O Comercialista - Vol. IV - Abril 2012

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Volume 4

Abril 2012

Revista de Direito Comercial e Econômico dos Estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco

omercialista

Foto: http://veja.abril.com.br/noticia/economia/decisao-do-caso-brf-mostra-avanco-do-cade

Seguro, Contrato e Ordem Econômica por Ernesto Tzirulnik

Lex Mercatoria: uma nova ordem jurídica? por Fábio Murta Rocha Cavalcante

Cotas para a Partcipação de Mulheres nos Conselhos Administrativos por Ana Flora Pontes e Desire de Oliveira

Entrevista com o conselheiro e presidente interino do CADE Olavo Zago Chinaglia por Pedro A. Lavacchini Ramunno

El derecho de la Unión Europea y la política industrial de las pequeñas y medias empresas por João Pedro de Oliveira de Biazi

Cinco meses após a Presidente Dilma Rousseff sancionar a Lei 12.539/2011, que altera de maneira significativa o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, Olavo Zago Chinaglia, Presidente Interino do CADE, aborda em entrevista exclusiva a O Comercialista as principais mudanças promovidas pela Lei, a importância do órgão máximo da defesa da concorrência brasileiro e comenta ainda um pouco sobre sua trajetória profissional.


Intervenção Estatal: ruim com ela, pior sem ela? “O governo tem três funções primárias: prover defesa militar, exigir cumprimento de contratos entre indivíduos e proteger os cidadãos contra crimes praticados em relação a si próprios e as suas propriedades. Quando o governo – bem-intencionado – tenta rearranjar a economia, legislar a moralidade ou atender a interesses especiais, o custo vem na forma de ineficiência, falta de inovação e perda de liberdade. O governo deve ser um juiz, e não um jogador ativo”. Embora as palavras de Milton Friedman, membro da Escola de Chicago e um dos mais influentes teóricos do liberalismo econômico do século XX, ainda sejam constantemente acolhidas por inúmeros pensadores da atualidade, os mais importantes fatos políticos e econômicos de nossos dias, bem como grandes juristas do Direito Comercial contemporâneo, parecem evidenciar a necessidade da ocorrência de fenômeno oposto ao preconizado pelo notável economista. Em artigo publicado na edição de Março deste O Comercialista, Paula Forgioni defendeu, ao discorrer sobre o atual papel do Direito Comercial no Brasil de hoje, que “a função do Direito Comercial ata-se à implementação de políticas públicas; (...) desdobrando-se também na determinação do papel que o mercado desempenhará na alocação dos recursos em sociedade”. Destacou, ainda, a eminente professora do Departamento de Direito Comercial do Largo de São Francisco, que se deve superar a visão tradicional propugnadora da não intervenção sobre o mercado, pois entregar “a disciplina das empresas a elas próprias” não seria o melhor caminho. Por um lado, é o que parecem demonstrar os últimos desdobramentos da crise europeia, pois a intervenção dos Estados na economia, por meio da União Europeia, é talvez a única maneira de se evitar o colapso econômico do Velho Mundo. Diante desse cenário, vem em boa hora o artigo do graduando João Pedro de Biazi, que analisa o impacto do direito e da política de integração da UE sobre o papel das Micro, Pequenas e Médias empresas. A intervenção do Estado também se faz presente no Brasil por meio do Projeto de Lei Nº 112/2010, que tornará obrigatória a participação das mulheres nos conselhos de administração das empresas públicas e sociedades de economia mista. A fim de ressaltar que a iniciativa está longe de ser ponto pacífico, mesmo entre as “beneficiadas” pela lei, convidamos duas graduandas, uma contra e outra a favor, para exporem seus pontos de vista. Já o artigo do advogado Ernesto Tzirulnik não poderia abordar tema mais propenso às intervenções governamentais do que o mercado de seguros, uma vez que se trata de setor importante para a manutenção da higidez e equilíbrio de todo o Sistema Financeiro Nacional. Por outro lado, todavia, ao discorrer sobre a natureza jurídica da Lex Mercatoria, o graduando Fábio Cavalcante retoma, ainda que indiretamente, as ideias de Friedman, pois a emergência de um “direito global sem Estado”, com destaque para o importante papel da arbitragem nessa nova ordem jurídica, não deixa de ser um mecanismo que dribla os efeitos da intervenção estatal. De qualquer forma, diante da atual ocorrência simultânea de inúmeros importantes e graves eventos globais de ordem econômico-político-social capazes de afetar diretamente a vida dos mais diferentes povos do planeta, o futuro parece promissor quando lembramos das palavras de Joseph Schumpeter: “progresso econômico, na sociedade capitalista, significa tumulto”. Saudações Comercialistas, Abril 2012

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Editorial

Os editores.

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4 | Evento

O Contexto Brasileiro e o Projeto do Comitê de Fusões e Aquisições

Pedro Alves Lavacchini Ramunno Thyago Pereira Trairi

7 | Perfil

Entrevista com o conselheiro e presidente interino do CADE Olavo Zago Chinaglia

15 | Doutrina

Articulistas desta edição

Seguro, Contrato e Ordem Econômica

Ana Flora Pontes

24 | Debates

Desiree de Oliveira

Cotas para a Partcipação de Mulheres nos Conselhos Administrativos

Ernesto Tzirulnik Fábio Murta Rocha Cavalcante

28 | Doutrina

El derecho de la Unión Europea y la política industrial de las pequeñas y medias empresas

João Pedro de Oliveira de Biazi

32 | Doutrina

Lex Mercatoria: uma nova ordem jurídica?

Repórter desta edição Pedro Alves Lavacchini Ramunno

37 | Na estante: Lançamentos

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Editorial

Editores Executivos

Índice

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O Contexto Brasileiro e o Projeto do Comitê de Fusões e Aquisições

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Eventos

O presente artigo pretende apresentar brevemente o tema do próximo evento a ser realizado por O Comercialista na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. No dia 24.5.2012, a faculdade receberá os especialistas Nelson Eizirik, Paulo César Aragão, Érica Cristina Gorga, Marcelo Barbosa e José Alexandre Tavares Guerreiro para debater a respeito do projeto de criação do Comitê de Aquisições e Fusões, órgão autorregulatório que deverá regular e fiscalizar as ofertas públicas de aquisição de ações e as reorganizações societárias envolvendo companhias abertas. Dessa forma, nas linhas abaixo serão feitas apenas algumas observações gerais para despertar o interesse daqueles que porventura ainda não tenham entrado em contato com o tema. Nos últimos dez anos, a conjugação de uma série de fatores permitiu um notável crescimento do mercado de capitais brasileiro. A estabilização da economia brasileira e os volumosos investimentos motivados pela liquidez internacional, ao lado da evolução do ambiente institucional e regulatório brasileiro, foram os principais desses fatores. Nesse contexto, uma iniciativa autorregulatória merece destaque. Trata-se da criação, pela BOVESPA, de segmentos especiais de negociação nos quais as companhias são listadas mediante a adoção de regras mais rígidas de governança corporativa. O objetivo desta iniciativa era conferir aos investidores ambientes de negociação atrativos e, consequentemente, aumentar o valor destas companhias. O Novo Mercado é o segmento mais popular, com 125 companhias listadas

atualmente. É também o sistema mais rígido e apresenta uma característica importante, que procura garantir a intensificação da dispersão acionária : a vedação à emissão de ações preferenciais. Essa regra obriga o controlador a empregar um grande volume de recursos para se manter no poder. Até então, as companhias brasileiras eram normalmente controladas por acionistas detentores de mais de metade do capital com direito a voto. A regra do Novo Mercado incentivou os controladores a modificar essa estrutura de capital e atualmente há uma quantidade considerável de companhias apresentando estruturas de controle minoritário ou pulverizado. Esse novo cenário permitiu a identificação de problemas na atual regulação de operações de transferência de controle de sociedades anônimas. Eles decorrem, por um lado, da constatação de que a Lei das Sociedades Anônimas, pensada para reger companhias de controle concentrado, disciplina o mercado de controle acionário exclusivamente a partir da figura da alienação de controle. Essa definição é insatisfatória para os casos de aquisição originária de controle e dificulta a aplicação às alienações de controle minoritário do artigo 254-A, que disciplina a oferta pública de aquisição que o adquirente do controle deve dirigir aos minoritários detentores de ações ordinárias. Há, também, muita insegurança a respeito da obrigatoriedade de oferta pública em alienações de participações acionárias integrantes de bloco de controle, como demonstram os precedentes da CVM e casos

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que inicie um procedimento sancionador. Além disso, o Panel pode determinar a imposição de compensações financeiras caso o descumprimento do Código acarrete prejuízos. Por fim, a English Court of Appeal entende cabível a revisão das decisões do Panel, mas as decisões judiciais somente produzem efeitos no futuro, em razão da especialidade da entidade e da autoridade de seus pronunciamentos. Isso quer dizer que, se eventualmente o Judiciário analisa uma decisão do Panel e a modifica, o entendimento do Judiciário não se aplicará àquela decisão, mas às próximas. Vale lembrar que os ingleses não estão sozinhos. O mercado de capitais australiano, assim como o neozelandês e o irlandês, também tem o seu Takeover Panel, isto é, uma entidade que se ocupa de regular e fiscalizar as operações de reorganização societária e as ofertas públicas de aquisição de ações. A principal diferença do Takeover Panel australiano com relação ao britânico é o fato de aquele ser um órgão governamental. Com inspiração nessas experiências e considerando as particularidades e a problemática do cenário brasileiro, a BM&FBOVESPA está patrocinando a criação de uma entidade de autorregulação, a ser formada por representantes dos principais participantes do mercado de capitais nacional, com o escopo de regular e fiscalizar todas as modalidades de oferta pública de ações atualmente previstas na legislação e as operações de reorganização societária que envolvam as companhias voluntariamente vinculadas à entidade. Percebe-se, aqui, uma clara ampliação daquela preocupação original com a nova realidade da estrutura de propriedade do capital das companhias abertas. O problema das operações de reorganização

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recentes, que sequer saíram do noticiário econômico. A identificação desses problemas despertou um intenso debate na doutrina e entre os agentes do mercado acerca das possibilidades de aprimoramento do atual regime jurídico, tendo sido aventadas iniciativas legislativas, regulamentares e autorregulatórias. Estas últimas ganharam força, provavelmente em virtude dos riscos e limitações associados às demais, e evoluíram à discussão sobre a criação no Brasil de um órgão semelhante ao Takeover Panel inglês. O Panel on Takeovers and Mergers é uma entidade privada criada em 1968 na Inglaterra. Suas atribuições são editar e administrar um código sobre fusões e aquisições e supervisar e regular operações de aquisição de controle, entre outras operações societárias. É composto de pessoas atuantes ou com experiência profissional em instituições financeiras e companhias abertas, indicadas pelas associações que representam os participantes do mercado de capitais. Sua atuação é referendada pelo Companies Act britânico desde 2006 e pela Diretiva 2004/25/ CE, aplicável a ofertas públicas de aquisição de ações. Destaco aqui, a título de curiosidade, duas características da atuação da entidade. Em primeiro lugar, a aplicação das regras do código admite ponderações e exceções se adequadas ao atendimento dos princípios gerais que norteiam a atuação do Panel. A segunda característica diz respeito ao cumprimento das decisões, tema bastante sensível à autorregulação. Normalmente, as decisões do Panel on Takeovers and Mergers são cumpridas voluntariamente. Se isso não ocorre, as sanções vão desde uma declaração pública ou privada de censura à comunicação à autoridade reguladora competente para

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societária envolvendo sociedade controladora e suas controladas ou sociedades sob controle comum, por exemplo, está muito mais relacionado a dúvidas interpretativas e à natureza dos interesses contrapostos que a qualquer lacuna na lei acionária. O mesmo vale para outras modalidades de OPAs, como a OPA para cancelamento de registro de companhia aberta. O Comitê de Fusões e Aquisições pretende regular e fiscalizar todas as operações mencionadas acima que envolvam as companhias vinculadas à entidade por meio de Termo de Anuência. Ao assinar esse termo, a companhia se tornará contratualmente vinculada às decisões que o CAF vier a proferir. As companhias terão, ainda, de promover alteração no estatuto de modo a incluir a remissão ao Código de Autorregulação do Comitê de Fusões e Aquisições. Assim, os preceitos do Código vincularão todos os acionistas da compa-

nhia e poderão ser exigidos judicialmente ou perante um tribunal arbitral. Espera-se que o Código consagre princípios que garantam tratamento equitativo aos acionistas envolvidos nas OPAs e reorganizações societárias, de forma a solucionar as principais controvérsias decorrentes dessas operações na atualidade. São estes mesmos princípios, vale apontar, que deverão permitir o afastamento pontual de uma regra quando esta se mostrar, à luz do caso concreto, desproporcional ou contrária aos valores que norteiam o Código. O Comercialista convida a todos a comparecer à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco no dia 24.5.2012 para discutir, na presença de alguns dos maiores especialistas na matéria, estas e muitas outras inovações propostas pelo Código de Autorregulação do Comitê de Fusões e Aquisições.

