Revista Comercialista - 11ª Edição - Edição Especial - Direito Marítimo

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PERFIL

Nelson Cavalcante

Juiz do Tribunal Marítimo trata de relevantes questões para o cenário maritimista brasileiro

Ano 2 - Vol. 11

Especial Direito Marítimo


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Sumário

11a Edição Especial de Direito Marítimo

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5. Editorial 6. Perfil Entrevista com o Juiz do Tribunal Marítimo Nelson Cavalcante

14. Doutrina Artigos acadêmicos sobre o que há de mais atual e relevante

Contrato de Transporte. Por Osvaldo Sammarco O “arresto” de navios e a necessidade de reforma da legislação brasileira em vigor. Por Werner Braun Rizk Análise econômica da limitação de responsabilidade do transportador marítimo. Por José Luiz Bayeux Neto

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Expediente

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EDITOR EXECUTIVO PEDRO ALVES LAVACCHINI RAMUNNO CONSELHO EDITORIAL CONSELHO DISCENTE GUSTAVO LACERDA FRANCO PACO MANOLO CAMARGO ALCALDE PEDRO ALVES LAVACCHINI RAMUNNO RODRIGO FIALHO BORGES CONSELHO DOCENTE FABIO ULHOA COELHO JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO MARIANA PARGENDLER SÉRGIO CAMPINHO ARTICULISTAS DESTA EDIÇÃO JOSÉ LUIZ BAYEUX NETO OSVALDO SAMMARCO WERNER BRAUN RIZK REPÓRTER DESTA EDIÇÃO PEDRO ALVES LAVACCHINI RAMUNNO DIAGRAMAÇÃO RODRIGO AUADA FALE CONOSCO

contato@ocomercialista.com.br

A Revista Comercialista – Direito Comercial e Econômico é uma publicação eletrônica trimestral, independente, com o escopo de fomentar a produção acadêmico-científica nas áreas do Direito Comercial e Econômico. Contato (11) 981335813 - contato@ocomercialista.com.br. Editor: Pedro A. L. Ramunno - pedro@ramunno.com.br. Nota aos leitores: As opiniões expressas nos artigos são as de seus autores e não necessariamente as da Revista Comercialista nem das instituições em que atuam. É proibida a reprodução ou transmissão de textos desta publicação sem

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Apoio institucional

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Editorial

Direito marítimo: à deriva? O Direito Marítimo é um dos ramos do Direito Comercial de maior importância para a fluência da economia brasileira. Para tanto, basta observar os altos montantes transportados em mercadorias pelas águas nacionais diariamente. O que ocorre, contudo, é o fato de sua relevância e aplicabilidade, pautadas principalmente nos ditames da Lex Mercatoria, aparentarem serem negligenciadas por muitos, incluindo as principais instituições de ensino jurídico no país. Aos leigos, pode parecer que direito marítimo se resume tão somente ao conjunto de normas positivadas na segunda parte do Código Comercial de 1850, no entanto seu arcabouço normativo vai muito além. Esta edição especial enfrenta exatamente essa visão minimalista que circunscreve esse importante ramo comercialista. Pretende-se, aproveitando a maré que envolve a discussão do Direito Marítimo – que pode ser exemplificada pelas Emendas 55 e 56 do Projeto de Lei nº 1572/2011 –, retirar momentaneamente as amarras que o prendem e mostrar, ao menos um pouco, a sua sofisticação e alguns dos pontos abertos ao debate. Sendo assim, primeiramente, conta-se com a participação de Nelson Cavalcante e Silva Filho, Juiz do Tribunal Marítimo que ocupa a cadeira de Especialista em Direito Marítimo, o qual, em entrevista exclusiva, trata de relevantes questões relacionados a esse ramo do direito, incluindo a necessidade de revisão da atual legislação brasileira e a forma como o Direito Marítimo é tratado pelas instituições de ensino brasileiras. Reforma legislativa também é um tema abordado por Werner Braun Rizk, advogado especializado em Direito Marítimo e Procurador do Estado do Espírito Santo, um dos principais polos maritimistas brasileiros, em artigo sobre o “arresto” de navios, instituto diretamente relacionado ao maritime lien da common law. Em seguida, Osvaldo Sammarco, referência no Direito Marítimo, em erudito e preciso texto, trata da importância do conhecimento marítimo nos contratos de transporte para a autorização da entrega da mercadoria ao importador no porto de destino, dando especial atenção para o desenvolvimento histórico do Direito Marítimo e da própria navegação. Por fim, José Luiz Bayeux Neto aborda a limitação da responsabilidade do transportador marítimo à luz da análise econômica do direito, tratando da alocação de riscos contratuais entre a contratação de seguro de responsabilidade civil pelos transportadores e o seguro de dano da carga pelos embarcantes. Espera-se que o atual momento, bastante auspicioso para o debate e, sobretudo, para o desenvolvimento do Direito Marítimo brasileiro seja aproveitado ao máximo pela comunidade jurídica nacional, superando-se o longo período em que foi deixado à deriva por grande parte das nossas instituições políticas, jurídicas e econômicas. Busca esta edição da Revista, modestamente, contribuir nesse esforço tão necessário.

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Perfil

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Nelson Cavalcante e Silva Filho, juiz do Tribunal Marítimo, mostra seu posicionamento sobre diversos temas relacionados ao direito marítimo e portuário brasileiro

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O panorama maritimista brasileiro Por Pedro Alves Lavacchini Ramunno

Comercialista - Como a experiência do senhor na advocacia colabora em sua atuação como juiz? Nelson Cavalcante - Antes de ingressar por concurso público no Tribunal Marítimo, em 2010, militei por 20 anos na advocacia contenciosa. Essa experiência de “balcão de fórum” me deu a sensibilidade necessária para entender o processo judicial como um drama que envolve as partes convertido em autos. Ao julgar, eu tenho que adequar com precisão a técnica processual e o direito material, que são abstrações do legislador, à concretude do conflito a ser solucionado; e 20 anos de experiência pretérita na advocacia maritimista me deram capacidade para encontrar a solução que mais atende os anseios da sociedade por uma navegação segura, missão maior do Tribunal Marítimo. Comercialista - O Tribunal Marítimo possui natureza jurídica de órgão especial da Administração Direta da União, tratando-se, conforme estabelecido por sua Lei Orgânica (Lei no 2.180/1954), de um órgão autônomo, auxiliar do Poder Judiciário. O apoio logístico do Tribunal Marítimo – provimento de pessoal e material para seu regular funcionamento – é feito pelo Ministério da Defesa, por meio do Comando da Marinha. Levando em consideração essa estrutura organizacional, o fato de existir uma intrínseca relação com o Ministério da Defesa influencia as atividades do Tribunal Marítimo e de seus membros? Nelson Cavalcante - De forma alguma. O Tribunal Marítimo é efetivamente um órgão técnico autônomo e independente como estabelece sua Lei Orgânica e não guarda nenhuma relação de cunho hierárquico com outro órgão. Não há qualquer influência nas atividades do Tribunal Marítimo ou na atuação de seus Juízes, seja esta do Comando da Marinha, do Ministério da Defesa ou de qualquer outro órgão.

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Perfil Comercialista - O fato de o Tribunal Marítimo ser integrante da Administração Direta da União, a despeito de constituir órgão auxiliar do Poder Judiciário, faz com que seja um órgão administrativo. Dessa forma, as decisões do Tribunal Marítimo são passíveis de revisão pelo Poder Judiciário. Qual é o resultado prático dessa possibilidade de revisão, pela qual um ente público sem a especialidade que caracteriza as atividades do Tribunal Marítimo pode reformar as decisões desse? Nelson Cavalcante - De fato há casos em que condenados pelo Tribunal Marítimo buscam no Poder Judiciário uma nova tentativa de discussão das questões administrativas apreciadas pela Corte Marítima que levaram à sua responsabilização pelo acidente ou pelo fato da navegação. Porém, o Poder Judiciário ao longo desses 80 anos desde a instalação do Tribunal Marítimo tem prestigiado a especialidade da Corte e mantido o mérito de nossas decisões. A jurisprudência é farta no sentido de que o Poder Judiciário, no controle do processo administrativo, deve limitar-se ao exame da regularidade do procedimento, bem como à legalidade do ato atacado, sendo-lhe vedada qualquer incursão no mérito administrativo. Há dezenas de precedentes nesse sentido, inclusive no STJ e no STF. As decisões do Tribunal Revista Comercialista

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Marítimo passíveis de revisão pelo Poder Judiciário, portanto, são aquelas eivadas de vícios de ilegalidade ou irregularidade formal intransponível e nesse sentido é muito salutar e absolutamente aceitável o controle do Poder Judiciário. O que não se espera e, repito, não tem acontecido nesses 80 anos de existência da Corte Marítima, é que um Juiz possa, sozinho, com leveza, substituir a análise daquelas questões especializadas para as quais não foi preparado para resolver. Conforme estabelece a Lei 2.180/54, o Tribunal Marítimo é um órgão colegiado, presidido por um Almirante e composto por dois comandantes de navios sendo um Capitão de Longo Curso da Marinha Mercante e outro Capitão de Mar e Guerra da Armada, um engenheiro naval, um especialista em armação de navios e dois bacharéis em direito, sendo um especialista em Direito Marítimo e o outro em Direito Internacional Público. Esses Juízes analisam a natureza dos acidentes e dos fatos da navegação, apontam as causas determinantes e, em conjunto, aplicam as penas da lei aos responsáveis, recomendando, sempre que necessário, medidas preventivas e de segurança. Quatro dos Juízes são civis, nomeados para o cargo após aprovação em concurso público de provas e títulos e três são militares, nomeados pelo Presidente da República median-

te proposta do Comandante da Marinha. O procedimento se inicia nas Capitanias dos Portos, que, ao tomarem conhecimento da ocorrência de um acidente ou de um fato da navegação, abrem o que chamamos de IAFN – Inquérito Administrativo sobre Acidentes e Fatos da Navegação, que segue as diretrizes traçadas pela NORMAM 09/DPC. Durante o inquérito são ouvidas testemunhas, juntados documentos referentes às embarcações envolvidas e é feita a análise técnica do evento por meio de pessoal especializado. No relatório final o encarregado do IAFN aponta os fatores que contribuíram, a causa determinante e os possíveis responsáveis, abrindo a esses a oportunidade de apresentarem defesa prévia antes de os autos do IAFN seguirem para o Tribunal Marítimo. Recebido o IAFN no Tribunal Marítimo, esse é autuado e distribuído a um Juiz Relator e a um Juiz Revisor. O Juiz Relator determina a remessa dos autos para a Procuradoria Especial da Marinha - PEM, que poderá propor o arquivamento do processo de plano, o retorno dos autos à Capitania para novas diligências ou apresentar representação em face daqueles que entender responsáveis, pugnando por sua condenação. Apresentada a representação pela PEM, o Juiz Relator a leva ao plenário com seu relatório e dá seu voto, que pode


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ser pelo recebimento ou pelo arquivamento da representação. Decidindo a Corte pelo recebimento os representados serão citados pelos meios ordinários de citação previstos no Regimento Interno e na Lei Orgânica do Tribunal, que são coincidentes com os meios previstos no CPC salvo nos casos dos representados estrangeiros residentes no exterior, que são citados de plano por edital, sendo este remetido ao Consulado de seu país e ao agente marítimo de seu armador. Os representados têm prazo de 15 dias para contestar, respeitadas as hipóteses de contagem diferenciada do prazo em razão do número de representados ou de sua qualidade. A fase seguinte é a de instrução do processo, na qual às partes é franqueada a oportunidade de produzirem todos os meios de prova que pretenderem como a finalidade de confirmarem suas teses. Essa fase não guarda a mesma rigidez do procedimento civil, ficando as partes livres para pedir oitivas, perícias e juntar novos documentos enquanto a fase estiver aberta. Busca-se aqui apurar a verdade real tanto quanto possível, não sendo suficiente para o Tribunal Marítimo a mera verdade processual, pois além de o julgamento poder resultar na imposição de sanções aos responsáveis que chegam até à cassação de sua habilitação profissional, a apuração das causas determinantes dos aci-

dentes e dos fatos da navegação de forma precisa é necessária para que a navegação seja cada vez mais segura. Caracteriza a apuração formal dos acidentes e fatos da navegação, ademais, o fato de o Tribunal Marítimo apurar a responsabilidade subjetiva do agente no sinistro e que tal apuração independe da eventual obrigação deste agente, fora do âmbito do processo marítimo, ser objetivamente responsável por indenizar em virtude da lei ou do contrato. Será o representado condenado no Tribunal Marítimo, portanto, somente na hipótese de sua responsabilidade, oriunda de dolo ou culpa, ficar provada acima de qualquer dúvida. Encerrada a instrução, às partes é dada a oportunidade de apresentarem suas alegações finais por memorial, ficando o processo maduro para ser julgado. O Juiz Relator, então, faz o relatório e remete os autos ao Juiz Revisor, que pedirá data para julgamento pela Corte. O julgamento tem início no Plenário, em sessões abetas ao público, com a leitura do relatório pelo Juiz Relator. A palavra é dada em seguida à PEM e em seguida aos advogados dos representados, tendo cada parte 30 minutos para apresentar suas razões. A palavra retorna ao Juiz Relator que apresenta suas conclusões e em seguida o Juiz Revisor apresenta as dele. Abre-se o debate entre os Juízes, que podem pedir escla-

