O Comercialista - Vol. VI - 4º Trimestre 2012

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Volume 6

4° trimestre 2012

omercialista Revista de Direito Comercial e Econômico

por João Pedro de Oliveira de Biazi

Nova Bolsa de Valores. Vantagem? por Matheus Massari

Considerações em torno do projeto de lei de Código Comercial por Fábio Ulhoa Coelho

Liberdade Política, Liberdade Econômica e os caminhos para o desenvolvimento brasileiro por Vinicius Augusto Nunes Pecora

Os limites da cópia: Os debates sobre copycats sob a perspectiva do ordenamento jurídico brasileiro por Luis Felipe B. Luz e Pedro Henrique S. Ramos

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Entrevista exclusiva com Modesto Carvalhosa

Modesto Carvalhosa foi professor de direito comercial da USP, consultor da Bovespa e presidente do Tribunal de Ética da OAB-SP. Trata-se de um dos maiores advogados da história do Brasil, tendo em vista seu trabalho no âmbito jurídico. É autor dos “Comentários à Lei das Sociedades Anônimas”, publicados em 1977 e ainda de grande relevância nos dias atuais. A entrevista exclusiva transparece uma verdadeira lição de vida para todos aqueles que trabalham com o direito.


Apontamentos Comercialistas

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O Comercialista

Editorial É de se pensar em como o conhecimento pode nos auxiliar a compreender nosso mundo cada vez mais complexo, permeado por mudanças cujo ritmo parece traçar uma curva de crescimento exponencial. Afirma-se que estamos próximos do “joelho da curva”, momento no qual, essas mudanças se tornam perceptíveis e seus resultados explodem e geram transformações sem precedentes. Examente nesse instante que o debate se faz mais necessário. Nesse contexto, a atual edição de O Comercialista se mostra essencial. Os temas nela desenvolvidos buscam trazer ao leitor a compreensão dos vetores que regem essas mudanças. Primeiramente, temos a continuação do debate sobre o Novo Código Comercial, com excelente artigo do professor Fábio Ulhoa Coelho, idealizador do projeto. Além disso, em entrevista exclusiva a O Comercialista, Modesto Carvalhosa, além de abordar, com a maestria que lhe é peculiar, o tema, ponderando sobre a necessidade do novo instrumento legal, compartilha suas impressões e vivências. Essas visões, juntamente com o artigo de Erasmo Valladão França e da entrevista de Paula Forgioni (disponíveis na edição do 3° trimestre de 2012) procuram demonstrar a importância da inserção desse debate nas mais variadas searas do conhecimento. Outra questão de importância crucial na atualidade envolve os problemas societários advindos do surgimento e expansão da internet. Para muitos, em especial para os que não estão em contato com o universo jurídico, considerar essa realidade como uma novidade é extremamente ultrapassado. Contudo, esse assunto demonstra uma das maiores fraquezas de nosso direito, a lentidão com que seus operadores têm compreendido e implementado mudanças, como nos lembrou José Eduardo Faria ainda em nossa primeira edição. Exemplo dessa situação é a recente discussão sobre o Marco Civil da internet e o constante adiamento de sua aprovação. Nesse sentido percebemos que situações inéditas muitas vezes exigem ações também singulares e, por isso, o artigo de Luis Felipe Baptista Luz e Pedro Henrique Soares Ramos, tratando do tema que não mais pode ter sua discussão procrastinada em nosso país, vem em oportuno momento. Em consonância com as principais discussões acadêmicas que se travam na atualidade, a dicotomia liberalismo e intervenção estatal novamente se mostra presente em O Comercialista em excelente artigo de Vinicius Pecora. Essa discussão, por exemplo, é ressuscitada no recém-publicado livro “Keynes Hayek: The Clash that Defined Modern Economics” que retoma o intenso conflito intelectual entre os dois economistas e sua implicação após a crise financeira de 2008 e na releitura do economista Edmar Bacha de sua fábula da Belíndia para um Brasil redemocratizado e que desfruta de um período de estabilidade e crescimento com melhor distribuição de renda, apesar de em diversos aspectos da política continuarem a existir características de um país subdesenvolvido. No campo da economia ainda contamos com o artigo de Matheus Massari sobre a criação de uma nova bolsa no Brasil e suas implicações, em um momento em que se discute se os estímulos da Securities and Exchange Commission para a criação de novas bolsas contribuíram para a crise financeira de 2008. Esses artigos demonstram que sim, pode-se produzir conhecimento inédito e com qualidade no Brasil, ao contrário do que muitos afirmam. Constatação que já fora feita por Albert Hirschman ao analisar a América Latina e detectar sua síndrome de “fracassomania”, isto é, a insistência em apontar as dificuldades e não reconhecer os avanços. Por isso, reconhecemos, de forma nada modesta, os avanços que O Comercialista tem proporcionado, neste seu um ano de existência, às discussões de direito Comercial e Econômico, oferecendo um espaço democrático para o debate de ponta entre intelectuais de renome, alunos e qualquer um que queira contribuir para a compreensão de um mundo de muitas dúvidas e questões abertas. Agradecemos a todos os leitores de O Comercialista que caminharam juntos conosco, ajudando-nos a, cada vez mais, promover o debate e criar oportunidades para se pensar. Saudações Comercialistas, Conselho Editorial

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João Pedro de Oliveira de Biazi João Vicente Carvalho

4 | Opinião

Considerações em torno do projeto de lei de Código Comercial

13 | Perfil

Pedro Alves Lavacchini Ramunno

Entrevista exclusiva com Modesto Carvalhosa

Rafael de Oliveira Barizan

19 | Opinião

Nova Bolsa de Valores. Vantagem?

Articulistas desta edição Fábio Ulhoa Coelho Luis Felipe Baptista Luz

22 | Atualidades

Matheus Massari

Liberdade Política, Liberdade Econômica e o desenvolvimento brasileiro

Pedro Henrique Soares Ramos Vinicius Augusto Nunes Pecora

26 | Doutrina

Os limites da cópia: Os debates sobre copycats sob a perspectiva do ordenamento jurídico brasileiro

Repórter desta edição João Pedro de Oliveira de Biazi

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A Revista de Direito Comercial e Econômico dos Estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – O Comercialista – é uma publicação trismestral, independente, com o escopo de fomentar a produção acadêmico-científica nas áreas de Direito Comercial e Econômico Contato (11) 981335813 – contato@ocomercialista.com.br – www. ocomercialista.com.br Editor Responsável Pedro A. L. Ramunno – pedro@ramunno.com.br - Nota aos leitores As opiniões expressas nos artigos são as de seus autores e não necessariamente as de O Comercialista nem das instituições em que atuam Reprodução É proibida a reprodução ou transmissão de textos desta publicação sem autorização prévia.