O Contexto Brasileiro e o Projeto do Comitê de Aquisições e Fusões Data: 24 de maio, 19:30h Local: Largo São Francisco, 95 - Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, no auditório do 1° andar (Prédio Histórico)

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Debatedores: Dr. Paulo Cezar Aragão - Sócio do escritório Barbosa, Mussnich & Aragão Advogados Dr. Nelson Eizirik - Sócio do escritório Carvalhosa e Eizirik Advogados; Professor José Alexandre Tavares Guerreiro - Professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco; Dr. Marcelo S. Barbosa - Sócio do escritório Vieira, Rezende, Barbosa e Guerreiro Advogados; e Professora Érica Cristina Gorga - Professora da Fundação Getúlio Vargas

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Olavo Zago Chinaglia é advogado, graduado e Doutor em Direito Comercial pela FDUSP e Especialista em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Magistratura. Atualmente, exerce seu segundo mandato como conselheiro do CADE e é o atual Presidente Interino órgão. Em entrevista exclusiva, Chinaglia aborda sua trajetória até a Presidência do órgão máximo da concorrência brasileiro, as principais funções do Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência e as mais relevantes mudanças trazidas pela Lei 12.529/2011 que reformula o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência.

por Pedro Alves Lavacchini Ramunno

Foto: http://www.valor.com.br/arquivo/898635/brf-deve-vender-empresa-forte-diz-cade

Formação acadêmica: Doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (2008). Especialista em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Magistratura (2003). Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (1997) Profissão: advogado (licenciado). Atualmente, exerço meu segundo mandato como conselheiro e a Presidência Interina do Cade – Conselho Administrativo de Defesa Econômica Livro que todo estudante de direito deve ler: Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado. Frase marcante: “Insanidade é fazer sempre a mesma coisa várias e várias vezes esperando obter um resultado diferente.” (Albert Einstein)

O Comercialista – O que o levou a escolher a carreira jurídica? Qual a área do Direito que mais lhe despertou o interesse durante a faculdade?

cia de vida para entender as implicações daquela decisão. Fui aprovado nos vestibulares da USP, Unesp e Unicamp, onde prestei a prova para a faculdade de Medicina. Olavo Zago Chinaglia - Não posso Acabei optando pela USP porque, fundaafirmar que escolhi o Direito com gran- mentalmente, não quis sair de São Paulo de convicção. À época, eu tinha apenas na ocasião. dezessete anos e muito pouca experiên-

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Olavo Zago Chinaglia

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O Comercialista – Existe ou existiu alguém ligado à profissão que o inspirou? Olavo Zago Chinaglia - Não. Meu pai, que é médico, apenas procurou mostrar-me que o Direito abre um número grande de alternativas profissionais. Mas se dependesse dele eu teria feito Medicina. O Comercialista – Qual foi o percurso trilhado entre sua conclusão do curso de Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e o cargo que hoje ocupa no CADE?

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Olavo Zago Chinaglia - Trabalhei de outubro de 1996 a maio de 1999 no escritório do Prof. Luiz Olavo Baptista, inicialmente como estagiário e, depois, como advogado. Ali, tive uma rica experiência com Direito Internacional, especialmente nas áreas de Contratos e Defesa Comercial (medidas antidumping, subsídios e salvaguardas), e com o Contencioso Cível e Comercial. Transferi-me, então, para o Tozzini Freire, onde, ao longo de treze meses, atuei com Direito Societário, Contratos e tive minhas primeiras incursões no Direito Concorrencial. Em julho do ano 2000, montei um escritório na Av. Brig. Faria Lima, onde atuava no Contencioso Cível e Comercial e prestava consultoria, principalmente em Contratos, a um número reduzido de poucos e bons clientes. Foi durante esse período que me especializei em Direito Empresarial pela Escola Paulista da Magistratura. Foi também nessa época que conheci o Dr. José Del Chiaro, advogado especialista em Direito da Concorrência. Após diversas experiências bem-sucedidas de trabalho em parceria, o Dr. Del Chiaro convidou-me para ser seu sócio, em de-

zembro de 2002. Trabalhamos juntos até setembro de 2006. Esse período foi determinante em minha carreira profissional. Além de ter estado diretamente envolvido em casos de grande relevância e repercussão, como o conhecido caso Nestlé x Garoto (o escritório representou a Kraft, dona das marcas Lacta e impugnante da operação), iniciei meu mestrado em Direito Comercial pela USP, posteriormente convertido em doutorado. Meu projeto de pesquisa versou sobre a destinação dos elementos intangíveis do estabelecimento empresarial e do aviamento nas hipóteses de extinção parcial do vínculo societário. Minha tese, de forma muitíssimo simplificada, é a de que, em tais hipóteses (por exemplo, na impropriamente chamada “dissolução parcial”), os bens intangíveis da sociedade não integram a base de cálculo dos haveres do sócio, na medida em que o valor econômico daqueles pressupõe a atividade em exercício, ao passo que, para o sócio que se desliga, a atividade (e os correspondentes riscos) cessa. A indenização pelos bens intangíveis, portanto, tem natureza de lucros cessantes, do que resulta a constatação de que o sócio dissidente só terá direito a tal pagamento quando não tiver dado causa ao rompimento do vínculo societário ou quando estiver no exercício regular de seus direitos (por exemplo, nos casos legalmente previstos de recesso). Voltando ao planeta Terra: dentre os diversos créditos preenchidos durante o doutorado, cursei a disciplina “Organização Industrial”, ministrada pela então Presidente do Cade, Dra. Elizabeth Farina, na Faculdade de Economia. Foi justamente a Dra. Elizabeth Farina quem, em 2008, sugeriu minha indicação para conselheiro do Cade.

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participar dos julgamentos e de relatar os incidentes de cumprimento de decisões, mantenho as atribuições normais de Conselheiro, instruindo complementarmente, relatando e julgando os processos administrativos de apuração de condutas anticompetitivas e atos de concentração econômica. Os requisitos estabelecidos em lei para ocupação do cargo são: idade mínima de 30 anos, reputação ilibada e notório saber jurídico ou econômico. A indicação é feita pela Presidência da República e o Senado Federal deve aprová-la em duas votações: uma, na Comissão de Assuntos Econômicos, após sabatina do candidato, e outra, secreta, no Plenário da Casa.

O Comercialista – Quais são as atribuições do Presidente do Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (CADE)? Quais características são consideradas fundamentais para o exercício desse cargo?

O Comercialista – O CADE exerce importante papel, atuando de forma “preventiva” por meio da análise de atos de concentração, assim como de forma “repressiva” por meio da investigação e condenação de condutas anticompetitivas. Quais são os papéis dessas duas frentes de atuação no exercício da defesa do Direito Concorrencial e como serão afetados esses papéis com a implementação do novo regime? O CADE dará mais importância para uma dessas frentes nessa nova fase?

Olavo Zago Chinaglia – O Presidente do Cade é o representante legal e institucional do órgão, incumbindo-lhe tanto tarefas administrativas quanto a participação nas deliberações do Conselho, sobretudo nos processos administrativos de competência da instituição. O Presidente, porém, não relata casos, salvo na fase de cumprimento de decisões ou quando ocupa a posição interinamente, como no meu caso. Dessa forma, além das incumbências administrativas, de representar judicial e extrajudicialmente o Conselho, de

Olavo Zago Chinaglia – A prevenção e a repressão ao abuso de poder econômico são atribuições complementares, mas não indissociáveis. Há países, por exemplo, que não fazem controle de estruturas, mas possuem um sistema de repressão a condutas anticompetitivas. Outros têm, além do controle repressivo, um regime de controle de estruturas em que a notificação dos casos é facultativa. Nessas hipóteses, os órgãos de defesa da concorrência podem, normalmente, determinar a prestação de informações sobre transações específicas e im-

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Antes da indicação para integrar o Conselho, como mencionado, eu havia me desligado da Advocacia José Del Chiaro para aderir ao Velloso, Pugliese & Guidoni Advogados (hoje, Vella, Pugliese, Buosi e Guidoni Advogados), onde assumi toda a área de Direito Econômico. Enfim, tomei posse como conselheiro do Cade em agosto de 2008, fui reconduzido em agosto de 2010 e, em janeiro deste ano, assumi a presidência interina do órgão, para conduzir o processo de transição da Lei 8.884/1994 para a Lei 12.529/2011, que reestrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e institui, no Brasil, o regime de análise prévia dos atos de concentração econômica. Faltou apenas dizer que fui professor da FMU entre 2002 e 2004 e da Faap entre 2005 e 2009, tendo lecionado Direito Comercial e Direito Concorrencial na graduação e na pós-graduação.

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Perfil por-lhes restrições. Chile e Inglaterra são exemplos de sistemas com essa feição. No Brasil, a notificação de atos de concentração, embora compulsória, podia ser feita após a celebração da operação, sendo que a implantação do negócio só poderia ser obstada por força de medida cautelar imposta pelo Conselho ou por acordo com as partes (esse acordo é conhecido como APRO – Acordo para Preservação da Reversibilidade de Operação). Tratava-se de um esquizofrênico regime de controle preventivo ex post. Com advento da Lei 12.529/2011, essa anomalia é corrigida, passando a análise a ser feita previamente em relação aos efeitos da transação. Relativamente às condutas, o regime brasileiro muda pouco com a nova lei. Foram introduzidas alterações no cálculo das penas, que deverão gerar alguma controvérsia, e modificados certos aspectos da persecução criminal das infrações à ordem econômica, em particular no que diz respeito ao nosso programa de leniência, que tendem a tornar mais efetivo o combate ao abuso de poder econômico. Outra vertente importante de atuação dos órgãos de defesa da concorrência é o que se conhece por “advocacy”: a conscientização dos demais órgãos públicos e da sociedade, acerca dos valores constitucionais da liberdade de iniciativa e da liberdade de concorrência, com o que se almeja preservá-los nas políticas públicas e estratégias empresariais. Com a nova legislação, esse papel incumbirá, predominantemente, à Seae – Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, que hoje faz a instrução de atos de concentração no âmbito do SBDC – Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Sobre a questão da ênfase a cada uma dessas atividades no âmbito do novo

regime, cabe destacar que todas as agências de defesa da concorrência no mundo enfrentam problemas de escassez de recursos e de pessoal, quando em comparação com os recursos de que dispõe a iniciativa privada. Por isso, é indispensável um processo contínuo de planejamento estratégico e priorização, o que significa decidir o que fazer e também o que não fazer. No novo Cade, a prioridade será, evidentemente, demonstrar que somos capazes de fazer análise prévia de atos de concentração de forma tempestiva e sem perda de qualidade técnica. Isso, evidentemente, não significa abandonar o controle repressivo, em especial a estratégia nacional de combate aos cartéis, mas apenas que a persecução de determinadas condutas poderá levar um pouco mais de tempo para ser concluída. Isso tende a diminuir na medida em que o número de atos de concentração também seja reduzido (a Lei 12.529/2011 estabelece novos critérios de notificação que, de acordo com nossas estimativas, reduzirão em até 30% o número de casos notificados) e na medida em que nosso quadro de pessoal seja completado (a lei cria duzentos novos cargos de especialistas em gestão e políticas públicas, para lotação paulatina no Cade. Há expectativa de que os primeiros cinqüenta desses novos cargos sejam providos até o final de 2013). O Comercialista – Do seu ponto de vista, como tem sido a evolução do Direito da Concorrência, tal qual estudado e aplicado atualmente no Brasil? Como o Brasil se compara a outras jurisdições mais tradicionais, tais como os EUA e a Europa? Olavo Zago Chinaglia – O Brasil é, atualmente, uma referência mundial no