Perfil recimentos aos Juízes Relator e Revisor e, até, aos advogados que sustentaram na tribuna. Encerrada a discussão inicia-se a votação pelo Juiz Relator, em seguida o Juiz Revisor e depois os demais juízes pela ordem do mais moderno ao mais antigo. O Acórdão é redigido pelo Juiz que prolatou o voto vencedor e é publicado no Diário Oficial da União. Para encerrar esse resumo, há três recursos cabíveis em nosso procedimento: Embargos de Declaração, Agravo e Embargos Infringentes, cada qual com suas características e hipóteses de interposição. Há, ademais, previsão na Lei 2.180/54 que particulares que demonstrem efetivo interesse movam representações privadas, seguindo essas o mesmo rito das representações públicas propostas pela Procuradoria Especial da Marinha. Os maritimistas que lerão essa entrevista poderão achar aborrecido esse resumo que lhe fiz, mas procurei demonstrar àqueles outros leitores menos afeitos às lides marítimas, que os julgamentos perante o Tribunal Marítimo respeitam um procedimento previsto em lei, que há durante todo o processo absoluta obediência ao contraditório e à ampla defesa, que os Juízes do Tribunal Marítimo são terceiros imparciais a julgar um processo movido pela sociedade, aqui representada pela PEM, ou movido por alguém que demonstre legítimo interesse em face de um suposto responsáRevista Comercialista

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10 Perfil vel, e que as partes contam com todas as garantias constitucionais do devido processo legal. Comercialista - Em diversas situações, seja pela prática consolidada e costumeira, seja pela ausência de regulação interna, é comum observar referências a dispositivos internacionais para regular as relações travadas na seara marítima. É o que ocorre, por exemplo, com a aplicação dos Incoterms (International Commercial Terms) nos contratos de transporte marítimo, como forma de modelar a extensão da responsabilidade entre as partes contratantes. Considerando-se especialmente o caso brasileiro, essa tendência se justifica pela falta de uma preocupação legislativa com o tema ou pela maior adequação de uma regulação “supranacional” da matéria? Nelson Cavalcante - O Direito Marítimo é por natureza costumeiro e universal. Os incoterms são uma demonstração disso. Não é por falta de preocupação legislativa, portanto, que o comércio marítimo lança mão de regulamentos internacionais ou do costume para resolver questões de direito público (navegação) ou privado (comércio marítimo). É mesmo assim que funciona o setor e é salutar que assim seja, pois são negócios que envolvem pessoas e empresas de diversos países, com culturas jurídicas diferentes e, para que possam falar a mesma língua Revista Comercialista

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quando vão tratar de negócios ou dirimir controvérsias, é interessante que respeitem os costumes e as Convenções Internacionais. Se cada país tentasse impor seu direito ao outro não haveria navegação segura nem negócios possíveis pelo mar. Comercialista - A Emenda 56 ao Projeto de Lei propôs a instituição do livro de “Direito Marítimo”. Tomando como base esses recentes movimentos legislativos, o senhor é a favor da codificação do Direito Comercial? Existiria a possibilidade de o Código Comercial engessar o Direito Marítimo, ramo nitidamente relacionado à prática comercial? Nelson Cavalcante - Ao contrário. Engessados estamos hoje. Posso afirmar com absoluta certeza que as Emendas 55 e 56, se transformadas em Lei, vão arejar a matéria e trazer o Direito Marítimo brasileiro do século XIX para o século XXI e, usando metáfora mais marinheira, retirar as amarras que prendem nosso Direito Marítimo a uma legislação editada em 1850 e o impedem de navegar livre. Questão corriqueira, por exemplo, é o embargo à saída de um navio do porto como meio de obter do armador uma garantia para determinada dívida. Esses processos simples em qualquer parte do mundo têm se transformado aqui em sérios imbróglios jurídicos em razão da falta de clareza de nossa legislação. Ocorre al-

gumas vezes de não se obter a ordem de embargo a tempo, ficando o credor literalmente a ver navios ou, em via inversa, acontece também de não se conseguir liberar o navio para seguir viagem, não obstante as garantias apresentadas, passando, ocasionalmente, o credor a devedor em razão do prejuízo causado ao navio e à carga em razão de demarches processuais. Há muitos outros exemplos de problemas resultantes da falta de previsão ou de clareza da nossa legislação anciã, como a miríade de entendimentos acerca dos prazos de prescrição desde que a parte primeira do Código Comercial, onde a matéria estava regulada, foi revogada pelo novo Código Civil, a dificuldade que os Juízes, e, em seguida os Tribunais, têm para definir os responsáveis por eventual reparação nos casos em que envolvem NVOCC’s, o desacerto acerca da figura dos Agentes Marítimos, ora confundidos com o próprio armador, ora com representantes comerciais ou com aqueles agentes regulados pelos artigos 710 e seguintes do Código Civil e etc... Portanto, o que as emendas propostas pela ABDM buscam é justamente dar à legislação marítima brasileira uma modelagem mais próxima da legislação marítima dos países latinos e europeus, colocando-nos no círculo das nações que guardam um ambiente saudável para os negócios. Para isso é necessário dar clareza às


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regras do jogo e é isso que as bilidade. Há, ainda usando o emendas pretendem. mesmo exemplo, muito pouco ou nenhum estudo sobre Comercialista - Ainda sobre aquele instituto no Brasil, não a Emenda 56, há posiciona- obstante ser francamente utimentos que defendem a sua lizado em toda a Europa, Ásia inconstitucionalidade, por e Américas do Norte e Latina, julgá-la uma produção a fa- constar da maioria dos convor de armadores, fretadores, tratos de transporte marítimo afretadores e transportadores lavrados no exterior, inclusive marítimos brasileiros, pre- de transporte multimodal aqui ocupando-se exclusivamen- no Mercosul. Aliás, é fundate com os interesses destes. mental que se esclareça que o O senhor concorda com essa texto e os valores dos limites concepção? propostos pela Emenda 56 foNelson Cavalcante - No Con- ram tirados do Acordo de Algresso do CMI – Comité Mariti- cance Parcial para a Facilitação me Intenational, em Dublin, no do Transporte Multimodal de ano passado, o Presidente da Mercadorias no MERCOSUL, Delegação da Turquia, ao ser do qual o Brasil é signatário e indagado o motivo pelo qual foi internado através do Deseu país não aderia a determi- creto 1563/95, não tendo qualnadas Convenções Internacio- quer fundamento, portanto, o nais, respondeu que “há três discurso de que no Brasil não motivos: Paranóia, ignorância temos exemplos de limitações e vaidade. Paranóia por enten- de responsabilidade. A crítica de que as emendas der que se a Convenção foi escrita em outro lugar e não na favorecem os armadores, afreTurquia, não pode ser boa para tadores, transportadoes, a, b os turcos. Ignorância, simples- ou c, não tem qualquer sentido. mente, por não entendermos o Buscamos tanto quanto possíalcance da Convenção propos- vel o equilíbrio entre os envolta. E vaidade, pois se não foi vidos no comércio marítimo, pensado por turcos, não pode sempre com vistas no que é o ser bom”. Poderíamos dizer uso e o costume no comércio o mesmo de algumas críticas marítimo mundial. A posição feitas às Emendas propostas do armador até mesmo piorou pela ABDM: há um pouco de em relação ao sistema do Cóparanóia quanto aos efeitos digo Comercial em vigor. Por da adoção de certas práticas exemplo, a possibilidade de se corriqueiras em outros países, reter uma embarcação foi muimas nunca utilizadas por nós, to ampliada, inclusive com a como, por exemplo, a forma- previsão de fazê-lo para buscar ção de um fundo pelo armador garantias por dívidas contraquando abrir um procedimen- ídas no exterior, o que hoje é to de limitação de responsa- expressamente vedado. Outro

Perfil 11 exemplo de piora na posição do armador em comparação ao sistema atual é a supressão da previsão de sua responsabilidade cessar com o abandono do navio e fretes vencidos aos credores em razão de prejuízos causados à carga em razão da falta de diligência do capitão na guarda, acondicionamento e conservação desta, hipótese hoje prevista no art. 494. Vê-se que essas críticas foram feitas por quem não leu as emendas ou não comparou o que estamos propondo com o texto do Código em vigor. Trabalhamos ao longo de todo o ano de 2012 para elaborar as propostas de emenda e ao longo desse período recebemos muitas contribuições e ouvimos muitas críticas, algumas absolutamente pertinentes, que levaram nosso grupo a rever vários dispositivos e outras sem qualquer fundamento técnico, que, é claro, foram descartadas. O texto das emendas tomou por base a legislação do Chile, da Venezuela, da Colombia, da Argentina, da Itália, de Portugal e da China e também algumas Convenções Internacionais amplamente utilizadas no Comércio Marítimo Internacional, além do próprio texto do Código Comercial em vigor que foi, obviamente, atualizado. Não encontramos inconstitucionalidade alguma nas duas propostas de Emenda, mas se alguém encontrá-la, por favor, apresente, pois será muito bom que o texto saia Revista Comercialista


12 Perfil do Congresso Nacional sem tais falhas. É importante que se frise que a ABDM sempre se colocou aberta ao debate e, assim, recebeu excelentes contribuições de pessoas capazes e efetivamente conhecedoras de Direito Marítimo, pois do contrário não conseguiríamos terminar o trabalho no curtíssimo espaço de tempo que nos foi dado. Ademais, o processo legislativo ainda está em aberto. Portanto, aqueles que se acharem capazes têm o dever de apresentar suas próprias propostas e as submeterem ao debate. É assim que se faz leis em um país democrático. Comercialista - O Direito Marítimo é um dos ramos do Direito Comercial de maior importância para regulação da economia brasileira, bastando, para tanto, observar os exorbitantes valores que são transportados diariamente em mercadorias. Essa relevância, contudo, não se reflete de forma proporcional no âmbito acadêmico, já que muitos cursos de Direito, incluindo alguns extremamente tradicionais, nem ao menos fazem referência ao Direito Marítimo em suas grades curriculares, principalmente quando afastadas geograficamente dos grandes portos brasileiros. Na sua opinião, qual a razão dessa realidade? Nelson Cavalcante - Não sei responder a essa pergunta. Revista Comercialista

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Aliás a faço a mim mesmo todos os dias. Por que motivo não conseguimos despertar o interesse dos principais Institutos de Direito do Brasil para esse tema, que, conforme posto na pergunta, é um dos ramos do direito com maior importância econômica não só no Brasil, mas no mundo? Já há muitos anos fomos deixados para trás na corrida acadêmica pela Argentina, pela Colômbia, pela Venezuela, pelos Estados Unidos, por todos os países europeus, que continuam produzindo excelente pesquisa. O Direito Marítimo é belíssimo, sofisticado, tem suas raízes bem fincadas na antiguidade, é rico em temas a serem estudados, tem muito espaço vazio na doutrina a ser preenchido, envolve quantias elevadas, mas, ..., não sei por que, não tem interessado aos Institutos de Estudos Jurídicos do Brasil. Mas as propostas de Emenda 55 e 56 da ABDM provocaram como efeito imediato despertar a curiosidade dos estudantes de direito ávidos por novidades. Devemos aproveitar e clamar por mais espaço na academia e nos espelhar em instituições como o Institute of Maritime Law da Universidade de Southamptom, na Inglaterra, o International Maritime Law Institute da Organização Marítima Internacional em Malta, o Maritime Law Center da Universidade de Tulane, em New Orleans, EUA, o Scandinavian Institute of Maritime Law, da Universidade de Oslo, Noruega

e, aqui bem próximo de nós, na Facultad de Derecho de la Universidad de Buenos Aires que entre tantos outros institutos semelhantes pelo mundo, têm se destacado na qualidade de sua produção científica. Comercialista - A infraestrutura portuária brasileira sempre foi alvo de inúmeras críticas, situação que não se alterou após a promulgação da Lei 12.815/2013. Quais são as suas impressões acerca do novo marco regulatório portuário brasileiro? Mesmo diante deste novo diploma legal, quais mudanças o senhor promoveria? Nelson Cavalcante - Certamente eu não sou o mais indicado para responder essa pergunta, por faltar-me vivência na operação de terminais. O que eu posso dizer, no entanto, é que os portos brasileiros, desde que foram “abertos às nações amigas” por D. João VI, sempre dependeram do investimento privado para se estruturarem. O investimento público para a construção de portos sempre foi pequeno se comparado com o volume de recursos gastos em rodovias, por exemplo, não obstante as evidentes vantagens diretas e indiretas que o transporte marítimo tem sobre o transporte terrestre. Como resultado, vimos os equipamentos dos portos públicos se tornando obsoletos, os canais de acesso sendo assoreados e as áreas de seu entorno sendo tomadas desordenadamente pelas ci-


