalando e extrapolando os limites, por vezes e aparentemente, inibidores e condicionadores do seu centro histórico; da ligação das áreas urbanas tidas como historicamente incontornáveis na leitura de Guimarães cidade –área central e Pevidém – promovendo a compactação urbana como elemento central de robustez e densidade de vivência urbana inerentes a uma urbe contemporânea.

Neste cruzamento do que é intrínseco e endógeno com o que é idealizado e desejado, emergiu a regeneração urbana feita de intervenções tão diversas quanto complementares como a requalificação do “Toural e da Alameda”, reabilitação do Monte Latito e espaço público de Couros, valorização da veiga de Creixomil e da ribeira de Couros, promoção de equipamentos de ensino, cultura e conhecimento – como a plataforma das artes e da criatividade, centro de ciência viva, instituto de design, centro avançado de formação pósgraduada e casa da memória – feitas dos mesmos princípios e critérios há muito experimentados pela cidade: assunção da reabilitação como princípio natural de intervenção e sabendo conjugar, sempre que necessário e apropriado, com a construção nova; tratamento do património edificado todo por igual, porque todo integrante de uma ideia e história maior e comum; requalificação contínua do espaço público, quer infra, quer na sua superfície e equipamento, na certeza de que este espaço público é a casa de todos nós; envolvimento constante da população local, na dependência certa e inequívoca de que a cidade só existe (e encontra sentido) porque feita de pessoas e para as pessoas. O processo foi-se “fazendo” e chegou a 2012 em progresso e visível na sua expressão mais física, repartida a quatro níveis:

6Bairrismo na sua tradução de pertença a um lugar que é nosso pela história e apropriação que fazemos dele. Não significa propriedade nem poder. Não implica exclusividade. É sinónimo de cumplicidade e partilha, extensão do que somos e queremos ser. E não conseguimos ser sem a companhia e o envolvimento do lugar que nos acolhe. O bairrismo traduz a intensidade dessa companhia e desse envolvimento…

Praça do Toural. Foto de Paulo Pacheco.

Praça do Toural. Foto de Paulo Pacheco. (1) Área central classificada como património cultural da humanidade feita da reabilitação do Monte Latito, englobando o castelo e o paço dos Duques de Bragança, a Igreja de S. Miguel do Castelo e o espaço público envolvente, visando potenciar, rentabilizar e valorizar as componentes patrimonial e paisagística que esta mesma área encerra e focada no maior ícone da cidade: o castelo; intervenção no conjunto urbano central da cidade (praça do Toural, alameda S. Dâmaso e rua de Santo António), pressupondo a valorização do tratamento superficial do mesmo, a respetiva beneficiação infraestrutural, a manutenção dos elementos arbóreos expressivos, a compatibilização do peão com o automóvel, o tratamento plástico do chão da praça do Toural, introduzindo uma obra de arte pública e a requalificação do largo de S. Francisco; reabilitação da antiga casa de S. Tiago (extensão do museu Alberto Sampaio), localizada em plena praça S. Tiago, para albergar e ampliar o museu Alberto Sampaio; mais tarde, a residência de artistas com a reabilitação e refuncionalização de dois prédios sitos na rua da Rainha.

(2) Área adjacente à área classificada, desejavelmente futuro património cultural da humanidade, centrada na revitalização da denominada zona de Couros, tendo em vista a criação de uma plataforma relacionada com a actividade do conhecimento e inovação tecnológica. Implicou a intervenção numa extensa área de espaço público, estruturada em três grandes domínios: infraestruturação do espaço quer ao nível das infraestruturas de suporte (abastecimento de água, saneamento, águas pluviais), quer no que reporta

às “novas infraestruturas tecnológicas” (fibra ótica, …); tratamento da superfície do espaço público; equipamento do mesmo espaço com mobiliário urbano e iluminação adequada. Complementarmente, significou a reconversão de três grandes contentores industriais edificados em três equipamentos dedicados ao conhecimento e ensino: instituto de design (antiga fábrica da ramada), centro avançado de formação pós-graduada (antiga fábrica Freitas & Fernandes) e centro de ciência viva (antiga fábrica âncora).

(3) Equipamentos culturais como a Plataforma das Artes e Criatividade, projecto infraestrutural de transformação do antigo mercado de Guimarães num espaço multifuncional, dedicado à atividade artística, cultural e económico-social e albergando três grandes áreas programáticas: centro de arte José de Guimarães, ateliers emergentes de apoio à criatividade e laboratórios criativos (espaços de trabalho vocacionados para jovens criadores e gabinetes de apoio empresarial). Em acréscimo, este equipamento contemplou a abertura da praça interior do antigo mercado ao usufruto público.

(4) Valorização da veiga de Creixomil e ribeira de Couros (e laboratório da paisagem), traduzida na revitalização da ribeira de Couros, ampliação da horta pedagógica (espaço comunitário de prática agrícola), requalificação de caminhos pedonais e construção do laboratório da paisagem (equipamento centrado na temática da paisagem e ambiente).

Plataforma das Artes e da Criatividade. Foto de Paulo Pacheco.