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O Comercialista – Ainda falta uma conscientização e disseminação dessa área no Brasil, sobretudo do ponto de vista jurídico-acadêmico? Por mais que tenhamos grandes expoentes brasileiros que abordam o Direito da Concorrência, há uma dependência da doutrina estrangeira? O que poderia ser feito para mudar esta realidade? Olavo Zago Chinaglia – Não diria que existe dependência da doutrina estran-

geira. O Direito da Concorrência, por suas características, é multidisciplinar e não se confina aos limites da produção científica nacional. É, aliás, bastante salutar que tenhamos acesso a experiências estrangeiras. O importante é saber discernir de forma tais experiências se aplicam ou não à situação da economia brasileira. O que me parece que ainda precisa ser desenvolvido é o grau de familiaridade do Poder Judiciário com questões afetas ao Direito da Concorrência. As decisões do Cade podem ser objeto de questionamento no Poder Judiciário e, não raro, os juízes reconhecem desconhecer as especificidades da área. Não obstante, face à qualificação incontestável de muitos dos nossos magistrados, da atuação competente da Procuradoria Federal especializada do Cade e da estrita observância do devido processo legal nos processos que tramitam no Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, temos obtido sucesso em mais de oitenta por cento das demandas judiciais que versam sobre as decisões proferidas pelo Conselho. O Comercialista – Não raro, os casos submetidos ao CADE geram enorme repercussão na mídia, como ocorreu com o caso BRF Foods. A participação dos veículos de comunicação mais contribui ou atrapalha o desenvolvimento das atividades do CADE? Olavo Zago Chinaglia – A imprensa exerce um papel fundamental em qualquer democracia, de informação ao público e de fiscalização da atividade administrativa. Nesse sentido, chamar a atenção da sociedade para a atuação do Cade é extremamente positivo, não apenas porque obriga-nos a fundamentar as decisões da melhor forma possível, mas também por-

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Direito da Concorrência, em função do excelente trabalho desenvolvido pelas autoridades e pelos profissionais que militam na área. Somos membros observadores do Comitê de Concorrência da OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, sendo que nossa participação é considerada exemplar pelo Ministério de Relações Exteriores. Somos membros ativos da International Competition Network – ICN, tendo sediado agora em abril a Conferência Anual da entidade, que reuniu cerca de 500 delegados de mais de oitenta jurisdições para discussão de assuntos de interesse da comunidade antitruste. Foi a primeira vez que tal conferência foi sediada na América do Sul. Somos, ainda, signatários de diversos acordos de cooperação internacional, que nos dão oportunidades para troca de experiências, informações e permitem uma atuação globalizada no controle de concentrações e condutas transnacionais. Nossa produção acadêmico-científica é, ainda, inferior a de jurisdições mais tradicionais, como os Estados Unidos e a União Européia. Não obstante, é crescente o número de trabalhos de qualidade, tanto sob a ótica jurídica quanto sob a ótica econômica.

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que aumenta o grau de consciência do cidadão comum com relação aos valores tutelados pela nossa atividade. Há, porém, como em qualquer área, bons e maus profissionais. Os jornalistas e veículos da imprensa, quando fazem sensacionalismo, publicam informações imprecisas ou incompletas ou, simplesmente, divulgam inverdades, prestam um enorme desserviço, seja por causa da mera desinformação, seja por comprometer injustamente a legitimidade de uma entidade pública absolutamente séria como o Cade. Seja como for, as decisões do Cade são pautadas por critérios estritamente técnicos. Não aceitamos pressões de nenhuma natureza. O Comercialista – Dentre todos os casos analisados, qual foi, na sua opinião, o de maior relevância, em termos de impactos, reais ou potenciais, ao mercado e os consumidores? Descreva a atuação do CADE nesse caso e quais foram as medidas tomadas para impedir ou encerrar tais efeitos negativos à sociedade.

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Olavo Zago Chinaglia – São inúmeros os casos em que a atuação do Cade foi determinante para preservação do interesse público associado à defesa da concorrência. Um caso menos conhecido, mas não por isso menos importante, foi relatado por mim em 2009. Trata-se da acusação de fechamento do mercado formulada pela Secretaria de Direito Econômico em face da Visa e da então Visanet (hoje, Cielo), que mantinham entre si uma relação de exclusividade nos serviços de credenciamento, captura e liquidação das transações com cartões de pagamento. Conseguimos celebrar um termo de compromisso de cessação com as empre-

sas, por meio do qual elas se comprometeram a fomentar, de maneira objetiva e precisa, a competição no setor. O cumprimento das obrigações de resultado ali estabelecidas foi determinante para o ingresso de novos concorrentes, tanto no mercado de administração de cartões de crédito e débito como no de serviços de credenciamento, captura e liquidação de transações. Dentre as principais consequências do acordo, destaco a disponibilização de máquinas de captura de transações com bandeiras múltiplas, que beneficiou diretamente o pequeno e o médio varejo e iniciou um movimento de reequilíbrio competitivo no setor. As máquinas da Cielo, hoje, capturam transações com cartões Visa, Mastercard e outros, a exemplo do que ocorre com as máquinas da Redecard (que precisou readequar seu modelo de negócios para fazer frente ao novo paradigma de concorrência). Além disso, houve ingresso de novos agentes econômicos no setor, o que contribuiu decisivamente para o objetivo principal da celebração do acordo, que era a tutela das liberdades de iniciativa e de concorrência. O Comercialista – A Lei 12.529/2011 que visa ampliar o poder de ação dos órgãos de defesa da concorrência, reformulando o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, foi sancionada pela Presidente Dilma Rousseff em 30.11.2011. No geral, qual a sua opinião em relação à Lei e às reformas propostas? Olavo Zago Chinaglia – A lei representa um avanço em relação ao sistema anterior, pois racionaliza procedimentos, aumenta a estrutura e confere instrumentos para uma atuação mais efetiva dos órgãos de defesa da concorrência, notada-

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O Comercialista – Uma análise prévia, conforme a Lei 12.529/2011, seria positiva para a economia e atividade empresarial brasileiras? O potencial excesso de burocracia tem sido um dos pontos mais debatidos da Lei, ensejando diversas críticas negativas. O senhor é partidário desta visão? Olavo Zago Chinaglia – Como eu disse, a análise prévia é condição essencial para uma atuação efetiva e eficiente dos órgãos de defesa da concorrência e coaduna-se amplamente com as melhores práticas internacionais. Muito ao contrário do que se pode pensar, a análise prévia não implica aumento de burocracia. Os procedimentos serão racionalizados, as sobreposições de competências serão suprimidas, o número de casos de notificação obrigatória diminuirá e o tempo médio de análise certamente irá diminuir. Casos complexos, que demandarão análises mais aprofundadas e, evidentemente, mais demoradas, recebem tratamento idêntico na grande maioria das economias desenvolvidas. Além disso, o fato de as partes serem obrigadas a aguardar o posicionamento das autoridades concorrenciais para tornar eficaz a operação contribui imensamente para o ambiente de investimentos, pois o custo

de eventuais restrições pode ser precificado desde logo pelas partes, aumentando a segurança jurídica. Não por acaso, a implantação do regime de análise prévia de atos de concentração no Brasil, a despeito de compreensíveis apreensões quanto ao período de implantação do novo sistema, vem sendo amplamente louvada pela comunidade antitruste nacional e internacional. O Comercialista – Qual a sua opinião acerca de um potencial Novo Código Comercial, de matriz principiológica, como ocorre com o PL 1.572/2011, capitaneado pelo Professor Fábio Ulhoa Coelho? Olavo Zago Chinaglia – Ainda não consegui formar um juízo definitivo a respeito da proposta. Por um lado, considero pertinente o argumento de que a consolidação de princípios jurídicos em normas pode contribuir para a respectiva disseminação e aplicação. Por outro lado, parece-me que os problemas identificados hoje na aplicação do Direito Comercial dizem respeito menos aos princípios do que às regras deles derivadas. Afinal, ninguém contesta os princípios da limitação de responsabilidade empresarial, de proteção aos direitos dos acionistas minoritários, de autonomia e independência de títulos de crédito, de responsabilidade objetiva pelo risco da atividade, etc. Todavia, as regras para implantação desses princípios, tal como interpretadas pelos Tribunais, acabam por não tutelá-los de forma consistente. Em suma, tenho dúvidas se o projeto de Código Comercial ataca o cerne desse problema. O Comercialista – De que feito profis-

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mente no que diz respeito à análise prévia dos atos de concentração econômica. Considero, porém, que algumas mudanças legislativas pontuais, como a mudança na base de cálculo e nos percentuais das multas por condutas anticompetitivas, foram inoportunas e desnecessárias. Isso, contudo, não modifica a constatação de que o saldo da nova lei será amplamente positivo para a sociedade.

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sional o senhor sente mais orgulho? Olavo Zago Chinaglia – Procuro exercer minha profissão da maneira mais dedicada possível, zelando sempre pelo rigor técnico e pela responsabilidade. Tenho vários trabalhos de que me orgulho mas, se tiver que apontar um, fico com a minha tese de doutorado, sobretudo pelo esforço que me demandou e pelo resultado alcançado.

Pedro A. Lavacchini Ramunno é estudante do 4° ano da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e estagiário na área de Direito Empresarial do Pinheiro Neto Advogados. E-mail:pedro@ramunno.com.br

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por Ernesto Tzirulnik No setor de seguros a infração à ordem econômica pode partir do próprio aparato estatal, formado pela sociedade de economia mista resseguradora (IRB), pela autarquia federal fiscalizadora (SUSEP) e pelo órgão normatizador (CNSP). 1 Ao invés de avançar sem titubeio no sentido da proteção dos consumidores e da amplificação do acesso da sociedade ao seguro, zelando pelo conteúdo e pela acessibilidade dos seguros privados, o Estado, despercebidamente ou captura, algumas vezes atentará contra a ordem econômica, promovendo a restrição de acesso ao serviço securitário ou a redução do conteúdo deste. Isso acontece com tal reiteração que confirma a velha definição de soberania como o direito de excluir.2 Se a razão do desvio estatal é a captura da Administração pelos interesses empreendedores da atividade seguradora, a verdadeira caixa de pandora em que consiste esse negócio transindividual tão ausente da experiência civilista será o salvo conduto para que ele ocorra com maior frequência e menor notoriedade do que em outros setores da atividade econômica. Escoltado pela espada da estatística e da atuária, o fenômeno securitário somente será acessível para os iniciados no idioleto “segurês” formado com base em fatos técnicos muitas vezes de falsa, porém divulgada, complexidade. Essa bruma propiciará a exclusão desafiadora do direito do consumo, como adverte Pierre Bourdieu: “Talvez não haja pior privação, pior carência, que a dos perdedores na luta simbólica por reconhecimento, por acesso a uma existência socialmente reconhecida, em suma, por humanidade.”3 Não há qualquer exagero em afir-

mar que o não oferecimento das garantias possíveis e a exclusão do sistema e dos proveitos comuns da proteção securitária lesarão cada indivíduo para além da sua condição de consumidor, chegando à própria ordem psíquica, pois como lembra Enrique Dussel, “Há um campo onde o sujeito é intersubjetivo. Temos que partir de um conceito novo de sujeito. Somos intersubjetivos. Nós levamos conosco o nosso pai, a nossa mãe, nossa família, nossa comunidade, e temos de pedir ajuda a Freud para mostrar como o inconsciente é comunitário e intersubjetivo.”4 A depressão do conteúdo e o afunilamento do acesso ao seguro constituem, na sociedade atual, uma face terrível da discriminação, especialmente se considerarmos a impossibilidade de enfrentamento individual para os efeitos da infortunística. Na busca da erradicação dessa tendência não se deve esperar que raios salvadores levantem-se do horizonte empresarial dos seguradores, tendo razão André Comte-Sponville quando afirma que “se quisermos que exista moral numa sociedade capitalista (...), essa moral, como em toda sociedade, só pode vir de outra esfera que não a economia. Não contem com o mercado para ser moral no lugar de vocês!”5 Essa busca cabe ao Direito, valendo notar com Jason J. Kilborn que até mesmo os legisladores, casualmente ou não, acabam “atirando os consumidores no oceano repleto de tubarões...”6 A questão que se coloca para a sociedade e, logicamente, para o Direito, não é simplesmente de corriqueira proteção dos direitos subjetivos individuais, mas da própria afirmação de soberania para o estabelecimento de uma ordem que proteja

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Seguro, Contrato e Ordem Econômica

