O Comercialista - Vol. II - Novembro 2011

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Ano 01 Volume 02 Novembro 2011

O COMERCIALISTA Revista de Direito Comercial e Econômico dos Estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco

Perfil Otávio Yazbek Em 7 de dezembro de 2011, a CVM completará 35 anos. Como não poderia ser diferente, O Comercialista realizou um bate-papo exclusivo com um de seus diretores, o franciscano Otávio Yazbek, sobre trajetória profissional, estágio, estruturas regulatórias, mercado de capitais e BNDES.

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•Desconfiança nas relações comerciais •Ocupe Wall Street: Paranóia ou (Des)Mistificação? •Direito Comercial e Direito Industrial •Comissão de Valores Mobiliários •Direito e Economia •Inaplicabilidade do CDC às relações comerciais •Parecer de Orientação CVM n°35


Editorial

Chamamento ao dever Em outubro de 2011, a renomada instituição britânica Times Higher Education - THE, referência em ensino superior, publicou o ranking das 400 melhores universidades do mundo. O cenário não é nada animador tanto para o Brasil quanto para a América do Sul. Apenas 3 universidades sul-americanas constam na lista, sendo 2 brasileiras: USP, UNICAMP e Pontifícia Universidade Católica do Chile. A Universidade de São Paulo (178º) é a única presente entre as 200 primeiras. O continente sul-americano apresenta a menor participação no ranking dentre todos os demais continentes representados. A África possui 4 universidades na lista. (Para maiores informações sobre o ranking acesse o link do THE na nossa página no Facebook) Por acreditar que a sétima maior economia do mundo (Brasil), segundo declarações do Ministro Guido Mantega, tem material humano e capacidade técnica suficientes para tornar-se centro de referência em produção científica no mundo, O Comercialista convoca todos os acadêmicos interessados na temática deste periódico para, juntos, contribuirmos com a melhoria do cenário acima exposto. Mas de que forma O Comercialista pode contribuir? A sofisticada metodologia empregada pela THE para comparar as universidades baseia-se em 13 indicadores de performance, agrupados em 5 grandes áreas a saber: (i) Teaching — the learning environment (worth 30 per cent of the overall ranking score); (ii) Research — volume, income and reputation (worth 30 per cent); (iii) Citations — research influence (worth 30 per cent); (iv) Industry income — innovation (worth 2.5 per cent); (v) International outlook — staff, students and research (worth 7.5 per cent). Uma vez que o projeto desenvolvido por esta revista, estribado nas motivações elencadas no editorial do primeiro volume, influencia, direta ou indiretamente, de forma positiva (i) o teaching – ampliando as ferramentas pedagógicas de difusão e ensino das disciplinas, propiciando maior interação social entre os interessados por determinada área do direito, promovendo palestras e debates na faculdade etc, (ii) o research – por meio do fomento à pesquisa e produção intelectual, (iii) o citations – criando mais uma fonte de referência em produção técnico-científica a ser consultada, (iv) o industry income – criando um veículo acessível a pesquisadores interessados em propor soluções técnicas inovadoras, e (v) o international outlook – por meio do estabelecimento de diálogos com acadêmicos de diversas universidades estrangeiras, numa cessão de espaço recíproca para publicação de artigos (essa iniciativa já está em fase de implementação), acreditamos que O Comercialista pode contribuir de forma significativa para com a USP, para com o Brasil, para com a América do Sul, e, em última instância, para com a humanidade. Entretanto, para obtermos êxito nessa missão, precisamos tanto do engajamento dos acadêmicos no projeto quanto do suporte material de entidades públicas e privadas. Embora a primeira edição da revista tenha recebido inúmeros elogios e incentivos de graduandos, mestres, doutores e profissionais de todo o Brasil, ainda não há qualquer forma de apoio material, o que impossibilita a consecução de alguns objetivos. Em artigo publicado nessa edição, o advogado e doutorando pela USP, Fernando Nimer, ao ressaltar a importância do papel desempenhado pelos estudantes no processo de inovação científica, escreve: “Temos o hábito de ouvir, pelos corredores da nossa Academia, que estudamos em uma das melhores escolas de Direito do país. A Academia é fonte de orgulho para todos que dela participamos. Somos orgulhosos de nossas tradições e de nossa posição de destaque. Tal reconhecimento implica, entretanto, em responsabilidades e deveres. A Academia deve estar na vanguarda da ciência jurídica, do ensino multidisciplinar, do debate franco e objetivo sobre novas ideias, teorias e sua aplicação. Nós, estudantes, temos negligenciado tais deveres. A Academia não se faz apenas com professores, grade curricular e estrutura. Ela se faz com alunos, empenho e dedicação na busca de novas formas de conhecimento”. Em 1887 um pequeno grupo de alunos do terceiro ano da Harvard Law School publicava a primeira edição daquela que viria a ser uma das mais respeitadas e influentes revistas jurídicas, gerida exclusivamente por estudantes universitários, a Harvard Law Review, existente até hoje. Coincidentemente ou não, O Comercialista também foi fundado por um pequeno grupo de alunos do terceiro ano. Eis a oportunidade do Largo de São Francisco revigorar sua contribuição para com a história jurídica do Brasil. Delenda est Carthago.

Os Editores

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editorial corpo

Índice 3 Reflexões Jurídicas Desconfiança nas relações comerciais

Editores Executivos Pedro Alves Lavacchini Ramunno Thyago Pereira Trairi

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Articulistas desta edição

Atualidades

André Rossetto Daudt

Ocupe Wall Street: Paranóia ou (Des)Mistificação?

Bruno M. Bensal

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Fernando Nimer

Doutrina

Henrique Stecanella Cid

Direito Comercial e Direito Industrial

9 Comissão de Valores Mobiliários

João Vicente Carvalho Pedro Alves Lavacchini Ramunno Rodrigo Fialho Borges

Uma breve Introdução Repórter desta edição

12 Perfil

Thyago Pereira Trairi

Otávio Yazbek

Diretor de Relações Públicas

16 Direito e Economia

Daniel Berezin Stelzer

Por que estudar Direito e Economia?

Colaborador Desire de Oliveira

20 CDC e relações comerciais Inaplicabilidade do CDC às relações comerciais

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Fale Conosco

Parecer de Orientação CVM n°35

contato@ocomercialista.com.br

Um balanço apés três anos de criação

A Revista de Direito Comercial e Econômico dos Estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – O Comercialista – é uma publicação mensal da Associação Civil sem fins lucrativos O Comercialista Endereço Rua Tenente Rocha, 134, Santana – São Paulo – SP – CEP 02022110 Contatos (11) 73016756 – (11) 81335813 – contato@ocomercialista.com.br – www.ocomercialista.com.br - Facebook www.facebook.com/ocomercialista Marketing Thyago Pereira Trairi – thyago.trairi@usp.br e Pedro Ramunno – pedro@ramunno.com.br Nota aos leitores As opiniões expressas nos artigos são as de seus autores e não necessariamente as de O Comercialista nem das instituições em que atuam Reprodução É permitida a reprodução total ou parcial de textos desta publicação, desde que citada a fonte

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Reflexões Jurídicas

Desconfiança nas relações comerciais Vale a pena confiar? Por Pedro Alves Lavacchini Ramunno “A desconfiança é o farol que guia o prudente” William Shakespeare

Falta de confiança. Receio de ser enganado. Suspeita. Objeto de intrigas em relacionamentos amorosos ou entre pares, a desconfiança é, tendenciosamente, colocada em um segundo plano quando das discussões do universo jurídico, devido à ideia de que o Direito, de fato, gera segurança jurídica. Esta, por sua vez, deve ser entendida, para os propósitos do presente artigo, como suposta característica do Direito, qual estabelece que este deve criar condições de certeza e igualdade que habilitem o cidadão a sentir-se senhor de seus próprios atos e dos atos do outro. No Direito Comercial, principalmente quando da análise de determinados temas, como o dos contratos empresariais, todavia, o padrão é diverso, sendo mais do que prudente desconfiar. A atitude do operador do Direito também contribui com essa onda de desconfiança: o foco não está em seguir a norma, mas em encontrar e atuar, tendo em base a “não-norma”. Não há uma preocupação em agir sempre dentro dos limites da legalidade ou, na verdade, esta é única preocupação que se tem: agir NO limite da legalidade. Fazer, em outras palavras, tudo aquilo que a lei NÃO PROÍBE. Vale lembrar que é dessa ideia que nascem a famosa caça às lacunas e os “bons advogados”. Afinal, para o leigo, o melhor advogado é aquele que sabe “ler nas entrelinhas da lei”, ultrapassando “todas as brechas existentes” em prol do interesse de seu cliente. O senso comum, mesmo sem ter esse objetivo, diretamente, fomenta a desconfiança, em detrimento da tal segurança jurídica. No caso das relações comerciais, a questão da desconfiança deve receber outro enfoque, pelo fato de tais relações apresentarem características peculiares e que devem ser levadas em consideração quando da discussão ora colocada. Enquanto para os outros ramos do Direito há a tendência de se buscar o máximo de certeza em todos os atos, garantindo previsibilidade dos efeitos jurídicos nas relações comerciais, no lugar da mencionada segurança jurídica. Valorizam-se, assim, o individualismo, a

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esperteza e a capacidade de aferição de lucro, mesmo que estes elementos resultem na destruição de diversos agentes econômicos. A interpretação da lesão nas relações comerciais (art. 157 do Código Civil), o “grau” de relevância do princípio da boa-fé (considerando a diferença de “sensibilidade” de tal princípio no Direito Civil e no Direito Comercial) e a supervalorização do aspecto da experiência do comerciante são só alguns dos exemplos que sustentam a vertente de que o Direito Comercial teria uma menor preocupação com a segurança jurídica, nos termos colocados no início do texto. Curioso notar, entretanto, que ainda na área empresarial, quando das operações de fusão e aquisição, as quais, dependendo do caso, podem perdurar muitos meses, existe a preocupação por parte dos agentes econômicos de se utilizarem de instrumentos jurídicos que garantam a fluência das negociações, criando um vínculo entre as partes. É o que acontece com a assinatura de protocolos ou cartas de intenções (term sheet), memorandos de entendimento (MOU – memorandum of understandings). Tais documentos não só formalizam a concordância entre as partes da operação em certos pontos como podem, inclusive, suscitar o cumprimento específico dos termos definidos nestes negócios jurídicos, quando preverem, é claro, os elementos essenciais do negócio definitivo, como ocorrido no caso da Rede Disco. Esta busca por segurança não seria simplesmente mera conseqüência da desconfiança dos agentes econômicos para com o sistema e entre si? A mesma preocupação (não necessariamente imediata) em garantir a segurança jurídica pode ser observada no Direito Concorrencial. Neste, o comerciante, que por puro mérito e habilidade, conseguiu expandir as suas atividades, eliminando concorrentes e conquistando uma posição dominante, pode, caso dê indícios de que abusaria desta situação – mesmo que o fato não ocorra -, ser obrigado a fragmentar o seu grupo de empresas e vendê-las para novos agentes. Busca-se, no caso, fomentar a concorrência, visando, por sua vez, à

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Reflexões Jurídicas segurança jurídica. Este é exatamente um dos pontos centrais que favorecem a aprovação do projeto de lei que organiza o sistema de defesa da concorrência (SBDC), com a instituição do “Super CADE”. Resta saber se ao colocar como requisito que todas (levando-se em consideração o disposto do art. 54 da Lei 8.884/94) as operações sejam aprovadas pelo crivo do CADE, não se estaria, assim como no caso anterior, estabelecendo como ponto de partida que os agentes econômicos não podem ser confiados? Essas considerações abrem margem a interessantes reflexões. Este mesmo Direito, que impõe um sistema extremamente liberal, quando da elaboração de um contrato empresarial, chegando a permitir abusos, tem o potencial, garantido pela lei e por diversos artifícios estruturais, para impedir que um mesmo agente econômico, que foi mais hábil, esperto e comercialmente competente, eliminando concorrentes, seja obrigado a fragmentar seu poder econômico de forma a evitar latentes abusos. Sistema este que é fruto da mesma desconfiança que se cultiva no caso dos contratos empresariais. Trata-se, enfim, do mesmo Direito ou, do mesmo modo que se mudam as leis, mudam-se o sistema, os princípios, e a rede de conhecimentos a serem aplicados? A questão que fica: vale a pena confiar? Referências Bibliográficas FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Segurança jurídica e normas gerais tributárias. Revista do Direito Tributário, n° 1998. FORGIONI, Paula A.. Teoria Geral dos Contratos Empresariais. 2ª edição. São Paulo: RT, 2011.