Chegou e foi alvo de aplauso e admiração, reconhecimento do trabalho feito e do potencial observado. Chegou e, é percepção, fez sorrir a cidade, sem, inevitavelmente, evitar a falta de consenso e unanimidade sobre o trabalho feito e padecer da falta do elemento central quando se fala da cidade: o tempo. Na verdade, o tempo revela-se fundamental na cidade e para a cidade. É, porventura, a sua medida mais assertiva e fiel à verdadeira justeza das transformações e manipulações que a cidade sofre. É, seguramente,

o barómetro mais seguro da resistência da cidade ao seu falhanço e do suporte emocional ao seu sucesso. Sem o tempo, não há sedimentação e consolidação. Com o tempo, emergem outras oportunidades. E, assim, modo continuado de corrigir e melhorar, afirmar e acrescentar. Porque assim é, é este mesmo tempo que nos permite, hoje, olhar criticamente para este processo de regeneração urbana e entendê-lo, também criticamente, à luz do que desejou ser e consegue hoje ser, em função da capacidade revelada de erguer e, hoje de manter, potenciar ou relevar, ora por omissão, ora por incapacidade. E permite também não ser tão difícil avaliar. Avaliar na assunção do seu significado como perspectiva invertida, como análise em contraciclo, sabendo mais e melhor do que a data da concepção e concretização, conhecendo mais e melhores efeitos e consequências, num olhar e questionar permanentemente crítico sobre a cidade. Numa adaptação livre de Manuel Graça Dias “há muitos modos inteligentes e úteis de fazer crítica e avaliação. Inútil é nada questionar”7 . Passados dez anos, dir-se-á que o balanço é agridoce. A cidade incorporou e assimilou no seu tecido urbano a transformação verificada em 2012, deixou que a população fosse tomando conta dos novos e renovados lugares – talvez o sinal mais visível seja o conjunto urbano central da cidade (praça do Toural, alameda S. Dâmaso e rua de Santo António) – mas fica a constatação de que a trilogia ambicionada “consolidar, estender e ligar” ainda está por alcançar na sua expressão mais significativa, quanto mais plena e global. Hoje, cumpre-se um ganho significativo para a cidade. Não há dúvidas! A oferta de espaço público qualificado, incontornavelmente cresceu, a disponibilização de equipamentos de forte valor cultural, ensino e conhecimento permanece, o espaço natural de carácter “lúdico e ambiental” exponenciou-se no seu uso, o bem classificado como património cultural da humanidade está mais valorizado e é constantemente reconhecido por quem visita a cidade e novos espaços e áreas se oferecem à classificação como património cultural da humanidade (no reconhecimento do seu valor intrínseco e urbano).

Todavia, em “oposição”, esses mesmos espaços e áreas demoram a gerar movimento e dinamização urbana. A zona de Couros tarda na sua consolidação habitacional, dinamização das funções urbanas “instaladas” e atracção de actividade económica complementar (como comércio e serviços). Os equipamentos expressivos, como a plataforma das artes e a casa da memória, demoram a estender a área urbana central da cidade, expressando-se ainda numa lógica fechada e ensimesmada e não exposta e integradora do espaço público. E a veiga de Creixomil ainda carece de polarização enquanto ligante urbano.

7Frase original: “A Arquitectura é crítica sempre que questiona programas, lugares, símbolos, convenções, hábitos, modos de produção, usos, políticas, ensino. Há muitos modos inteligentes e úteis de o fazer; inútil é nada questionar.” Manuel Graça Dias, “Situações críticas”, jornal dos arquitectos, número 239. Lisboa (ordem dos arquitectos), 2010

Passados dez anos, a cidade revela-se imperfeita e incompleta no seu processo e crescimento urbanos. Nada que seja estranho a uma verdadeira cidade! Por isso é que, invariavelmente, se corrigem e acentuam processos e soluções. E, por isso, se assiste a novas intervenções e a novas camadas de sedimentação da cidade. A renovação e reabilitação do teatro Jordão e garagem Avenida, a (quase) conclusão da reabilitação da antiga fábrica Freitas & Fernandes, o contínuo trabalho na ribeira de Couros, a intervenção na casa e quinta do Costeado, as reabilitações de arruamentos e o alargamento da denominada “cidade desportiva” (veiga de Creixomil) e sua inclusão no percurso ciclável central da cidade sinalizam esta mesma constatação. O caminho é longo, particularmente longo, competindo a todos os que interagem no espaço urbano contribuir para a caminhada e “fazer caminho”. Porventura, não atingindo a meta, provavelmente, alcançando um porto intermédio que se deseja “bom porto”, seguramente, ganhando e acrescentando valor e significado, cumprindo um rumo há muito traçado e conhecido em Guimarães. E este parece ser o grande legado de 2012 e o seu real contributo. A cidade não tergiversou, não se desviou nem se acomodou. Continuou igual na sua afectividade, comunidade e reinvenção, enriqueceu-se no seu valor, conhecimento e dimensão, deu oportunidade a “novas oportunidades” e fez caminho. Cumpriu uma grande etapa! Pode-se achar que o passo, ou o ritmo, foi grande, talvez excessivo. Não se nega que foi útil e bom! E esse é o resultado final que se julga perdurar sobre 2012: foi bom e continua a ser bom!8 Assim saibamos honrar esse legado e continuar a fazer parte deste processo de construção de uma urbe tão única, singular e contemporânea… que não há igual!

8Relembrando Winston Churchill (1874-1965) “sucesso não é o final, falhar não é fatal: é a coragem para continuar que conta”. E acredita-se, esta persistência é inata a Guimarães e uma das suas grandes qualidades que permite olhar para o Tempo e reinventar-se, acreditando que o dia seguinte poderá sempre ser melhor.

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