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Doutrina os cidadãos contra as tendências do capital e da tecnocracia capturada, o que em alguns casos exige a cooperação internacional, como lembra Benjamin R.Barber: “Precisamos da soberania democrática para moderar a anarquia e o monopólio de mercado. Mas a soberania já não é viável de modo isolado dentro das nações. Paradoxalmente, como seus defensores mais entusiasmados reconhecem, o próprio capitalismo requer essa moderação para ele próprio florescer. Mas, considerando a realidade do etos cultural aqui retratado, moderar o capitalismo e renovar o chamado cívico são tarefas enormes, principalmente porque terão de ser realizadas tanto global como domesticamente”7. Essa reflexão é compartilhada por Comte-Sponville, para quem “A verdadeira questão não é ser a favor ou contra a mundialização; é saber que tipo de mundialização queremos. Uma mundialização ultra liberal, que retiraria todo o poder dos Estados? Uma mundialização coletivista, com a qual alguns continuam a sonhar? Ou uma mundialização regulada, controlada, acompanhada, o que supõe instâncias internacionais de decisão e de controle?”8 A cooperação internacional para a contenção de políticas lesivas às ordens públicas econômicas, por certo, impõe ser tal que não aprofunde ainda mais as exclusões, o que há de sempre merecer maior atenção no campo do seguro, onde já é conatural a dependência do resseguro internacional, altamente concentrado em um reduzido número de fornecedores, dependência que se verifica, do ponto de vista nacional, com redobrada ênfase em países subdesenvolvidos como o Brasil.9 Os governantes e a sociedade civil como um todo não podem esquecer que a atividade securitária é a mais importante técnica de socialização das responsa-

bilidades postas à disposição num mundo que se caracteriza pelos acidentes. Aí cresce a importância da seguinte questão formulada por François Ewald: “sabendo que o processo de transformação social que agita nossas sociedades desde dois séculos pode acolher políticas do pior, em quais condições pode ele conduzir ao melhor?”10 As melhores respostas estão situadas na ordem do comunitário, no campo do direito da solidariedade, na compreensão de que somos todos unidos pelo acidente e interessados no enfrentamento de suas conseqüências, individualmente impotentes, ao fim e ao cabo. Essas respostas, em certa medida, não podem descartar o engessamento da liberdade negocial. Como preconiza Eros Grau, citando não por mera coincidência os seguros, deve ceder “em nome da realização de justiça social – mas também do desenvolvimento – o princípio da liberdade de contratar”11. Tais respostas, contudo, na seara jurídica e por quaisquer outros espaços da humanidade confrontam com a tradição individualista e a tendência à internalização solitária do exógeno social, de forma que as posturas concretas dos indivíduos em geral, mesmo os mais atentos, incluídos aí de forma muito destacada os juristas, tendem a ignorar a dimensão social dos fenômenos: “Toda vez, ou quase, diante de problemas que são coletivos, sociais, conflituais – logo, políticos -, a tendência é, nas duas últimas décadas, dar apenas respostas individuais, morais, para não dizer às vezes sentimentais, claro que perfeitamente respeitáveis em sua ordem, mas, como é óbvio, igualmente incapazes de resolver e, no fundo, até de colocar esses problemas sociais, conflituais, políticos com que nos confrontamos.”12 Essa perspectiva individualista difi-

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gência dos interesses, solidariedade. O que cada um faz para si faz também, quer queira, quer não, para os outros; o que faz para os outros, os outros também fazem por ele. Não é preciso ser generoso para tanto: o seguro é um negócio; o que equivale a dizer que funciona na base do egoísmo. É sem dúvida por isso que funciona tão bem.”14 A superação das lesões adquiridas no convívio social não podem prescindir dessa solidariedade tecida com fios de necessidade e de egoísmo, mais do que tingida com o amor ao outro. A tarefa que se impõe é a de estabelecer-se uma nova forma de julgamento, aquele que se atém à regra fundamental da repartição social: “O acidente moderno é contemporâneo das sociedades de massa e seu tipo de promiscuidade. Isto é evidente para os acidentes de trânsito: pode-se atribuí-los a falhas ou a erros pessoais; sabe-se, aliás, que a sua probabilidade aumenta com a circulação, o estado das estradas, etc. No limite, poder-se-ia dizer que, em certas condições de circulação, o acidente, longe de ser exceção, tende a tornar-se a regra; e que aquilo que é excepcional é não haver acidentes ou mais acidentes.”15 Hoje se colocam em cheque até mesmo as teorias que, sob o influxo da necessidade de atribuir indenizações às vitimas, foram criadas pelos juristas para objetivar as responsabilidades. A objetividade social do acidente permite a Ewald até mesmo concluir que não faz sentido as leis recorrerem à idéia de ilícito para a fixação da responsabilidade, partindo da reflexão sobre o desenvolvimento do raciocínio jurídico: “Isto é verdade também para os acidentes do trabalho. Seria necessário proibir as máquinas porque elas eram perigosas? A questão, derivada do pensamento jurídico clássico, colocou-se aos juízes do século XIX confrontados aos

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culta a percepção de que “O acidente moderno implica, para ser compreendido em sua realidade específica, uma forma de conversão intelectual, uma nova forma de julgamento: é quando se julgam os danos conforme a regra da normalidade que eles se tornam acidentes.”13 Quando hoje falamos com as pessoas sobre os seus seguros de perfil e ponderamos que elas estão pagando um pouco menos do que pagariam pelos seguros comuns, mas em contrapartida estão deixando desprotegida a sociedade como um todo e, em largo prazo, legitimando uma política de exclusão dos não “perfilizados”, o mais provável será escutarmos que nosso interlocutor não está preocupado ou não pode ficar aí fazendo generosidade. E algum segurador ainda fará sua publicidade divulgando “seguro perfil: o seguro feito exclusivamente para você” ou “a Cesar o que é de Cesar” para o consumidor que pensará “seguro comum não contrato, é fácil querer fazer gentileza com o chapéu alheio”. O que falta ser compreendido é que a generosidade “é diferente da solidariedade, que consiste em levar em conta os interesses do outro porque você compartilha esses interesses. Você faz um benefício a ele, e isso lhe traz ao mesmo tempo um benefício. (...) Quanta generosidade! (...) Ora, que eu saiba ninguém contrata uma apólice de seguro por generosidade: todos nós o fazemos por interesse. Mas essa cotização para cobrir os riscos, que é um seguro, permite-nos criar uma convergência objetiva de interesses entre os diversos segurados, em outras palavras, pelo menos uma solidariedade objetiva. É assim que nós nos protegemos – ao mesmo tempo todos juntos e cada um por si – contra as vicissitudes da existência. É o princípio do seguro: compartilhamento dos riscos, adição dos meios, conver-

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Doutrina acidentes do trabalho ou aos acidentes de estrada de ferro. Teria sido uma falha introduzir na vida coletiva atividades que, sabia-se, implicavam riscos específicos? O legislador prussiano havia respondido pela afirmativa, em 1938, com relação às estradas de ferro: qualquer acidente, seja qual fosse a causa, seria atribuído à falta do explorador. Isto não fazia muito sentido.”16 Ewald insiste, com muita razão, em que a saída está no distanciamento daquele vezo a que se referiu Comte-Sponville e que todos nós, operadores do direito, amiúde flagramo-nos a cometer, o “dar apenas respostas individuais, morais, para não dizer às vezes sentimentais”, e aduz em conclusão que não nos cabe afirmar que o progresso é ilícito: “Não era possível assentar o progresso sobre a indústria e dele fazer uma atividade faltosa. O julgamento do comportamento individual do industrial perdia toda pertinência. O problema era mais saber como se dividiam os encargos ligados à produção dos bens coletivos. A objetivação dos danos sofridos pelos trabalhadores no seu trabalho como “acidentes”, e não mais como delitos ou casos fortuitos, está ligada a esta nova forma de julgamento que considera a atribuição dos bens e dos males individuais não mais em função de um indivíduo sozinho, com relação ao seu comportamento, mas como produtos da repartição social de um bem comum, como se os indivíduos, e o que lhes acontece, fossem partes de um todo, a sociedade, ela mesma objetivada como o sujeito do mencionado bem comum.”17 É bastante elucidativa a conclusão a que chega Guillaume Etier: “Do risco à falta: é dessa evolução dogmática que o direito da responsabilidade civil ainda é tributário. Resta-nos desejar que o movimento inverso, surgido há alguns anos, se

perpetue, e que a responsabilidade entre, enfim, numa era renovada: aquela que a fará voltar da falta ao risco.18” Essa função, a de socializar a resposta dos indivíduos perante o acidente, única forma de enfrentar ou atenuar suas agressões, mais do que uma utopia é precisamente a função securitária. E ela não se restringe ao campo da previdência (riscos aferidos, constatados - estatística), mas extravasa para a precaução (riscos suspeitados).19 20 O fluir dessa ampla função protetiva que os seguros potencializam, contudo, não poderá depender dos governantes, quanto mais dos empreendedores dos seguros, sejam públicos sejam privados, como dá mostra o depoimento de um presidente do IRB: “Outros riscos poderão ser aceitos, porém serão olhados com lupa. É o caso dos seguros de responsabilidade civil, um ramo de pouca tradição no Brasil. Nesse caso, o IRB poderá entrar para ficar com uma pequena fatia, apenas para acompanhar o setor, obter informações para formar um banco de dados. ‘Mas desde que tenha cláusulas muito claras de exclusão de determinados riscos’ ”. 21 Abra-se um parênteses para recordar que se de um lado o ângulo pelo o qual é encarada a responsabilidade civil no meio judicial é ainda bastante individualista, de outro é justamente esse seguro de responsabilidade civil que pode fazer avançar a solidarização social, como ressalta Anderson Schreiber, o que, no entanto, será mais do que nunca freado pela lupa do maior e mais próximo do Estado underwriter brasileiro, o IRB22: “Tem-se, em síntese, de reconhecer que a construção da responsabilidade social mostra-se, hoje, como um caminho a ser trilhado. No Brasil, embora as cortes judiciais tenham acelerado o processo de solidarização com relação aos pressupostos tradicio-

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deve atuar - segundo os princípios e regras conformadores da ordem econômica juridicamente projetada através da Constituição econômica: “conjunto de princípios que institui determinada ordem econômica (mundo do ser) ou conjunto de princípios e regras essenciais ordenadoras da economia, é de se esperar que, como tal, opere a consagração de um determinado sistema econômico.”26 Cabe verificar que os objetivos da República são consignados na Constituição Federal de 1988 por meio de comandos democratizadores do “mercado interno, que integra o patrimônio nacional” (CF, art. 219), e que buscam um projeto de desenvolvimento, ao mesmo tempo, internalizador dos centros de decisão (CF, art. 3°, caput) e redutor das desigualdades sociais (CF, art. 3°, incisos). A constituição econômica está aí para que se garanta a construção de uma “sociedade livre, justa e solidária” (art. 3°, I) e, para tanto, estabelece no art. 170, entre outros, os princípios que se coordenam com os “objetivos da República” (art. 3° e incisos), a soberania nacional, a função social da propriedade, a livre concorrência, a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e sociais, a busca do pleno emprego e o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Isso já é o bastante para dar conta do tema que ora nos ocupa, bastando lembrar que lesões à ordem econômica são inconstitucionalidades, do que resulta também evidente que se a regulação dos contratos (por norma ou decisão) verter no sentido contrário ela será inconstitucional. São tantos os casos que sucedem no âmago da própria Administração especia-

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nais da reparação, as decisões continuam necessariamente vinculadas à resposta individual que lhes reserva o ordenamento jurídico. A superação desta incoerência flagrante exige uma revisão critica da função da responsabilidade civil, que só mais recentemente vem-se propondo. As soluções securitárias, relativamente bem-sucedidas em outras experiências, devem ser estudadas com afinco, procedendo-se às necessárias adaptações do instituto à realidade dos países latino-americanos.”23 Dissemos que os empresários e os governantes não poderiam garantir a tentativa de construção de uma ordem econômica que fluísse rumo à proteção da sociedade. Quem então pode contribuir para isso? A resposta está na Constituição econômica. A Constituição Federal traz o conjunto de princípios e regras essenciais ordenadores da economia justamente por causa da impossibilidade de entregarmo-nos à militância da moral ou da ética espontâneas da economia. Não se trata de um julgamento moral, mas da realidade histórica, como lembra Eros Grau: “As imperfeições do liberalismo, no entanto, associadas à incapacidade de auto-regulação dos mercados, conduziram à atribuição de nova função ao Estado. À idealização de liberdade, igualdade e fraternidade se contrapôs a realidade do poder econômico.”24 O papel do Estado será regular a economia: “Evidente a inviabilidade do capitalismo liberal, o Estado, cuja penetração na esfera econômica já se manifestara na instituição do monopólio estatal da emissão da moeda – poder emissor-, na consagração do poder de polícia e, após, nas codificações, bem assim na ampliação do escopo dos serviços públicos, assume o papel de agente regulador da economia.”25 Mas, o Estado atuará – ao menos