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O Comercialista

Fábio Murta Rocha Cavalcante

Editorial

Conselho Editorial

Índice

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Corpo


Considerações em torno do projeto de lei de Código Comercial por Fábio Ulhoa Coelho

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Opinião

Fiquei muito feliz com o convite que recebi dos editores de O Comercialista para escrever sobre o Projeto de Lei de Código Comercial. Acompanho este veículo eletrônico desde o seu nascimento e tenho apoiado a iniciativa com entusiasmo. Aliás, o surgimento, sob as arcadas da mais importante Faculdade de Direito brasileira (FADUSP), de um instrumento dedicado ao debate e difusão dos temas de direito comercial, comprova, ao lado de outros importantes acontecimentos recentes (os Congressos Brasileiros de Direito Comercial, a Jornada de Direito Comercial do STJ, a formação da Câmara Especializada em Direito Empresarial no TJSP, seminários e simpósios em todo o país, etc), a revitalização da nossa disciplina no Brasil. Esta revitalização não acontece por acaso. A economia brasileira mudou rápida e significativamente na última década, reposicionando-se no contexto da economia global. E mudança dessa magnitude reclama e provoca um novo direito comercial. Conceitos jurídicos que talvez fizessem sentido até o último quarto do século passado, ou mesmo nos primeiros anos do corrente, mostram-se hoje insuficientes ao atendimento das necessidades impostas pelo crescimento e pujança de nossa economia. A unificação do direito privado das obrigações é um claro exemplo de conceito jurídico descompassado com tais necessidades. Na verdade, as mudanças na configuração jurídica da microeconomia já estão em curso e, certamente, serão con-

solidadas. E esta consolidação, se estiver acompanhada da adequada atualização da lei, será mais racional, célere e segura, será menos custosa para as empresas e consumidores. Normas positivadas sob a inspiração de conceitos jurídicos formulados quando não era minimamente previsível o reposicionamento da economia brasileira da última década atrasam a reconfiguração da microeconomia, exigindo maior esforço doutrinário e jurisprudencial. Direito positivo ajustado ao seu tempo sempre será um facilitador para a economia. Este artigo está dividido em três partes, além da introdução e uma brevíssima conclusão. A primeira é dedicada à discussão da necessidade de um Código Comercial, no plano teórico, enquanto a segunda seção trata do mesmo tema, no plano prático. A terceira cuida das críticas e aperfeiçoamentos. NECESSIDADE DO CÓDIGO COMERCIAL – PLANO TEÓRICO Convido o leitor de O Comercialista a refletir, inicialmente, sobre qual, entre os dois dos seguintes elementos, seria o mais importante para a segurança jurídica: o direito positivado ou os valores cultivados pela sociedade? Não hesito em concluir que o direito positivado tem menos peso que os valores sociais, quando o assunto é a segurança jurídica. Normas bem redigidas, claras e racionais são, evidentemente, desejáveis, mas não proporcionam segurança jurídica se estiverem

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Que lições podemos extrair desta reflexão? Penso na seguinte: se queremos maior segurança jurídica (e previsibilidade das decisões judiciais) no campo do direito comercial, não basta dedicarmos nossos esforços à simples melhoria do direito positivo. Se a mudança da qualidade da lei não se fizer acompanhar de ações em torno dos valores nutridos pela sociedade, podem resultar infrutíferos nossos maiores esforços. Em suma, se o objetivo é buscarmos maior segurança jurídica no campo do direito comercial, precisamos nutrir determinados valores sociais. Os brasileiros precisam reconhecer a importância que tem, para toda a sociedade, a proteção à empresa (entendida em seu sentido técnico, de “atividade econômica organizada”). Sem esta maturação nos valores cultivados pela generalidade dos brasileiros, dificilmente a mera mudança legislativa proporcionará maior segurança jurídica nas matérias afetas ao direito comercial. Já me referi a esta maturação pela imagem do ato de recoser um tecido esgarçado. A esta premissa, agrego mais uma. O próprio direito positivo pode ser instrumento de afirmação (ou reafirmação) de valores sociais, desde que tenha determinadas características. Em outros termos, um Código Comercial – e é esta a fundamentação de sua necessidade, no plano teórico – pode ser o veículo do aumento da segurança jurídica e previsibilidade das decisões judiciais; mas só poderá servir a tal intento se for um código principiológico. Antes, desfaça-se um equívoco. Código principiológico não é um diploma legal composto exclusivamente por princípios. A Constituição de 1988 é principiológica, mas nela se encontram,

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em dissonância com os valores cultivados pela sociedade. Veja o tema do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em relação a este ponto, a norma de direito positivo não se alterou, no direito brasileiro, desde a edição da atual Constituição em 1988. O art. 226, da CF, só foi emendado relativamente às condições da dissolução do casamento. O texto é rigorosamente o mesmo quanto à questão da diversidade sexual dos nubentes. Aliás, casamento entre pessoas do mesmo sexo é o exemplo de “ato jurídico inexistente”, encontrado em todos os manuais de direito civil publicados até recentemente. Diziam os civilistas que o direito brasileiro só admitia casamento entre pessoas de sexos diferentes. Mas, o que acontece hoje em todo o país? Pessoas do mesmo sexo casam-se nos cartórios de registro civil, sem precisarem buscar em juízo o reconhecimento deste direito. Assim é desde que o Supremo Tribunal Federal reconheceu, em 2011, que a Constituição Federal ampara a união estável homoafetiva. Ora, como esta mesma Constituição estimula a conversão das uniões estáveis em casamentos (art. 226, § 3º, in fine), não se pode considerar repudiado pelo direito brasileiro o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Pois bem. O que mudou de 1988 a 2011? Não foi o direito positivo. Como visto, a norma constitucional vigente, em todos estes anos, não se alterou. Mudaram, na verdade, os valores da sociedade brasileira. Era tão evidente, aos redatores do dispositivo normativo em 1988, que casamento só podia ser enlace entre um homem e uma mulher, que o texto não explicitou esta condição. Alterações nos valores sociais puderam se expressar, então, por meio de nova interpretação do mesmo direito positivo.