Pedro Alves Lavacchini Ramunno é graduando do terceiro ano da Faculdade de Direito da USP e estagiário na área de Direito Empresarial do Pinheiro Neto Advogados pedro@ramunno.com.br *As opiniões expressas nos artigos as de seus autores e não necessariamente as de O Comercialista nem das instituições em que atuam

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Atualidades

Ocupe Wall Street: Paranóia ou (Des)Mistificação? Um lapso de consciência no século XXI Por Bruno M. Bensal Em 17 de setembro de 2011, iniciou-se em um parque em Manhattan, próximo à Wall Street, um movimento de ativistas contra os excessos dos atores financeiros de Nova Iorque – réus, para estes ativistas, da crise econômica advinda do boom especulativo imobiliário e da falta de regulação no mercado de capitais, sobretudo no que pertine aos derivativos. O movimento tomou corpo, de sorte que se espalhou pelos Estados Unidos da América, passando por Portland, Los Angeles, Chicago e mesmo reverberando no exterior, como em manifestações ocorridas em Londres e em Madrid. A popularidade do movimento inclusive gerou arrecadação de fundos para sua subsistência, de sorte que apenas em Nova Iorque, a estimativa é que as doações tenham ultrapassado os US$ 300 mil. Sinal de que não é essa uma paranóia americana. Este artigo tem por escopo demonstrar que um mercado desregulado não é necessariamente a melhor forma de atender às demandas do sistema capitalista, sobretudo devido às suas crises cíclicas. Ressalta-se aqui a importância de uma adequada regulação do mercado financeiro. Embora aos olhos de um jurista a constatação da necessidade de uma regulação mínima possa parecer trivial, tal reivindicação tomou corpo no movimento que dá nome ao presente texto. Ainda que a regulamentação dos mercados seja uma tarefa para, dentre outros, economistas, juristas e políticos, os protagonistas da sua efetiva implementação são, principalmente, esses últimos, a quem os analistas dão o nome de policy makers. Como explica John Taylor – economista, professor de Stanford e Ex-Subsecretário do Tesouro norte-americano –, para quem a crise financeira é culpa do governo norte-americano, “a causa primária da crise foi o período de excessivo relaxamento da política monetária por parte das autoridades do Fed [Federal Reserve], durante o qual a taxa dos Fed funds* foi mantida em níveis muito baixos”. Veja-se que Dick Cheney, vice-presidente norte-americano, ao ser questionado em janeiro de 2009 sobre a crise financeira, disse que “ninguém, em lugar algum, foi suficientemente atento para percebêla”. Embora se discuta a credibilidade do argumento, é um ponto que se torna evitável com uma regulação prudencial consistente.

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A crise financeira que ensejou o Ocupe Wall Street mostrou que a regulação prudencial é caminho que foi além da opinião dos analistas das diversas áreas. Passou a ser um sentimento presente no âmago popular. Em entrevista à BBC, um senhor disse que, “quando as pessoas se perguntam como será o amanhã no maior país do mundo, algo está errado”. Isto é, a crise financeira retirou o caráter weberiano de previsibilidade e segurança ao qual estavam habituados os norte-americanos. Weber fala em um direito racional calculável: tudo o que se demonstrou não ser o mercado de derivativos, por exemplo. Um direito racional calculável só é possível, em matéria de mercado de capitais – o núcleo duro da crise financeira – se o regulador compreender o funcionamento do mercado e adequar as normas às suas nuanças. Do outro viés, entrevistando-se um funcionário de Wall Street, vê-se que o feedback é unicamente no sentido de “obedecer ordens”, independentemente de sua racionalidade ou não. Como disse à BBC o entrevistado, o sentimento era de que “se você veste uma gravata, é visto como nazista. Você trabalha duro e ganha por isso”. Embora não se possa condenar um indivíduo pela lógica individualista, não se deixa de notar que se trata de uma visão possivelmente típica da cultura profissional de Wall Street: o liberalismo puro e desenfreado. Todavia, mais nos impressionou Newt Gingrich, pré-candidato republicano. O referido político entende que “os protestos são resultados de um sistema educacional ruim, que ensina idéias estúpidas”. Com todo respeito ao candidato, parece que sua visão que ignora a insatisfação das pessoas. Não se defende aqui a plena razão popular e a ótica da extrema esquerda, mas do ponto de vista puramente técnico, Gingrich olvidou que a confiança dos potenciais players nos policy makers é o núcleo duro da estabilidade de um mercado. Se as pessoas não confiam na política de mercado, corre-se o risco de gerar situações indesejadas como as “corridas bancárias. Ademais, um mercado desregulamentado e sem imposição de responsabilidades fere qualquer intenção de segurança jurídica, elemento essencial na ótica investidora. Se você cria, como ocorreu, uma cadeia de derivativos em que se perde quem é a parte

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Atualidades obrigada, em cada momento, ao adimplemento da obrigação contraída, viabilizam-se os inadimplementos. Crê-se que não é necessário enveredar grandes esforços teóricos para demonstrar que o inadimplemento massivo não é saudável para a economia de um país. Corroborando a necessidade de uma regulamentação com as devidas sanções, Nelson Abrão leciona que “a economia financeira e de ordem bancária funcionam conjuntamente, revelando os aspectos essenciais de uma regulação voltada para os limites do risco e imposição da responsabilidade. A economia não pode funcionar sem a intervenção do Estado no regramento do mercado, cuja regulação pode incidir em maior ou menor intensidade, mas é indispensável”. Parece-nos que é justamente isso que os ativistas do Ocupe Wall Street desejam: imposição de responsabilidade. Do contrário, não se estaria à corrida para análise das conseqüências da implementação do último acordo da Basiléia, intitulado Basiléia III, uma nova tentativa de acharse o mesotes aristotélico entre os interesses contrapostos de banqueiros e órgãos supervisores. Anote-se, a culpa não é do sistema bancário em si, mas da desregulamentação que se operou nos Estados Unidos da América. A promoção dos canais que interconectam os agentes econômicos deficitários e superavitários na dialética recursospoupança, respectivamente conforme a necessidade desses agentes, deve ser aperfeiçoada e induzida. Porém, deve sê-lo através de regulação consistente, eficiente. É dizer, a intermediação financeira “interliga” os agentes de interesses contrapostos. O que se deve desmistificar é a forma com que se interliga, atribuindo responsabilidades e sanções – se for o caso –, às condutas reguladas. Não é, todavia, a abundância normativa que resolverá o problema de Wall Street. O histórico de forte rerregulação em pós-crise é pendular: vem se repetindo na história. O que se necessita é que as regras sejam levadas a sério numa lógica trifásica: a) definam-se as regras; b) não as mudem durante o jogo e, c) apliquem-nas. Assim, a insatisfação dos ativistas de Wall Street se mitigaria e o mercado poderia dormir em paz, sem os reveses conservadores de que se precisará na perspectiva adotada pela Basiléia III. “Na crise do subprime, diga-se de passagem, ficaram evidentes as distorções trazidas pelas políticas governamentais de incentivo à aquisição de residência. Desse modo, é necessário bom senso para evitar que o pêndulo incline-se em demasia para o lado da superregulação”, alerta-nos Gustavo Loyola. Assim, não há estupidez na reação das pessoas. Há desconfiança. E há necessidade de se desmistificar o mercado. É evidente que se opera com a expertise de uma lógica de apostas – em seara de

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investimentos, v.g. – mas não se trata de uma aposta que deva ser feita imprudentemente, é dizer, às cegas, sem regulação. Se é um jogo, para que não se insurjam os seguidores de Nash, deve haver regras.

Referências Bibliográficas ABRÃO, Nelson. Direito Bancário. 13ª Edição. BARBOSA, Fernando de Holanda. Política Monetária: Instrumentos, Objetivos e a Experiência Brasileira. Texto disponível no endereço eletrônico: http://www.fgv.br/professor/fholanda/Arquivo/Polimo ne.pdf. Sítio consultado em 23/10/2011). GARCIA, Marcio; GAMBIAGI, Fabio (orgs.). Risco e Regulação. Rio de Janeiro. Campus. 2010. EIZIRIK, Nelson et alli. Mercado de Capitais: Regime Jurídico. Rio de Janeiro. Renovar. 2011. * Fed Funds: Os Fed funds são a principal taxa de juros dos EUA, por meio da qual as instituições financeiras desse país realizam a intermediação financeira; isto é, emprestam ou tomam emprestado capital ou outras formas de recursos no mercado interbancário. A taxa do Federal Funds Rate (Fed funds) é definida pelo cálculo de demanda dos fluxos intermediadores. O Comitê de Política Monetária, órgão do FED (Federal Reserve System) define uma meta para o Federal Funds Rate e procura controlar a política monetária a fim de que a taxa do Fed funds se adéqüe à meta pré-estabelecida. No Brasil, trata-se de papel que incumbiria ao Banco Central. Incumbiria porque “a política monetária depende do regime cambial adotado pelo país. Existem dois tipos de regimes: o de câmbio fixo e o regime de câmbio flutuante. No regime de câmbio fixo o banco central fixa a taxa de câmbio, comprando e vendendo a moeda estrangeira a um preço estipulado previamente. No regime de câmbio flutuante, o banco central deixa que o mercado de câmbio estabeleça o preço da moeda estrangeira. No regime de câmbio fixo o Banco Central expande (contrai) a base monetária através da compra (venda) das reservas internacionais. Neste tipo de regime a política monetária é passiva, pois o banco central não pode tentar, de maneira sistemática, conduzir operações de mercado aberto, para fixar a taxa de juros.

Bruno Marques Bensal é graduando no 4º ano de Direito da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Atualmente realiza pesquisas na área de Direito Comercial, com foco em Contratos Comerciais, Princípios de Direito Comercial e Direito Privado; e Direito e Economia. bruno.bensal@hotmail.com *As opiniões expressas nos artigos são as de seus autores e não necessariamente as de O Comercialista nem das instituições em que atuam

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Doutrina

Direito Concorrencial e Direito Industrial Breve análise da interface entre Direito Concorrencial e DireitoIndustrial Por André Rossetto Daudt O direito industrial guarda uma relação íntima com o direito da concorrência, entretanto, tal relação não constitui algo estático, posto que a maneira como as duas matérias se relacionam tem variado com o tempo. Este artigo pretende analisar, sem esgotar, os pontos de contato entre ambas as matérias, especialmente com relação à interpretação atual da primeira em face da segunda. Calixto Salomão Filho ressalta que, em seu surgimento, o direito industrial constituía verdadeiro monopólio legal, um privilégio, umaexceção contra qualquer regra concorrencial. Isso se demonstra na Idade Média, em que cada guilda era protegida ao receber o direito de exclusividade para a fabricação de determinado produto. O mercantilismo ainda reforça tal ideia, já que as marcas e patentes eram utilizadas como uma maneira de o Estado certificar a qualidade de determinados produtos. Através das profundas mudanças introduzidas pela Revolução Industrial, se deram transformações na organização dos meios de trabalho e produção. O Estado se viu fortalecido. No âmbito do direito concorrencial se evidencia a quebra dos monopólios das guildas e a ascensão de princípios como os da livre iniciativa e da liberdade de concorrência. Isso se refletiu sobre uma alteração na fundamentação e no regime jurídico da propriedade industrial. A patente deixou de proteger as guildas para se tornar um meio de incentivo à criatividade e à inovação. Por outro lado, a marca passa a diferenciar os produtos dos diversos empresários, atuando como um sinal distintivo. Ainda assim, continuou sendo um privilégio, não mais outorgado pelo Estado, porém decorrente da ideia inédita. Dessa forma, permanece a visão de que a propriedade industrial constitui derrogação das regras concorrenciais. Tal situação começa a mudar com a introdução de uma nova concepção do direito da concorrência. Com a promulgação do Sherman Act, nos Estados Unidos, se passa a defender a instituição da concorrência, e não mais a figura do concorrente, visto por si só. O direito industrial adquire relevância justamente por constituir meio de proteção e estímulo a concorrência, respeitando o interesse público, de maneira que fica superada a ideia de que constitui exceção à concorrência.