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dades. A Lei 8.630/93, marco regulatório anterior, foi criada com o propósito de promover a modernizaçao de nossos portos e conseguiu alcançar, de certa maneira, seus objetivos, mas provavelmente era hora de um novo ajuste. O tempo dirá melhor que ninguém se a nova lei é boa ou não. Comercialista - Como o senhor avalia o impacto da falta de infraestrutura dos portos brasileiros para a nossa economia? Nelson Cavalcante - Como qualquer brasileiro que seja leitor dos principais jornais, espectador dos telejornais e que esteja ligado no noticiário que circula na internet, vemos a cada safra de grãos a enorme fila de caminhões formada ao longo das estradas que levam aos portos de Paranaguá e Santos, com o encarecimento do produto para o exportador e o desconforto causado aos cidadãos daquelas cidades, vemos a falta de estrutura para manuseio de carga geral conteinerizada nos terminais públicos, vemos a poluição causada pelo manuseio de carga nos portos, causando danos à saúde da população no entorno, vemos as vias de acesso aos portos sendo assoreadas apesar da necessidade de calados maiores para os navios mais modernos. Todos esses são fatores que obviamente impactam na economia. Comercialista - A curto prazo, como medida paliativa,

qual seria a melhor opção: reformar e ampliar os portos brasileiros em funcionamento ou construir novos portos, de acordo com as atuais necessidades do país? Nelson Cavalcante - Na minha opinião deveríamos abrir frentes de curto, médio e longo prazo com vistas em transformar toda a logística de transporte de mercadorias brasileira em um sistema ágil, barato, pouco poluente e seguro. Os portos são um dos pontos de entrave, mas não o único. Deveríamos sim, no curto prazo, reformar e ampliar os portos já existentes, de modo a dar-lhes maior eficiência. Mas deveríamos ir muito além e ampliar a capacidade das hidrovias, realocar áreas portuárias para locais com menor impacto socio-ambiental, capacitar a indústria brasileira para fornecer os equipamentos necessários para a operação portuária e assim por diante. Há muito o que fazer e não devemos colocar a responsabilidade sobre os ombros deste ou daquele governo ou partido. Esse deve ser um projeto de estado e não de governo. Comercialista - A falta de uma moderna legislação sobre Direito Marítimo no Brasil tem o afastado de ser objeto de foro de eleição e ter sua legislação escolhida como aplicável em casos de controvérsias provenientes dos negócios jurídicos celebrados com partes brasileiras?

Perfil 13 Nelson Cavalcante - Os contratos de transporte de mercadorias por mar e os contratos de afretamento têm, habitualmente, como foro de eleição a Inglaterra, os Estados Unidos, em especial o estado de Nova York ou um país da Europa continental, sobretudo a Holanda, Alemanha, Dinamarca e a Noruega. Mais modernamente Cingapura tem despontado também como país que tem a simpatia dos contratantes como ambiente seguro para dirimir eventuais confitos. O mesmo se passa com a legislação de regência eleita nos contratos, em geral leis de um país europeu. Isso se dá tanto pela tradição que esses países têm na resolução de conflitos dessa natureza, dando certeza às partes que o conflito será analisado por uma Corte efetivamente preparada, como também pela regularidade da jurisprudência, que dá aos litigantes a possibilidade de analisar as probabilidades de ganho ou de perda em eventual conflito antes de o mesmo ser judicializado. Para que cheguemos lá devemos, antes de tudo, atualizar nossa legislação e, em seguida, procurar pacificar nossa jurisprudência. Estamos dando passos nesse sentido, com a adoção do regime de precedentes pelo Novo Código de Processo Civil e também através da proposição de normas mais afinadas com a realidade do comércio mundial com o Novo Código Comercial. Revista Comercialista


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Contrato de Transporte

A importância do Conhecimento Marítimo original para autorizar a entrega da mercadoria ao importador no porto de destino Por Osvaldo Sammarco*

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arte de navegar surgiu quando o homem construiu a primeira embarcação, em passado tão distante que a história não logrou registrar. O desenvolvimento do ser humano foi sempre estimulado por desafios e pela sua capacidade de superá-los. A ideia de construir a embarcação brotou, certamente, do espírito aventureiro e da curiosidade do homem, o qual, num impulso incontido, ousou desvendar os mistérios do mar, essa massa gigantesca de água que causava tanto temor e se pensava impossível de ser dominada. Averiguar o ponto de irrupção histórica da embarcação é tarefa de puro arrojo da imaginação. CLAYTON SANTOS (in ‘Transporte Marítimo Internacional’, Ed. Gedimex, 1980, p. 9), numa ficção que pode não Revista Comercialista


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estar muito distante da realidade, imaginou como o homem aventurou-se numa primeira embarcação. O homem teria notado que um tronco de árvore boiava, agarrou-se a ele e conseguiu a maior façanha de então, ou seja, atravessar um rio “navegando”. No intuito de conseguir uma pesca mais farta, alguém teve a ideia de unir um tronco a outro e, amarrando-os com junco ou cipó, construiu o que hoje chamaríamos de jangada. Desenvolvendo o engenho, movido pela necessidade de poupar o esforço físico para impulsionar a “embarcação”, alguém teria usado uma vara, a qual, mais tarde, teria tomado a forma achatada na extremidade, como um braço de madeira, para se constituir em remo. Muito tempo passou até que surgiu a ideia de aproveitar a força do vento, e, então, a primeira vela, feita de pele ou tecida com vegetal, foi construída, podendo o homem, então, vangloriar-se de ter inventado o sistema básico da navegação, que lhe permitiria sobrepujar os 2/3 de água que cobrem o nosso planeta. Aos poucos, o homem foi desenvolvendo embarcações maiores e mais seguras, que lhe permitiram alcançar distâncias cada vez maiores. Foi o início da comunicação entre os povos através dos mares. A navegação logo despertou o interesse comercial, movido pelas necessidades locais, dando início ao comércio marítimo. O comércio pelo mar cresceu e,

com ele, o tráfego da navegação, ensejando o aparecimento natural de normas próprias destinadas à sua regulamentação, que se desenvolveram alicerçadas nos usos e costumes, marco da formação do Direito Marítimo. O Direito Marítimo foi formado, então, em época que se perde no tempo, em razão de sua antiguidade, por força dos usos e costumes dos povos navegantes, que aos poucos se transformaram em leis e regulamentos, quando ainda não era conhecido o conceito de um direito mercantil autônomo e independente. Assim é que, pelo período de muitos séculos, a história do Direito Marítimo constituiu-se na história do Direito Comercial. Enquanto o Direito Comercial se desenvolvia lento e incerto através dos usos e costumes praticados nos ambientes de mercado, o Direito Marítimo se destacava por um significativo progresso tecnológico, que brotava e se nutria de fontes surgidas da prática fecunda do tráfico marítimo. No antigo comércio marítimo, a circulação das riquezas funcionava de modo muito diverso daquilo que se conhece na atualidade. Em geral, era o dono do navio quem explorava pessoalmente o comércio pela via marítima. Ele adquiria as mercadorias e as transportava em seu próprio navio para um lugar onde ele acreditava revendê-las por um preço compensador.

Doutrina 15 A dificuldade das comunicações e a inexistência de agentes e representantes nos vários portos tornavam difícil que um comerciante de um porto expedisse mercadorias a um comerciante situado num outro porto, e devendo ainda confiar as mercadorias unicamente ao Capitão do navio. Nos primeiros tempos da Idade Média, os carregadores embarcavam e seguiam com as mercadorias durante a viagem para cuidarem pessoalmente da descarga e da entrega aos compradores no destino. Não se cogitava, em tais circunstâncias, de um contrato ou algum outro documento formal de transporte. O direito dos carregadores sobre as mercadorias era provado pelo registro de bordo, que tinha fé pública. Com o desenvolvimento do comércio, os carregadores tiveram a necessidade de nomear pessoas residentes nas localidades onde se situavam os portos de destino para cuidarem da recepção das mercadorias e seus demais interesses. Essas pessoas foram depois denominadas ‘consignatárias da carga’. Despachando as mercadorias para vários portos, os carregadores não mais acompanhavam as mercadorias, as quais deveriam ser entregues a terceiros nomeados pelos carregadores, ensejando, então, a necessidade de um documento onde fosse ‘reconhecido’ pelo Capitão do navio a presença da carga a bordo e Revista Comercialista


16 Doutrina o direito do carregador sobre ela, bem como a legitimação do ‘consignatário da carga’ a retirá-la no porto de destino. Esse documento, uma vez que se constituía num ‘reconhecimento’, passou a ser chamado de ‘Conhecimento de Carga’ ou ‘Conhecimento Marítimo’ ou ‘Conhecimento de Frete’ ou ‘Conhecimento de Embarque’ ou, ainda, ‘Conhecimento de Transporte’. Instituído com esses contornos, o Conhecimento Marítimo (CM) configurava um contrato de transporte, através do qual o dono do navio assumia a condição de transportador e se obrigava a transportar as mercadorias nele descritas e descarregá-las e entregá-las ao destinatário (consignatário) no lugar convencionado, mediante uma remuneração ajustada, que é o frete. O rápido crescimento do comércio por via marítima ensejou novas e variadas formas de utilização do navio. Quando a exploração do navio era orientada no sentido de empregá-lo no transporte, surgiram, então, os contratos de fretamento, total e parcial e por tempo e por viagem. Alguns doutrinadores distinguem os contratos de fretamento, como a obrigação do fretador de colocar o navio à disposição do afretador mediante uma remuneração, e os contratos de transporte de mercadorias, pelo qual o transportador se obriga em face do carregador a levar as mercadorias de um porto a outro e Revista Comercialista

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entregá-la ao consignatário designado, mediante o pagamento de um frete ajustado. Na constância de um contrato de transporte, o CM passou a representar o início da execução do contrato, mas também assumiu outras funções, tornando-se o documento mais importante num contrato de transporte de mercadorias. De fato, o CM não se resume no simples reconhecimento que o Capitão faz da presença da carga a bordo; é também a prova do transporte das mercadorias que o transportador se obriga a fazer e de entregá-las ao consignatário indicado no porto de destino. Na medida em que é título representativo de uma obrigação mercantil, assume as características de uma ”Apólice de Carga”, como corretamente denominado na Itália (“Polizza di Carico”), e nela se estipulam as suas cláusulas e condições. Como essas cláusulas são impressas, subordinam o contrato ao tipo impropriamente chamado de adesão. A doutrina reconhece uma tripla natureza no CM: a) prova escrita da existência do contrato de transporte; b) prova do recebimento da mercadoria a bordo do navio e da obrigação de entregá-la no porto de destino ao consignatário nele indicado; e c) é também título de crédito e prova da mercadoria. Os Conhecimentos Marítimos podem ser emitidos nominativos à ordem ou não à

ordem e ao portador. Os Conhecimentos à ordem são transferíveis por endosso e os ao portador se transferem pela simples tradição do título. O Conhecimento é um título de crédito, mas também configura uma estipulação em favor de terceiro, onde o estipulante é o remetente/carregador e o terceiro favorecido é o consignatário/destinatário da mercadoria. Nesse quadro, o transportador deve zelar para que a mercadoria seja entregue à pessoa certa do destinatário, o que deve ser feito mediante a conferência do CM. Considerando que, como título de crédito, o Conhecimento é circulável e transferível por endosso, é indispensável que o transportador, diretamente ou por seu agente marítimo, faça a conferência da via original do Conhecimento, a qual obrigatoriamente deve ser exibida pelo consignatário, para assegurar que a mercadoria será entregue àquele que sobre ela tem o legítimo direito. Por vezes, pessoas que se intitulam consignatários pretendem que as mercadorias lhes sejam entregues com a exibição de simples cópia (via não negociável) do CM, e isso não é possível, principalmente quando o remetente avisa ao transportador que está retendo a via original do Conhecimento, indicando a existência de pendências do consignatário. O endosso tem a finalidade de facilitar a circulação do Conhecimento e, com disso, aten-


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der ao dinamismo das negociações com a mercadoria durante todo o trânsito marítimo e até a sua entrega ao destinatário final. A cada endosso ocorre a transferência dos direitos sobre a mercadoria ao endossatário, evidenciando a ocorrência de sucessivas transações. Da emissão do Conhecimento até a entrega da mercadoria no destino ao consignatário observa-se uma sequência de procedimentos, os quais lhe conferem a condição de um título patrimonial (“Apólice de Carga”), que faz prova da mercadoria nele descrita. Conforme seja emitido ao portador, nominativo à ordem ou não à ordem, ao seu possuidor ou consignatário ou endossatário são atribuídos os direitos de propriedade da mercadoria. Durante o carregamento, o transportador, pela sua tripulação, vai emitindo os respectivos Recibos de Bordo (Mate’s Receipt), que são recibos provisórios correspondentes às parcelas de carga carregada. Terminado o carregamento, o transportador deve entregar o Conhecimento Marítimo, no prazo de 24 horas, em resgate aos recibos provisórios, a teor do artigo 578 do vigente Código Comercial. O Conhecimento, que deve conter os requisitos enumerados no artigo 575 do Código Comercial, é entregue ao carregador, que tem reconhecida, assim, a titularidade da mercadoria nele descrita, carregada no navio.