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Opinião


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Opinião mudança de paradigma: o argumento jurídico passa a construir-se em torno dos princípios. Faço, aqui, mais um convite ao leitor de O Comercialista: compulse o índice dos manuais e cursos de sua estante; confira que, na maioria das áreas jurídicas (constitucional, tributário, administrativo, trabalhista, previdenciário, consumidor, etc), os autores contemporâneos dedicam ao estudo sistematizado dos respectivos princípios um dos primeiros capítulos de suas obras. Esta centralidade dedicada aos princípios somente não se confirma em algumas poucas áreas, entre elas o direito comercial. Nenhum dos manuais e cursos de nossa disciplina, surgidos depois de 1988, confere a mesma importância dada aos princípios pelos autores da generalidade das áreas jurídicas. Cheque em Sérgio Campinho, Haroldo Verçosa, Vera Helena de Mello Franco, Gladston Mamede, Ricardo Negrão, Marlon Tomazette, André Luiz Santa Cruz Ramos e demais comercialistas. Anoto que o meu Curso, até a edição de 2011, também não trazia nenhum estudo introdutório dos princípios de direito comercial; e ainda não tive condições de incluí-lo nas edições mais recentes do meu Manual. Na verdade, penso que este distanciamento dos comercialistas em relação ao paradigma dos princípios reflete, no campo da doutrina, o esgarçar dos valores sociais caros à nossa disciplina. Todas as normas realizam valores, sejam princípios ou regras. Mas os princípios, em razão de seu âmbito mais largo de incidência, realizam valores de percepção mais imediata pelas pessoas. É mais fácil explicar ao leigo o princípio da vulnerabilidade do consumidor do que as regras sobre os prazos decadenciais para reclamar contra defeitos nos produtos. E exatamente

também, regras; o Código de Defesa do Consumidor é principiológico, mas ao lado dos princípios, há nele várias regras. Que define, então, um código como principiológico? É a importância concedida aos princípios. Código principiológico é o que confere centralidade aos princípios jurídicos. E aqui adentramos a uma reflexão muito rica, que tem ocupado teóricos e filósofos do direito de todo o mundo nas últimas décadas – a questão dos princípios jurídicos. Convido, então, o leitor de O Comercialista a fazer uma pesquisa. Debruce-se sobre grandes autores nacionais da primeira metade do século anterior, como Clóvis, Vicente Ráo, Carlos Maximiliano, Pontes de Miranda, Caio Mário. Veja o que falam acerca do tema. Nestes autores, os princípios correspondem ao derradeiro instrumento de superação de lacunas, consoante o art. 4º da LINDB. Mais que isto, são considerados algo externo ao direito positivo, numa vaga referência à “cultura do povo”. Em seguida, atente aos autores contemporâneos. Tome-se, por exemplo, uma obra preciosa da literatura jurídica dos nossos tempos, o livro Ensaio e discurso de Interpretação/ Aplicação do direito de autoria de Eros Grau. Notará o leitor profunda mudança na abordagem do tema. Princípios, hoje, são vistos não mais como simples instrumento de superação de lacunas, mas como os fundamentos do direito. Não só isto. Todos consideram que os princípios integram o próprio direito positivo, implícita ou explicitamente. Numa palavra, são vistos hoje como espécies de normas jurídicas. O mesmo Eros Grau identifica clara alteração no modo de raciocinar juridicamente, ocorrida no Brasil, desde a edição da atual Constituição Federal. Fala numa

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acaba, em geral, prevalecendo sobre o do direito comercial. Se pretendemos que as regras da nossa disciplina jurídica voltem a ter eficácia, é necessário que encontremos meios de conferir maior peso aos princípios do direito comercial. Neste contexto, insere-se o Projeto de Lei de Código Comercial. Trata-se de código principiológico, por conferir centralidade aos princípios, e dar-lhes maior peso. E como este resultado advirá de tal Código? A aprovação de um código principiológico tornará os princípios do direito comercial matéria de reflexão obrigatória dos estudiosos do direito. Palestras, seminários e simpósios dedicar-se-ão ao tema. Eles passarão a ser pontos dos programas de direito comercial em todas as faculdades de direito do país. Mais que isto: seu conhecimento será cobrado nos exames da OAB, concursos para juízes e promotores de justiça, etc. A reflexão obrigatória sobre os princípios de direito comercial, que a vigência de um código principiológico desencadeará, corresponde, assim, ao meio mais eficiente de recoser os valores sociais caros à nossa disciplina. Não se dissociam os processos de enunciação, difusão e estudo dos princípios jurídicos fundamentais do direito comercial (liberdade de iniciativa, livre competição, função social da empresa, autonomia da vontade, inerência do risco etc) e de introjeção, pela comunidade jurídica (de início) e por toda a sociedade (em seguida), dos valores correspondentes à importância que a proteção da empresa tem para todos nós. NECESSIDADE DO CÓDIGO COMERCIAL – PLANO PRÁTICO

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Há juristas resistentes à ideia de um

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porque os princípios concretizam valores de mais rápida percepção (e assimilação), enunciar e estudar aqueles e recoser estes é um único e mesmo processo. A resistência que o direito comercial oferece ao paradigma dos princípios tem custado caro à segurança jurídica na nossa área. Veja a questão da limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais. É regra de direito vigente, mas como não temos nos dedicado a mostrar o seu enraizamento no princípio constitucional da liberdade de iniciativa, ela parece, aos olhos desavisados da maioria dos juízes, uma “desculpa de mau pagador”. As regras de direito comercial têm perdido eficácia porque não estamos tendo competência para construir argumentos centrados nos princípios. As distorções na teoria da desconsideração da personalidade jurídica são desalentadores resultados da relutância do direito comercial em aderir ao paradigma dos princípios, em falar a mesma linguagem que as demais áreas do direito estão falando. Dworkin ensina que o conflito entre duas regras é solucionado pela invalidação de uma delas. Se duas regras são conflitantes, uma delas não vale (já foi revogada, é inconstitucional, etc). Mas na colisão entre dois princípios, a validade não é o critério. Os juízes adotam um princípio em detrimento de outro, não porque o adotado seja válido e o descartado, não. Eles prestigiam o princípio que tem maior peso (weight) em cada caso. Atualmente, na Justiça do Trabalho, muitas vezes conflitam, de um lado, o princípio da hipossuficiência do empregado (que impede transferir a ele os riscos da empresa) e, de outro, o da autonomia da pessoa jurídica (que impede cobrar do sócio a divida da sociedade). Neste conflito, o princípio do direito do trabalho