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Doutrina lizada, como a SUSEP, que a descaracterização ou a desnaturação dos contratos somente não acontece com plenitude porque as instituições tendem a sobreviver. Vamos exemplificar casos de lesão à ordem pública com efeito direto no direito dos consumidores. Na “Era Collor”, quando, no início de 1990, foi implantando no Brasil um plano econômico que, entre outras coisas, substituía a moeda então em curso, o Cruzado Novo, pelo Cruzeiro, deixando aquela na condição de título com valor sujeito a deflação e circulação restrita (meio de compensação para dívidas tributárias etc.). Com o objetivo de salvar as companhias seguradoras e ajudá-las a despejar o lastro de Cruzados Novos a SUSEP expediu a Circular nº 6/90, de 02 de abril de 1.990, cujo § 1o do art. 2o dispunha: “Os sinistros ocorridos anteriormente a 16 de março de 1.990, ainda pendentes de pagamento, poderão ser indenizados, a critério do segurador, mediante transferência de titularidade dos cruzados novos correspondentes ao segurado.” Essa regra, como se vê, permitiria que as companhias seguradoras extinguissem as dívidas de indenização por sinistros ocorridos até 16 de março de 1990 com a simples transferência da titularidade de Cruzados Novos aos segurados e beneficiários, contrariando frontalmente até mesmo a norma de alerta do art. 2o do Decreto-lei no 73/66, violava princípio fundamental (princípio indenizatório) instalado no art. 1.458 do Código Civil velho: “O segurador é obrigado a pagar, em dinheiro, o prejuízo (...) e conforme as circunstâncias o valor total da coisa segura.” Em suma, os segurados com sinistros compreendidos no Período arbitrariamente escolhido pela autarquia federal ao invés de receberem moeda com poder liberatório e, assim, verem-se aptos para a

continuidade dos seus negócios, repondo as mercadorias incendiadas ou a máquina que quebrou, ou simplesmente terem seus carros de passeio, teriam apenas um titulo governamental incapaz de torná-los indenes. Coube ao Judiciário a tarefa de censurar a abusividade numa “decisão, harmonizada com os preceitos legais que regem a questão concernente ao pagamento do prêmio [rectius: indenização] do seguro, em moeda corrente nacional, preserva-se a finalidade precípua do contrato celebrado, possibilitando aquele que teve o bem sinistrado adquirir outro da mesma espécie: noutras palavras, é o seguro inspirando segurança. (Mandado de Segurança no 90.0009504-2, da 14ª Vara Federal Cível de São Paulo).”27 Na seara seguradora essa infelicidade do governo Collor não se traduz numa excepcionalidade. Em 2007 o presidente Lula, aplaudido por federações de seguradoras e corretores, nomeou um corretor de seguro para o cargo de superintendente da SUSEP. Tratava-se de corretor que além de Secretário de Assuntos Institucionais do Estado de Goiás era presidente da FENACOR, a Federação Nacional dos Corretores de Seguros. Todos comemoraram o fato de o presidente Lula ter, pela primeira vez, nomeado um corretor de seguros para chefiar a agência fiscalizadora e reguladora dos seguros. No blog Amigos do Presidente Lula se lê: “Ele é o primeiro corretor a assumir a missão de fiscalizar e regular os mercados de seguros, previdência aberta, capitalização, resseguros e também os corretores.”28 Em 19 de março de 2010, o corretor de seguros afastou-se da SUSEP para disputar um mandato como Deputado Federal pelo Estado de Goiás. Antes, porém, expediu a Circular SUSEP 401, de 25 de fevereiro de 2010 aumentando o chamado “custo de apóli-

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desprovidos de sua potencial utilidade, para a sociedade como um todo e, em especial, para os próprios consumidores aquinhoados. Sente-se a dificuldade a que alude Pietro Perlingieri: “Não é possível colher aquilo que de saliente tem ocorrido nesses últimos anos na justiça civil e na cultura jurídica, assim tão condicionadas no nosso país por um desenvolvimento econômico nem sempre apreciável pela qualidade e assim profundamente diversificado e desequilibrado. Não basta colocar em evidência a grande diferença entre as garantias formais e aquelas que concretamente encontram atuação na justiça vivente, na história de cada dia, que se de um lado representa a história das empresas, dos problemas da produção, da distribuição e financiamentos, representa também a história dos últimos, de tantos marginalizados, por escolha ou por necessidade, pelo ciclo produtivo. (...) A justiça é derrotada quando a sociedade se consolida no particularismo dos indivíduos e dos grupos, nas recomendações, (...)29” É muito difícil viver num país em que as pessoas não têm a menor ideia de contra quem, nem do que, devem se defender. Todo mundo fala que existem direitos humanos, mas eles são violados diariamente, até pela polícia. Proclamam a ilicitude das gravações não autorizadas, mas acontecem, aos montes, e as autoridades cuidam de vazá-las. Todos falam que temos um avançadíssimo Código de Defesa do Consumidor, mas os abusos contra os consumidores despencam das prateleiras. O então deputado paulista José Eduardo Cardozo, hoje Ministro da Justiça, com base em Anteprojeto desenvolvido por comissão de juristas coordenada pelo Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS), apresentou um projeto para

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ce” de R$ 60,00 para R$ 100,00, custo esse que algumas seguradoras já não mais cobravam e era considerada abusiva pelos próprios corretores de seguro. Aquilo que estava para ser abolido, acabou sendo agravado em prejuízo dos consumidores. Logo após a expedição da circular, a FENACOR e a FENSEG, uma das federações de seguradoras, celebraram um acordo. Os consumidores pagarão mais R$ 40, a cada apólice ou alteração emitida, metade cabendo às seguradoras e metade aos corretores de seguro, durante algum lapso de tempo sendo destinada parte da cobrança à FENACOR. No mercado brasileiro emitem-se centenas de milhões de apólices de seguro e aditivos. Os números envolvidos são elevadíssimos. Recentemente, em março de 2012, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica do Ministério da Justiça, no curso do procedimento referente a ato de concentração de seguradoras, acabou deparando com práticas abusivas que vieram a ser condensadas em determinação aprovada pela unanimidade dos Conselheiros no sentido de que a Secretaria de Direito Econômico apurasse o desvio de comportamento em “questões de grande relevância”, como as “cobranças de taxas indevidas em seguros”, exemplificando com o “custo de apólice”. A SDE ainda não tomou iniciativas concretas, mas a SUSEP expediu a Circular 432/2012 que, embora tímida, suspende os efeitos da Circular 401/2010. São muitos os exemplos de regulação com desvio de finalidade envolvendo os órgãos de ação intervencionista no setor de seguros, essa terra de ninguém. Despercebidamente perseveramos criando discriminação e promovendo grupos legitimados para ascender a um paraíso formado por produtos e serviços tão dignificantes para os clientes quanto

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criar a primeira lei do contrato de seguro do Brasil, em cujos artigos sempre se enfatiza que o órgão fiscalizador só pode praticar atos em favor dos consumidores, nunca contrários (PL 3.555/2004). O Projeto, hoje, é considerado prioritário pelo Ministério da Justiça. Na última versão, consolidada no PL 8.034/2010, de autoria do deputado Rubens Moreira Mendes, a Lei de Contrato de Seguro que se pretende outorgar inicia com a seguinte regra: “Art. 1°. A atividade seguradora será exercida de modo a viabilizar os objetivos da República, os fins da ordem econômica e a plena capacidade do mercado interno, nos termos do artigo 3°, 170 e 219 da Constituição Federal de 1988.” Tudo indica que finalmente o Estado brasileiro percebeu que a garantia da transparência e a eticidade nas relações de seguro é tão ou mais importante do que os números envolvidos.

da Dignidade Humana, MIRANDA, Jorge e SILVA, Marco A. Marques da (coord.). São Paulo: Quartier Latin, 2008. P. BORDIEU, Meditações pascalianas apud Z. BAUMAN,

3

Vida para consumo – a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 7. DUSSEL, Enrique, Vivemos uma primavera política in

4

Jornadas Bolivarianas. Disponível em http://www.iela. ufsc.br/?page=noticias_visualizacao&id=785, acesso em 09 de novembro de 2009. COMTE-SPONVILLE, André. O capitalismo é moral?,

5

São Paulo, Martins Fontes, 2005, p. 79. 6

KILBORN, Jason J. Comportamentos econômicos, supe-

rendividamento; estudo comparado da insolvência do consumidor: buscando as causas e avaliando as soluções? Estudos de Direito Comparado sobre o superendividamento in Direitos do Consumidor Endividado. LIMA MARQUES, Cláudia e LUNARDELLI CAVALLAZZI, Rosângela (coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 79. 7

BARBER, Benjamin R.Consumidor - Como o mercado

corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Rio: Record, 2009, p. 376. 8

Op. cit., p. 182 e ss.

9

Ver nota anterior contendo matéria jornalística a respeito

do IRB e suas interações com o resseguro internacional.

Notas 1

IRB Brasil Resseguros S.A. (anteriormente Instituto de

Resseguros do Brasil) é o ressegurador que até o início de

EWALD, François. L’Etát Providence. Introdução – fi-

10

nal. Paris: Grasset, 1986, Introdução, trad. livre. 11

GRAU, Eros Roberto. Elementos de Direito Econômico.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, Pp. 179-81.

vigência da Lei-Complementar nº 126/2007 além de deter

12

Comte-Sponville , op. cit., ps. 23-4.

o monopólio do resseguro (seguro dos riscos da ativida-

12

François Ewald, op. loc. cit.

de das seguradoras) normatizava-o. SUSEP é a Superin-

13

Comte-Sponville, op. cit., p. 122 e ss.

tendência de Seguros Privados, autarquia federal fiscali-

14

François Ewald, op. cit., Introdução.

zadora das operações de seguro e resseguro, vinculada ao

15

François Ewald, op. cit., Introdução.

Ministério da Fazenda. CNSP é o Conselho Nacional de

16

Op. loc. cit.

Seguros Privados, presidido pelo Ministro da Fazenda e

17

ETIER, Guillaume. Du risque à La faute – Evolution de

integrado por representantes do Ministério da Justiça, Mi-

La responsabilité civile pour Le risque Du droit romain au

nistério da Previdência, Comissão de Valores Mobiliários

droit commun. Bruxelas: Bruylant, 2006, p. 376.

e Banco Central, com função normativa. Ver, a respeito, o Decreto-lei 73/66.

18

TAPINOS, Daphné. Prevention, Precaution et Responsa-

bilité civile, p. 59. Paris: L’Harmattan, 2008. 19

M. MAYAUX, LUC. “Réflexions sur le principe de pré-

caution et le droit des assurances” in Revue genérale du Abril 2012

O Comercialista

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Disponível em http://www.fazenda.gov.br/resenhaele-

tronica/MostraMateria.asp?page=&cod=601936 – Acesso

22


21 22

Idem anterior. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da respon-

sabilidade civil - Da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos, 2ª ed. São Paulo: Atlas,2009, p. 237. 23

GRAU,Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constitui-

ção de 1988, 9a ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 17. 24

GRAU. Op. Cit. p. 21.

25

Idem anterior, p. 72.

26

EJZENBERG, Wolf. “Fiscalização da atividade segura-

dora – Limites do controle estatal” in Revista brasileira de Direito do Seguro e da Responsabilidade Civil, ano I, 1ª ed., p. 311 e ss. São Paulo: MP, 2008. 27

Disponível em http://osamigosdopresidentelula.blogs-

pot.com/2007/08/lula-nomeia-armando-verglio-para. html - acesso em 23 de julho de 2010. 28

PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade

Constitucional, ps. 37-8. Rio de Janeiro: Renovar, 2008

Ernesto Tzirulnik é Presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro, sócio fundador do IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, coordenador da Comissão Elaboradora do Anteprojeto de Lei de Contrato de Seguro (PL 3.555/2004 e PL 8.034/2010), autor dos livros Regulação de Sinistro - ensaio jurídico, São Paulo, Max Limonad, 1999 (colaboração de Alessandro Octaviani Luis) e Contrato de Seguro de Acordo com o Novo Código Civil, São Paulo, RT, 2002 (coautores Flavio Queiroz de Bezerra Cavalcanti e Ayrton Pimentel) e mais de uma centena de artigos. Advogado em São Paulo, é doutorando pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco. E-mail: dir@etad.com.br

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em 20.04.2012.