O presente trabalho tem por objetivo o estudo das funções dos Conhecimentos Marítimos em conexão com os transportes internacionais de mercadorias. Nesse âmbito, via de regra, as mercadorias objeto desses transportes estão diretamente relacionadas com a intensa atividade do comércio exterior. Na hipótese de uma importação por uma empresa brasileira, o importador, em geral, é o consignatário e o carregador representa o exportador, ao qual é entregue o Conhecimento. De posse do Conhecimento, e enquanto o navio segue viagem rumo ao porto de destino, o carregador aguarda que o consignatário proceda ao pagamento da mercadoria para transferir-lhe a titularidade, o que se faz através da tradição do Conhecimento. Tratando-se de título de crédito endossável, a tradição da mercadoria deve ser feita com a transferência da via original do Conhecimento. Ocorre, em algumas circunstâncias, que a compra e venda da mercadoria é feita com a interveniência de uma trading, a qual adquire a mercadoria do carregador e compromissa a sua venda com terceiro, que será o seu destinatário final. Nesse caso, o Conhecimento é emitido e entregue ao carregador, figurando como consignatário, nesse caso, a trading. Mediante o pagamento da mercadoria, a trading então transfere os seus direitos ao

Doutrina 17 comprador mediante endosso, o qual assumirá a legitimidade para receber a mercadoria no porto de destino. Similar situação ocorre quando o negócio tem a intermediação de um Banco. O carregador, pretendendo antecipar o recebimento pela venda da mercadoria, negocia o Conhecimento com um Banco, que faz o adiantamento do valor da mercadoria devido pelo consignatário, numa operação com o formato de antecipação de recebível. Como garantia, o carregador entrega ao Banco as vias originais do Conhecimento, tornando-o credor da mercadoria nele representada. Por sua vez, o consignatário é informado da transação e que o pagamento da mercadoria deverá ser feito diretamente ao Banco contra a entrega do Conhecimento. Mais recentemente, uma nova figura surgiu entre os participantes de uma operação de transporte marítimo internacional de carga. Trata-se do NVOCC (Non Vessel Owner Common Carrier), cuja atividade, no seu início, se restringia a atender aos interesses de pequenos exportadores, os quais muitas vezes desistiam de exportar porque a sua carga ocupava apenas parte de um container, mas devia arcar sozinho com os custos portuários e pagar o frete por inteiro. O NVOCC opera com vários exportadores, consolidando suas cargas num container, permitindo compartilhar os custos Revista Comercialista


18 Doutrina da operação e o frete. Perante os exportadores, o NVOCC assume a condição de transportador. No entanto, ele não tem navio, de modo que, para o cumprimento da sua obrigação assumida com os exportadores, o NVOCC realiza contratos de transporte paralelos com empresas de navegação. A atividade do NVOCC evoluiu muito com o tempo, abrangendo os serviços de ‘agente de carga’ (Freight Forwarder), responsável, hoje, pela maioria dos fretes negociados ao redor do mundo. Numa operação envolvendo NVOCC, a emissão e a circulação do Conhecimento ganham aspectos bem peculiares. O exportador contrata o NVOCC para cuidar de toda logística da exportação, incluindo a parte terrestre na origem e no destino, como também o transporte internacional. Nesse contexto, em meio aos procedimentos para atender aos propósitos das suas atribuições, o NVOCC contrata em nome próprio, como sendo o expedidor e carregador, uma empresa de navegação para o transporte marítimo da mercadoria. Vislumbram-se na hipótese acima duas relações jurídicas distintas: a primeira, entre o NVOCC e o exportador; a segunda, entre o NVOCC e o transportador físico da mercadoria. Como consequência, são emitidos dois Conhecimentos. Um, pelo NVOCC, no qual ele figura como transportador, enquanto que o exporRevista Comercialista

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tador aparece como sendo o carregador, e este, por sua vez, indica o consignatário. Esse Conhecimento, emitido pelo NVOCC, é conhecido como BL House. Quando for o caso de carga consolidada, com vários exportadores, o NVOCC emite um BL House para cada exportador, pela respectiva parcela de carga carregada no container. O outro Conhecimento é emitido pelo transportador físico da carga (empresa de navegação), onde o NVOCC figura como carregador (embarcador/expedidor), o qual nomeia como consignatário um correspondente, o qual atuará como seu agente de carga no porto de destino, conhecido como agente desconsolidador, para cuidar dos trâmites para a liberação da carga junto ao transportador físico e fazer a entrega ao destinatário final apontado pelo exportador no BL House. O Conhecimento emitido pela empresa de navegação (transportador físico) é conhecido como BL Master. O transportador físico, em geral, não é informado e não tem acesso ao BL House e nem tem informação sobre o real exportador. Para todos os efeitos legais, o vínculo do transportador físico é com o NVOCC, nos termos do BL Master. Existem algumas outras situações que implicam em diferentes formas de emissão do CM, mas as formas mencionadas acima são as mais comuns e as mais importantes para as

questões que serão suscitadas adiante. O artigo 1º, do Decreto n. 19.473, de 10/12/1930, estabelece que o ‘conhecimento de frete original, emitido por empresas de transporte por água, terra ou ar, prova o recebimento da mercadoria e a obrigação de entregá-la no lugar do destino’. O dispositivo acresce, ainda, que se trata de título à ordem e, salvo cláusula ao portador, “o conhecimento nominativo é transferível, sucessivamente, por endosso em preto, ou em branco...” (artigo 3º). O artigo 8º, do mesmo estatuto legal, elenca procedimentos que devem ser seguidos em caso de perda ou extravio do Conhecimento de Transporte, a fim de assegurar que a mercadoria seja entregue àquele que sobre ela detém o legítimo direito. O Decreto n. 19.473/30 foi revogado pelo Decreto s/n, de 25/04/91, o qual, por sua vez, foi posteriormente revogado em 1992, mas sem menção de repristinação. Todavia, uma grande parte da doutrina, com a qual nos alinhamos, sustenta que o Decreto s/n, de 1991, não tem força hierárquica para revogar o Decreto n. 19.473/30, uma vez que este foi editado durante o período da ditadura Vargas, de maneira que o referido Decreto nasceu com o status de lei. O certo é que o Decreto n. 19.473/30 em nenhum momento deixou de ser aplicado. Os artigos 579 e 589 do vetusto Código Comercial rea-


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firmam a importância da via original do CM, evidenciando a sua condição de título de crédito. De fato, o artigo 579 estabelece que, uma vez emitido o Conhecimento em sua forma regular, o carregador não pode reivindicar a alteração da pessoa do consignatário sem que faça a prévia entrega ao Capitão/transportador de todas as vias do Conhecimento anteriormente emitido. Ou seja, em respeito aos direitos do legítimo portador do Conhecimento, titular dos direitos sobre a mercadoria nele descrita, o Capitão e ou transportador não podem assinar novo Conhecimento em substituição, sem que seja retirado de circulação o primeiro, o que é feito com o recolhimento de todas as vias originais. O artigo 589, de seu lado, estabelece que nenhuma ação entre o Capitão (transportador) e os carregadores ou seguradores será admissível em Juízo se não for logo acompanhada do Conhecimento original, cuja falta não pode ser suprida pelos recibos provisórios de bordo. Isso se justifica, na medida em que, sendo um título de crédito, somente o Conhecimento original é que se reveste dos requisitos para valer como prova da mercadoria nele descrita e prova dos direitos do consignatário ou endossatário nele identificado sobre a referida mercadoria. Vale o CM pelo seu próprio conteúdo e, na lição de FRANS MARTINS (in Contratos e Obri-

gações Comerciais, 7ª. Ed. Forense, 1984, p. 224), se constitui num título semelhante aos títulos cambiais, de maneira que, da mesma forma como não é admissível executar uma cambial através de sua cópia, igualmente quanto ao Conhecimento de Frete não se permite o exercício de ação sem o seu original. A diversidade de relacionamentos que se estabelecem num contrato de transporte de carga, induzindo uma complexa circulação do CM, cria, muitas vezes, dificuldades no momento da entrega da carga no lugar do destino. Tem-se verificado situações onde o Conhecimento original é retido em algum ponto da sua circulação, por razões as mais diversas, inclusive inadimplemento, e não chega às mãos do consignatário/destinatário da mercadoria, o qual, mediante o mero pagamento do frete e exibindo cópia simples do CM reivindica a entrega da mercadoria, e isso não é possível. O transportador tem o dever entregar a mercadoria àquele que for o legítimo detentor do CM original. Se a entrega da mercadoria for feita sem a exibição e conferência do Conhecimento original e o recebedor não for o legítimo titular dos direitos sobre a mercadoria, o transportador deverá ser responsabilizado pelas perdas e danos causados por erro na entrega da mercadoria. Com rigor, sendo o CM título de crédito, ele é passível de

Doutrina 19 endosso, e na medida em que este transfere ao endossatário a titularidade da mercadoria, presumindo-se proprietário desta o último endossatário e detentor do título, só a cártula original outorga legitimidade àquele que pretende reivindicar a entrega da mercadoria ou discutir em Juízo questões pertinentes à mercadoria que tenha por suporte esse documento. A partir do advento do Decreto-Lei n. 116, de 1967, que dispõe sobre as operações portuárias inerentes ao transporte marítimo de mercadorias, e a evolução da organização dos portos no Brasil, a entrega da mercadoria, nos casos de importação, não é mais feita pelo transportador diretamente ao consignatário. De acordo com os sistemas portuário e aduaneiro, o transportador deve entregar a mercadoria à entidade portuária do lugar de destino, ao costado do navio. Em substituição à entidade portuária, o recebimento das mercadorias descarregadas, hoje, é feita pelos terminais portuários alfandegados, conforme reforma da organização dos portos introduzida pela Lei dos Portos (Lei n. 8.630, de 1993), e hoje regida pela Lei n. 12.815, de 2013. A liberação da mercadoria ao consignatário (importador) seguia uma combinação de procedimentos harmônicos, que protegiam os interesses do transportador, do consignatário/importador e também os da Fazenda Nacional. Descarregada a mercadoria e depositada Revista Comercialista


20 Doutrina em mãos do terminal portuário, o consignatário devia se apresentar ao agente marítimo representante do transportador e, exibindo o Conhecimento original, pagava o frete respectivo. O agente marítimo fazia a conferência do CM e passava recibo do pagamento do frete no próprio corpo do Conhecimento, e isso significava, também, o reconhecimento da autenticidade do documento e a legitimidade dos direitos do seu portador, consignatário ou endossatário, especialmente para a retirada da mercadoria. Com o Conhecimento original assim chancelado e a exibição de outros documentos exigidos, como a fatura comercial, e o pagamento de outros encargos portuários e do respectivo Imposto de Importação, o importador procedia ao competente desembaraço aduaneiro, com o registro da Declaração de Importação (DI) junto à Alfândega. Completado o procedimento aduaneiro, era expedida pela autoridade aduaneira a autorização em favor do importador para a retirada da mercadoria no depósito ou terminal portuário. Além disso, para retirar a mercadoria, o importador ainda deveria entregar ao depositário uma via original do Conhecimento, onde ficava arquivada para futuras conferências fiscais. Importa relevar, pela pertinência, que os Regulamentos Aduaneiros, incluindo o presentemente em vigor, os quais são instituídos através de DeRevista Comercialista