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Opinião Código Comercial por considerarem que a matéria empresarial deve ser disciplinada em diplomas legais específicos para cada sub-área (falam, em geral, em “microssistemas”). É, por exemplo, a opinião de Rachel Stzajn. Outros consideram que as codificações são fenômenos do passado e não mais se justificam nos dias atuais. Entre estes últimos, Calixto Salomão Filho propôs uma lei de declaração de princípios e regras identificadoras dos interesses em jogo (que denominou de “dispositivos declaratórios”), tendo ademais redigido a minuta do respectivo projeto. Finalmente, há aqueles que consideram oportuno proceder-se simplesmente à revisão do Código Civil, mediante lei que fundamentalmente altere o Livro II da Parte Especial. A civilista Judith Martins-Costa é defensora desta solução. A necessidade de um Código Comercial, como sustento, bem assim cada uma destas alternativas, podem e devem ser discutidas e esmiuçadas no plano teórico. Mas acho altamente improvável chegarmos a solução que entusiasme a unanimidade dos doutrinadores e comercialistas. No plano prático, porém, há larga margem para chegarmos a um denominador comum, que, mesmo não recebendo unânime aceitação, tem o inegável potencial de aglutinar contingente significativamente maior de comercialistas. A que me refiro, ao falar em plano “prático”? Especificamente às diferenças entre a tramitação de um projeto de lei “de código” e a de um projeto de lei “simples” (isto é, que não se refere a “código”). Dar consistência à tramitação de um projeto de lei “de código” é muito difícil. Os regimentos internos das Casas Legislativas limitam a dois os projetos deste tipo que podem tramitar simultaneamen-

te. Desencadear as providências regimentais, por outro lado, depende de eficiente articulação política com as lideranças de todos os partidos representados no Parlamento, como explicarei mais à frente. Mas, uma vez superadas estas dificuldades iniciais, a tramitação do projeto de lei “de código” revela-se o caminho significativamente mais rápido para os que desejam aperfeiçoar o direito em vigor. Como se faz a tramitação de projeto de lei “simples”? Ele deve ser discutido e votado no âmbito de várias Comissões Permanentes, sendo obrigatoriamente a Comissão de Justiça a primeira delas em qualquer caso. Em cada uma das comissões permanentes, é escolhido um relator e abrem-se prazos para emendas. De cada comissão permanente participam diferentes parlamentares. Quer dizer, os esforços para eles se informarem a respeito da matéria sobre a qual vão deliberar se reiniciam em cada uma das duas, três ou quatro comissões permanentes por que normalmente transita o projeto de lei “simples”. Mais que tudo, porém, é a circunstância de que o projeto de lei “simples” disputa a pauta, em cada uma das comissões permanentes, com milhares de outros projetos. Cada propositura aguarda silenciosa e ansiosamente chegar o momento político mais propício para ser discutida e votada em cada uma das comissões permanentes. E como acontece a tramitação dos projetos de lei “de código”? Os regimentos preveem a discussão e votação numa única comissão especial. Os parlamentares que devem se informar para discutirem e votarem o projeto não são alterados (como ocorre na passagem de uma comissão permanente a outra). É um só relator-geral (auxiliado pelos relatores parciais)

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o Código Comercial. Seguiu-se o recesso parlamentar. Iniciada, em 2 de fevereiro, a sessão legislativa de 2012, as lideranças dos partidos políticos fizeram suas indicações e a comissão foi instalada em março, com a eleição do Deputado Arthur Maia (PMDB-BA) para a presidência e a escolha do Deputado Paes Landim (PTB-PI) para a relatoria geral. Com a instalação da comissão especial para o Código Comercial, abriu-se uma janela de oportunidades única para ajustarmos a legislação de direito comercial às necessidades atuais da economia brasileira. Todo e qualquer assunto pode ser revisto, seja trazendo a disciplina do tema para o Código, seja fazendo mudanças pontuais na respectiva lei, mediante disposição transitória. Note que nenhuma das demais alternativas aventadas, entre os comercialistas e civilistas, para o aprimoramento do direito positivo empresarial (lei principiológica, diplomas específicos para cada microssistema ou revisão do Código Civil), abriria a mesma janela de oportunidades. Como seriam viabilizadas por projetos de lei “simples”, a tramitação destes enfrentaria inevitavelmente a sucessiva substituição dos parlamentares envolvidos e do relator, além do reinício dos prazos para emendas, na chegada a cada uma das comissões permanentes; e, acima de tudo, a árdua disputa política pela pauta. O projeto de lei “de código”, em suma, possibilita a concentração e otimização dos ingentes esforços que governo, políticos, comercialistas, advogados, contadores, empresários e suas entidades devem necessariamente despender para promoverem o ajuste da legislação empresarial, exigida pelo reposicionamento do Brasil na economia global. A modernização da disciplina da

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e os prazos para entrega de emendas não se reiniciam. Mais importante, porém, é que o projeto de lei “de código” não disputa a pauta com nenhuma outra propositura: sempre que a comissão especial se reúne trata exclusivamente daquele projeto. Claro, como eu disse de início, dar consistência à tramitação de um projeto de lei “de código” é muito mais difícil. Isto porque o Presidente da Casa Legislativa deve criar a comissão especial. E na mesa dele repousam, em geral, centenas de pedidos de criação de comissões especiais. É necessário, assim, em primeiro lugar, que o Presidente da Casa Legislativa se convença da importância e necessidade daquele “código”. Mas não basta o Presidente da Casa Legislativa considerar relevante determinado “código” para que a comissão especial se viabilize. Os regimentos internos, numa disposição bastante saudável, preveem que a comissão especial só se instala depois das indicações dos seus integrantes pelas lideranças de todos os partidos políticos. Quer dizer, se estas lideranças não estiverem igualmente convencidas de que certo “código” é necessário e importante para o país, a comissão criada simplesmente não é instalada – e isto, aliás, acontece com alguma frequência. O Projeto de Lei de Código Comercial foi apresentado pelo Deputado Vicente Cândido (PT-SP) em junho de 2011. Logo em seguida, chegou à Câmara dos Deputados o projeto de Código de Processo Penal, vindo do Senado. Como já estava tramitando o projeto de Código de Processo Civil, somente um deles poderia ter sua tramitação iniciada. O Deputado Marco Maia (PT-RS), presidente da Câmara dos Deputados, em dezembro de 2011, criou a comissão especial para