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Remédio Marques faz tal análise do direito industrial sob a ótica do interesse público através de dois sistemas que atuam simultaneamente: (i) um sistema externo ao direito industrial, que seria o direito da concorrência, e (ii) um sistema interno, a função concorrencial das marcas e patentes. Consequência relevante dessa mudança de paradigma é que as marcas e patentes deixam de ser vistas como privilégio do titular, para se tornarem ferramenta importante do direito concorrencial (sistema interno). As marcas, ao diferenciar produtos, exercem tal função ao informar o consumidor. Por outro lado, as patentes estimulam e remuneram a criatividade, além de coibirem o freeriding. O direito industrial passa a servir de maneira instrumental. Assim, hoje é tranquilo afirmar que a matéria é permeada pelo direito concorrencial. Prova da concepção de Remédio Marques também pode ser encontrada na própria legislação brasileira sobre o assunto. Primeiramente, a definição de patentes e marcas é afetada, o artigo 15 da Lei 8.884/94, que trata do direito concorrencial, explicita que os monopólios legais estão sujeitos a aplicação das normas concorrenciais (sistema externo). Também se nota tal alteração ao analisarmos os requisitos de patenteamento da Lei 9279/96 (Lei da Propriedade Industrial – LPI), que são três: novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Ressalta-se a atividade inventiva, que não constituía requisito na lei anterior, e importa importante passo para a análise do direito industrial como disciplina permeada pelo direito concorrencial. A introdução de tal requisito salienta a necessidade de um esforço inventivo por parte do inventor, para que a patente realmente estimule a inovação, ao premiar e remunerar o investimento necessário. A concessão de tais direitos de exclusividade, que, como foi visto, perderam o caráter de privilégio, constitui a satisfação de um interesse público (estímulo ao progresso tecnológico, promoção da concorrência e acesso a informação) através da promoção de um interesse particular de possuir a exclusividade sobre a utilização da invenção ou da marca. Entretanto, deve-se analisar a hipótese em que o exercício de tais direitos é realizado quando

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Doutrina guiado por interesses egoísticos, que resultem em atos abusivos e contrários a concorrência. Calixto aponta que no direito industrial clássico a disciplina sancionatória das patentes e marcas se explicita principalmente pela nulidade do registro e caducidade da patente. Tais sanções tem caráter privatista e partem do pressuposto de que a marca é um privilégio. Essa visão que baseia a propriedade industrial na proteção de interesses privados subsiste, mas foi complementada por um regime jurídico que previne e sanciona práticas que vão de encontro a concorrência, que, segundo Remedio Marques, persegue interesses públicos. Assim, surge a necessidade de interpretar o direito industrial diferentemente, a compreensão concorrencial é importante pois passa a analisar as questões de validade sob a ótica do abuso do direito. Com base nesta interpretação podem-se diferenciar outros dois tipos de sanção: (i) o primeiro é o licenciamento compulsório para casos de abuso de direito em que o direito de exclusivo é desconsiderado devido à conduta abusiva, decorrente do descumprimento de uma função ativa de fornecimento. Para tanto, a conduta só é ilícita se o agente possuir poder no mercado, já que é possível que, apesar da titularidade da patente, não exista poder no mercado; (ii) o segundo decorre de uma função passiva de impedir a dominação total dos mercados a partir da exploração dos direitos de exclusivo, e, por isso, para a configuração do ilícito o poder no mercado não é requisito. Dentre as fontes que podem levar ao abuso destes direitos de exclusivo recebe grande destaque o efeito potencializador que as patentes e marcas possuem sobre as concentrações. Pode ocorrer de em alguns setores do mercado a gigantesca maioria das marcas ou patentes restarem sob o poder de um mesmo grupo econômico, gerando barreiras à entrada no mercado, tanto em custos de publicidade (no caso de concentração das marcas), como em custos de investimento ou licenciamento (no caso de concentração de patentes). Isso constituiria questão estrutural do direito concorrencial. Por outro lado também existem as condutas que podem levar a sanções baseadas no desrespeito ao direito da concorrência. As condutas podem estar relacionadas principalmente com dois fatores, (i) os contratos de licenciamento, que podem instituir condições contratuais que culminem na instituição de um poder abusivo por parte de um grupo no mercado, e (ii) a compra ou o pedido de patenteamento das mais diversas tecnologias do mercado, visando impossibilitar a atuação de concorrentes, são as chamadas patentes defensivas, pois servem unicamente para defender determinada posição ao impedir progressos que possam ameaçala. Assim, é importante salientar através desta

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breve análise da relação entre direito concorrencial e direito industrial que, diferentemente da ideia de que uma constitui exceção à outra, o direito industrial é afetado pelo concorrencial sob dois aspectos. O externo, que é utilizado quando da constatação de exercício abusivo do direito de exclusivo, e o interno, que caracteriza a própria função do direito industrial para promoção do direito concorrencial. Referências Bibliográficas REMEDIO MARQUES, J.P.. Propriedade Intelectual e interesse público. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 79, p. 293-354, 2003. SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito Concorrencial – as condutas. 1 ed., p. 126-143, 2007.

André Rossetto Daudt é graduando do terceiro ano da Faculdade de Direito da USP e estagiário da área jurídica da Microsoft andre.daudt@hotmail.com *As opiniões expressas nos artigos são as de seus autores e não necessariamente as de O Comercialista nem das instituições em que atuam

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Comissão de Valores Mobiliários

Comissão de Valores Mobiliários Uma breve introdução Por Rodrigo Fialho Borges

Histórico de Criação A crescente inflação do final da década de 1950 e a Lei da Usura favoreciam a preferência pelos investimentos em imóveis em detrimento das aplicações em títulos públicos ou privados, i m p e d i n d o o desenvolvimento de um mercado mais ativo e movimentado. Esse panorama começa a mudar em meados da década de 1960, no momento em que são editadas diversas leis que reestruturaram a economia e o sistema financeiro brasileiro. No Banco Central, foi criada a Diretoria de Mercado de Capitais, cujas funções são exercidas hoje pela CVM. Ademais, foram criados alguns incentivos à aplicação no mercado acionário, como o Fundo 157, que permitia o uso de parte do Imposto de Renda para a aquisição de quotas de fundos administrados por instituições financeiras. Essas medidas resultaram no grande crescimento do volume de investimentos no mercado acionário, com o recrudescimento instantâneo da demanda por ações por parte dos investidores, o qual não foi acompanhado pelas emissões das companhias. Diante disso, entre o final de 1970 e julho de 1971, houve uma forte onda especulativa na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, as cotações não paravam de subir. A partir de julho, investidores esclarecidos, a fim de realizarem altos lucros, começaram a vender seus papéis. Ao mesmo tempo, contudo, novas emissões chegavam ao mercado. Esses fatores, sem dúvida, causaram um movimento de vertiginosa baixa nas cotações, refletido pela desvalorização de 70% do índice IBV, o que resultou em um mercado deprimido cuja recuperação só começou quando novos incentivos ao mercado acionário foram implementados pelo

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governo. Dentro desse novo quadro de recuperação do mercado, foram introduzidas a Lei nº. 6.404/76 (Lei de Sociedades Anônimas) e a Lei nº. 6.385/76, que criou a C V M , v i s a n d o à regulamentação e desenvolvimento do mercado de capitais e à fiscalização das Bolsas de Valores e das companhias abertas. Importante ressaltar, enfim, que embora a criação da CVM tenha se dado no ano de 1976, suas origens nos remetem às discussões ocorridas na década de 1930 sobre as formas de se evitarem desastres econômicos, como o crash da Bolsa de Nova Iorque. Nos Estados Unidos, essas discussões resultaram no Securities Act e no Securities Exchange Act, que criou a Securities and Exchange Commission, a qual inspirou a estruturação da CVM no Brasil. Natureza e Estrutura O art. 5º da Lei nº. 6.385/76 dispõe o seguinte: Art. 5o É instituída a Comissão de Valores Mobiliários, entidade autárquica em regime especial, vinculada ao Ministério da Fazenda, com personalidade jurídica e patrimônio próprios, dotada de autoridade administrativa independente, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes, e autonomia financeira e orçamentária.

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Comissão de Valores Mobiliários Dessa redação, é possível – embora desafiador – estabelecer os quadros da natureza jurídica da CVM. Trata-se, como se extrai da letra do dispositivo legal, de uma autarquia em regime especial. A Professora Maria Sylvia Zanella di Pietro conceitua autarquia como “a pessoa jurídica de direito público, criada por lei, com capacidade de autoadministração, para o desempenho de serviço público descentralizado, mediante controle administrativo”. Disso, extrai-se que a autarquia seria uma entidade da Administração Indireta que exerce um serviço determinado. A CVM seria, todavia, uma autarquia em regime especial. Ainda segundo a Professora, tal regime especial viria definido nas leis instituidoras, dizendo respeito, em regra, à maior autonomia em relação à Administração Direta; à estabilidade de seus dirigentes; e ao caráter final das suas decisões, que não são passíveis de apreciação por outros órgãos ou entidades da Administração Pública. As autarquias em regime especial revelariam, portanto, um maior poder autoadministrativo que as autarquias comuns. O que se discute, no entanto, é se a CVM, em virtude de seu regime especial, caracterizaria uma agência reguladora, ponto no qual a doutrina diverge. O Professor Egon Bockmann Moreira entende que não, pois haveria um vínculo funcional e gerencial muito forte com a Administração Direta. Diferentemente, o Procurador Federal da CVM Fabrício Tanure, diz que a CVM detêm todos os elementos e características inerentes a uma agência reguladora independente. Quanto à estrutura, a CVM, com sede no Rio de Janeiro e Superintendências Regionais em Brasília e São Paulo, conta com um Presidente e quatro Diretores nomeados pelo Presidente da República, os quais constituem o Colegiado da Comissão, que define políticas e estabelece práticas a serem implantadas pelas Superintendências, instâncias executivas. Fonte: http://www.matrizdesenho.com.br/pt/veja/

Fonte: http://veja.abril.com.br/busca/resultado-capas.shtml?Vyear=2011

Atuação De início, ressalte-se que a CVM tem competência para disciplinar e fiscalizar a atuação dos diversos integrantes do mercado. Cabe a ela, ainda, um poder normatizador que abrange as matérias referentes ao mercado de valores mobiliários, o qual se dá por meio das suas Instruções e Deliberações. O Art. 8º da Lei nº. 6.385/76 enumera as competências da Comissão. Contudo, de maneira geral, podemos dizer que compete à CVM: (i) o registro de companhias abertas; (ii) o registro de distribuições de valores mobiliários; (iii) o

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credenciamento de auditores independentes e administradores de carteiras de valores mobiliários; (iv) a organização, o funcionamento e as operações das bolsas de valores; (v) a fiscalização da negociação e intermediação no mercado de valores mobiliários; (vi) a administração de carteiras e a custódia de valores mobiliários; (vii) a suspensão ou o cancelamento de registros, credenciamentos ou autorizações; (viii) a suspensão de emissão, distribuição ou negociação de determinado valor mobiliário ou o decreto de recesso de bolsa de valores. O registro permite a publicação de informações relevantes (princípio da transparência) para o investidor, que poderá ter sua atuação no mercado influenciada pela periódica edição dos chamados fatos relevantes. Cabe à CVM fiscalizar a prestação dessas informações e seu conteúdo. A lei atribui à CVM, outrossim, a competência para julgar e sancionar irregularidades apuradas no mercado. Nesse sentido, a Comissão pode instaurar inquérito administrativo para recolher informações que possam embasar a acusação, a partir da qual é garantida a ampla defesa. O art. 11 da Lei 6.385 dispõe sobre as penalidades cabíveis aos infratores, as quais vão da simples advertência à inabilitação. Ademais, são considerados crimes contra o mercado de capitais a manipulação de mercado, o uso indevido de informação privilegiada e o exercício irregular de cargo, profissão, atividade ou função, no sentido de tutelar a expectativa do bom funcionamento do mercado. Valores Mobiliários Ao tratar da CVM, falam-se, inevitavelmente, nos chamados valores mobiliários, conceito amplo que talvez não se mostre tão claro. Em uma conceituação simplista, é comum definir valor mobiliário como o título de investimento que a sociedade anônima emite para a obtenção de recursos. Na definição de Waldirio Bulgarelli, seriam “títulos ou papéis que refugindo ao estrito âmbito da circulação entre particulares, num sentido individual, atuam num âmbito maior (Bolsas e Balcão), emitidos em massa, com valores idênticos e em geral a longo prazo, sujeitando-se, por isso, não só em relação à sua emissão como a sua própria circulação, vinculados ao emissor, normalmente uma sociedade anônima”. Há quem aproxime o conceito de valores mobiliários às securities do Direito norteamericano, mas o professor Haroldo Malheiros

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Comissão de Valores Mobiliários Duclerc Verçosa afirma que essa interpretação não pode ser extraída da lei brasileira, visto que o nosso legislador nunca pretendeu um conceito tão abrangente. No art. 2º, o legislador estabelece os valores mobiliários sujeitos ao regime da Lei 6.385/76, os quais são enumerados de maneira restrita, pouco abrangente. O Conselho Monetário Nacional, usando de sua competência, baixou duas resoluções (Resolução nº. 1.723/90 e Resolução nº 1.907/92) que ampliaram a aplicabilidade da lei a outros valores não contidos no art. 2º. Dessa forma, o Professor Verçosa entende que o conceito de security norte-americano é muito mais abrangente que o de valor mobiliário. Disso, resultaria que, no Brasil, inexiste proteção especial para os valores mobiliários que não estejam devidamente especificados em nossa legislação. Propõe-se, assim, a reparação dessa lacuna legislativa, no sentido de tornar o valor mobiliário algo ainda mais amplo que a security, visto que o investidor brasileiro é mais vulnerável que o americano e que o nosso sistema de publicidade de informações é falho.

Rodrigo Fialho Borges é graduando do terceiro ano da Faculdade de Direito da USP e escrevente técnico do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. rodrigo.fialho.borges@gmail.com *As opiniões expressas nos artigos são as de seus autores e não necessariamente as de O Comercialista nem das instituições em que atuam

Referências Bibliográficas DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2011 BARROS, Maria Fernanda Lima da Rocha. O papel da legislação no desenvolvimento do Mercado de Capitais Brasileiro – reflexões sobre a eficácia do sistema de regulação de valores mobiliários. in http://www.bmfbovespa.com.br/Pdf/Monografia MariaF.pdf, 2004, p. 13 TANURE, Fabrício. A responsabilidade administrativa no mercado de valores mobiliários, i n www.portaldoinvestidor.gov.br/Portals/0/Juridico /Entrevistas_artigos/Tanure2003.pdf, 2005 BULGARELLI, Waldirio. Os Valores Mobiliários Brasileiros como Títulos de Crédito. Revista de Direito Mercantil. v. 37, 1994 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Notas sobre o regime jurídico das ofertas ao público de produtos, serviços e valores mobiliários no direito brasileiro – uma questão de complementação da proteção de consumidores e de investidores. Revista de Direito Mercantil. v. 105, 1997,

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Perfil

Perfil: Otávio Yazbek Em entrevista exclusiva a O Comercialista, o Diretor da Comissão de Valores Mobiliários – CVM, Otavio Yazbek, revela-nos como decidiu qual carreira seguir, discorre sobre a importância da São Francisco, opina acerca do papel do estágio, e conversa, ainda, sobre mercado de capitais, BNDES, estruturas regulatórias, crise de 2008 etc.