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cretos, sempre estabeleceram a obrigatoriedade do Conhecimento original para o despacho aduaneiro. Com o pensamento focado na modernização e praticidade dos procedimentos portuários e aduaneiros, a Secretaria da Receita Federal editou a Instrução Normativa n. 800, de 2007, introduzindo o Sistema Integrado de Comércio Exterior, que ficou conhecido como Siscomex, consistente num sistema informatizado de controle de entrada e saída de embarcações e de movimentação de cargas e containers em portos alfandegados. A Instrução Normativa n. 800, de 2007, criou, no âmbito da administração aduaneira, a figura do “Conhecimento Eletrônico” (CE), que nada mais é do que o Conhecimento de Carga informado à autoridade aduaneira na forma eletrônica, no Siscomex, mediante certificação digital do emitente. Com isso, para fins fiscais, a RFB passou a considerar o “Conhecimento Eletrônico”, embora mereça ser ressalvado que na relação jurídica privada entre o transportador e os interesses da carga ainda persiste, como documento válido, a via física original do Conhecimento emitido por ocasião do carregamento, com todas as suas características e propriedades de um título de crédito transferível por endosso ou por simples tradição. O despacho aduaneiro de importação foi disciplinado pela IN SRF n. 680, de 2006,

cujo artigo 18 determinava que a DI deveria ser instruída, entre outros documentos, com a via original do Conhecimento de Carga, enquanto que o artigo 54, do mesmo diploma, estabelecia que para retirar as mercadorias do recinto alfandegado, o consignatário/importador deveria exibir e entregar ao depositário uma via original do Conhecimento. A partir da instituição do SIscomex, o despacho aduaneiro, realizado através do registro da DI, passou a ser feito eletronicamente, com todas as informações relativas aos documentos exigidos, tais como Conhecimento Marítimo e Fatura Comercial. Porém, salvo situações especiais, a exibição desses documentos não era mais obrigatória, embora o importador devesse preservá-los pelo prazo de cinco anos para atender a eventual fiscalização pela RFB. Quanto à liberação e retirada da mercadoria pelo importador, foram mantidas as exigências estabelecidas no artigo 54 da IN 680, e, com isso, estava preservada a importância do Conhecimento na sua via original, como forma de dar segurança à relação jurídica de natureza privada e aos consequentes negócios estabelecidos por via marítima. No entanto, em maio de 2013, a RFB editou a IN n. 1356, com alterações substanciais na IN n. 680. As alterações mais importantes dizem respeito à dispensa da exibição do Conhecimento original tanto para


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o despacho aduaneiro quanto para a retirada da mercadoria do recinto alfandegado. Diga-se, desde logo, que houve total impropriedade do ato, pois a norma induz uma indesejável intromissão da autoridade aduaneira numa relação jurídica entre particulares, nascida através do contrato de transporte. De fato, a autoridade exorbitou de sua competência. A alteração trouxe total insegurança jurídica para as partes envolvidas no contrato de transporte marítimo. Ao instituir o despacho aduaneiro com o Conhecimento Eletrônico (e não mais com o CM original chancelado pelo agente marítimo) e autorizar que a mercadoria seja entregue pelo depositário ao consignatário/importador sem a necessidade de apresentação do Conhecimento original, a normativa aduaneira não só retira do transportador o controle sobre a entrega da mercadoria ao consignatário, mas também implica na perda do controle do fiel cumprimento do contrato de transporte. Nesse passo, a norma editada pela RFB reflete efeitos diretamente na relação jurídica entre o transportador marítimo e o contratante do transporte, e isso extrapola os limites da competência da autoridade administrativa e o próprio campo de eficácia das Instruções Normativas. No topo da pirâmide sugerida por Hans Kelsen está a Constituição Federal, que é a base de toda a organização ju-

rídica do Estado. No primeiro plano imediatamente abaixo da Constituição estão os Tratados e as Leis, ordinárias e complementares, que resumem as normas que criam, modificam ou extinguem direitos e obrigações. Descendo a escala hierárquica, estão as normas infralegais. Os primeiros, nesse nível, são os Decretos Presidenciais, os Decretos Legislativos e as Resoluções, os quais, via de regra, servem para regulamentar as Leis. Finalmente, seguem as Portarias, Avisos, Regimentos e as Instruções Normativas, as quais, embora sejam também normativas, são mais detalhistas e devem, de forma estrita, satisfazer aos preceitos contidos nas Leis, mas não podendo jamais alterá-las e ou criar e extinguir direitos e obrigações. A Instrução Normativa é ato puramente administrativo, emanada por autoridade administrativa e para valer apenas no âmbito administrativo. Tem natureza de norma complementar, servindo também para prescrever a maneira de ser organizada a repartição ou departamento e o modo pelo qual nele se devem executar os serviços que lhe são afetos. Deste modo, a IN jamais poderá inovar o ordenamento jurídico, sob pena de ilegalidade. Se, de um lado, a IN não tem capacidade para inovar o ordenamento jurídico, de outro lado, tendo em conta que o emitente é uma autoridade administrativa, não menos certo

Doutrina 21 é que a IN também não tem o poder legal de estabelecer normas para reger ou interferir em relações jurídicas entre pessoas de direito privado. Isso permite dizer que a IN não pode ditar normas que interfiram de algum modo na relação que se estabelece entre o transportador marítimo e o consignatário/importador da mercadoria em face de um contrato de transporte. Em outras palavras, a IN não pode criar regra que impeça o transportador de exigir a apresentação da via original do Conhecimento Marítimo como condição para liberar a entrega da carga no porto de destino. O contrato de transporte é concluído com a entrega da mercadoria pelo transportador, no lugar do destino, ao consignatário. A exibição da via original do Conhecimento no ato da entrega é uma forma de dar segurança jurídica ao transportador, que tem a possibilidade de verificar que está entregando a mercadoria para a pessoa certa, como também ao próprio consignatário, que não correrá o risco de ter a sua mercadoria retirada ardilosamente do armazém do porto por pessoa que sobre ela não exerce legítimo direito. Diante dos contornos e do campo de eficácia da norma administrativa é que se deve interpretar a IN n. 1356, de 2013. Isto feito, devemos considerar que a autoridade administrativa tem realmente todo o direito de instituir o chamaRevista Comercialista


22 Doutrina do Conhecimento Eletrônico e dispensar a apresentação do CM original para o despacho aduaneiro e outros fins fiscais, mas as normas instituídas pela referida IN não alcançam de nenhum modo os direitos e obrigações decorrentes da relação jurídica estabelecida entre o transportador e os interesses da carga no âmbito do contrato de transporte, que se regulam pelas normas de direito privado. Nesse passo, o transportador, independentemente das questões fiscais e aduaneiras, tem o direito de exigir a apresentação do CM original para liberar a mercadoria ao consignatário, o que implicar dizer que o depositário, apesar da eventual liberação pela Alfândega, não pode entregar a carga ao consignatário sem a devida autorização do transportador ou do seu agente marítimo. A IN n. 1356 suscitou intenso debate na comunidade marítima, ganhando grande destaque o dispositivo relacionado com a liberação da mercadoria sem o CM original. Sobreveio, mais recentemente, a IN n. 1443, de 06 de fevereiro de 2014, alterando a redação do § 3º, do artigo 55, da IN n. 680, de 2006, o que, confrontado com as alterações introduzidas pela IN n. 1356, causa uma certa ambiguidade. De fato, enquanto a IN n. 1356 estabeleceu alterações na IN 680 no sentido de que para retirar a mercadoria, o imporRevista Comercialista

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tador não precisa apresentar ao depositário o CM original, a IN n. 1443 dispõe que ao proceder à entrega da mercadoria o depositário não fica dispensado “de adotar medidas ou de exigir os comprovantes necessários para o cumprimento de outras obrigações legais, em especial as previstas no artigo 754 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil.” E, o artigo 754 do Código Civil, dispõe que “As mercadorias devem ser entregues ao destinatário, ou a quem apresentar o conhecimento endossado, devendo aquele que as receber conferi-las e apresentar as reclamações que tiver, sob pena de decadência de direitos.” Só existe um meio para o depositário identificar o verdadeiro destinatário da mercadoria, e isso se faz através da conferência do Conhecimento Marítimo original. Aliás, o próprio dispositivo aponta nesse sentido, na medida em que estabelece a necessidade da apresentação do ‘conhecimento endossado’, pois, para verificar se o ‘conhecimento foi transferido por endosso ou não, torna-se indispensável a exibição da via original do CM.Apesar do aparente conflito com a IN 1356, deve prevalecer o princípio de que a regra nova revoga a regra antiga naquilo que lhe for contrário ou incompatível, e esse é o caso. De qualquer forma, e como acima sustentado, a Instrução Normativa é ato administrativo e não produz efeitos nas

relações entre particulares, de modo que, no âmbito da relação jurídica gerada pelo contrato de transporte, o Conhecimento Marítimo original é documento indispensável para que o importador possa reivindicar junto ao transportador a entrega da mercadoria.

* Osvaldo Sammarco Advogado. Sócio-fundador da Sammarco e Associados Advocacia. Graduado pela Universidade Católica de Santos (UNISANTOS). Procurador Municipal aposentado, presidente da Associação dos Advogados de Santos no biênio 1978/1979, membro da Associação Brasileira de Direito Marítimo – ABDM, professor titular de Direito Marítimo desde 1996.


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Doutrina 23

O “arresto” de navios e a necessidade de reforma da legislação brasileira em vigor Por Werner Braun Rizk* 1. Introdução

estas dificuldades se agravam O “arresto” de navios ocu- ainda mais em razão das arpa papel de destaque na prá- caicas normas nacionais atitica da advocacia maritimista nentes ao instituto do embarem razão dos custos envol- go à saída de navio, que tem vidos no transporte maríti- feição diferente na common mo e da urgência da medida, law. E muitas dúvidas dos afinal, a conclusão de opera- aplicadores do Direito ocorção de carga em poucas horas rem justamente pela necese a iminente partida da em- sária adaptação da medida barcação tornam significativo ao nosso sistema, a começar o risco de ineficácia da tute- pela confusão comum em rala. Infelizmente, não é inco- zão da utilização do vocábulo mum que a especificidade do “arresto”. Direito Marítimo e a necessidade de o magistrado apre- 2. O “arresto” de navios ciar imediatamente questão na common law: técnica com a qual raramente O “arresto” na common law é afeto redundem em demo- está diretamente relacionado ra que causa perda do inte- ao conceito de maritime lien, resse no provimento jurisdi- instituto que não guarda corcional. Não há dúvidas de que respondência exata com neRevista Comercialista


24 Doutrina

nhum do Direito Brasileiro. O maritime lien, que implica em direito de seqüela sobre a embarcação, pode ser definido de duas formas: “(1) um direito a parte da propriedade da coisa; e (2) uma pretensão privilegiada sobre o navio, aeronave ou outra propriedade marítima, referentes a serviços prestados a ela, ou danos causados pela referida propriedade”1. Reside aí a primeira dificuldade na adaptação do instituto ao Direito Brasileiro: A common law admite actio in rem, isto é, que a pretensão seja deduzida diretamente em face da coisa, que, nesta hipótese, assume personificação, reputando-se “o navio” causador do dano e responsável pela sua reparação. Enquanto a lei brasileira admite apenas a actio in personam – movida em face de pessoa natural ou jurídica, a actio in rem tramita em face do navio, sendo dispensável o comparecimento em juízo de seu proprietário ou afretador para integrar a lide. A grande utilidade de se manejar ação desta natureza na common law é evitar a tormentosa tarefa de promover a citação de proprietários de embarcações cuja identidade se faz de difícil acesso, mediante o uso de bandei1 HILL, Cristopher, Maritime Law, 6. ed. LLP: 2003. p. 119. (tradução livre). Revista Comercialista

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ra de conveniência e registros em países não signatários de convenções internacionais. Tais países oferecem como um de seus atrativos exatamente a dificuldade de se identificar o real proprietário do navio. A promoção de ação em face da coisa permite a obtenção de decisão com eficácia erga omnes mediante comunicação dirigida apenas ao comandante da embarcação, como seu representante. Embora não se exclua a possibilidade de a parte optar pela actio in personam, a dedução da pretensão para exercer maritime liens na common law pode se dar mediante actio in rem, isto é, de ação ajuizada em face da coisa, que resulta na retenção da embarcação até que seja satisfeita a obrigação ou prestada garantia suficiente para tanto. Como se pode ver, o embargo à saída de embarcação é, em sua essência, a efetivação de um direito material com seqüela sobre a coisa.