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sociedade limitada é uma alteração considerada necessária e urgente por todos os comercialistas. Viabilizá-la, no bojo de um projeto de lei de “código” (depois de superadas as negociações políticas iniciais para a sua tramitação) é muito mais fácil do que mediante um projeto de lei “simples” acerca da mesma matéria. Os comercialistas, a despeito de suas divergências teóricas sobre o modelo ideal para o direito positivo brasileiro, podem, deixando-as de lado, unir suas inteligências e energias para contribuírem, no plano prático, para o almejado aperfeiçoamento do nosso direito positivo, relativamente a assuntos de extrema importância como são os da sociedade limitada, documentação eletrônica, títulos de crédito, obrigações e contratos empresariais, crise da empresa, direito comercial marítimo, agronegócio etc. Nesta união de inteligências e energias, o modelo ideal considerado por cada jurista cede lugar à percepção pragmática de que temos em nossas mãos, hoje, uma oportunidade única para aprimorarmos o direito empresarial. CRÍTICAS E APERFEIÇOAMENTOS

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As críticas ao Projeto de Código Comercial são inevitáveis e desejadas. São inevitáveis as críticas, em primeiro lugar, porque naturalmente o Projeto comporta aprimoramento. Aliás, a tramitação da propositura visa exatamente identificar os pontos em que deve ser melhorado, suprimido, acrescido etc. Como diz Ivo Waisberg, devemos comparar qualquer projeto de lei com o direito existente, e não com o direito ideal. Confrontado com as leis postas, podem ser identificadas suas qualidades e defeitos; contraposto ao direito ideal, inevitavel-

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mente qualquer projeto se mostrará insatisfatório. Aliás, neste último caso precisaríamos, antes de fazer a comparação, definir consensualmente qual seria o direito ideal paradigmático, empreitada fadada ao inexorável insucesso. São inevitáveis as críticas, também, porque cada comercialista pensa, em razão de seus próprios estudos e valores, em soluções diferentes para os mesmos problemas. Se todos escrevessem, em separado, as suas minutas de Código Comercial, não teríamos duas iguais, tanto na forma como, principalmente, no conteúdo. Não podemos esquecer, ademais, que a maioria dos advogados cultiva dois traços de personalidade bastante nítidos, não encontrados em nenhuma outra profissão (nem mesmo entre os demais profissionais jurídicos). Estes traços, em muitos casos, vão se acentuando com a idade. Refiro-me, de um lado, à resistência inicial às novidades, e, de outro, ao constante exercício do contraditório. Temos sido treinados nestas duas capacitações, nos últimos séculos, para podermos desempenhar as funções ligadas à advocacia. A habilidade em construir pontos de vista alternativos (ao apresentado pelo autor da demanda ou pelo promotor de justiça), partindo das mesmas premissas (o direito vigente), é, em certo sentido, a marca da competência entre os advogados. Tenho ouvido relatos de alguns deputados de que, quando está em discussão projeto de lei concernente a tema ligado à medicina ou engenharia, os técnicos conseguem alcançar relativo consenso, agindo cooperativamente, e contribuindo para a decisão política. Mas, quando em pauta questão eminentemente jurídica, frustram-se as mais tênues expectativas quanto a atitudes cooperativas dos profissionais da área na construção de con-


circulação nacional, ao noticiar as conclusões de simpósio ocorrido na FIESP, deu destaque apenas às críticas, e omitiu as referências favoráveis ao Projeto (feitas, entre outros, por Luciano Timm e por Sérgio Campinho). A repercussão da matéria jornalística na Câmara dos Deputados foi imediata e, passadas duas semanas, estava criada a comissão especial do Código Comercial. Percebe o leitor de O Comercialista que algumas críticas não resultam em qualquer aperfeiçoamento do Projeto. Estão entre estas as veiculadas por meio de trocadilhos infames, “objurgatórias destemperadas” (a expressão é de Fábio Konder Comparato) ou desonestos falseamentos de premissas. Importam, a rigor, verdadeiro desrespeito à inteligência dos leitores; e responder a críticas desta natureza seria igualmente desrespeitoso. Ademais, críticas fundadas na doutrina e jurisprudência produzidas sob a égide de determinado direito positivo não são sempre relevantes. O direito projetado, se e quando tornado vigente, pode tornar totalmente ultrapassados alguns entendimentos doutrinários e jurisprudenciais. Outra atitude que convém pedir ao crítico é a de se atualizar constantemente com o andamento do Projeto. Não tem sentido insistir em criticar assuntos já superados (é este, entre outros, o caso do tratamento da sociedade anônima no Projeto de Código Comercial), omitindo do interlocutor notícias sobre a evolução da discussão. Alguns dispositivos do Projeto, enfim, têm sido criticados em razão de suposta “obviedade”. Acontece, porém, que o óbvio para alguns não o é para outros. E aqui registro uma curiosidade: o “óbvio” pode decorrer tanto do excesso como

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sensos mínimos. A maioria de nós é assim mesmo: cultores do contraditório. Além de inevitáveis, as críticas são desejadas. Em primeiro lugar, para que a decisão política em torno do futuro Código seja a mais eficiente. Sadam Hussein acreditava que o exército iraquiano era capaz de vencer o norte-americano, quando ocorreu a invasão de 2003, porque já mandara matar alguns dos seus comandantes militares que, lucidamente, tinham posto em dúvida esta capacidade. Depois de tal sandice, nenhum outro comandante aventurava-se a lhe trazer qualquer informação negativa, preferindo sacrificar a verdade. A democracia é, sob todas as perspectivas, um regime bem mais eficiente que a ditadura porque pressupõe a plena liberdade de crítica. Em segundo lugar, porque o Código é sempre o resultado de um trabalho coletivo, em que tudo está exposto à crítica. Não existe nenhum Código escrito por uma só pessoa, embora sempre haja alguém encarregado (ou que se encarrega) de rascunhar o texto inicial, a minuta. Além disto, e por mais paradoxal que seja, as críticas são desejadas porque, sem elas, não há condições políticas para a tramitação de qualquer projeto de lei. As críticas delimitam as alternativas apresentadas à decisão dos Parlamentares; oxigenam a política. Na história da tramitação do Projeto de Código Comercial, a explicitação das críticas mostrou sua importância. Até novembro de 2011, não havia ecoado na Câmara dos Deputados nenhuma das críticas então manifestadas por alguns advogados de empresa. Na audiência pública realizada na Comissão de Justiça, somente vozes favoráveis à iniciativa haviam se manifestado. Pois bem, naquele mês de novembro, um jornal de