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Cotas para a Participação de Mulheres nos Conselhos Administrativos

A Comissão de Assuntos Econômicos do Senado (CAE) aprovou, no primeiro semestre do ano passado, o projeto de lei n° 112/2010, de autoria da senadora Maria do Carmo (DEM-SE) o qual tornará obrigatória a participação das mulheres nos Conselhos de Administração das empresas públicas e sociedades de economia mista, suas subsidiárias e demais empresas, nas quais a União detém a maioria do capital social, com direito a voto. A proposta prevê, ainda, que o preenchimento dos cargos deverá ocorrer de maneira gradual, atingindo até 40% em 2022. A senadora alega a necessidade

Sim

de correspondência entre a participação das mulheres na produção dos bens públicos e sua presença nos “órgãos que decidem os destinos dos recursos produzidos a partir do esforço de toda a sociedade”. Afirma, também, que deve ser função do Estado promover uma iniciativa direta para que sejam postos em prática os imperativos constitucionais de igualdade entre homens e mulheres, conforme disposto no artigo 5° da Carta Magna. A questão que permanece é: A intervenção estatal, promovida por meio do Projeto de Lei 112/2010, é, realmente, uma medida positiva?

Quotas: quebrando um teto de vidro por Ana Flora Pontes

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Ao criar uma lei que estabelece quotas para mulheres nos Conselhos de Administração, o Congresso Brasileiro estará realizando movimento absolutamente coerente com os compromissos assumidos em âmbito internacional para construção de uma sociedade mais justa, igualitária e democrática. Quando ratificou a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), o Estado brasileiro se comprometeu expressamente a tomar as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher praticada por qualquer pessoa, organização ou empresa1.

De acordo com o artigo 4º da Convenção, “a adoção pelos Estados-Partes de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação na forma definida nesta Convenção”. A medida em questão deve, portanto, ser entendida como ação afirmativa, ou seja, espécie de medida cujo objetivo é acelerar o processo necessário para alcance da igualdade material entre homens e mulheres. Cabe frisar também que o dispositivo destaca o caráter temporário desse tipo de medida, já que pela sua natureza, devem ser revogadas quando já se constatar atingida a

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rando a generalidade desse quadro, não é razoável supor que suas justificativas sejam a falta de mérito ou capacidade de liderança das mulheres. Trata-se de uma distorção de bases estruturais que exige intervenções. As quotas são apenas uma maneira (desejável) para alterar esse quadro. Sua implantação não é incompatível, pelo contrário, com outras políticas que podem ser adotadas pelas organizações. Fato é que estimulam uma alteração de cultura organizacional, pressionando as empresas a investirem na qualificação e preparação de suas funcionárias, muitas vezes preteridas e com potencial subaproveitado. Dessa forma, defende-se que o projeto de lei, diga-se de passagem, bastante tímido se considerarmos seu restrito âmbito de incidência e prazo estabelecido para implantação/implementação, é medida muito bem vinda para a construção de um país com mais igualdade de gênero.

Notas 1

http://www.agende.org.br/docs/File/convencoes/ce-

daw/docs/Convencao.pdf 2

http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/comunicado_pre-

sidencia/100308_ComunicaIpea_40_Mulheres.pdf

Ana Flora Pontes é estudante do 4° ano da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e integrante do Coletivo Feminista Dandara. E-mail: anaflorafspontes@gmail.com

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igualdade material pretendida. A partir de uma análise de estatísticas com recorte de gênero, torna-se evidente o fato de que embora as mulheres tenham avançado muito em termos de anos de escolaridade e capacitação profissional, as mudanças qualitativas na forma de ocupação dos espaços no mercado de trabalho não vem ocorrendo de maneira satisfatória. De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)2, em 1998, as mulheres com 15 anos ou mais de idade tinham, em média, 6 anos de estudo; dez anos mais tarde, chegaram a 7,6 anos, comparados a 7,2 anos entre os homens. Se restringirmos o âmbito de análise apenas ao ensino superior, para cada 100 alunos havia 133 alunas no ano de 2008. Ainda assim, o trabalho doméstico e de cuidados permanece sendo visto como uma responsabilidade feminina, fato que tem influência direta nas possibilidades de ascensão no emprego: quando não diminui a disponibilidade das mulheres para ocupar cargos de liderança, atua alimentando o entendimento generalizado de que as mulheres não tem as mesmas condições para exercer cargos de maior prestígio. Mesmo as mulheres mais preparadas enfrentam, portanto, uma espécie de “teto de vidro”, uma barreira que embora não seja visível, dificulta que as mulheres alcancem os postos de comando nas organizações, gerando uma representação desproporcional em relação à sua participação na força de trabalho. Comparando os dados, percebe-se, então, que a velocidade das transformações no âmbito educacional é muito superior ao avanço das mulheres nos quadros de carreira das organizações. Conside-

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Não

Mérito próprio por Desire de Oliveira

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A questão das cotas é no mínimo controversa e gera dúvidas e inseguranças tanto para os empresários como para as próprias profissionais das grandes empresas. Inúmeras pesquisas, dentro e fora do país, demonstram a divergência entre homens e mulheres nos cargos de chefia das grandes sociedades e companhias, sendo que no Brasil, conforme dados do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), por exemplo, somente 8% das mulheres que trabalhavam em grandes corporações em 2009 exerciam cargos de liderança, à época em que as pesquisas foram realizadas. Esse baixo índice de mulheres nos Conselhos de Administração levou à geração do sistema de participação mínima, principalmente na Europa, e que se expandiu para o restante do mundo. Contudo, essa solução não é única e, tampouco, suficiente para a resolução do problema, além de não ser bem vista pelos empresários e profissionais. Uma recente pesquisa feita pela Harvey Nash, consultoria de recrutamento global de profissionais (www.harveynash.com), mostrou que 64% das mulheres ouvidas não se mostram favoráveis a políticas afirmativas de introdução de quotas legais. Para elas, as mulheres devem alcançar seu espaço nas grandes empresas por sua competência e mérito próprio e não por uma obrigação estatal, somente pelo fato de serem de um determinado sexo.

Na verdade, a criação de quotas pode ampliar ainda mais o distanciamento entre homens e mulheres, na medida em que a chegada destas profissionais em altos cargos de liderança se dará por meio de uma imposição autoritária estatal que não permite às empresas selecionarem seus próprios funcionários da maneira natural, mas obrigando-as a seguirem tais imposições. Percebe-se, assim, uma visão menosprezada e inferior da mulher, como se ela não fosse suficientemente capaz de alcançar aquela posição profissional por sua própria qualificação. Heloisa Bedicks, superintendente-geral do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) entende que “as mulheres têm competência suficiente para se tornarem conselheiras por méritos, sem a necessidade de cotas. A contratação compulsória compromete sua participação efetiva no conselho, gera desconfiança por parte de seus pares, além de provocar mal-estar na profissional que não aceitaria ocupar o cargo apenas pelo fato de a empresa ser forçada a cumprir a cota. Há outra preocupação, já que colocar mulheres que não estejam devidamente qualificadas para compor o conselho pode comprometer o desempenho do órgão”1. Um caminho mais razoável e sensato para incentivar a participação dessas mulheres seria, por exemplo, a adoção de métodos de avaliação de funcionários, uma ótima prática de governança, oferecendo-lhes cursos de especialização

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Notas 1

http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.

php?cod=405725

Desire de Oliveira é estudante do 3° ano da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, escritora e colaboradora das Organizações Bradesco. E-mail: desire.oliveira@usp.br

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e treinamento dentro das empresas e proporcionando, dessa maneira, uma abertura de vagas para novos participantes. Isso garantiria uma renovação no quadro administrativo, permitindo a entrada de um maior número de mulheres nele, estando estas especializadas, preparadas e competentes para os cargos de liderança e a tomada de decisões nessas companhias. Pode ser um longo caminho a ser percorrido, contudo, os resultados seriam, definitivamente, mais efetivos do que uma simples obrigação legal. A presença feminina em Conselhos de Administração no país é um processo já em andamento, que evolui gradualmente conforme a qualificação das mulheres também se expande. Dessa maneira, confiando completamente na competência dessas mulheres, uma imposição legal de cotas de gênero se torna desnecessária e meramente desagregadora.

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El derecho de la Unión Europea y la política industrial de las pequeñas y medias empresas por João Pedro de Oliveira de Biazi

Introducción El proceso de integración europeo, desde el inicio de las relaciones fraccionadas después de la segunda guerra, se caracterizó por la idea de progresividad. Esa concepción tiene una proyección especial en tres ámbitos: (i) la ampliación de las materias o competencias puestas en común en el proceso de integración; (ii) la creación de nuevas estructuras al servicio de la integración; y (iii) la definición de los modelos de relación entre los Estados y el proceso de integración. Por último, la identificación de valores, principios y objetivos que están en la base del proceso de integración. Es con ese carácter progresivo de construcción de la Unión Europea que estimuló el desarrollo de una política de integración económica hasta una integración política, que se encuentra en un puesto de destaque actualmente. Los objetivos de la Unión Europea se encuentran enunciados en el artículo 3 del Tratado de la Unión Europea (TUE). Entre ellos, es posible destacar:

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“La Unión establecerá un mercado interior. Obrará en pro del desarrollo sostenible de Europa basado en un crecimiento económico equilibrado y en la estabilidad de los precios, en una economía social de mercado altamente competitiva, tendente al pleno empleo y al progreso social, y en un nivel elevado de protección y mejora de la calidad del medio ambiente. Asimismo, promoverá el progreso científico y técnico.”1

El desarrollo económico de los países miembros siempre fue una preocupación del proceso de integración2. Con esa mentalidad, la Unión Europea trabajó juntamente con sus miembros para construir una comunidad con franco crecimiento económico, actuando, en ese sentido, en varios puntos distintos, por medio de inúmeros reglamentos, directivas, decisiones, etc. Dentro del campo de las pequeñas y medias empresas (PYME), la Unión ha colaborado con una cooperación de trabajo entre los países europeos. Varias políticas de creación de empresas, de incentivo a la inserción de las empresas en el escenario internacional, del desarrollo de la educación empresarial y de otras políticas ayudaron a unificar las directrices normativas de los países de la UE. Hace poco tiempo que la Unión Europea renovó el concepto de PYME. Con El objetivo de actualizar los umbrales, promover las microempresas, y mejorar el acceso al capital, las pequeñas y medias empresas ahora son definidas como micro, pequeña o media empresa con base en nuevos criterios: Unidades de trabajo anual (UTA), Volumen de negocios anual y Balance general anual3. El presente artículo analizará los impactos del derecho y de la política de integración europea en las mejorías del papel de las pequeñas y medias empresas en el escenario europeo. Política de la Unión Europea para las Pequeñas y Medias Empresas

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“I. Establecer un marco en el que los empresarios y las empresas familiares puedan prosperar y en el que se recompense el espíritu empresarial II. Garantizar que los empresarios honestos que hayan hecho frente a una quiebra tengan rápidamente una segunda oportunidad III. Elaborar normas conforme al principio de

“pensar primero a pequeña escala” IV. Hacer a las administraciones públicas permeables a las necesidades de las PYME V. Adaptar los instrumentos de los poderes públicos a las necesidades de la PYME: facilitar la participación de las PYME en la contratación pública y utilizar mejor las posibilidades de ayuda estatal ofrecidas a las PYME VI. Facilitar el acceso de las PYME a la financiación y desarrollar un marco jurídico y empresarial que propicie la puntualidad de los pagos en las transacciones comerciales VII. Ayudar a las PYME a beneficiarse más de las oportunidades que ofrece el mercado único VIII. Promover la actualización de las cualificaciones en las PYME y toda forma de innovación IX. Permitir que las PYME conviertan los desafíos medioambientales en oportunidades X. Animar y ayudar a las PYME a beneficiarse del crecimiento de los mercados”