Por Thyago Pereira Trairi Formação: Direito (graduação na FADUSP, em 1995, e doutorado em Direito Econômico, também na FADUSP, em 2005). Cargo atual: Diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Jurista que mais admira: San Tiago Dantas. Livro que todo estudante de direito deve ler: creio que a formação de um estudante de direito, hoje em dia, deve ser muito mais aberta do que se pensava no passado. E acho que as leituras não técnicas cumprem um papel importante nisso. Mas se fosse pra me restringir a livros de direito, e considerando as deficiências que vejo no dia-adia, eu pensaria em algo como a Teoria Geral do Direito Civil, de Carlos Alberto da Mota Pinto. Por mais que os advogados de empresa por vezes insistam em achar o contrário, Direito Civil é o único instrumento realmente essencial com que lidamos em muitos casos. Como se mantém informado: jornais, revistas, Internet... Frase marcante: não tenho propriamente uma frase marcante, sempre acho que a tentação de usar uma frase de efeito ou que sintetize muita coisa é uma espécie de vício. Mas gosto de um mote de Antonio Gramsci, que está, se não me engano, naquele livro sobre os intelectuais, que li há muito tempo: “pessimismo do intelecto, otimismo da vontade”. Não é a nossa adesão a um projeto que deve nos fazer abrir mão de uma perspectiva mais crítica. Essa perspectiva, aliás, é que muitas vezes nos ajuda a antecipar problemas e pensar em estratégias.

O Comercialista – Em qual fase da faculdade descobriu com que área do Direito gostaria de trabalhar? Como foi essa descoberta? Yazbek – foi no terceiro ano que eu comecei a me interessar mais por duas disciplinas, comercial e administrativo. Conhecer direito econômico, no quinto ano, foi marcante pra mim também. Acho que eu fui me direcionando bem aos poucos para o direito empresarial – até o fim da faculdade eu tive muitas dúvidas. E só fui trabalhar com societário, de maneira mais direta, depois de formado.

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O Comercialista – Como a maioria dos estudantes de hoje, também enfrentou o dilema entre prestar concursos públicos e advogar? Yazbek – não. Eu nunca pensei seriamente em concursos, pra falar a verdade. Só imaginei que eles poderiam ser uma alternativa durante um curto período, pouco depois de formado, quando eu me senti meio frustrado com o andamento das coisas. Aí, logo depois, veio o convite pra trabalhar na antiga Bolsa de Mercadorias & Futuros, a BM&F, em um momento em que se estava começando a

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Perfil implementação de vários projetos interessantes. Cheguei lá, envolvi-me em uma série de discussões interessantes e me esqueci daquela possibilidade. O Comercialista – Qual a trajetória profissional mais adequada para quem sonha um dia ocupar o cargo de Diretor da Comissão de Valores Mobiliários CVM? Yazbek – as trajetórias dos diretores da CVM são muito diferentes, mesmo porque não lidamos com um único tema. Não temos nenhuma separação por assuntos, mas temos pessoas com especializações distintas, diretores com mais foco em questões contábeis, em matéria societária ou em indústria de intermediação e produtos financeiros. Varia muito. Creio que a minha indicação foi, de alguma forma, ligada às minhas atividades na Bolsa, que eram de regulação e de autorregulação, e ao meu livro, que trata de regulação financeira. O Comercialista – Dos tempos de graduando aos dias de hoje, alguma coisa mudou na forma como você enxerga o Largo de São Francisco? Yazbek – sim. Mas essas mudanças estão relacionadas não tanto à São Francisco, aos seus defeitos e qualidades, mas talvez muito mais ao desenvolvimento do mercado brasileiro. A São Francisco, parece-me, ainda ocupa uma posição de destaque, por uma série de motivos, mas acho que outras escolas, no Brasil todo, começaram a ocupar mais espaço, provendo profissionais para as atividades jurídicas. É fruto da própria demanda. E aí eu acho que é importante pensar em qual deve ser o papel da São Francisco nesse novo mundo – muitas das nossas antigas imagens talvez não sejam mais adequadas hoje. O Comercialista – Acredita que a São Francisco “parou” no tempo e não se atualizou frente às novas exigências dos mercados? Yazbek – acho que não é correto dizer que a São Francisco tenha parado. O problema é mais amplo. A primeira entrevista de vocês foi com o Professor Faria. Uma das matérias mais impressionantes pra mim, quando do meu doutorado, foi Metodologia do Ensino Jurídico, com o Faria. Ela determinou muito a minha forma de ver essa relação entre a academia e as demandas da vida fora dela. Acho que temos alguns vícios de origem, num certo bacharelismo, na valorização de certos formalismos, que, em um dado momento, impediram que a produção acadêmica em direito acompanhasse todas as demandas de uma sociedade em rápida mutação – e isso vale para direito empresarial como vale também para a discussão sobre direitos humanos. O San Tiago Dantas antecipou isso há muito tempo. O Alberto Venâncio Filho, no seu Das Arcadas ao Bacharelismo, também. Vejo vários subprodutos disso: um deles é que os advogados passaram, ainda na década de 60, a

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ocupar um espaço cada vez menor na formulação de políticas públicas. Outro subproduto é que os grandes escritórios de advocacia, uma realidade relativamente nova no Brasil, ocuparam um papel de mais destaque, esvaziando-se a capacidade da universidade de lidar com questões de ponta. E isso não quer dizer que os problemas se resolveram, porque a grande advocacia empresarial não produz propriamente doutrina! Quantos livros existem sobre mercado de capitais? Porque é tão difícil, quando nos deparamos com problemas societários concretos, encontrar respostas ou caminhos a seguir a partir da doutrina? Porque a maior parte dos autores que escreve sobre direito bancário se limita a falar em “contratos bancários”? Tenho ficado com a impressão de que isso está mudando – em conversas mais recentes com professores, da São Francisco ou de outras faculdades, tenho visto que eles acompanham as discussões atuais sobre regulação de mercado e participam de debates avançados. Se isso for verdade, esse movimento deve, aos poucos, começar a se refletir na produção acadêmica e mesmo nos currículos universitários. O Comercialista – Estágio: quando e por quê? Yazbek – Fiz estágio e achei importante para a minha formação. Mas muita gente séria questiona esse modelo. Os primeiros anos de advocacia, de qualquer maneira, têm muito de formação, de modo que talvez o estágio não faça tanta falta e que se possa pensar em uma formação mais completa. Realmente não tenho uma opinião definida sobre o tema. O Comercialista - Acredita que em pouco tempo o mercado de capitais brasileiro irá desempenhar o papel que hoje ainda é exercido pelo BNDES? Qual deve ser a função de cada um? Yazbek – isso seria muito importante. Há limites para que o BNDES mantenha, em muito grande extensão, seu papel de financiador de mais longo prazo da economia brasileira. E os bancos não tendem a assumir essa função também, porque esse não é um financiamento tipicamente bancário. Além disso, a tendência a uma progressiva queda das taxas tende a tornar a dívida pública menos atrativa. Há um conjunto de fatores que leva a crer que a saída para financiar investimentos de mais longo prazo, inclusive em infraestrutura, reside no mercado de títulos de dívida corporativa no Brasil (basicamente o mercado de debêntures). E existem várias iniciativas, públicas e privadas, hoje, para eliminar as distorções que impedem o desenvolvimento desse mercado. O Comercialista - Qual o maior obstáculo para o

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Perfil desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro? Taxa de juros? Tributação? Yazbek – Aqui, e tendo em vista a questão anterior, eu não falaria tanto em “mercado de capitais” em sentido muito amplo, mas mais em mercado de dívida mesmo. É uma combinação de fatores, na realidade. As taxas de juros muito altas atraem os investidores para os títulos públicos. A tributação, por vezes, gera distorções. Alguns desses empecilhos vêm sendo diminuídos, recentemente se alterou até a Lei das S/A para melhorar as condições para a emissão e a negociação de títulos de dívida. O Comercialista - Em A Riqueza das Nações, Adam Smith alega que as intervenções do Estado nos mercados tem como escopo beneficiar “grupos” considerados estratégicos para a acumulação de riquezas. No cenário econômico atual, a que “grupo” o governo tem dado maior atenção? Yazbek – não acho que seja verdade que as intervenções tenham sempre como escopo o benefício de determinados grupo. Há várias formas, na teoria econômica, de entender as atividades de regulação estatal e eu prefiro pensar que a regulação se destina a lidar com as falhas de mercado, ou seja, com aquelas situações nas quais o mercado não consegue funcionar de maneira eficiente. De qualquer forma, estou falando em regulação propriamente dita. Coisa distinta é a formulação de políticas públicas pelo Estado, onde se podem adotar medidas que beneficiam setores etc. Mas isso não é propriamente regulação. O Comercialista - Em entrevista a O Comercialista – outubro de 2011 -, o Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, José Eduardo Faria, afirmou que “a capacidade que o direito positivo tem de lidar com uma sociedade complexa se exauriu. As virtualidades do direito positivo sob a forma de códigos e de leis especiais se esgotaram”, o que teria levado o Estado a estimular um “processo de auto-estruturação social”. O senhor compartilha de tal concepção? Não estaríamos retornando a um discurso acerca da eficiência da mão invisível do mercado, porém com uma nova roupagem? Yazbek – eu concordo com a afirmação e acho que ela não corresponde a uma retomada do discurso sobre a “mão invisível” do mercado. Para mim, ela está muito mais relacionada à complexidade das sociedades contemporâneas e dos processos que nela ocorrem.

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O Comercialista - Esse processo de “autoestruturação social” não teria sido um dos responsáveis pela progressiva desregulamentação financeira dos mercados nacionais, ocorrida principalmente nas décadas de 80 e 90, que culminou na crise de 2007/08? Yazbek – acho que não e acho importante não misturar as coisas. A progressiva desregulamentação financeira, em especial desde a década de 80, tem um histórico bastante específico, que tentarei apresentar de maneira muito simplificada. Ela está relacionada a alguns efeitos do surgimento do câmbio e das taxas de juros flutuantes, na década de 70, em razão do fim de Bretton Woods e das crises do petróleo, dentre outros motivos. Quando os agentes precisaram buscar novas formas de se proteger de riscos econômicos, da volatilidade inerente a esse novo mundo, surgiram os derivativos financeiros. E então os reguladores precisaram permitir o uso desses produtos ou a adoção de novas formas de organização para as atividades financeiras. Os avanços do instrumental matemático e da tecnologia da informação aumentaram ainda mais a complexidade desses novos produtos, que não cabiam mais nos antigos moldes conceituais, e assim surgiram grandes zonas cinzentas ou não regulamentadas. Lógico que, ao lado disso, tem todo um discurso de desestatização típico da década de 80 também, com uma carga ideológica muito grande. Mas acho que essa realidade não se confunde necessariamente com aquela descrita pelo professor Faria. O Comercialista – É possível desenvolver uma estrutura regulatória que consiga acompanhar a dinâmica do processo de inovação financeira? Não seria esse gap entre as inovações do mercado e a resposta dos agentes regulatórios um eterno “estopim” para novas crises? Yazbek – acho muito difícil conseguir acompanhar permanentemente a dinâmica dos processos de inovação. E acho, também, que esse tipo de limitação se encontra sim, ainda que indiretamente, na origem d a s n o va s c r i s e s . N ã o qu e a s f a l h a s d e regulamentação, que sempre existem, sejam, por si, a causa das crises. Mas o fato é que sempre existe aquilo que a IOSCO (um órgão internacional que congrega os reguladores de valores mobiliários) chamou de “perímetro regulatório”, sempre se pode desenvolver produtos fora das competências formais dos reguladores, para “administrar” a incidência da regulamentação. E os reguladores de mercado, hoje, vêm precisando aprender a lidar com esse tipo de realidade.