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Opinião da carência de conhecimentos. Só vê obviedade, por exemplo, no dispositivo que assegura ao contratante o cumprimento judicial do contrato, em caso de inadimplemento, quem não está familiarizado com a análise econômica do direito. Um tema caro a esta abordagem é a discussão sobre a eficiência ou ineficiência da execução específica dos contratos. O art. 276, assim, ao assegurar ao empresário o direito ao cumprimento judicial do contrato inadimplido, nada tem de óbvio e serve a uma definição clara nesta discussão. Mas não é só isto. Na verdade, todos os diplomas legais de maior abrangência ostentam disposições óbvias. Nossa Constituição Federal, por exemplo, diz que se consideram “brasileiros natos os nascidos no Brasil” (art. 12, I, a, primeira parte). Mas se, de um lado, há críticas que não levam a qualquer aperfeiçoamento do Projeto, de outro, não é possível aperfeiçoamento sem crítica. A história da tramitação do Projeto de Código Comercial também mostra isto. O adequado tratamento da questão afeta à sociedade anônima e da referente à lei de falências de 2005, por exemplo, resultaram das críticas repercutidas no âmbito da Comissão de Juristas nomeada pela Câmara dos Deputados, que presido; a definição do melhor critério de identificação do empresário (formal ou material) alimenta-se das críticas manifestadas, entre outros, pelos internautas na consulta pública promovida pelo Ministério da Justiça, e assim por diante. Neste momento da tramitação do Projeto de Código Comercial, inegavelmente as críticas mais úteis são as que vêm acompanhadas de sugestão de redação para dispositivos normativos. Aqueles que criticam de modo consistente, mas não se lançam ao penoso exercício

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de redação da norma que reproduziria a crítica, acabam dando uma contribuição menor ao aprimoramento do Projeto. Infelizmente, porque muitas vezes fazem considerações oportunas e instigantes. Encarregar-se, contudo, uma pessoa de traduzir, em norma projetada, as preocupações expostas por outra, não é conveniente, em razão dos ruídos de comunicação que esta divisão de tarefas obviamente ocasiona. CONCLUSÃO O Comercialista tem sido um dos veículos mais atentos à tramitação do Projeto de Código Comercial. Inclui a questão nas diversas entrevistas feitas com comercialistas e juristas desta mais que secular instituição de ensino, patrimônio da cultura brasileira. É uma honra e uma alegria poder participar deste debate, nas páginas eletrônicas de O Comercialista. Sempre que convidado, estarei à inteira disposição para esclarecer, ouvir, ponderar, refletir, amadurecer, informar e, de modo geral, somar esforços com todos que estejam realmente interessados na efetiva melhoria do ambiente institucional para os negócios no Brasil.

Fábio Ulhoa Coelho é Professor Titular de Direito Comercial da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


Modesto Carvalhosa é uma lenda viva do Direito. Seu nome está presente em qualquer lista que tente incluir os maiores advogados da história do Brasil. Carvalhosa foi professor da Faculdade de Direito da USP durante a ditadura militar. Sua intensa atuação política contribuiu para a consolidação do movimento de resistência cívica contra o regime militar. Modesto Carvalhosa nos presenteia com pareceres sobre os mais atuais desafios que o Direito Comercial vem enfrentando. A entrevista vence os limites técnicos, sendo uma verdadeira lição de vida para todos aqueles que trabalham com o direito.

http://colunistas.ig.com.br/guilhermebarros/files/2011/08/7-Modesto-Carvalhosa-Foto-Mario-Leite.jpg

por João Pedro de Oliveira Biazi Formação acadêmica: Graduado e Doutor pela USP, foi professor de Direito Comercial da USP, consultor jurídico da Bolsa de Valores de São Paulo, Presidente do Tribunal de Ética da OAB e membro da International Faculty for Corporate and Capital Market Law and Securities Regulation na Filadélfia. É palestrante e conferencista em seminários acadêmicos e encontros profissionais, e de autor de inúmeros livros e artigos. Profissão: Advogado. Jurista que mais admira: São muitos, é impossível dizer um só.

Livro que todo estudante de direito deve ler: Os livros, em geral, sobre Introdução ao Estudo do Direito, além de livros de Filosofia e a parte geral do Direito Privado. É muito importante ficar atualizado. Música, filme ou obra literária: Na música, Hendel, Bach, Mozart, Stravinsky, entre outros. É impossível dizer qual obra é a preferida, mas poderia citar Machado de Assis como um grande autor, com genialidade acessível. Conselho para a vida: Viva o dia como se fosse uma eternidade, não fique pensando se o ano passou depressa. Viva o dia, sem se preocupar se há uma escassez de dias que você vai viver. Também é importante manter a alegria e o bom humor. Manter o bom humor e a alegria é um exercício que deve ser frequente.

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O Comercialista

Modesto Carvalhosa

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O Comercialista – Primeiramente, qual o segredo para chegar aos 80 anos de idade com tamanha lucidez e disposição para ainda comparecer ao escritório? Modesto Carvalhosa – Isso é uma questão de formação. Comecei a trabalhar com 14 anos, não por necessidade, mas por hábito da minha família. Com isso, peguei esse gosto pelo trabalho, coisa que faço há 66 anos ininterruptos. É um hábito e, por conta disso, uma verdadeira necessidade. Pretendo sempre continuar com meus compromissos com o escritório e minhas atividades com a sociedade civil com o maior prazer. Enquanto eu tiver saúde, não cogito aposentar-me. O Comercialista – Onde o senhor nasceu e como foi sua infância? Havia algum sonho em especial? Modesto Carvalhosa – Foi uma infância extraordinária. Vivi no interior, na cidade de Araraquara. Meu pai era professor do ginásio e minha mãe também era professora na escola pública. Meu pai também era pastor presbiteriano e eu, nas décadas de 30 e 40, tive uma infância em uma cidade muito bem equipada para a época, com uma enorme classe média, sem grandes problemas com segurança. Era um lugar excelente para passar a infância.