Juntamente con las reglas de la llamada Estrategia 20207, los objetivos son puestos en práctica por iniciativas nacionales. Aunque la Comisión y los Estados miembros son solamente “convidados” a poner en práctica los principios de la ley, hay una fuerza política responsable por canalizar los esfuerzos legislativos en una dirección específica. Así, mismo sin la responsabilidad jurídica evidenciada, los países miembros desarrollan políticas de acceso a la financiación, mejoran las condiciones marco, los derechos de propiedad intelectual, de incorporación de las empresas al mercado internacional, etc. Actuación nacional: ejemplo español Como los campos de actuación de la política industrial de las pequeñas y medias empresas europeas es de competencia de los Estados miembros, es necesario analizar cómo los países han contestado las políticas propuestas en el ámbito europeo, como vimos anteriormente. Para

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Las pequeñas y medias empresas desempeñan un papel decisivo en la competitividad y dinamismo de la economía europea4. Para ayudarlas, la Unión Europea y sus países miembros trabajan para facilitar el ejercicio del espíritu emprendedor entre los ciudadanos europeos. Es con tal objetivo que la Unión tiene un conjunto normativo que contribuí para la creación de un marco empresarial más respetuoso con las pequeñas y medias empresas. Una de las más importantes leyes que procura contribuir para esos objetivos es la Ley de la Pequeña Empresa para Europa, más conocida como Small Business Act (SBA). Sin duda, el Small Business Act es un importantísimo marco político europeo de actuación a favor de las pequeñas y medias empresas. Adoptado en 2008 y revisado en 2011, trae diez principios que guiarán la concepción y aplicación de las políticas a nivel europeo y también entre el nivel nacional. También tiene en su contenido un paquete concreto de medidas legislativas y no legislativas para la aplicación de los principios puestos. La mayoría de las medidas adoptadas por la ley son non legislativas y sin grandes vínculos jurídicos. Sin embargo, el SBA es un importante marco de actuación, teniendo una fuerza política que intenta coordinar las acciones de los países miembros en la política de las pequeñas y medias empresas5. Vale conocer los diez principios del Small Business Act6:

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el interés del presente artículo, usamos como ejemplo la España. Es posible citar el desarrollo español en el área al analizar la estrategia de economía sostenible8, con actuación hasta 2020. En el plano, hay veinte medidas que procuran mejorar la ley concursal, implantar políticas sectoriales, impulsar la innovación, hacer reformas en las reglas administrativas, etc. También es obligatorio conocer el Plan Integral de Política Industrial 2020 (PIN-2020)9, que procura mejorar el peso de la industria en el PIP español, haciéndola más innovadora y competitiva. A respecto de la creación de empresas, en España, son las comunidades autónomas que hacen las medidas de ayuda al desarrollo del proceso para empezar un negocio. El Estado español ayuda con reuniones que acuerdan el reparto de dinero a algunas medidas. La gestión directa de los programas es de las comunidades autónomas. Juntamente con otros programas que ayudan en el desarrollo de empresas10, es posible notar la fuerza política de los documentos de ordenen europea11 en la política industrial estatal española. Conclusión: ¿y la actuación del Mercosur?

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Como vimos, la política industrial de la Unión Europea es motivada por documentos con fuerza jurídica pequeña, pero con capacidades políticas capaces de introducir una línea de desarrollo normativo a los países de la Unión. Pero, ¿y en el caso de Latinoamérica, más específicamente, del Mercosur? ¿Es posible crear un conjunto de directrices semejante? Es importante conocer la naturaleza completamente distinta de la Unión Europea y del Mercosur. La Unión Europea es una organización supranacional, una vez que los Estados miembros atribuyen

competencias para alcanzar sus objetivos12. Las instituciones europeas y la relación con los países miembros son marcadas por la existencia de una jerarquía. Con eso, las normas de la unión siguen el principio de primacía, del efecto directo, de autonomía y de todos los otros principios del derecho comunitario supranacional. El Mercosur es un típico ejemplo de organización de derecho internacional intergubernamental. Aquí no hay atribución de competencias entre los Estados miembros, tampoco una estructura jerárquica. Su desarrollo se encuentra limitado a las situaciones de total consenso y cooperación entre los miembros. No hay supranacionalidad13. Es importante mencionar las políticas que han sido desarrolladas por el Mercosur actualmente. No podemos olvidar que existe una preocupación con la evolución normativa de la política industrial y de apoyo a las pequeñas y medias empresas de los países miembros, y esa preocupación es evidenciada en varios documentos del grupo14. Sin embargo, dada la diferencia de las comunidades, es visible percibir que el camino de integración de las políticas industriales en el Mercosur tiene más dificultades y que ellas tienen origen en la propia naturaleza intergubernamental del Mercosur. Sin embargo, existe la posibilidad de empezar un trabajo de formulación de documentos y instrumentos de fuerza política que pueden ayudar o simplemente suportar el desarrollo común entre los países del Mercosur. Es verdad que la responsabilidad jurídica por el incumplimiento de las metas de esa política industrial es más difícil de existir en el Mercosur que en la Unión Europea, pero nada obsta el desarrollo de directrices políticas para la evolución coordenada de la política industrial entre los países del Mercosur.

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Artículo 3.3, TUE. El desarrollo del proceso de integración europeo, desde el posguerra, demostró una disponibilidad de integración económica logo en su principio. Con el pasar de los años, la integración política ganó mayor destaque, aunque siempre fue presente la preocupación económica. 3 Para tener más informaciones de los umbrales nuevos e de las distinciones entre las empresas del concepto de PYME: COMISSIÓN EUROPEA. La nueva definición de PYME. en http://ec.europa.eu/enterprise/policies/sme/ files/sme_definition/sme_user_guide_es.pdf. 4 “Las microempresas y las pequeñas y medianas empresas (PYME) son el motor de la economía europea. Constituyen una fuente fundamental de puestos de trabajo, generan espíritu empresarial e innovación en la UE y, por ello, son vitales para promover la competitividad y el empleo.” COMISSIÓN EUROPEA. La nueva definición de PYME. en http://ec.europa.eu/enterprise/policies/sme/files/sme_ definition/sme_user_guide_es.pdf. 5 Es posible entender que el Small business act es un ejemplo típico del llamado Soft Law. Sobre el tema: NASSER, Salem. Fontes e Normas do Direito Internacional: Um Estudo sobre a Soft Law, 2. ed., São Paulo: Editora Atlas, 2006. 6 COMISSION OF THE EUROPEAN COMMUNITIES. Small Business Act. en http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=COM:2008:0394:FIN:en:PDF. 7 Más informaciones: http://ec.europa.eu/europe2020/ index_es.htm. 8 Ley 2/2011 9 Más informaciones: http://www.mityc.es/es-es/gabineteprensa/notasprensa/documents/planintegralpoliticaindustrial2020.pdf 10 Como ejemplo e programas, tenemos: InnoEmpresa, Iniciativa RSE – PYME, Programa de promoción de Centros de Apoyo a Emprendedores (CEAEs) y otros. Más informaciones: http://www.ipyme.org. 11 Hay también otros documentos además de la Small Business Act que tienen como objetivo mejorar el entorno empresarial, promover el espíritu emprendedor, etc. Para tener acceso a otros documentos de la Unión: http:// ec.europa.eu/small-business/policy-statistics/policy/index_es.htm#1. 12 Artículo 1, TUE. 13 Hay varios artículos del Tratado de Asunción que evi1

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Bibliografía ANDRES SÁENZ DE SANTAMARÍA, M.P.; GONZÁLEZ VEGA, J. y FERNÁNDEZ PÉREZ, B. La Unión Europea. En http://www.iustel.com DEL POZO, C.F.M.(coord.). Evolución histórica y jurídica de los procesos de integración. Buenos Aires, 2011. DEL POZO, C.F.M. Derecho de la Unión Europea. 2. ed. Madrid: Editora Reyes, 2011. DEL POZO, C.F.M. Tratado de Lisboa. 2. ed. Madrid: Editora Reyes, 2011. FERNÁNDEZ SOLA, N. La subjetividad internacional de la Unión Europea, Revista de Derecho Comunitario Europeo, vol. 11, pp. 197 y ss. 2005. HERNÁNDEZ, C.E.(coord.). Instituciones de Derecho Comunitario. 1.ed. Valencia: Editora Tirant lo Blanch, 2006. LIÑÁN NOGUERAS, D. Derechos Humanos y Unión Europea. Cursos Euromediterráneos Bancaja de Derecho internacional, vol V. pp. 371 y ss. 2000. NASSER, Salem. Fontes e Normas do Direito Internacional: Um Estudo sobre a Soft Law, 2. ed., São Paulo: Editora Atlas, 2006. PILLORENS, M. Los derechos fundamentales en el ordenamiento comunitario. Madrid, 1999. TRUYOL Y SERRA, A. La integración europea. Madrid, 1999.

João Pedro de Oliveira de Biazi es estudiante de grado por la Universidad de São Paulo, especializado en Teoría y Práctica de la Integración Regional por la Universidad Alcalá de Henares E-mail:joaobiazi@gmail.com

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Notas

dencian el carácter intergubernamental del Mercosur y su consecuente falta de supranacionalidad. Los artículos 1, 2, 14, 16 y otras normas del grupo evidencian la necesidad de cooperación, consenso y unanimidad en variadas situaciones. 14 Hay objetivos en ese sentido en el Tratado de Asunción, el Protocolo de Ouro Preto, la resolución Nº 90/93 del Grupo Mercado Común (GMC) y la recomendación Nº 5/98 del SGT Nº7 – “Indústria”.

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Lex Mercatoria: uma ordem jurídica? por Fábio Murta Rocha Cavalcante

“The debate on Lex Mercatoria is one of the rare cases in which practical legal decision-making becomes directly dependent upon legal theory. But it is astonishing how poor its theoretical foundation actually is. The entire debate is trapped in the categories of those defunct legal theories which legal practitioners seem to remember from their undergraduate jurisprudence courses”1. (Gunther Teubner) Introdução

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Novos atores transnacionais, desenvolvimento tecnológico, complexificação da cadeia produtiva: eis a dinâmica do comércio internacional dos últimos tempos. Ampliaram-se as relações empresariais entre diferentes partes do globo, de modo que tal dinâmica implicou a demanda por soluções jurídicas que não estivessem limitadas a um certo “direito local”, revelando o enfraquecimento da distinção nacional/internacional em face da emergência de um direito transnacionalizado do comércio internacional. Com efeito, a interpretação de normas pela Lex Mercatoria é evidência da relativização do caráter público do Direito Internacional2, diante da transnacionalização dos mercados. Temos, assim, uma “ordem jurídica diferenciada não em termos territoriais, como as ordens jurídicas estatais, mas em termos da reação a um determinado setor da sociedade (economia), portanto, diferenciada ao nível dos programas normativos”3. O presente artigo tem como objetivo principal realizar uma breve análise acerca da natureza jurídica da Lex Mercatoria, destacando o importante papel da arbitragem no tocante à construção de uma ordem jurídica que possibilite decisões consistentes (ordem jurídica re-

flexivamente “forte”)4. Cumpre salientar que não é nossa pretensão exaurir todo o tema neste espaço; pretende-se apenas transparecer uma nova perspectiva de abordagem que considera o alto grau de complexidade da sociedade moderna (pluralidade discursiva, sistemas diferenciados funcionalmente). Para isso, requer-se uma análise pautada por uma teoria do direito que ofereça adequadas ferramentas para lidar com essa complexidade. Global law without state? O cenário multifacetado da globalização gerou diversas implicações no âmbito jurídico. Do mundo esportivo (lex sportiva internationalis) ao regime jurídico interno das grandes multinacionais, podemos constatar, na sociedade moderna, diversos exemplos de “direitos globais” (aqueles que não decorrem diretamente dos Estados). Teubner aponta que, diante dessa nova realidade, as teorias sobre o pluralismo jurídico devem mudar o foco de seus conceitos-chave de grupos e comunidades para discursos e redes comunicativas, pelo fato de que o direito global possui diferentes especificidades em relação ao direito internacional das nações5: as fronteiras do direito global não decorrem de um território, mas são