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Perfil O Comercialista – Qual estrutura regulatória seria mais adequada ao mercado financeiro brasileiro: pequeno número de agências reguladoras com ampla competência ou grande número de agentes reguladores com competências restritas e específicas? Yazbek – O debate sobre as estruturas de regulação mais adequadas é muito contemporâneo: um número muito grande de reguladores gera conflitos tanto de racionalidade regulatória quanto de burocracias mesmo; um único regulador, como ocorre na Inglaterra, tende a privilegiar objetivos restritos, mesmo quando os mercados que estão sob ele funcionam com lógicas diferentes – a escolha da destinação dos seus esforços tende a ser pouco eficiente; distribuir competências com base em mercados diferentes ou em diferentes tipos de instituições reguladas não funciona em um mundo complexo como o de hoje. Eu simpatizo com o chamado modelo Twin Peaks, em que as atividades de regulação se dividem entre um regulador “prudencial e sistêmico” e um “de condutas”, além da autoridade de defesa da concorrência. A competência é distribuída por tipo de falha de mercado. Já tive mesmo a oportunidade de defender que, desde 2001, quando se alargou a competência da CVM, nosso sistema passou a embutir uma espécie de Twin Peaks, ainda embrionário. O Comercialista - O senhor acredita que o DoddFrank Act – A Lei da Reforma Financeira Americana trará mudanças profundas no sentido de reduzir significativamente o “risco moral” e a crença de que há instituições too big to fail? Yazbek – eu acho que a implementação do DoddFrank ainda depende de muita coisa. Há muita regulamentação por ser promulgada, por diferentes reguladores, com muita pressão da indústria. E é uma regulamentação muito complexa, porque as mudanças que se deveria implementar no mercado americano, pelo Dodd-Frank, são estruturais e profundas. Acho que ainda é cedo pra dizer. O Comercialista - A crise financeira de 2007/08 despertou a consciência das autoridades financeiras sobre a necessidade da homogeneização internacional das estruturas regulatórias? Se sim, o que o Brasil tem feito nesse sentido? Yazbek – Sim. Boa parte das iniciativas nos fóruns globais diz respeito à necessidade de harmonização da regulamentação financeira e ao aumento das trocas entre diferentes reguladores. O mercado é global e regras muito diferentes estimulam que os agentes busquem os sistemas menos

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regulamentados. Os efeitos de uma quebra, a instabilidade, porém, afetam a todos. Temos, em especial na CVM e no Banco Central, participado das discussões de maneira bastante intensa e procurado identificar o que se tem que ajustar no nosso sistema. O Comercialista – Um conselho para quem está começando a carreira. Yazbek – Sendo muito pragmático, acho que o mais importante, hoje em dia, é se manter aberto ao mundo que nos rodeia – é importante ler muito, inclusive economia e ciências sociais, para ser um melhor profissional. E nessa mesma linha também é importante tomar muito cuidado com trabalhos mecânicos, muito repetitivos. É comum, para o advogado empresarial novo, ter que fazer um monte de coisas mais padronizadas. Mas é importante não ficar preso a isso.

Thyago Pereira Trari é graduando do terceiro ano da Faculdade de Direito da USP e estagiário da área de Direito Empresarial do Pinheiro Neto Advogados. thyago.trairi@usp.br *As opiniões expressas nos artigos são as de seus autores e não necessariamente as de O Comercialista nem das instituições em que atuam

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Direito e Economia

Direito e Economia Porque estudar Direito e Economia Por Fernando Nimer

O Editorial do primeiro número da revista “O Comercialista” aponta, citando o Prof. José Eduardo Faria, para a necessidade de busca de teorias jurídicas novas e mais adequadas à realidade econômica contemporânea, especialmente depois da crise econômica de 2008. Alerta ainda o editorial para a necessidade de busca de conhecimentos especializados em múltiplas áreas de conhecimento, de direito positivo a economia, finanças, contabilidade e outras disciplinas. Como compartilho do diagnóstico sobre o problema, pretendo sugerir que o estudo de Direito e Economia pode contribuir para a solução. Razões não faltam. O curso de graduação de nossa Academia já prevê a disciplina, assim como há outras oferecidas na pós-graduação. O tema não é novo, promovido regularmente nos “Diálogos” de Direito e Economia coordenados pelos Profs. Rachel Sztajn (FADUSP) e Décio Zylberstajn (FEA). Por derradeiro, o estudo multidisciplinar de Direito e Economia traz novos argumentos e formas de pensar ao jurista, que podem ajudar a viabilizar a tão desejada construção de novas teorias jurídicas e o estabelecimento do “diálogo” com outras disciplinas. Ao longo do tempo, tenho percebido objeções a respeito da utilidade do estudo de Direito e Economia. Objeções são sempre bem vindas, integram o método científico. Um cientista deve definir uma teoria, testá-la e, imediatamente, submetê-la ao crivo de seus pares para verificação. Creio, entretanto, que algumas objeções ao estudo da disciplina originam-se do desconhecimento sobre a utilidade e a correta aplicação do método e das ferramentas oferecidas. Vejamos algumas objeções típicas e argumentos para rebatê-las. Objeção 1: Direito e Economia é “invenção” neoliberal norte-americana. Objeção não-científica, afinal, vivemos numa democracia. A origem liberal de uma teoria não deveria ser condição “científica” para seu descarte. É evidente que o estudo de Direito e Economia ganhou vigor no século XX com a Escola de Chicago e outras, que cunharam as expressões “law and economics” e “economic analysis of law”. Não se engane: Direito e

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Economia é disciplina bem mais antiga do que parece. Os professores Chiappin (FEA) e Leister (FGV) sugerem que um programa de Política e Direito como ciência tem três componentes fundamentais. Primeiro, que a entidade real de estudo é o indivíduo racional e autointeressado e que sua racionalidade é indicada no modelo de escolha racional. Segundo, que a heurística do programa supõe o uso de modelos que descrevem os aspectos relevantes, o método de agregação, as hipóteses, cálculos, critérios e medidas de escolha social, em particular, o critério de custo e benefício. Terceiro, que o problema fundamental é o estabelecimento das condições para a coordenação e convivência social, isto é, de cooperação entre indivíduos interagentes. Os autores indicam que a combinação destes instrumentos metodológicos pode ser utilizada para abordar o tema da Teoria do Estado. Nesse sentido, Locke, Bentham e outros já estudavam Direito e Economia. Direito e Economia aborda, entre outros, o problema dos incentivos. Bobbio utiliza os conceitos de “encorajamento” e “desencorajamento”, e explica que são técnicas de organização social desempenhadas pela “função promocional” do direito, cuja finalidade é promover e estimular condutas desejadas, e não somente reprimir as indesejadas. Conceitua “desencorajamento” como a operação na qual um agente influencia o comportamento não desejado do outro, atribuindolhe consequências desagradáveis, e define “encorajamento” como a operação que direciona o comportamento desejado do outro, atribuindo-lhe consequências prazerosas (pp. 14-16). Incentivo, portanto, é uma forma de estudar o efeito das leis, ou de sua mudança, no comportamento dos jurisdicionados. Os economistas chamam de incentivo o que Bobbio chama de encorajamento. Um incentivo leva ao equilíbrio quando não há mais ganhos em modificar as condições estabelecidas. A estrutura de incentivos deve ser organizada de forma a compelir o agente a produzir o maior benefício possível e a não agir de forma a causar prejuízos às demais pessoas. Como o agente responde a incentivos, as normas podem ser

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Direito e Economia entendidas como “preços” a pagar por determinado comportamento indesejado. Os indivíduos comparam benefícios e custos da ação / decisão (legal ou ilegal), assumindo os riscos daí decorrentes. A função de qualquer lei que pretenda maximizar o bem-estar geral é alterar a estrutura de incentivos para induzir comportamentos adequados naquela sociedade. Assim, a análise econômica do direito é uma forma útil para estudar incentivos e seus efeitos sociais, sendo plenamente aplicável ao estudo jurídico. Objeção 2: Direito e Economia exige conhecimentos avançados de matemática Certa vez um professor me confidenciou que alguns alunos usaram a expressão "Deus me livre" ao serem confrontados com a necessidade de conhecer um pouco de Matemática para viabilizar estudos multidisciplinares em economia, administração e contabilidade. Não é possível estudar essas disciplinas sem aplicar ao menos a função matemática de maximização. Maximizar significa buscar o melhor aproveitamento dos recursos disponíveis. Maximização é, portanto, essencial para se alcançar justiça e equidade. Em Direito, maximizamos o tempo todo. A diferença é que a Economia usa uma linguagem diferente, a Matemática, que pode ser útil para descrever – e simplificar – problemas complexos. Se, na Faculdade de Direito, temos capacidade de aprender línguas mortas para criar modelos de referência (“rebus sic standibus”, “abolitio criminis”, “bona est Lex si quis ea legitime utatur”), por que o “horror” a usar a linguagem numérica (que não está morta) aprendida na escola elementar? Minha experiência com o estudo de Direito e Economia indica exatamente o contrário. O máximo que precisei usar de Matemática foram equações de segundo grau e umas poucas regras básicas de maximização, que consomem poucas horas de aprendizado. Aliás, equação de segundo grau todos nós aprendemos, pois é pré-requisito para admissão no exame vestibular de nossa Academia. Outra objeção refere-se ao uso de modelos. Alguns objetam que modelos não são aplicáveis ao Direito, especialmente se matemáticos. Não vejo razão para distinguir modelos representados em uma linguagem (a Matemática) de outros apresentados em linguagem corrente (ex.: o bonus paterfamilia). Modelos são referências conceituais que tem valor por seu poder explicativo da realidade; a mera linguagem que os descreve não deveria ser motivo suficiente para indicar que um é útil e o outro não. Todo modelo tem a finalidade de identificar situações predeterminadas, sugerindo alternativas e soluções a partir de um conjunto de premissas. Um modelo é construído para auxiliar tomadores de

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decisão – juízes, administradores, advogados, devedores, credores – a entender e avaliar os incentivos existentes em uma determinada situação, sugerindo escolhas que “maximizam” o resultado. Todo modelo é uma simplificação da realidade, pois reflete a opção de privilegiar determinados aspectos de um problema em detrimento de outros. Eles servem para analisar novas relações entre problemas. O uso de categorizações e regras para adequar a conduta humana é bastante usual em Direito, mas, inexplicavelmente, a construção de modelos matemáticos não tem sido utilizada com o mesmo entusiasmo. Há inúmeros exemplos de uso de padrões e modelos no direito: o homem ativo e probo (Código Civil, art. 1011; Lei de SA, arts. 68 e 153), a boa-fé e os bons costumes (Código Civil, arts. 113, 122, 128, 187, 422, 1049, 1149; Lei de SA, arts. 2º, 97, 107, 135, 151, 159, 183, 201). Calabresi e Melamed apontam que, às vezes, os modelos podem não fornecer uma visão completa do problema analisado. Explicam que os pesquisadores do direito tendem a evitar sua construção, preferindo proceder de forma ad hoc, enfocando estudos de casos e observando as respostas. Calabresi e Melamed criticam o uso exclusivo dessa abordagem, apontando que tal conduta enfoca apenas um aspecto do problema, negligenciando correlações entre elementos que poderiam ser percebidas com o uso de modelos, uma vez que estes não geram categorias. Lembro, por exemplo, que um juiz deve se ater aos fatos e provas apresentados no processo judicial. Seu modelo de decisão, portanto, também é incompleto. Pode haver provas fora do processo que, se apresentadas, mudariam a decisão. Não é preciso abandonar os argumentos jurídicos tradicionais para agregar argumentos multidisciplinares, ou formas alternativas de representar problemas e suas soluções. Objeção 3: Direito e Economia é incompatível com conceitos jurídicos como equidade e justiça A objeção parece-me pouco científica também. Vejamos a questão sob a ótica dos incentivos. Do ponto de vista da Economia, uma lei deve ser capaz de minimizar os custos sociais. Do ponto de vista do Direito, uma lei deve ser capaz de uniformizar o tratamento dado a casos similares, alcançando justiça e equidade nas decisões. Sob a ótica combinada de Direito e Economia, importa analisar se a lei é capaz de induzir os agentes a tomar decisões que maximizem o bem-estar geral, isto é, se os incentivos estão corretamente alinhados. Justiça e equidade são, portanto, componentes do modelo de escolha racional, na

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Direito e Economia medida em que toda estrutura de incentivos deve buscar a repetibilidade de solução de conflitos para casos similares. Tal objetivo deve ser alcançado com o menor consumo possível de recursos, para que se possa atender à maior quantidade possível de jurisdicionados (novamente, a função matemática de maximização). Justiça e equidade são, portanto, os objetivos da estrutura de incentivos criada pelas leis. Não há incompatibilidade. Chamo a atenção para os estudos dos Profs. Kaplow e Shavell, da Escola de Direito de Harvard, que tratam da noção de justiça e equidade, e o eventual conflito (ou alinhamento) com regras de maximização de bem-estar social. Para não ficarmos somente nos autores norte-americanos (e confirmarmos, por engano, a objeção 1), convém mencionar a Escola Austríaca de Economistas, notabilizada por Ludwig Von Mises e Friedrich Hayek, que discutem a ação humana sob essa perspectiva mais ampla, assim como autores do Civil Law, como os Profs. Mackaay e Rousseau. Um exemplo prático Deixemos de lado as objeções teóricas e passemos à prática. O Código Civil de 2002, no artigo 1.336 (condomínio edílico), indica que os condôminos têm o dever de contribuir para as despesas do condomínio, na proporção de suas frações ideais. O parágrafo 1º indica que o condômino que não pagar a sua contribuição ficará sujeito aos juros moratórios convencionados ou, não sendo previstos, os de um por cento (1%) ao mês e multa de até dois por cento (2%) sobre o débito. Do ponto de vista estritamente jurídico, há uma solução aparentemente simples para o problema do condômino inadimplente: ressarcir o condomínio à razão de 1% ao mês de juros, e de 2% de multa, se não houver estipulação em contrário. Como se trata de lei geral, positiva, em vigor e vigente, basta o ressarcimento nos limites previstos pela norma positiva para alcançar a justiça e a equidade. Vejamos agora, o mesmo problema analisado sob o prisma de Direito e Economia. Em um país com altas taxas de juros, o Código Civil introduziu distorção em relação à cobrança de contribuições condominiais em atraso, fixando os juros moratórios abaixo das taxas de juros praticadas pelo mercado. O antigo Código Civil de 1916 estipulava que a multa ao devedor inadimplente seria de até 20% sobre o valor da contribuição condominial. O novo diploma legal traz incentivos ao oportunismo do devedor inadimplente, imputando custos ao condomínio. Se as taxas de juro de mercado forem mais altas que as previstas pelo Código Civil, o devedor pode inadimplir o pagamento e se valer da lei, pagando juros bem menores do que pagaria se tomasse empréstimo em banco para saldar a dívida.