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O Comercialista – O que lhe levou a escolher a carreira jurídica e a partir de quando começou o interesse pelo Direito Comercial? Modesto Carvalhosa – A carrei-

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ra jurídica, principalmente a carreira de advogado, foi instruída pelos modelos que tive. Meu tio-avô, Modesto Carvalhosa, foi um grande advogado. Ele foi um grande modelo para mim, um homem que tinha um enorme prestígio na capital. Aquele era outro mundo. Meu tio tinha seu próprio escritório, no qual ele mesmo usava as máquinas da época para datilografar suas peças. Ele foi o modelo que me motivou a seguir essa carreira jurídica. Eu queria ser respeitado como advogado, como ele foi. Como todo aluno da faculdade de direito daquela época, fui logo atraído pelo Direito Penal. O Direito Penal tem uma riqueza enorme nos seus debates, sendo o sinônimo da humanidade na sua própria conduta. Tal disciplina é, sem dúvida, apaixonante. Mesmo sendo um excelente aluno em Direito Penal, recebendo inclusive o prêmio Basileu Garcia, dado ao melhor aluno de direito penal do ano, no quarto ano fui trabalhar no escritório do Benedito Batti, que tinha atuação basicamente toda dedicada ao direito societário. O Benedito Batti foi um dos discípulos de Ascarelli. Trabalhei lá como estudante e, depois de formado, como advogado júnior. Com essa experiência, acabei me apaixonando pelo direito societário graças a este grande mestre. Também devo essa escolha ao professor Sílvio Marcondes, que também foi um professor que marcou muito essa escolha. O Comercialista – Quais foram as dificuldades encontradas no iní-


Modesto Carvalhosa – Minha carreira como advogado começou em 1957, trabalhando no escritório em que estagiei. Em 1961, montei meu próprio escritório, que começou com muita humildade, com uma sala e uma máquina de escrever. Felizmente, tive muitos clientes interessantes, dentre eles, arquitetos, pessoas envolvidas com o teatro. Acabei conhecendo grandes artistas, como Cacilda Becker, Paulo Autran, entre outros. Também conheci grandes arquitetos, enfim, existia um grupo muito interessante de pessoas que estavam envolvidas com meu trabalho nessa época. O Comercialista – Existe ou existiu alguém ligado à profissão que o inspirou e que, até hoje, o inspira? Modesto Carvalhosa – Eu tive vários modelos. Nós nos tornamos adultos através dos modelos que elegemos. Eu tive vários modelos na minha vida. Na época do começo da minha carreira, tive modelos como Dimas de Oliveira Cezar, Filomeno Costa, Cezarino Júnior, entre outros. Eram pessoas que marcaram muito minha existência. O Comercialista – O que se exige de um bom advogado e como ele deve se preparar para exercer a profissão? Qual tipo de profissional você gosta de ter na sua equipe ou acha importante ter no escritório? Modesto Carvalhosa – Eu, particularmente, sou um advogado à moda antiga. No meu tempo, a ad-

vocacia era voltada ao prestígio pessoal. Buscava-se o reconhecimento perante a sociedade civil, não havia uma afinidade material. Havia, também, uma vocação política muito grande. Hoje em dia, eu noto que os advogados não almejam mais esse prestígio, mas sim a possibilidade de ter grande acesso ao consumo. Atualmente, noto grande especialidade entre os advogados. O advogado conhece profundamente o assunto que escolheu para se especializar, com muito mais preparo do que antigamente. Sem querer generalizar, vejo que a vontade entre os advogados modernos não é a de ficar rico, mas sim ostentar a riqueza. Houve, sem dúvida, uma perda muito grande do sentido da vida coletiva. Na atividade advocatícia, reduziu-se a inquietação social entre os advogados, ficando somente esse desejo por consumir. É claro que não são todos os advogados que tomaram essa postura, mas não posso deixar de notar esse movimento. No meu tempo, havia entre os advogados uma forte inquietação política, com preocupações envolvendo o futuro do país e da sociedade brasileira. Hoje, os advogados apresentam enorme competência e especialização, mas nenhuma ligação com os problemas sociais. O Comercialista – O que é a advocacia para o senhor? Modesto Carvalhosa – Advocacia deveria ser algo que interviesse na sociedade de forma a garantir os direitos individuais e coletivos, além de garantir, principalmente sobre

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cio da carreira como advogado?

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Perfil a atuação de órgãos competentes, como a OAB, uma fiscalização atuante perante a conduta dos políticos. Hoje em dia, não vemos muito disso. A advocacia como papel social se encontra pouco prestigiada. Isso gera uma acomodação muito grande.

foi reconhecida.

O Comercialista – O seu “Comentários à Lei das S.A.” é, sem dúvida, indispensável para a biblioteca de todos os comercialistas. Como foi a elaboração desse verdadeiro “clássico” e como senhor se sente sendo, diariamente, professor de todos os interessados pela área?

Modesto Carvalhosa – Eu penso que a governança tem uma ideologia que deixa filtrar para o governo das companhias gente de alta competência. É uma forma de aprimoramento extremamente importante para a administração das companhias. Por outro lado, a governança não resolve problemas fundamentais da própria conduta de setores da companhia. A governança do setor financeiro, por exemplo, não impediu o desastre de 2008. Ela, anteriormente, não impediu a falência de empresas norte-americanas, em 2002. A governança não tem, também, uma preocupação com elementos fundamentais da companhia. Ela vê a companhia como um objetivo de produtividade máxima. Não encontramos preocupação social na governança. A produtividade máxima da companhia, promovida pela governança, colaborou para danos sociais irreversíveis. Assim, a governança, mesmo tendo um lado muito bom para a produtividade da companhia, também tem um lado muito negativo, relativo principalmente à destruição de empregos. Muitas empresas apresentam balanços sociais, dizendo como as empresas contribuem para a sociedade. No entanto, essas contribuições são direcionadas para fora da empresa. Uma empresa ajuda esco-

Modesto Carvalhosa – Essa obra foi fruto de uma temporada que iniciei na International Faculty, na Pensilvânia, atuando como seminarista. Lá eu aprendi como devemos escrever um livro jurídico. Devemos fornecer opiniões, com economia de palavras e frases. Nenhuma palavra é perdida, alegórica. Assim, você faz um trabalho de opinião e sem perda de linguagem. O trabalho também não fica atrelado à opinião de terceiro, algo comum na cultura jurídica brasileira, que sempre foi colonizada, salvo algumas exceções. Foi dentro dessa filosofia que procurei trabalhar na concepção do livro. Sobre meu sentimento sobre o uso constante da obra, é arquigratificante esse reconhecimento. O homem vale pelo que escreve, e não pelos títulos que ele tem. A sobrevivência do profissional depende de sua obra. Com isso, chego à minha idade sendo professor até hoje, pois sei que existem pessoas todo dia consultando essa obra. É uma enorme gratificação saber que minha obra

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O Comercialista – Atualmente, houve intensa evolução dos regimes de governança coorporativa no mercado de capitais brasileiro. Como o senhor vê essa reação?