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nados em um primeiro plano pelos usos do comércio internacional. Na década de 70, aumentam o número de sentenças arbitrais que aplicam “principes généralement admis” ou os “principes généraux largement admis régissent de droit commercial international”, formando uma jurisprudência arbitral que reconhece a Lex Mercatoria9. É nesse período que podemos notar indícios da formação de uma nova ordem jurídica e, como se pode perceber, não podemos analisá-la “pelo prisma comparativo dos sistemas nacionais”, já que decorre de peculiariades do comércio internacional, sendo a fundamentação dessa nova ordem totalmente diferente daquela inerente às ordens estatais10. Lex Mercatoria: uma ordem jurídica Com relação a natureza jurídica da Lex Mercatoria, não há um consenso entre os autores que abordam o tema. Para uns11, a Lex Mercatoria emerge como uma ordem jurídica independente das soberanis estatais, pelo fato de haver uma diretiva privada uniforme, evidenciada pelos contratos padronizados, por práticas comerciais globais, códigos de condutas e pelas decisões arbitrais internacionais. Esse ponto de vista (defendido sobretudo por juristas franceses), segundo Teubner, pode ser dividido em três linhas principais: (i) a primeira relaciona a Lex Mercatoria com a noção de direito costumeiro, o que transparece uma certa deficência no tocante aos critérios operacionais adotados pela Lex Mercatoria; (ii) a segunda trata a Lex Mercatoria como um “droit corporatif” dos atores econômicos globais, revelando uma certa inadequação de tal posicionamento diante da realidade atual dos dinâmicos mercados globais,

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formadas a partir de “redes sociais invisíveis que transcendem as fronteiras territoriais”; com relação às fontes jurídicas, o direito global se torna independente das legislações estatais, produzindo-se através de processos auto-organizacionais e estabelecendo laços difusos de dependência perante setores sociais especializados; sua unidade consiste na variabilidade de discursos jurídicos, o que revela seu caráter fragmentário6. A Lex Mercatoria aparece como um importante exemplo do chamado “direito global sem estados”. Desde as societas mercatorum da Idade Média, o comércio internacional revela a tendência da utilização de “normas jurídicas” próprias e específicas às suas necessidades, de modo que a Lex Mercatoria não é “fruto de esquematizações preestabelecidas, mas é uma estrutura montada a partir do gênio inventivo dos comerciantes, que souberam gerar toda matéria-prima, hoje indispensavelmente manipulada pelos juristas”7. Conforme aponta Bortolotti, é a partir da década de 60 do século passado que se inicia a consolidação de uma Nova Lex Mercatoria, tendo em vista três importantes fatores que se interrelacionam8: (i) a prática contratual havia desenvolvido uma certa uniformidade em determinados setores, porém, com o passar do tempo, a dinâmica dos contratos no comércio internacional conduziu ao desenvolvimento de uma generalização no tocante à regulamentação contratual que envolvia distintos setores; (ii) com o crescimento do comércio internacional, aumentou o número de conflitos entre regimes jurídicos estatais diversos, de modo que surgiram diversas formulações de princípios gerais do comércio internacional, a fim de dirimir tais conflitos; e (iii) houve um aumento dos contratos “deslocalizados” (delocalizzati), discipli-

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Doutrina pois uma “corporação” em escala global se mostra extremamente inviável na sociedade hodierna; e (iii) a terceira linha afirma a presença de “contrat sans loi” e é falha justamente quando tenta conciliar a Lex Mercatoria com a tradicional doutrina das fontes do direito. Um segundo ponto de vista12, defendido largamente por juristas norte-americanos e britânicos, sustenta que a Lex Mercatoria é uma ficção jurídica, de maneira que qualquer fenômeno jurídico do mundo deve ter uma mínima ligação com certa ordem jurídica nacional. Tais juristas afirmam que costumes jurídicos não criam direito por eles mesmos (precisam de um ato formal soberano de um estado para isso), que contratos padronizados estão sujeitos ao regime jurídico de certa ordem estatal e que a arbitragem internacional não é capaz de desenvolver um conjunto relevante de sentenças arbitrais que se posicionem como precedentes de valor. Diante dos distintos posicionamentos acerca da Lex Mercatoria ora explicitados, constata-se que, a fim de entender a natureza jurídica da Lex Mercatoria, é necessária uma abordagem a partir de uma moderna teoria do direito. Utilizando-se os conceitos da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, os tribunais estatais aparecem como centro do sistema jurídico, que, organizados, garantem a universalidade da competência para decidir questões jurídicas. Com efeito, a periferia do direito consistiria de atividades usualmente descritas como privadas, sendo o espaço que funciona como zona de contato entre o direito e outros sistemas funcionais da sociedade, onde “interests of all kinds can be represented and enforced to the best of one’s ability, notwithstanding a distinction between legal and non-legal interests”13. Nesse sentido, a Lex Merca-

toria emerge na periferia do sistema jurídico como uma ordem jurídica que se diferencia “mediante a tematização reflexiva de regras por meio de regras”, com uma observação de segunda ordem que atribui o adjetivo de jurídico14. Há um jogo discursivo decorrente da arbitragem internacional que possibilita a diferenciação dessa ordem jurídica, de modo que a arbitragem aparece como instância decisória adequada para dirimir controvérsias de negócios transnacionais (ela está no “centro da periferia”15). Seu desenvolvimento ao longo do tempo revela a formação de critérios operacionais, evidenciados pelo aparecimento de “diretrizes, standards de interpretação, regras de direito material, regras de direito processual, estratégias de observação de regras jurídicas, regras sociais e condutas”16. Nesse sentido, os tribunais arbitrais tematizam episódios comunicacionais a fim de possibilitar “um incremento da autoreferencialidade da ordem jurídica a partir de uma ‘lógica’ de lembrança e esquecimento, de onde são selecionados os episódios comunicativos jurídicos (e.g. precedentes) que serão utilizados para comunicações e conexões futuras, esquecendo outros não mais adequados para enfrentar as questões que se colocam ao direito”17. O direito aparece na sociedade moderna multicêntrica como um sistema diferenciado funcionalmente. Dentro dele, manifestam-se ordens jurídicas (Lex Mercatoria, Lex sportiva etc) subordinadas ao código binário lícito/ilícito, não obstante os diversos programas e critérios utilizados por tais ordens18. Assim, diante das ideias brevemente transparecidas, percebe-se que a Lex Mercatoria aparece como uma ordem jurídico-econômica mundial inserida dentro do sistema jurídico, “cuja construção e reprodução ocorrem

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a reflexividade da lex mercatoria é ainda muito débil” (NE-

Conclusões

vez mais eficiente no que tange ao atendimento das de-

Constata-se que muitos trabalhos no tocante à Lex Mercatoria utilizam um paradigma ultrapassado para lidar com a emergência de novas ordens jurídicas que não guardam relação de dependência com as ordens estatais. A análise da situação realizada por Teubner e Rodrigo Mendes, utilizando como ponto de partida a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, considera a complexidade da sociedade moderna e revela o desenvolvimento da Lex Mercatoria como uma ordem que se reproduz através do código lícito/ilícito e utiliza seus próprios critérios operacionais, de maneira que a arbitragem internacional ganha destaque (posição central na periferia) no âmbito da produção de sentido dessa nova ordem.

5

VES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. Pg. 112). Este artigo tem como objetivo destacar de que forma a arbitragem, fonte da lex mercatoria, pode colaborar positivamente no que concerne ao desenvolvimento de uma ordem jurídica cada mandas do comércio internacional. TEUBNER, Gunther (1996).

6

TEUBNER, Gunther (1996).

7

STRENGER, Irineu. Direito do comércio internacional e

Lex Mercatoria. São Paulo: LTr, 1996. Pgs. 151-152. BORTOLOTTI, Fabio. Manuale di diritto commerciale

8

internazionale. Padova, CEDAM, 2009. Pgs. 31-32. 9

BORTOLOTTI, Fabio (2009) Pgs. 33-34.

10

STRENGER, Irineu. Direito do comércio internacional e

Lex Mercatoria. São Paulo: LTr, 1996. Pg. 166. 11

TEUBNER, Gunther (1996).

12

TEUBNER, Gunther (1996).

13

LUHMANN, Niklas. Law as a social system. Oxford Uni-

versity Press, 2004. Pg. 293. 14

MENDES, Rodrigo Octávio Broglia (2010) Pgs. 94-95.1

15

MENDES, Rodrigo Octávio Broglia (2010) Pg. 88.

16

MENDES, Rodrigo Octávio Broglia (2010) Pg. 101.

17

MENDES, Rodrigo Octávio Broglia (2010) Pg. 92.

18

NEVES, Marcelo (2009) Pg. 115.

19

NEVES, Marcelo (2009) Pg. 189.

Notas 1

Bibliografia

TEUBNER, Gunther. Global Bukowina: Legal Pluralism

in the World-Society. In: Gunther Teubner (ed.), Global

BORTOLOTTI, Fabio. Manuale di diritto commerciale in-

Law Without A State. Dartsmouth, London 1996.

ternazionale. Padova, CEDAM, 2009.

FARIA, José Eduardo. A globalização econômica e sua

FARIA, José Eduardo. A globalização econômica e sua ar-

arquitetura jurídica (dez tendências do direito contempo-

quitetura jurídica (dez tendências do direito contemporâ-

râneo). Pg. 18 e ss.

neo).

2

3

MENDES, Rodrigo Octávio Broglia. Arbitragem, Lex

LUHMANN, Niklas. Law as a social system. Oxford Uni-

Mercatoria e Direito Estatal: uma análise dos conflitos

versity Press, 2004.

ortogonais no Direito Transnacional. São Paulo: Quartier

MENDES, Rodrigo Octávio Broglia. Arbitragem, Lex Mer-

Latin, 2010. Pg. 95.

catoria e Direito Estatal: uma análise dos conflitos ortogo-

4

Marcelo Neves aponta que a Lex Mercatoria “é oportuna

nais no Direito Transnacional. São Paulo: Quartier Latin,

para favorecer a estabilidade jurídica do jogo econômico,

2010.

mas não está em condições de garantir a igualdade jurídi-

NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo:

ca. Diante dos processos reflexivos altamente dinâmicos

Editora WMF Martins Fontes, 2009.

do mecanismo monetário no plano da economia mundial,

STRENGER, Irineu. Direito do comércio internacional e

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O Comercialista

primariamente mediante contratos e arbitragens decorrentes de comunicações e expectativas recíprocas estabilizadas normativamente entre atores e organizações privadas”19.

Abril 2012

Doutrina


Lex Mercatoria. São Paulo: LTr, 1996. TEUBNER, Gunther. Global Bukowina: Legal Pluralism in the World-Society. In: Gunther Teubner (ed.), Global Law Without A State. Dartsmouth, London 1996.

Fábio Murta Rocha Cavalcante é estudante do 3° ano da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, bolsista-pesquisador da Fundação ao Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e membro do Grupo de Estudos “Arbitragem e contratos internacionais - ABCINT”. E-mail:fabiocavalcante183@gmail.com

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Doutrina

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Apresentação: Prof. Dr. Enrique Ricardo Lewandowski Manual de Direito Empresarial resulta da experiência acadêmica do autor há mais de uma década no magistério do Direito Comercial, aliada à sua atividade profissional no exercício da advocacia empresarial em São Paulo. Elaborado de acordo com a nova Lei da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Lei n. 12.441, de 11-7-2011) e com as mais recentes alterações introduzidas na legislação comercial, o livro aborda os principais aspectos do programa da disciplina Direito Comercial (Direito Empresarial) adotado pelas faculdades de Direito do Brasil. A matéria, muitas vezes complexa e de difícil entendimento, é apresentada por meio de uma didática simples, voltada à sua correta definição e entendimento, sendo, por isso, este Manual de Direito Empresarial recomendado aos profissionais e estudantes dos cursos de Direito, Ciências Contábeis e Administração de Empresas, bem como aos candidatos aos concursos públicos para ingresso nas carreiras jurídicas. Editora Revista dos Tribunais 3ª edição – 2012 – 450 páginas AUDITORIA

DAS DEMONSTRAÇÕES CONTÁBEIS

A auditoria externa de demonstrações contábeis é um instrumentos importante para o desenvolvimento do mercado, pelo fato de adicionar credibilidade e segurança às informações financeiras prestadas pelos agentes econômicos que buscam captar recursos junto ao público investidor. Este livro traz uma abordagem conjunta, a fim de possibilitar a comunicação das duas ciências e compartilhar os problemas que o tema apresenta. A obra contempla assuntos como a natureza dos principais institutos de auditoria; seu relacionamento e importância na economia; as características jurídicas do contrato, suas obrigações, as partes contratantes e os terceiros interessados; o desenvolvimento contábil de sua execução e seu relacionamento com os sistemas de governança corporativa. Além disso, o texto examina as tendências quanto ao sistema de riscos e responsabilidade civil do auditor, matéria amplamente discutida no âmbito internacional. Editora Atlas 308 páginas

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MANUAL DE DIREITO EMPRESARIAL 3ª edição - 2012

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