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Evidentemente, é possível argumentar que a restrição do artigo 1.336 é apenas aparente, e que é possível estipular cláusula penal contratual (arts. 408 e 411 do Código Civil). Entretanto, nem todos os condomínios edílicos alterarão suas convenções condominiais, publicadas antes da entrada em vigor do Código Civil, para se adequarem à situação hipotética. Assim, é de se esperar que casos de inadimplência de contribuição condominial aumentem, pois são incentivados pelas regras do novo diploma civil. Em pesquisa empírica realizada por mim em 2006, tal tendência foi observada no Setor de Conciliação do Fórum João Mendes. Na conciliação “pré-processual” (promovida antes da instauração do processo judicial), os casos de inadimplência condominial representaram 34% do total analisado (31 casos em 90). Como o condomínio edílico não pode figurar como autor da ação nos Juizados Especiais Cíveis (Lei 9.099/95), resta-lhe recorrer ao Judiciário “tradicional” ou à conciliação. Além disso, a dívida condominial é facilmente comprovável e há razoável certeza sobre a probabilidade do condômino inadimplente perder o litígio no Judiciário. O principal fator que beneficia o devedor é a duração do processo, caso a demanda seja proposta em juízo. Nos casos analisados por mim no Setor de Conciliação, as partes geralmente têm chegado a acordo, com o parcelamento do débito em favor do inadimplente, e saldo de prejuízos suportado pelo condomínio, isto é, pela coletividade que paga suas contribuições em dia. Pergunto: em que medida há “justiça” e “equidade” na norma do art. 1336 do Código Civil? Se o devedor não dispuser de dinheiro suficiente para saldar todas as suas dívidas, deixará de pagar o condomínio (a juros de 1% ao mês) ou a dívida do cartão de crédito (a juros de mercado, muito superiores a 1%)? Evidentemente, a argumentação proposta acima é incompleta, mas tem o único propósito de destacar o potencial de enriquecimento da argumentação “jurídica” quando utilizamos modelos multidisciplinares como os oferecidos em Direito e Economia. Em tempo: há alguma equação matemática na argumentação acima? Elas existem, garanto. Chamamento ao dever Temos o hábito de ouvir, pelos corredores da nossa Academia, que estudamos em uma das melhores escolas de Direito do país. A Academia é fonte de orgulho para todos que dela participamos. Somos orgulhosos de nossas tradições e de nossa posição de destaque. Tal reconhecimento implica, entretanto, em responsabilidades e deveres. A Academia deve estar na vanguarda da ciência jurídica, do ensino

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Direito e Economia multidisciplinar, do debate franco e objetivo sobre novas ideias, teorias e sua aplicação. Nós, estudantes, temos negligenciado tais deveres. A Academia não se faz apenas com professores, grade curricular e estrutura. Ela se faz com alunos, empenho e dedicação na busca de novas formas de conhecimento. Recentemente, a Universidade de Chicago, amada e odiada por muitos, resgatou, em manifesto público, a necessidade de revigorar o estudo de Direito e Economia, indicando, por exemplo, o relevante papel da disciplina no estudo da concorrência. O manifesto indica que o redesenho da legislação norte-americana tornou possível a empresas como a Apple realizar a integração vertical de suas operações para vender tanto os iPods como as músicas contidas neles em suas lojas online. A Universidade de Chicago chamou para si a responsabilidade de resgatar o debate, conclamando pesquisadores, alunos e professores a avocarem sua liderança “natural” na produção de ciência multidisciplinar de vanguarda. O Editorial do primeiro número dessa Revista cita o poeta chileno Pablo Neruda: “escrever é fácil: você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio você coloca idéias”. A tal afirmação, complemento: há uma diferença entre “colocar” ideias e, efetivamente, “praticar” ideias. Conclamo os acadêmicos desta Academia a deixarem de lado os preconceitos e enfrentarem o debate com espírito científico e experimentação do método para, depois, tirar conclusões. Eis o papel da Academia de vanguarda, que devemos urgentemente resgatar.

Referências Bibliográficas BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. São Paulo: Manole, 2007. CALABRESI, Guido; MELAMED, Douglas A. Property rules, liability rules, and inalienability: one view of the cathedral. Harvard Law Review, Vol. 85, n. 6, pp. 10891128, April 1972. CHIAPPIN, J. R. N.; LEISTER, Ana C. Experimento mental I: a concepção contratualista clássica, o modelo da tragédia dos comuns e as condições de emergência e estabilidade da cooperação – Hobbes. Maio 2007. Disponível em: <http://repositories.cdlib.org/bple/alacde/052307-1>. Acesso em: 01.06.2007. ________. Experimento mental II: a concepção contratualista clássica, o modelo da tragédia dos comuns e as condições de emergência e estabilidade da cooperação – Locke, Rousseau e Kant. Maio 2007. Disponível em: <http://repositories.cdlib.org/bple/alacde/060507-1>. Acesso em: 01.06.2007.

________. The fatal conceit: the errors of socialism. Chicago: University of Chicago Press, 1991. ________. The pretence of knowledge. Prize Lecture – Lecture to the memory of Alfred Nobel, December 11, 1974. Disponível em: <http://www.nobelprize.org>. Acesso em: 09.09.2010. PRESSDISPLAY da Universidade de Chicago. In: http://www.pressdisplay.com/pressdisplay/viewer.aspx. Acesso em 18.10.2011. KAPLOW, Louis; SHAVELL, Steven. The conflict between notions of fairness and the Pareto Principle. In: www.ssrn.com/id=202108, acesso em 12.01.2011. MACKAAY, Ejan; ROUSSEAU, Stéphane. Analyse économique du droit. 2ª ed., Paris: Dalloz, 2008. MISES, Ludwig Von. Human action: a treatise on economics. Indianapolis: Liberty Fund, 2007, 4 vols. STIGLER, George J. Law or economics? Journal of Law & Economics, vol. XXXV, pp. 455-467, October 1992. SILVA, Fernando C. N. M. Conciliação Cível em Primeira Instância em São Paulo: Perspectiva da Análise Econômica do Direito. Economic Analysis of Law Review, V. 2, nº 1, p. 62-91, Jan-Jun, 2011. ________. Incentivos à decisão de recuperação da empresa em crise: análise à luz da teoria dos jogos. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito da USP, 2009. SZTAJN, Rachel. Law and economics. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, Ano XLIV, n. 137, pp. 227-232, Jan./Mar. 2005. ZYLBERSTAJN, Decio; SZTAJN, Rachel. (coord.) Direito e economia – análise econômica do direito e das organizações. São Paulo: Campus, 2005. Editorial in O Comercialista - Revista de Direito Comercial e Econômico dos Estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, V. 1, ano 1, outubro. São Paulo, 2011

Fernando Cesar Nimer Moreira da Silva é advogado e consultor de empresas em São Paulo. Graduado em Computação pelo ITA e Bacharel em Direito pela USP, Mestre e Doutorando em Direito Comercial pela USP fnimer@usp.br *As opiniões expressas nos artigos são as de seus autores e não necessariamente as de O Comercialista nem das instituições em que atuam.

HAYEK, Friedrich A. Individualism and economic order. Chicago: University of Chicago Press, 1996.

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CDC e relações comerciais

Inaplicabilidade do CDC às relações jurídicas comerciais A falta de especialização do Judiciário acarreta, em diversos casos, equívocos na aplicação do Direito Comercial, dentre os quais a aplicação de normas consumeiristas às relações entre empresários, comprometendo-se a segurança e a certeza do direito

Por Henrique Stecanella Cid

No dia 31 de agosto, em debate realizado no Salão Nobre desta Faculdade, o Professor Fábio Ulhoa Coelho defendeu a aprovação de um novo Código Comercial, aduzindo que, por conta da imprevisibilidade das decisões judiciais, criou-se um ambiente de grande insegurança jurídica, fazendo-se necessária, portanto, a codificação dos princípios que enformam o Direito Comercial, a fim de que sejam efetiva e corretamente aplicados pelos julgadores. No correr do debate, contudo, o Professor José Alexandre Tavares Guerreiro afirmou temer pela irrelevância de um novo Código, sustentando o posicionamento de que, em matéria comercial, legislar não é coisa útil nem oportuna, sendo certo que a segurança e a certeza do direito não dependem de positivação, mas da prática. De fato, é na prática forense que pode ser mais bem trabalhada a questão da insegurança jurídica a que aludiu Ulhoa Coelho. Nesse sentido, há de se ressaltar as iniciativas do próprio Poder Judiciário em criar órgãos especializados em Direito Comercial, a exemplo da bem sucedida experiência havida no Estado do Rio de Janeiro, na qual há nove anos funcionam oito varas especializadas nessa matéria. Durante esse período, verificou-se que as decisões proferidas pelas varas de direito da empresa apresentaram percentual bastante inferior de reforma em segundo grau (21%) se comparado àquele das sentenças proferidas por juízes sem especialização (37,5%). Em São Paulo, o Tribunal de Justiça, que já contava com a Câmara Reservada à Falência e Recuperação, criou a tão esperada Câmara Reservada de Direito Empresarial, com competência para apreciar as matérias contidas na Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.279/96), na Lei de Sociedades Anônimas (Lei 6.404/76) e no Código Civil (Direito de Empresa – artigos 966 a 1.195). O colegiado, composto pelos desembargadores Romeu Ricupero (presidente), Manoel de Queiroz Pereira Calças, José Reynaldo Peixoto de Souza, Ricardo José Negrão Nogueira e Ênio Santarelli Zuliani, realizou sua primeira sessão

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de julgamento no dia 16 de agosto deste ano. De acordo com os próprios magistrados, a criação da Câmara é um passo importante para a consolidação do Direito Comercial brasileiro, que vive, atualmente, um momento de intensa revitalização. Com efeito, a correta interpretação e aplicação das regras comerciais possibilitarão o alcance de razoável grau de segurança jurídica nas relações entre empresários. A expectativa é de que haja uma melhoria na prestação jurisdicional e de que o Direito Comercial tenha uma interpretação especializada em razão de sua autonomia como ramo do Direito Privado. É preciso, contudo, ser realista. Por mais especializados e bem intencionados que sejam os cinco magistrados, sozinhos não terão condições de estabelecer um novo padrão às decisões judiciais. Faz-se necessária a criação de novas Câmaras, bem como de Varas especializadas, a fim que se diminua a ocorrência de equívocos na aplicação do Direito Comercial. Equívoco recorrente é a aplicação das regras do Código de Defesa do Consumidor às relações jurídicas que envolvam empresários no exercício de sua atividade. Conforme ressalta a Professora Paula A. Forgioni, “a confusão entre os contornos do direito comercial e do direito do consumidor pode comprometer a percepção dos fundamentos do primeiro. As matérias possuem lógicas diversas, de forma que a aplicação do Código do Consumidor deve ficar restrita às relações de consumo, ou seja, àquelas em que as partes não se colocam e não agem como empresa. [...] Se o vínculo estabelecese em torno ou em decorrência da atividade empresarial de ambas as partes, premidas pela busca do lucro, não se deve subsumi-lo à lógica consumeirista, sob pena de comprometimento do bom fluxo de relações econômicas”. Com efeito, falar em proteção do consumidor remete à idéia de proteção do não profissional que contrata ou se relaciona com um profissional, comerciante, industrial ou profissional liberal. Esta é a noção subjetiva de

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CDC e relações comerciais consumidor, a qual excluiria do âmbito de proteção das normas consumeiristas todos os contratos concluídos entre dois profissionais, pois estes agiriam com a finalidade de lucro. De acordo com o art. 2º, caput, da Lei 8.078/90, “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. O legislador parece ter optado por definição mais objetiva, restando à doutrina interpretar o significado da expressão “destinatário final”. Na acepção de Claudia Lima Marques, “destinatário final é o consumidor final, o que retira o bem do mercado ao adquirir ou simplesmente utilizá-lo (Endverbraucher), aquele que coloca um fim na cadeia de produção e não aquele que utiliza o bem para continuar a produzir ou na cadeia de serviço”. Destinatário final é aquele destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa física ou jurídica. De acordo com esta interpretação, chamada finalista, não basta ser destinatário fático do produto, retirá-lo da cadeia de produção, levá-lo para o escritório ou residência – é necessário ser destinatário final econômico do bem, não adquiri-lo para revenda, não adquiri-lo para uso profissional, pois o bem seria novamente um instrumento de produção cujo preço será incluído no preço final do profissional que o adquiriu. Consumidor, portanto, é quem retira o bem do mercado ao adquiri-lo ou simplesmente utilizálo (destinatário final fático) e coloca um fim na cadeia de produção (destinatário final econômico). Não se pode classificar como tal aquele que utiliza o bem para continuar a produzir. Ele não é consumidor final: está transformando o bem, utilizando-o, incluindo o serviço contratado no seu para oferecê-lo ao seu cliente, ou ainda, utilizandoo no seu serviço de construção, nos seus cálculos de preço, como insumo da sua produção. Destarte, o conceito de consumidor tem matriz econômica, devendo ser considerado como tal apenas a pessoa que adquire bens ou contrata serviços para atender a uma necessidade própria e não para desenvolver outra atividade negocial. Assim, a pessoa jurídica não atua como consumidora ao adquirir insumos necessários ao exercício de sua atividade lucrativa. Ainda quanto à caracterização do consumidor, sustenta-se que a vulnerabilidade integre sua definição. Apesar de o art. 2º do texto legal não exigi-la expressamente, defende-se que a interpretação sistemática do CDC imponha essa leitura, pois o art. 1º refere-se à necessidade de proteção do consumidor e, mais