da não é, de regra, uma ação cautelar de arresto. A utilização do vocábulo “arresto” resulta da tradução do verbo “to arrest” da língua inglesa, que significa “apreender”, “deter”, “embargar”. Assim como na common law, o embargo à saída de embarcações constitui a efetivação de uma pretensão de direito material, que deve ser deduzida de acordo com os mecanismos processuais oferecidos pela lei brasileira. Não obstante a utilização da palavra “arrest” pela common law, parece fora de dúvida que a ação judicial viável no Brasil não se confunde com a actio in rem acima mencionada, constituindo actio in personam. Não se perca de vista que uma embarcação pode ser embargada (ou “arrestada”) até mesmo sem a necessidade de se promover qualquer ação judicial, como, por exemplo, por atos auto-executórios da Autoridade Marítima, “na hipótese de perigo ou risco potencial à 3. O “arresto” de navios navegação, à salvaguarda da vida humana nas águas e/ou do Direito brasileiro de poluição ambiental” (item 3.1 Natureza e hipóteses do 309 da NORMAM 7 - DPC2. cabimento: Do mesmo modo, o embarNão por acaso, a expressão go pode ser conseqüência da “arresto” ao longo do texto efetivação de medida cautevem sendo acompanhada da lar típica de produção anteutilização de aspas. Isso se dá porque, sob o ponto de vista 2 DPC - Diretoria de Portos e Costas da técnico processual, a medi- Marinha do Brasilc


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cipada de provas, pela qual a parte requer a realização de prova pericial ou oral. Como resultado prático, a embarcação pode ficar retida (impedida de seguir viagem) até decisão ulterior do juízo. Na lei brasileira, a ação típica de “embargo à saída de embarcações”, encontra-se prevista no Código Comercial, que confere o direito de impedir que a embarcação siga viagem nas seguintes hipóteses: a) Para os detentores de determinados créditos aos quais se atribui a qualificação de privilégios marítimos, em qualquer porto, conforme disposto no art. 479 do Código Comercial: “Art. 479 - Enquanto durar a responsabilidade da embarcação por obrigações privilegiadas, pode esta ser embargada e detida, a requerimento de credores que apresentarem títulos legais (artigo nºs 470, 471 e 474), em qualquer porto do Império onde se achar, (...)”. Há duas notas interessantes sobre o mencionado dispositivo: A primeira é que ele em momento algum utiliza a expressão “arresto”, mas sim “embargo” e “detenção”. A segunda é que, em que pese a inviabilidade da actio in rem no Brasil, o artigo menciona “responsabilidade da embarcação”, como se pudesse ela ser personifica-

da tal qual na common law. Como se pode ver, embora o ordenamento brasileiro não contemple o instituto do maritime lien, o Código Comercial estabelece que os detentores de créditos privilegiados têm direito de seqüela e podem requerer o embargo da embarcação mesmo que esteja sob posse de terceiros diversos do sujeito da obrigação que originou o referido crédito. São as seguintes normas vigentes no país que definem quais são os privilégios marítimos no Brasil: O Código Comercial (art. 470 e seguintes) e a Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras Relativas aos Privilégios e Hipotecas Marítimas e o respectivo protocolo de assinatura, firmados entre o Brasil e vários países, em Bruxelas, a 10 de abril de 1926 (Decreto n.º 351/35). b) Por créditos não privilegiados, apenas no porto de registro da embarcação, mediante caução e como medida incidental, nos termos do art. 480 do Código Comercial: Art. 480 - Nenhuma embarcação pode ser embargada ou detida por dívida não privilegiada; salvo no porto da sua matrícula; e mesmo neste, unicamente nos casos em que os devedores são por direito obrigados a prestar cau-

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ção em juízo, achando-se previamente intentadas as ações competentes. c) Por dívidas particulares do armador contraídas para aprontar o navio para a mesma viagem e na falta de outra garantia, nos termos do art. 481 do Código Comercial: Art. 481 - Nenhuma embarcação, depois de ter recebido mais da quarta parte da carga correspondente à sua lotação, pode ser embargada ou detida por dívidas particulares do armador, exceto se estas tiverem sido contraídas para aprontar o navio para a mesma viagem, e o devedor não tiver outros bens com que possa pagar; (...) e d) Por dívidas particulares dos compartes, garantindo-se a o prosseguimento da viagem mediante o oferecimento de caução: Art. 483 - Nenhum navio pode ser detido ou embargado, nem executado na sua totalidade por dívidas particulares de um comparte; poderá, porém, ter lugar a execução no valor do quinhão do devedor, sem prejuízo da livre navegação do mesmo navio, prestando os mais compartes fiança idônea. A retenção do navio pode até ser exercida por meio da ação cautelar típica de arresto, caso a parte credoRevista Comercialista


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ra das dívidas acima mencionadas preencha os requisitos do artigo 814 do Código de Processo Civil. Esta é, entretanto, uma hipótese excepcional e bastante rara, já que nos dias de hoje a maioria das dívidas previstas nos artigos citados são contraídas sem prova literal de dívida liquida e certa, nos termos da lei processual. A rigor, a pretensão de embargar a saída do navio de determinado porto se exerce mediante ação cautelar inominada, conforme dispõem os artigos 798 e 799 do Código de Processo Civil: Art. 798. Além dos procedimentos cautelares específicos, que este Código regula no Capítulo II deste Livro, poderá o juiz determinar as medidas provisórias que julgar adequadas, quando houver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação. Art. 799. No caso do artigo anterior, poderá o juiz, para evitar o dano, autorizar ou vedar a prática de determinados atos, ordenar a guarda judicial de pessoas e depósito de bens e impor a prestação de caução. Assim como na common law, o objetivo da medida não é, de regra, a efetivação futura de penhora, mas sim a Revista Comercialista

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obtenção de caução. A implementação prática da medida, entretanto, encontra algumas dificuldades em razão das normas arcaicas em vigor no Brasil e de sua defasagem com a tecnologia atual empregada na navegação.

3.2 Da defasagem da lei brasileira e do descompasso com as convenções internacionais em vigor

Conforme mencionado, os aplicadores do Direito no Brasil contam com duas normas anciãs: o Código Comercial, de 1850, e uma Convenção Internacional de 1926. Não por acaso, ambas trazem algumas disposições de impossível aplicação nos dias de hoje e outras defasadas em vista dos tratados internacionais em vigor. Algumas delas são de ordem histórica e econômica: O Código Comercial surgiu no ordenamento jurídico brasileiro em 1850 como a primeira codificação privada do Brasil, fruto de interesses econômicos impulsionados pela independência do país.

Com a declaração de independência em 1822, além da necessidade política de fixar um Código de Direito Privado pátrio e romper em definitivo o “cordão umbilical” com Portugal, mostrava-se urgente a concepção de normas que incrementassem o então incipiente comércio exterior. E as normas de Direito Marítimo que permearam a segunda parte do Código Comercial mostram claramente a intenção do legislador de atrair aos portos brasileiros embarcações estrangeiras. A Fórmula encontrada foi fortalecer a posição dos armadores estrangeiros e de seus capitães, em detrimento do exportador ou de qualquer outro credor nacional. Confira-se, por exemplo, a redação dada ao art. 482: “Os navios estrangeiros surtos nos portos do Brasil não poderão ser embargados nem detidos, ainda mesmo que se achem sem carga, por dívidas que não forem contraídas em território brasileiro, em utilidade dos mesmos navios ou de sua carga; salvo provindo

3“Tem-se mesmo justificado a inarrestabilidade do navio estrangeiro, dadas certas circunstancias, pela conveniência de atrair navios de outras nações aos portos do país, que, mostrando-se assim hospitaleiro, tem o intuito de desenvolver as relações marítimas”(sic) COSTA, José da Silva. Direito Commercial Marítimo, Fluvial e Aéreo. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1935. E também: “Esse dispositivo de nosso código, nele introduzido por influência do antigo código comercial português (1883) que, por sua vez, já o trasladara do velho código espanhol de 1823, não tem outro propósito senão o de atrair, com mais facilidade, aos portos nacionais, os navios estrangeiros.” LACERDA, J.C. Sampaio de. Curso de Direito Comercial Marítimo e Aeronáutico (Direito Privado da Navegação), 2ª ed. Rio de Janeiro: 1954.presarial, Estudo em Homenagem a Modesto Carvalhosa, Luiz Fernando Martins Kuyven (Coord.), Saraiva, São Paulo, 2012, p.443.


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a dívida de letras de risco ou de câmbio sacadas em país estrangeiro no caso do art. 651, e vencidas em algum lugar do Império. 3” Outras são de cunho tecnológico, como, por exemplo, a limitação contida no artigo 479 do Código Comercial quanto ao embargo de navios que tenham à bordo carga correspondente a mais que a quarta parte de sua lotação. Art. 479 - Enquanto durar a responsabilidade da embarcação por obrigações privilegiadas, pode esta ser embargada e detida, a requerimento de credores que apresentarem títulos legais (artigo nºs 470, 471 e 474), em qualquer porto do Império onde se achar, estando sem carga ou não tendo recebido a bordo mais da quarta parte da que corresponder à sua lotação; o embargo, porém, não será admissível achando-se a embarcação com os despachos necessários para poder ser declarada desimpedida, qualquer que seja o estado da carga; salvo se a dívida proceder de fornecimentos feitos no mesmo porto, e para a mesma viagem. Vale lembrar que o Código Comercial de 1850 é bem anterior à invenção do contêiner, que foi utilizado no transporte marítimo pela primeira vez cerca de cem anos depois. Na concepção do Código, portanto, não se vislum-

brava a existência de navios full container, embarcações que operam com 100% de sua carga conteinerizada. Numa econômica de escala como a atual, este tipo de embarcação raramente opera com menos da quarta parte de sua capacidade à bordo, vale dizer, os navios liners (que operam viagens circulares em rotas definidas) carregam e descarregam determinada quantidade de conteineres em cada porto de escala e tentam otimizar seus custos aproveitando todos os espaços disponíveis em cada trecho da viagem. Caso seja aplicada ipsis literis a disposição constante no artigo 479 acima transcrito, portanto, esta espécie de navio seria virtualmente impossível de se embargar. Obviamente, não houve intenção do legislador de diferenciar navios full container de outras embarcações. Simplesmente, o contêiner ainda não existia quando da concepção do referido dispositivo. Além das disposições ultrapassadas do Código Comercial de 1850, a defasagem da legislação brasileira se faz notar também em comparação com as normas internacionais em vigor. Basta comparar o rol dos créditos que permitem o Embargo no ordenamento brasileiro (item 3.1 acima) com as disposições contidas na Internatio-

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nal Convention relating to the Arrest of Sea-going Ships, de 1952, que não foi ratificada pelo Brasil: “Art. 3º: Observadas as previsões contidas no parágrafo 4º deste artigo e no artigo 10º, o autor pode arrestar o navio específico sobre o qual surgiu a ‘maritime claim’, ou qualquer outro navio de quem era o proprietário daquele navio específico quando surgiu o ‘maritime claim’, mesmo que o navio arrestado esteja pronto para zarpar; Entretanto, nenhum navio além daquele navio específico sobre o qual surgiu o “maritime claim” poderá ser arrestado por força dos ‘claims’ mencionados no art. 1º, itens ‘o’, ‘p’ ou ‘q”. Além de possibilitar o embargo de navio pronto para zarpar e de outros navios (do mesmo proprietário) diversos daquele que deu origem à dívida, o rol de “maritime claims” que ensejam a retenção é bem mais amplo do que o do Código Comercial: “Art. 1º: “Maritime Claim” significa qualquer pretensão oriunda de um ou mais das seguintes hipóteses: (a) Dano causado por qualquer navio, seja por colisão ou qualquer outro motivo; (b) Perda de vida ou danos pessoais causados por qualRevista Comercialista


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quer navio ou ocorridos em conexão com a operação de qualquer navio; (c) Salvamento; (d) Contrato relativo ao uso ou cessão de qualquer navio seja por afretamento ou não; (e) Contrato relativo ao transporte de bens num navio, seja mediante afretamento ou não; ( f) Perda ou dano a bens, inclusive bagagens, transportados por qualquer navio; (g) Avaria grossa; (h) Dinheiro tomado em empréstimo pelo comandante para despesas de viagem; (i) Reboque; ( j) Praticagem; (k) Bens ou materiais fornecidos em qualquer lugar ao navio, para sua operação ou (m) manutenção; (l) Construção, reparo ou equipagem de qualquer navio ou cobranças e despesas de docagem; (m) Salários do Comandante, dos oficiais e da tripulação; (n) Despesas feitas pelo comandante, inclusive despeRevista Comercialista

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sas feitas pelos carregadoIII - a ação se originar de res, afretadores ou agentes em fato ocorrido ou de ato pratinome do navio ou de seu ar- cado no Brasil. mador/proprietário; Parágrafo único. Para o fim do disposto no no I, reputa(o) Disputas quanto ao título -se domiciliada no Brasil a ou à propriedade de qualquer pessoa jurídica estrangeira navio; que aqui tiver agência, filial ou sucursal. (p) Disputas entre co-proprietários de qualquer navio, Não obstante a possibilidaseja em relação à propriedade, de de o operador do Direito posse, emprego ou frutos da- apoiar-se no parágrafo úniquele navio; co sob o fundamento de que o navio é atendido no país por (q) Hipoteca”; agência marítima, o artigo 75, Do mesmo modo, ao con- § 2º do Código Civil limita a trário do sistema existente fixação de domicílio apenas nos tratados internacionais para as obrigações contraísobre a matéria, o ordena- das pela referida agência, o mento brasileiro veda que se que afastaria - igualmente – a intente medida cautelar de possibilidade de se embargar embargo de navio por dívi- o navio por dívidas contraídas da contraída no exterior, por no exterior. Aliás, as obrigaforça do artigo 88 do Código ções contraídas pela agência de Processo Civil. marítima brasileira em beneArt. 88. É competente a au- fício da embarcação por si só toridade judiciária brasileira já atrairia a incidência do inquando: ciso II do artigo 88 do Código de Processo Civil. I - o réu, qualquer que seja a Vale ressaltar que o Brasua nacionalidade, estiver do- sil também foi instado a ademiciliado no Brasil; rir à International Convention on the Arrest of Ships de 1999 II - no Brasil tiver de ser e o Ministério das Relações cumprida a obrigação; Exteriores proferiu parecer 4“ Art. 75. Quanto às pessoas jurídicas, o domicílio é: (...) IV - das demais pessoas jurídicas, o lugar onde funcionarem as respectivas diretorias e administrações, ou onde elegerem domicílio especial no seu estatuto ou atos constitutivos. (...) § 2o Se a administração, ou diretoria, tiver a sede no estrangeiro, haver-se-á por domicílio da pessoa jurídica, no tocante às obrigações contraídas por cada uma das suas agências, o lugar do estabelecimento, sito no Brasil, a que ela corresponder.


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contrário à ratificação (Ofício nº 249, de 14/11/2011) sob o fundamento de que a referida convenção estaria em conflito com a legislação brasileira vigente pois: não previa o embargo de navio, necessariamente, como medida garantidora de futura execução; Fugiria dos requisitos formais da ação cautelar de arresto, previstos nos artigos 813 e 814 do Código de Processo Civil – o que, nos dizeres do parecer, “não seria apropriado”; igualaria o “arresto de navios” a uma medida cautelar inominada; contraria as normas vigentes no Brasil de vedar embargo de navio estrangeiro ou que se encontre com mais de um quarto de sua carga; e permitiria que se processasse o embargo no Brasil ainda que a dívida fosse contraída no exterior, o que ofenderia o artigo 12 da então Lei de Introdução ao Código Civil. Ora, o interesse na ratificação de tratados internacionais se mostra mais latente justamente diante de disposições internacionais novas e diversas das leis nacionais em vigor, com vista na unificação internacional nas normas atinentes à circulação de mercadorias. Se as disposições constantes em tratado internacional são benéficas aos interesses do país e não se mostram incompatíveis com o sistema jurídi-

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Tais circunstâncias, agravadas pelo distanciamento entre o Código Comercial de 1850 e a realidade atual, recomendam a interpretação cuidadosa dos dispositivos constantes naquele diploma. A tendência, entretanto, é que o Brasil caminhe para a evolução das normas atinentes ao Direito Marítimo, seja com a ratificação de convenções internacionais ou com a elaboração de leis nacionais mais modernas e adequadas. Afinal, não parece haver justificativa razoável para que o país, sendo cargo owner, possua normas mais favoráveis aos armadores estrangeiros do que aque4. Considerações finais Como exposto, a lei brasilei- las vigentes em países tidos ra em vigor atinente ao em- como transportadores. bargo à saída de embarcações requer atenção redobrada e impõe a superação de obstáculos que já existiriam pela simples circunstância de o Brasil ser um sistema de civil law no qual não há institutos correspondentes ao maritime lien e à actio in rem. A tradução do vocábulo “arrest” traz consigo, ainda, o risco de a medida – que é de regra uma cautelar inominada – ser confundida com a ação típica de arresto prevista nos artigos 813 e 814. Este equívoco é comum não só aos * Werner Braun Rizk aplicadores do Direito no dia Advogado sócio do escritório Zouain, a dia como também a órgãos Rizk, Colodetti & Advogados Associados. Procurador do Estado do Espírito Santo. de governo.

co pátrio, não há qualquer empecilho à sua internalização. O país careceria de interesse na ratificação – isto sim – se as disposições constantes no tratado fossem contrárias aos seus interesses ou repetissem ipsis literis aquilo que já constasse na lei nacional. Diante desta relutância, afigura-se situação bastante curiosa: O Brasil, que é um país eminentemente de proprietários de carga, tem normas mais favoráveis aos navios estrangeiros do que os próprios países detentores de grandes frotas.

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Análise econômica da limitação de responsabilidade do transportador marítimo Por José Luiz Bayeux Neto*

Todas as principais convenções internacionais acerca do contrato de transporte marítimo dos séculos XX e XXI – Regras de Haia de 1924, Regras de Haia-Visby de 1968, Regras de Hamburgo de 1978 e Regras de Roterdã de 2009 – estipularam mecanismos de limitação de responsabilidade do transportador marítimo por perdas e avarias na carga ocorridas durante o transporte. Os mecanismos de limitação previstos nessas convenções – bem como os mecanismos previstos em estatutos legais e convenções relativos a outros modais de transporte – seguem todos uma mesma lógica: preveem que o transportador responderá por perdas e avarias à carga Revista Comercialista

até o limite do valor da carga declarado no conhecimento de transporte (Bill of Lading) e que, caso esse valor não seja declarado no conhecimento pelo embarcante, o transportador responderá até determinado valor, previamente fixado pelas convenções internacionais, calculado em razão do peso da mercadoria perdida ou avariada, ou em razão do número de unidades de carga (containers ou pallets) avariadas ou perdidas. O Brasil não incorporou em seu ordenamento jurídico nenhuma das grandes Convenções Internacionais sobre transporte marítimo de carga1. No direito brasileiro não há vigente, atualmente, qualquer mecanismo legal de limitação de responsabilidade do transportador específico pa-


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ra o modal marítimo, embora haja previsão legal de limitação de responsabilidade do transportador no transporte multimodal2 e nos modais aéreo3 e rodoviário4. Em dezembro de 2012, a Associação Brasileira de Direito Marítimo–ABDM apresentou ao Senado sugestão de emenda ao Projeto de Novo Código Comercial para que nele se incluísse Livro dedicado ao Direito Comercial Marítimo (Emenda 56 ao PL 1.572/2011). A Emenda 56 prevê a instituição de mecanismo de limitação de responsabilidade do transportador marítimo nos mesmos moldes e nos mesmos valores previstos nas Regras de Roterdã, de 2009. Há grande celeuma entre os agentes do setor acerca das vantagens e desvantagens de o Brasil incorporar em seu ordenamento jurídico as disposições sobre limitação de responsabilidade do transportador marítimo previstas nas Regras de Roterdã. Ao mesmo tempo, observa-se certa resistência dos tribunais brasileiros em aplicar as regras de limitação de responsabilidade do transportador, mesmo nos casos

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relativos a modais em que essas regras são expressamente previstas em lei. Os tribunais brasileiros usualmente qualificam as regras de limitação de responsabilidade como abusivas e parecem considerá-las como odiosos privilégios da classe dos transportadores. Defenderei, aqui, que o mecanismo de limitação de responsabilidade do transportador marítimo de carga previsto nas convenções internacionais – e repetido na Emenda 56 ao PL 1.572/2011 – promove uma alocação eficiente dos riscos contratuais, ao menos nas operações de transporte de índole estritamente comercial, em que se pressupõe agentes com maior grau de informação acerca das condições econômicas da operação.

venções internacionais sobre transporte de carga marítimo reside no caráter contratual desse mecanismo. Esses mecanismos, com certa frequência, são abordados como se se tratassem de “imposições legais” de limites de responsabilidade do transportador, ou seja, como se a limitação prevista em lei fosse imperativa e não pudesse ser afastada pela vontade das partes. Essa abordagem é equivocada. Os mecanismos de limitação de responsabilidade do transportador marítimo previstos nas convenções internacionais não consistem em regras de responsabilidade civil, mas sim em regras de interpretação contratual, ou, melhor dizendo, regras de interpretação de atos realizados pelas partes na formação do conA contratualidade do me- trato de transporte. Essas regras dispõem, em sucanismo de limitação de ma, que o ato do embarcante de responsabilidade declarar determinado valor da carga no conhecimento de transA chave para se compreender porte será interpretado como a eficiência do mecanismo de liuma estipulação de limite de resmitação de responsabilidade do ponsabilidade do transportador transportador previsto nas conao valor declarado. O ato do embarcante de não declarar o valor 1 O Brasil é signatário da convenção denominada “Regras de Hamburgo”, de 1978, porém não a da carga, por sua vez, será interratificou internamente. pretado como a anuência do em2 No transporte multimodal doméstico, a limitação de responsabilidade é prevista no art. 17 da Lei barcante em se submeter a um 9.611/98, em conjunto com o art. 16 do Decreto 3.411/00. A limitação no transporte multimodal regime de tarifação de indenizainternacional é prevista no art. 13 do Acordo sobre Transporte Multimodal Internacional entre os ção previamente fixado. Estados Partes do MERCOSUL de 1994, em conjunto com o item 2 do anexo I do Acordo. Em outras palavras, o que es3 No transporte aéreo doméstico, a limitação de responsabilidade é prevista no artigo 262 do sas disposições fazem é promover Código Brasileiro de Aeronáutica, ao passo que, no transporte aéreo internacional, ela é prevista no artigo 22, inciso III, da Convenção de Montreal, incorporada ao Direito Brasileiro pelo Decreto uma inversão da regra padrão da responsabilidade contratual. 5.910/06. No direito dos contratos, via 4 Vide art. 14 da Lei 11.442/07 e o art. 18 do “Acordo sobre o Contrato de Transporte e a Responsabilidade Civil do Transportador no Transporte Rodoviário Internacional de Mercadorias, entre de regra, o devedor responde pela integralidade dos prejuBrasil, Bolívia, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai, de 16/8/1995”. Revista Comercialista


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ízos provocados ao credor pelo seu inadimplemento. As partes contratentes, contudo, podem derrogar a regra de ampla responsabilização do devedor por meio de cláusulas de limitação de responsabilidade ou cláusulas penais de prefixação de perdas e danos. No contrato de transporte de carga, a regra instituída pelos mecanismos de limitação de responsabilidade previsto nas convenções internacionais é a inversa: no silêncio das partes, o transportador responderá até uma determinada quantia, previamente fixada em lei, que será calculada de acordo com o peso ou o volume da carga transportada. O embarcante, contudo, poderá alterar esse regime de responsabilidade contratual limitada e majorar a indenização devida pelo transportador em caso de perda ou avaria da carga, por meio da declaração do valor da carga no conhecimento de transporte. Em outras palavras, as leis e convenções internacionais acerca do contrato de transporte marítimo de carga instituem uma cláusula de limitação de responsabilidade “tácita” ou “presumida”, que pode ser elidida pelo embarcante por meio da declaração do valor da carga no conhecimento de transporte. Para qualquer que seja a construção dogmática dos mecanismos de limitação de responsabilidade previsto nas convenções internacionais sobre a matéria, o que importa observar é que a limitação Revista Comercialista

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de responsabilidade não é uma regra imperativa, mas sim dispositiva: ao embarcante sempre é dada a opção entre (i) declarar o valor da carga no conhecimento de transporte e, com isso, obter a responsabilização do transportador pelo valor integral da carga declarado; e (ii) não declarar o valor da carga, deixando a responsabilidade do transportador limitada à tarifa legal.