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importante, o art. 4º, I, qualifica o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo como um dos princípios norteadores da política nacional de relações de consumo. Dito isto, conclui-se que pessoa jurídica somente poderá ser considerada como consumidora se restar verificada sua vulnerabilidade no confronto com fornecedor de produtos ou serviços que adquirir para uso próprio. O problema interpretativo foi definido pelo STJ em favor da tese finalista. A 2ª Seção firmou entendimento de que somente a aquisição de bens ou a utilização de serviços para uso próprio permite qualificar a pessoa jurídica como destinatária final dos mesmos e, consequentemente, como consumidora. Caso a aquisição de tais bens ou serviços seja destinada a incrementar a atividade produtiva, não se trata de relação submetida ao Código de Defesa do Consumidor, mas sim ao Código Civil. O consumidor, portanto, tende a identificar-se com a pessoa física. Somente em caráter excepcional a pessoa jurídica poderá ser considerada como tal. Esta idéia é recusada por aqueles que descartam o critério econômico na definição de destinatário final (maximalistas), cuja leitura do CDC conduziria, no final, a aplicá-lo como uma verdadeira lei geral e, como conseqüência, desnaturar o sistema especial de proteção que procura instaurar. Contra a tese maximalista, o Professor Cristiano de Souza Zanetti é categórico ao afirmar que, “o Código de Defesa do Consumidor é diploma setorial, destinado a proteger as partes vulneráveis no mercado. Não serve, portanto, para regrar situações pactuadas por pessoas jurídicas no exercício das respectivas atividades profissionais”. É importante frisar que não se contesta a necessidade de tutela especial às pequenas e médias empresas. Todavia, reconhecer que a microempresa, quando adquire bens ou serviços fora de sua especialidade e conhecimento técnico, o faz em condições de fragilidade semelhantes às do consumidor não implica dizer que aquela se confunde com este. Divide-os o fim lucrativo e a atividade de transformação, que é própria do “consumidor” intermediário. Além disso, os meios de que dispõe a pessoa jurídica lucrativa para defender-se acentuam ainda mais a diferença entre esta e o consumidor protegido no CDC. Recentemente, contudo, alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça tem relativizado o entendimento fixado pela própria corte, admitindo que a vulnerabilidade de uma das partes permita a aplicação do CDC, mesmo que não se trate de destinatário final de produtos ou serviços. Nessa

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linha, decidiu-se pela aplicação do Código (Civil ou CDC) à compra de táxi; à aquisição de botijões de gás por estabelecimento hoteleiro; e ao fornecimento de energia para o desempenho da atividade industrial. Ora, o Código de Defesa do Consumidor não é uma lei geral de defesa dos hipossuficientes! Ao adotar tal postura, o STJ está aplicando normas consumeiristas a relações sobre as quais elas não incidem. Tal posicionamento merece ser criticado e revisto. O Código de Defesa do Consumidor rege apenas um tipo de relação. Não se trata, portanto, de diploma projetado para resolver todos os problemas atinentes ao desequilíbrio de forças entre as partes. O STJ teria determinado melhor se tivesse solucionado os casos apreciados com recurso aos princípios do sistema. O próprio Direito Comercial desautoriza interpretação extensiva que prejudique o agente em posição de sujeição (vejam-se os arts. 1.370 e 1.371 do Codice Civile). O risco, todavia, é inerente à atividade. Espera-se que, em tais casos que têm gerado dúvidas e confusões conceituais à jurisprudência, as Varas e Câmaras especializadas em Direito Comercial passem a identificar adequadamente as relações jurídicas submetidas a este ramo do Direito Privado, aplicando-lhes as normas e princípios que realmente sobre elas incidam.

Henrique Stecanella Cid é graduando do 3ª ano da Faculdade de Direito da USP e estagiário da 11ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (gabinete do Desembargador Rômulo Russo) henriqcid@gmail.com *As opiniões expressas nos artigos são as de seus autores e não necessariamente as de O Comercialista nem das instituições em que atuam

Referências Bibliográficas FORGIONI, Paula A.. Teoria Geral dos Contratos Empresariais. 2ª edição. São Paulo: RT, 2011. MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3ª edição. São Paulo: RT, 2010. ZANETTI, Cristiano de Souza. Direito Contratual Contemporâneo: A Liberdade Contratual e sua Fragmentação. São Paulo: Método, 2008. Resp. 575.469, 4ª Turma, relator Ministro Jorge Scartezzini, julgado em 18.11.2004. REsp. 476.428, 3ª Turma, relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 19.04.2005. REsp. 661.145, 4ª Turma, relator Ministro Jorge Scartezzini, julgado em 22.02.2005. http://www.bmfbovespa.com.br/juridico/noticiase-entrevistas/Noticias/070126NotA.asp (acessado em 14.10.2011). http://tj.spjusbrasil.com.br/noticias/280 6539/comecam-as-atividades-da-camara-dedireito-empresarial (acessado em 14.10.2011).

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Parecer de Orientação CVM n° 35

Parecer de Orientação CVM n° 35 Um balanço após três anos de criação Por João Vicente Carvalho O Parecer de Orientação CVM n.º 35, de 1.9.2008, completou três anos recentemente sob uma série de críticas e elogios. O presente artigo pretende apontar as suas principais características e responder, na medida do possível, às objeções formuladas até então pelo mercado. Nesse sentido, inicia-se explicitando o fundamento legal e a definição regulamentar dos pareceres de orientação editados pela Comissão de Valores Mobiliários. O primeiro ato administrativo expedido pela autarquia, a Deliberação CVM n.° 1, de 23.2.1978, assentou que os pareceres de orientação são o instrumento pelo qual a CVM orienta os agentes do mercado e os investidores sobre matéria de sua competência, assim como veicula suas opiniões sobre a interpretação das Leis 6.385, de 7.12.1976, e 6.404, de 15.12.1976. Trata-se de uma modalidade de atividade consultiva ou de orientação que não ostenta força normativa e é incapaz de criar, pelo menos formalmente, direitos ou deveres para os agentes de mercado. Especificamente em relação ao Parecer 35, que versa sobre os deveres fiduciários dos administradores nas operações de fusão, incorporação e incorporação de ações envolvendo sociedade controladora e suas controladas ou sociedades sob controle comum, as quais chamaremos de reorganizações societárias para facilitar as remissões, a CVM se valeu da sua competência para proteger investidores dos atos ilegais cometidos por administradores de companhias abertas, como também para expor, à luz do art. 264 da lei societária, sua interpretação acerca dos arts. 153155 e 245 do mesmo diploma legal. Antes do detalhamento do conteúdo do Parecer 35 é indispensável contextualizá-lo a partir de uma breve exposição da estratégia regulatória que norteou a iniciativa da CVM. Os conflitos entre acionista controlador e acionista minoritário nas reorganizações societárias, especialmente problemáticos, por envolverem o controlador como contraparte da transação (self-dealing), representam um dos grandes desafios do direito das sociedades, inclusive no âmbito global. Entre as formas de intervenção que podem ser observadas no direito comparado, pelo menos duas, que serão brevemente resumidas a seguir, assumem especial relevo para este artigo. A estratégia tradicional concentra-se no exame da equidade da operação, entendida como a equivalência das condições do negócio àquelas que

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prevalecem no mercado ou em que a companhia normalmente contrataria com terceiros. Tal abordagem demonstra-se particularmente complicada e, especialmente devido ao subjetivismo inerente a este tipo de operação, pode levar as autoridades julgadoras a coibir apenas os casos de ilegalidade mais patente. A segunda forma de regulação dos conflitos no self-dealing, desenvolvida na esteira dos precedentes da Suprema Corte do Estado de Delaware, caracterizase por criar um procedimento decisório, desinteressado e bem informado, apto a garantir a legitimidade da operação. De fato, a essência dessa estratégia está na instituição de salvaguardas procedimentais que, se devidamente observadas, tendem a assegurar, junto à ampla divulgação de informações, a equidade da operação, evitando-se a indesejável análise ex post do seu mérito pela autoridade administrativa ou judiciária. Vale lembrar que esta legitimação procedimental pode ser buscada na administração da companhia, com a aprovação da operação por conselheiros independentes, e nos acionistas, por meio de assembleias sem a participação do controlador. Antes do Parecer 35, a abordagem das reorganizações societárias pela CVM concentrava-se na sua equidade; após, a autarquia passou a considerar o procedimento decisório como fator de legitimação das operações, o que demonstra uma adequação da sua política regulatória àquela adotada em grande parte do mundo. Feita esta breve contextualização, pode-se proceder ao exame da matéria. Os deveres fiduciários dos administradores são padrões genéricos de conduta (standards), amplos e flexíveis, capazes de abranger variadas situações conforme as suas circunstâncias e peculiaridades. De forma geral, exigem que os administradores atuem com diligência e lealdade visando ao interesse da companhia, inclusive zelando pela comutatividade das relações comerciais estabelecidas com sociedades coligadas, controladas ou controladoras. O Parecer 35 procurou dar concretude a esses deveres quando da realização de reorganizações societárias, fornecendo parâmetros mais claros para balizar a conduta dos administradores e sugerindo a adoção de procedimentos que, na visão da CVM, indicariam a sua observância. Pois bem, as operações de fusão, incorporação e incorporação de ações são operações complexas e implicam a substituição compulsória das ações de

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Parecer de Orientação CVM n° 35 titularidade dos acionistas das sociedades envolvidas por novas ações de emissão de outra sociedade. Em outras palavras, as operações são coercitivas para os minoritários. Vale dizer, porque estas operações são coercitivas para os minoritários, são elas particularmente preocupantes nas hipóteses de sociedades que mantêm relações de controle entre si ou sob controle comum. Como já reconheciam os autores do anteprojeto da Lei 6.404/76 na sua Exposição de Motivos, nestas operações inexistem “duas maiorias acionárias distintas, que deliberem separadamente sobre a operação, defendendo os interesses de cada companhia”. Por essa mesma razão, o Colegiado da CVM já teve a oportunidade de destacar que os deveres fiduciários dos administradores devem ser analisados com maior rigor nas operações em que o acionista controlador figura como contraparte da companhia, inclusive afastando a aplicação da regra da decisão negocial. Nesse contexto, a CVM entende que os administradores têm a cumprir a relevante função de defender os interesses da companhia que administram e de seus acionistas, assegurando a fixação de uma relação de substituição de ações equitativa. Em outras palavras, cabe aos administradores negociar a relação de substituição mais vantajosa possível aos acionistas da companhia por eles administrada. O Parecer 35 parte da premissa de que um processo de negociação independente entre as partes envolvidas tende a propiciar a observância dos deveres fiduciários e garantir condições justas à operação. Nessa linha, sugere aos administradores a adoção de uma série de procedimentos de legitimação da reorganização societária, sempre visando simular a efetiva negociação que ocorreria se as partes fossem independentes. O mais polêmico dentre esses procedimentos é, indubitavelmente, a constituição de um comitê especial independente destinado a negociar os termos da operação e submeter suas recomendações ao conselho de administração. Assumindo que o objetivo principal da exigência de constituição dos comitês especiais independentes é assegurar a neutralidade e imparcialidade das negociações, a sua composição é fator determinante para o sucesso da iniciativa. Assim, nas três alternativas recomendadas no Parecer 35, exige a CVM, no mínimo, a presença majoritária de administradores independentes. O foco se volta, então, para o conceito de administrador independente, cumprindo então definilo com precisão, de forma a evitar confusões indesejáveis com o dever de independência da administração. Não obstante a ausência de uniformidade no tratamento do tema, a figura do conselheiro independente é prestigiada mundialmente, tanto em cenários de dispersão acionária quanto em situações de controle concentrado. De modo geral, a expressão qualifica a pessoa que não ostenta, com o controlador ou com a administração, relações econômicas ou pessoais capazes de influenciar materialmente sua decisão no conselho. É, portanto, atributo de alguns conselheiros,

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ao passo que o dever de independência da administração, previsto no art. 154, § 1º da Lei 6.404/76, permeia por completo a atuação dos responsáveis pela condução empresarial, sejam eles independentes ou não. A finalidade de ambos os institutos jurídicos é assegurar a prevalência do interesse social na gerência da companhia, ressaltando-se que a ideia de conselheiro independente, ao reconhecer não só a influência que o controlador de fato exerce sobre os administradores, mas também a fragilidade do dever de independência, representa uma evolução frente à lei societária e exige preventivamente a inexistência de vínculos entre controlador e administrador. Para os fins do Parecer 35, a CVM presumirá a independência, salvo demonstração em contrário, de pessoas que atendam à definição de conselheiro independente prevista no Regulamento do Novo Mercado da Bolsa de Valores de São Paulo. Os benefícios de um comitê composto exclusiva ou majoritariamente por pessoas independentes refletem-se na diminuição das preocupações dos minoritários com relação à vinculação da reorganização societária aos desígnios de determinados agentes dominantes e na ampliação do rol de interesses que devem ser tutelados quando da condução da companhia. A despeito dos evidentes méritos do conceito de administrador independente, os agentes de mercado convivem, na prática, com pelo menos duas preocupações: (i) a possibilidade de o administrador satisfazer apenas formalmente – e não substancialmente – cada um dos pré-requisitos, e (ii) a possibilidade do administrador perder, com o passar do tempo, a capacidade de atuar de maneira autônoma e imune a influências voltadas a moldar seu julgamento. Especificamente em relação ao item (i), a lição do direito comparado, que há muito convive com os comitês especiais e conselheiros independentes, aponta a dificuldade prática que envolve a matéria: “Independent directors may not be disinterested trustees that the law contemplates. For the most part, they are selected with the (interested) consent of top executive officers, controlling shareholders, or both. If they are unlikely to intervene to derail fair transactions, they may also be unlikely or unable to object to unfair ones”. O funcionamento dos comitês especiais suscita uma outra ordem de problemas de grande relevância para o nosso tema, pois, ainda que possuam um caráter transitório, é a efetiva atuação de seus membros que determinará o sucesso do procedimento de legitimação. O Parecer 35 atentou para esse aspecto de diversas formas, como se verá adiante. Em primeiro lugar, preocupou-se a CVM em garantir que os próprios integrantes do comitê especial independente sejam submetidos à observância dos deveres fiduciários previstos na lei acionária. Nas hipóteses em que a composição destes órgãos incluir a

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Parecer de Orientação CVM n° 35 presença de não-administradores da companhia, impõe-se que o referido comitê tenha previsão estatutária, o que é suficiente, por força do art. 160 da lei societária, para imputar a seus membros os deveres fiduciários dos administradores de sociedades anônimas, sobretudo o dever de sigilo e a proibição de insider trading. Sem dúvidas, foi bem a autarquia ao exigir que todos aqueles que negociam a fixação da relação de troca e demais termos da operação busquem satisfazer o interesse social de forma diligente e leal. Por esse motivo é que qualquer composição alternativa eventualmente proposta pelo mercado – os modelos sugeridos no Parecer 35 são apenas exemplificativos – deverá produzir, para que seja aprovada pela CVM, os mesmo efeitos supra mencionados. Outra questão que se sobressai é a possibilidade de o comitê independente contratar assessoria de especialistas financeiros e jurídicos no âmbito das negociações da reorganização societária. Na verdade, dada a complexidade da matéria, mais do que uma possibilidade, é altamente recomendável a contratação de assessores, cabendo aos administradores, neste caso, certificar-se da independência desses agentes. Segundo o Parecer 35, “[n]essa verificação, os administradores deverão levar em consideração as relações societárias e empresariais do assessor com o controlador, bem como estruturar a remuneração dos assessores de forma a preservar sua independência”. Ainda em relação à implementação dos procedimentos sugeridos no Parecer 35, é absolutamente indispensável que os comitês especiais tenham poder para efetivamente negociar a operação, inclusive com a faculdade de recomendar sua rejeição. Este ponto já foi questionado por agentes do mercado, alegando que a competência para negociar reorganizações societárias é da administração da companhia e a constituição dos comitês especiais implicaria a delegação dessa competência, o que seria vedado pelo art. 139 da Lei 6.404/76. A resposta que deve ser dada é a de que o Parecer 35 não retirou a decisão final do conselho de administração; pelo contrário, os comitês especiais devem apenas recomendar a aprovação ou rejeição das operações. No entanto, na hipótese do conselho deliberar contrariamente ao “parecer” apresentado, o procedimento de legitimação e seus efeitos não se implementariam, de modo que, sob esta perspectiva, a observância do Parecer 35 se aproximaria mais de um ônus do que de um dever propriamente dito. Vale dizer, o procedimento decisório de efetiva legitimação é pressuposto da aplicação de um exame de equidade mais brando, almejado pelos administradores. Como complemento às considerações já feitas, acreditamos que alguns comentários acerca das principais objeções aventadas contra o Parecer 35 podem facilitar a compreensão das suas principais características. Logo no início, argumentou-se que a CVM expediu regras não previstas em lei, extrapolando a sua competência e criando deveres

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fiduciários diferentes para companhias abertas e fechadas. Não poderia ser mais infundada tal afirmativa, uma vez que, como exposto, o Parecer 35 apenas expressou a forma como a CVM entende que devem concretizados os deveres fiduciários dos administradores, sem criar qualquer norma jurídica – esta é uma atividade interpretativa necessária quando se está lidando com conceitos abertos. E, se hoje existe situação não uniforme ente abertas e fechadas, isto se deve aos limites da competência da autarquia. De qualquer forma, parece que a CVM realiza muito melhor suas funções quando orienta o mercado ex ante, detalhando de antemão os procedimentos que espera ver cumpridos pelos administradores. A punição administrativa com base em padrões genéricos de conduta, ou com base em sua avaliação a respeito da comutatividade do negócio realizado (fairness test, como se verá adiante), produz, no mais das vezes, efeitos bastante restritos. Outra forte crítica feita é a de que o Parecer 35, sob o pretexto de legitimar o procedimento decisório das companhias abertas, causou sua indevida burocratização. De fato, os procedimentos sugeridos pela CVM no referido ato administrativo podem tornar o processo decisório mais moroso e caro; contudo, é preciso observar que, a despeito de seus custos, mecanismos ou procedimentos de alinhamento de interesses e quebra de assimetrias devem ser valorizados no contexto do mercado de capitais, especialmente quando envolverem a proteção da minoria em operações entre partes relacionadas. A análise dos custos e benefícios, que é imperiosa quando se avalia a conveniência de qualquer iniciativa regulatória, revela o mérito do Parecer 35, pois, como parece ser intuitivo, as regras que protegem os acionistas minoritários nas operações potencialmente lesivas estão fortemente correlacionadas com o desenvolvimento do mercado de capitais. Não obstante o que já foi exposto, são os efeitos práticos da aplicação do Parecer 35 que mais suscitam dúvidas e incomodam os agentes do mercado. Antes do enfrentamento do tema, vale a ressalva de que a iniciativa é uma experiência recente e cujos resultados ainda são pouco conhecidos, inclusive pela CVM. Uma primeira questão que se coloca é saber se o Parecer 35 criou uma presunção de culpa para os administradores que não seguirem o procedimento recomendado. Neste sentido, a doutrina aceita que normas regulamentares criem presunções – sempre relativas, sob pena de ilegalidade – visando exatamente à inversão do ônus da prova, porém deve-se ter em conta as limitações inerentes à forma escolhida pela CVM na sua iniciativa. Os pareceres de orientação, como já assinalado, não são normas propriamente ditas, mas antes atos administrativos que explicitam a interpretação da autarquia a respeito de matéria sob sua competência. Ademais, a responsabilidade administrativa e a disciplina jurídica da prova nos processos sancionadores são governados pelos princípios constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal, o que torna indispensável a demonstração de culpa do acusado.

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Parecer de Orientação CVM n° 35 Não é outro o entendimento da doutrina ao se referir à “necessidade da imputação administrativa fundamentar o caráter culposo lato sensu da infração disciplinar punida, apresentando-se, pois despida de validade, nesta matéria, a presunção de culpa”. Para afastar de vez a possibilidade do Parecer 35 ter instituído uma presunção relativa, seja de culpa ou de inocência, e, por conseguinte, ter redistribuído o ônus da prova no processo administrativo sancionador, lembramos que o excerto da minuta colocada em audiência pública que explicitava esta presunção foi abandonado pela versão final do Parecer 35. Ora, por que mais a CVM excluiria o referido trecho do texto definitivo, senão para afastar toda e qualquer possibilidade de presunção e inversão de ônus da prova? Prosseguindo o estudo do enforcement do Parecer 35, cumpre salientar que a constituição dos comitês independentes não afasta a possibilidade de um exame a posteriori da comutatividade ou equidade da operação, apartado de questionamentos sobre o próprio procedimento. Um primeiro argumento, e aparentemente já suficiente, é o de que um parecer de orientação não tem força normativa para frustrar a aplicação de outras normas jurídicas, como, no caso, o art. 117, § 1°, “f” da lei acionária. Como complemento, lembramos que sequer a doutrina norte-americana admite a possibilidade de a mera constituição de comitês independentes elidir o fairness test. O que há, na realidade, e desde que comprovada a adequação do procedimento, é a adoção de padrões de fairness mais brandos, até mesmo como forma de estimular os procedimentos de legitimação. Outro tema de grande importância é a delimitação os poderes da CVM em situação de eventual descumprimento do Parecer 35. Como assevera a doutrina, no que é acompanhada pelo Colegiado da autarquia, a possibilidade da CVM impedir ou anular uma reorganização societária é bastante restrita. Nesse sentido, destaca-se a lição do ex-presidente da CVM, Marcelo Trindade: “não tem ela o poder de anular atos societários. Seja em caso de nulidade, seja de anulabilidade, seja em hipóteses de prejuízo aos acionistas minoritários, o poder da CVM, no particular, restringe-se à sanção, pela aplicação das penalidades (atualmente bastante significativas) àqueles que deram causa aos ilícitos”. Ainda no que diz respeito à impugnação de reorganização societária que não observe os procedimentos recomendados no Parecer 35, frise-se que sequer o Judiciário tem tal poder. Isto porque o descumprimento dos deveres fiduciários, assim como o abuso de poder de controle, tem como consequência a obrigação de reparação de perdas e danos, conforme a correta interpretação dos arts. 117 e 158 da lei societária. A exceção à regra, feita pelas hipóteses de conflito de interesses, dificilmente se aplica às reorganizações societárias, segundo interpretação da própria CVM. Tudo isto não significa que o Parecer 35 é inócuo. Pode-se afirmar, com segurança, que a companhia que optar por não seguir os procedimentos ali recomendados deverá adotar outros que alcancem substancialmente os mesmos resultados, sob pena de

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responsabilização de seus administradores. E mais, considerando que o Sistema de Supervisão Baseada em Risco da CVM elege as reorganizações societárias, no sentido adotado neste artigo, como prioridade, é certo que estas estarão sujeitas a escrutínio imediato e rigoroso para averiguar sua adequação à lei. Por fim, vale anotar a possibilidade, presente no sistema norte-americano e já referida ao longo deste trabalho, de que o Colegiado da autarquia, em eventual processo sancionador, submeta as reorganizações societárias a um exame de equidade ao mesmo tempo menos rigoroso que o usualmente aplicado e mais exigente que o da decisão negocial, punindo, dessa forma, apenas os casos de manifesta iniquidade. Esperamos que este artigo de alguma forma contribua para a discussão do Parecer 35, academicamente ainda incipiente, e deixe claro os méritos e limitações desta importante iniciativa da Comissão de Valores Mobiliários.

Referências Bibliográficas ARAGÃO, Paulo Cezar, “O Parecer de Orientação 35/2008 da CVM e a Incorporação de Companhia Fechada por sua Controladora Companhia Aberta” in ADAMEK, Marcelo, Temas de Direito Societário e Empresarial Contemporâneos, Malheiros Editores, São Paulo, 2011. CEREZETTI, Sheila, “Administradores Independentes e Independência dos Administradores” in ADAMEK, Marcelo, Temas de Direito Societário e Empresarial Contemporâneos, Malheiros Editores, São Paulo, 2011. EISENBERG, Melvin Aron, The Divergence of Standards of Conduct and Standards of Review in Corporate Law, 62 Fordham L. Rev. 437 (1993), disponível em http://ir.lawnet.fordham.edu/flr/vol62/iss3/1. TRINDADE, Marcelo Fernandez, “Vedações à Negociação de Valores Mobiliários por Norma Regulamentar: Interpretação e Validade” in ADAMEK, Marcelo, Temas de Direito Societário e Empresarial Contemporâneos, Malheiros Editores, São Paulo, 2011. GUERREIRO, José Alexandre Tavares, “O poder disciplinar da CVM” in Revista de Direito Mercantil Industrial, Econômico e Financeiro, v. 1, 1981. ENRIQUES, Luca; HERTIG, Gerard; e KANDA, Hideki, “Related-Party Transactions” in KRAAKMAN, Reinier; ARMOUR, John; DAVIES, Paul; ENRIQUES, Luca; HANSMANN, Henry; HERTIG, Gerard; HOPT, Klaus; KANDA, Hideki; e ROCK, Edward, The Anatomy of Corporate Law: A Comparative and Functional Approach, Oxford University Press, Oxford, 2009 (2nd ed.).

João Vicente Carvalho é graduando do terceiro ano da Faculdade de Direito da USP e estagiário do Colegiado da Comissão de Valores Mobiliários jvlc@uol.com.br *As opiniões expressas nos artigos são as de seus autores e não necessariamente as de O Comercialista nem das instituições em que atuam

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