A eficiência da liberdade de pactuar a alocação dos riscos contratuais A liberdade conferida pelos mecanismos de limitação de responsabilidade às partes do contrato de transporte marítimo – liberdade de optar por um regime contratual de responsabilidade limitada do transportador ou por um regime sem qualquer limitação – tende a ser eficiente. Essa liberdade na contratação do regime de responsabilidade contratual aplicável permite que embarcante e transportador aloquem o risco contratual à parte que pode suportá-lo ao menor custo possível. E possuindo a liberdade para tanto, as partes sempre tenderão a fazê-lo. Afinal, ambas as partes saem ganhando quando o risco contratual é alocado para aquela que pode suportá-lo ao menor custo. A eficiência na alocação

dos riscos contratuais produzirá excedentes que, em tese, serão partilhados pelas partes5. Na prática do comércio marítimo, o transportador cobrará do embarcante que declarar o valor da carga no conhecimento de transporte frete em valor maior do que aquele que cobraria do embarcante que não declarasse o valor da carga. A razão disso é fácil de compreender: o embarcante que declara o valor da carga no conhecimento oferece ao transportador maior risco contratual do que o embarcante que não declara o valor da carga. Uma vez que suportar risco custa dinheiro, o transportador cobrará um valor de frete menor do embarcante que lhe proporcionar menor risco. Isso faz com que o embarcante se veja diante do seguinte dilema: ele pode declarar o valor da carga para garantir o direito a uma indenização integral do transportador e pagar, para tanto, um valor de frete mais caro, ou pode não declarar o valor da carga, ficar “descoberto” sem o direito à indenização integral e pagar um frete em valor mais baixo. De uma perspectiva estritamente econômica, a escolha, pelo embarcante, do regime contratual aplicável, está intimamente relacionada ao custo incorrido por cada uma das partes para suportar ou mitigar os riscos contratuais.

5 Confira-se: “Furthermore, the promisor may sometimes be the cheaper risk bearer because she may be in a better position to prevent breach or may simply be less risk-averse. When the promisor is the cheaper risk-bearer, it is socially desirable for the promisee to pay the promisor to assume the risk” (Michael Dorff, Attaching tort claims to contract actions: an economic analysis of contort. Seton Hall Law Review, n. 28, p. 390, 1997-1998).


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Em outras palavras, a escolha do embarcante entre declarar ou não o valor da carga no conhecimento de transporte está relacionada ao custo de contratação de seguro incorrido por cada uma das partes: o custo do embarcante de contratar seguro de dano da carga em seu favor, e o custo do transportador de contratar seguro de responsabilidade civil em seu favor. Se, entre as partes contratantes, o embarcante for aquele que puder suportar os riscos inerentes ao contrato de transporte marítimo ao menor custo – ou seja, se o embarcante puder contratar seguro de dano da carga a um preço menor do que o pago pelo transportador para contratar seguro de responsabilidade civil –, então, sua melhor opção será deixar de declarar o valor da carga e suportar sozinho os riscos que o transporte marítimo oferece à carga. Isso porque, nessa hipótese, o valor do prêmio do seguro da carga pago pelo embarcante tenderá a ser menor do que o valor do acréscimo ao preço do frete que a declaração do valor da carga no conhecimento acarretaria. Ou seja, será mais barato ao embarcante ser “coberto” por uma seguradora do que ser coberto pelo transportador. Se o transportador for a parte que puder suportar o risco do transporte ao menor custo – ou seja, se o transportador puder contratar seguro de responsabilidade civil a um preço menor do que o pago pelo embarcante para

contratar seguro de dano da carga – então fará mais sentido ao embarcante declarar o valor da carga no conhecimento. Isso porque, nessa hipótese, o acréscimo do valor do frete decorrente da declaração do valor da carga no conhecimento tenderá a ser menor do que o valor do prêmio de seguro de dano que o embarcante pagaria se contratasse um seguro por sua conta. É mais barato ao embarcante, nesse caso, deixar o risco a cargo do transportador do que transferi-lo a um segurador. É fácil observar que um regime baseado na liberdade das partes de alocar entre si o risco contratual é mais eficiente do que um regime no qual a alocação original do risco contratual pela lei não pode ser alterada pela vontade das partes. A liberdade na escolha do regime de responsabilidade contratual promovida pelos mecanismos de limitação de responsabilidade previstos nas convenções internacionais sobre transporte marítimo de carga é benéfica e atende aos interesses dos embarcantes. Isso porque essa liberdade na alocação dos riscos contratuais permite aos embarcantes optarem pelo regime que lhes assegura o custo ótimo de frete e seguro da carga.

A eficiência da alocação do risco ao embarcante No tópico anterior, concluiu-se que um regime de responsabilidade contratual em que as partes têm liberdade para aloca-

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rem entre si os riscos contratuais é mais eficiente do que um regime em que a alocação original instituída pela lei não pode ser alterada pela vontade das partes. Isso não basta, contudo, para se afirmar a eficiência dos mecanismos de limitação de responsabilidade previstos nas convenções internacionais sobre transporte marítimo de carga. Mesmo porque, conforme já afirmado acima, o regime jurídico aplicável aos contratos em geral, em tese, já permite a livre realocação de risco contratual entre as partes, por meio de cláusulas de limitação de responsabilidade e cláusulas de prefixação de perdas e danos. O regime de responsabilidade instituído pelos mecanismos de limitação de responsabilidade do transportador marítimo previstos em convenções internacionais difere do regime de responsabilidade contratual geral não em razão da liberdade na alocação dos riscos contratuais (que existe nos dois regimes), mas sim em razão da alocação standard aplicável no silêncio das partes. As normas contratuais dispositivas – ou seja, aquelas que podem ser derrogadas pela vontade das partes – devem buscar instituir regras que as partes presumivelmente pactuariam na maior parte dos casos. Uma regra dispositiva que seja constantemente derrogada pelas partes é ineficiente: falha em identificar o que as partes presumivelmente acordariam na maior parte dos casos. A regra standard é feita para ser regra, não exceção. Revista Comercialista


34 Doutrina Assim, para se afirmar se os mecanismos de limitação de responsabilidade do transportador marítimo são desejáveis e eficientes, é necessário se averiguar se o regime standard por eles instituído (alocação de riscos ao embarcante) é ou não o regime mais eficiente na maior parte dos casos. Contra a eficiência dos mecanismos de limitação de responsabilidade do transportador marítimo, argumenta-se que, na maior parte dos casos, dentre as partes intervenientes no contrato de transporte, o transportador seria aquele capaz de contratar seguro de responsabilidade ao menor custo. Isso porque, em geral, cada transportador contrata um número maior de apólices de seguro do que cada um de seus clientes individualmente. Como quem compra no atacado paga menos por unidade do que quem

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compra no varejo, há fundadas razões para se crer que o transportador de carga consiga contratar seguros de responsabilidade civil a um prêmio menor do que o prêmio do seguro de dano da carga pago pelo embarcante para o mesmo interesse segurado. O argumento é convincente e fundado em premissas verdadeiras. Mas ele ignora algumas variáveis relevantes do problema. Conquanto seja verdade que o transportador, por ser um cliente contumaz dos seguradores, obtenha um ganho de escala no preço de contratação do seguro, não necessariamente essa vantagem implicará que o custo médio da contratação do seguro pelo transportador seja mais baixo do que o custo médio da contratação de seguro pelo embarcante. Isso porque há uma assimetria de informações entre embarcantes e transportadores acer-

6 Esse argumento é muito bem sintetizado por David S. Peck: “The second part of the negotiation involves allocating responsibilities to the party which can handle them most effectively. The lower the cost of performance, the higher the profit that can be split between the carrier and shipper. If the market works efficiently and the parties bear no transaction costs, then the parties will always arrive at the same economic result regardless of where default responsibility lies, as long as the parties are allowed to transfer responsibility freely. The result will be that the most efficient party will perform the duties and the difference will be made up in the price of the freight. One theory maintains that carriers disclaimed liability for loss because it constituted the most efficient scenario.38 As discussed below, shippers may possibly procure insurance or address the risk of loss more efficiently than carriers. The cost of obtaining and evaluating information constitutes a major cost of insuring a risk. The more information available concerning the cargo (i.e. its value, its nature and durability, whether the cargo is perishable, etc.), the more accurately the insurer can evaluate the risk of loss and the cheaper rates it can provide. The shipper enjoys a distinct advantage over the carrier here because it already has substantial knowledge of the characteristics of the cargo. If the carrier must insure the cargo, it must then exert time and effort to obtain information already known to the shipper. The fact that carriers did not rush into disclaiming liability when the British courts first allowed them to do so supports this theory (…) shippers eventually discovered that they could obtain better and cheaper security from an insurance underwriter than from a carrier. The savings in rates exceeded the expense of insuring the cargo through a cargo insurer. The decrease in both the number of losses and the insurance rates themselves prove the success of this allocation. While exculpatory clauses may signal uneven bargaining power, they may also represent efficient negotiations between parties possessing equal bargaining power. Such clauses may also symbolize the most efficient allocation of resources for the particular transaction” (David S. Peck, Economic analysis of the allocation of liability for cargo damage: the case for the carrier, or is it? Transportation Law Journal, n. 26, p. 73-105, 1999). Revista Comercialista

ca do valor da carga transportada (e essa assimetria está no cerne da limitação de responsabilidade) que faz com que o segurador do embarcante consiga realizar uma mensuração de riscos mais acurada do que a do segurador do transportador. O embarcante e seu segurador sempre saberão de antemão o valor do interesse segurado, ou seja, sempre saberão o valor da carga objeto do transporte. Contudo, na hipótese em que o transportador possa ser responsabilizado integralmente pelo valor da carga perdida ou avariada independentemente de o valor da carga ter ou não sido declarado no conhecimento, o transportador e seu segurador não saberão previamente qual o valor da carga transportada e, consequentemente, a dimensão do risco assumido. Na ignorância da dimensão do interesse segurado, não resta ao segurador do transportador outra alternativa que não inferir o valor médio do risco coberto de acordo com uma estimativa. Surgem aqui problemas de seleção adversa: não sendo capaz de distinguir entre embarcantes que oferecem alto risco (pois embarcam cargas valiosas) e embarcantes que oferecem baixo risco (pois embarcam cargas de pouco valor), os transportadores e seus seguradores assumem que o risco oferecido por suas contrapartes contratuais consistem em uma média entre clientes que oferecem alto risco e clientes que oferecem baixo risco.6 O sistema em que a responsabilidade recaia sempre sobre


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o transportador, independentemente de o valor da carga ter ou não sido declarado no conhecimento, pelo menos em tese, prejudica os embarcantes de carga de baixo valor (que são tomados pelo transportador e seu segurador por embarcantes que oferecem riscos contratuais maiores do que os que eles realmente oferecem) e beneficia os embarcantes de cargas de alto valor (que são tomados pelo transportador e seu segurador por embarcantes que oferecem riscos contratuais menores do que os que eles realmente oferecem). O fato de, na prática do mercado de transportes, na maioria esmagadora dos contratos, não

haver valor declarado no conhecimento – o que significa que as partes optaram por transferir os riscos do transporte ao embarcante, mantendo-se a cobrança de um frete baixo –, talvez seja um indício de que os custos decorrentes do problema de seleção adversa provocados pela assimetria de informações entre transportador e embarcante quanto ao valor da carga superem as vantagens que o transportador tem de contratar o seguro no atacado. Em outras palavras, apesar de os transportadores contratarem seguro no atacado e os embarcantes contratarem no varejo, ainda assim é possível que seja mais barato aos embarcantes

contratarem o seguro de dano da carga do que aos transportadores contratarem o seguro de responsabilidade civil, o que faz com que seja mais eficiente alocar os riscos contratuais do transporte ao embarcante do que ao transportador7.

* José Luiz Bayeux Neto Advogado. Bacharel em direito pela Faculdade de Direito da USP e mestrando pela USP.

7 Vide, nesse sentido, observação de Lord Diplock: “Experience has shown that the economic advantages to cargo owner and carrier of accepting the limitation outweigh the economic advantages of declaring a higher value and so imposing a higher liability upon the shipowner. The option to declare a higher value is practically never exercised. It is sometimes asserted, with moral indignation, that carriers have robbed shippers of their option by insisting upon excessive freight rates if their liability is to exceed the ordinary limitation figure. All that this means is that the increase over the standard freight rates which the carrier requires for accepting the higher liability is greater than the reduction in the insurance premium which the cargo insurer is prepared to offer for the prospect of recovering a higher amount from the carrier or his P. and I. insurer, in the event of a loss for which the shipper is liable (…) If it had been more economical for the carrier to insure against the excess liability than for the cargo owner to cover it with his cargo insurer, without the insurer’s having any prospect of recovery against the carrier, this would have been discovered sometime in the forty six years since 1924, and the carrier would have quoted, for the goods declared to be of a higher value than the limitation figure, freight rates which would have reflected the lower cost of covering the excess liability himself” (Lord Diplock, Conventions and morals-limitation clauses in international maritime conventions. Journal of Maritime Law and Commerce, v. 1, n. 4, p. 525, 1970).

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Abram Szajman,

presidente da FECOMERCIO-SP, apresenta sua visão sobre o cenário empresarial do país

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