O Comercialista – Outro ponto muito em voga hoje diz respeito à arbitragem no Direito Societário. No Brasil, a arbitragem já aparece como forma viável de solução de conflitos societários? Modesto Carvalhosa – A arbitragem é muito viável e é um caminho que sempre deve existir para a solução de conflitos societários. As causas de interesse privado devem encontrar na arbitragem um caminho preferível. Os conflitos particulares encontram na arbitragem o caminho mais coerente e especializado para sua solução. É verdade que os conflitos societários ainda são poucos, mas isso não tira a importância da arbitragem. O Comercialista – E a câmara do mercado (CAM)? Como o senhor vê sua evolução? Modesto Carvalhosa – Vejo a evolução da CAM de maneira fantás-

tica. Sou do grupo da primeira lista de árbitros. Nós mantemos a persistência e, hoje, a câmara do mercado já se encontra institucionalmente constituída. Essa persistência e constantes reuniões que tive para a formação da CAM foi mais um modelo de vida para mim, uma experiência muito gratificante. O Comercialista – O que o senhor acha da atual discussão acerca da necessidade de um novo código comercial, defendido pelo Profº Fábio Ulhoa Coelho? Modesto Carvalhosa – A lei tem que ser fruto de uma legitimidade. Legitimidade envolve necessidade de regulação de interesses coletivos. Esses interesses coletivos podem ser gerais ou direcionados a determinados grupos. Quando as relações da sociedade estão mal geridas por uma lei que é incapaz de fornecer uma regulação necessária, surge a legitimidade para o surgimento de uma nova legislação. No caso, não vejo legitimidade. Ninguém está precisando e pedindo um código comercial. Tenho profundo respeito e admiração pelo Profº Fábio Ulhoa, mas penso que o projeto ousa em coisas muito perigosas. Primeiramente, a própria interferência em uma lei com enorme arcabouço jurisprudencial e administrativo como a lei societária. O projeto também tenta definir princípios jurídicos, limitando a atuação destes. O projeto, na minha concepção, é inoportuno e com falta de necessidade. O Comercialista – O senhor, em

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las, o desenvolvimento da cultura, mas nenhuma postura que coloca a empresa como elemento fundamental para o equilíbrio social. O balanço social não inclui a empresa como agente de equilíbrio da sociedade. A governança, assim, tem defeitos graves. A governança chegou a um nível em que as empresas eliminam até diretores da mais alta qualificação: não diz respeito só aos sistemas de automação, mas também aos setores de gerência. A perversidade social elimina até mesmo os próprios governantes.

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recente entrevista, afirmou “se somos um país moderno hoje, um país emergente, um país cuja estrutura econômica é sólida, em parte isso se deve a essa legislação [Lei 6.404/76], a um trabalho excepcional feito numa época tão difícil”. O senhor tem a mesma opinião em relação à produção legislativa atual? Modesto Carvalhosa – A Lei das S.A. foi muito bem redigida por homens de alto padrão de genialidade. O objetivo da lei era capitalizar dinheiro para as companhias. O congresso ainda conseguiu aperfeiçoar muito bem a lei. Naquele tempo, com a ditadura militar, não se podia discutir quase nada no congresso. Quanto se tinha uma lei ligada ao Direito Societário, no entanto, a liberdade para discutir os assuntos era maior. As pessoas estavam interessadíssimas, era outro mundo. Não sei se esse ambiente foi mantido na produção legislativa atual. João Pedro de Oliveira Biazi é graduando do terceiro ano da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo E-mail: joaobiazi@gmail.com

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por Matheus Massari

Atualmente há de fato um movimento trabalhando para a entrada de uma nova bolsa de valores no mercado brasileiro. Sem tomar partido se a ideia é boa ou não, vamos analisar a situação e avaliar prós e contras e principalmente, definir se isto é de fato viável para o mercado e, portanto, provável de acontecer. Não vou destacar os nomes dos maiores interessados neste projeto, mesmo porque no mercado financeiro, assim como em qualquer segmento, há uma formação muito grande de boatos e falatórios, por isso só saberemos de fato o nome dos envolvidos depois do negócio concluído. Qualquer coisa divulgada precocemente corre grande risco de estar errada. Vamos começar do básico. Existe mercado para comportar mais uma bolsa? Em países onde a renda variável é um produto maduro e de ampla penetração entre a população economicamente ativa, há um mercado compatível em tamanho e em movimentação de recursos que comporta mais de uma bolsa de valores. Um exemplo disto é o mercado americano – já vi estudos distintos que estimam a participação em investimentos em renda variável de 40% a 65% da população economicamente ativa. E no Brasil? Esbarramos aí no que, a meu ver, é o primeiro entrave para a entrada de uma nova bolsa – o tamanho do mercado. O número de contas abertas versus a população economicamente ativa nos dá um resultado aproximado de 2% a 3%.

Esta informação dada de maneira isolada pode ser interpretada no modelo “copo meio cheio ou meio vazio”. É evidente que o mercado brasileiro é promissor para os envolvidos em renda variável. A situação econômica mais estável pressiona os juros para baixo e a consequência natural disto é a procura por alternativas de investimentos mais rentáveis, como a renda variável. Isto justificaria sobremaneira o interesse na abertura de uma nova bolsa. Mas a concretização deste potencial de crescimento do mercado pode ser mais demorada do que muitos imaginam. Vemos isto através do ritmo na abertura de novas contas, muito aquém do previsto pela própria Bovespa, que postergou a meta de cinco milhões de contas abertas de 2014 para 2015 em seguida para 2018, mostrando uma grande incerteza no crescimento do mercado. O fato é que, embora exista toda uma conjuntura favorável ao crescimento rápido deste mercado, batemos num problema cultural – a visão que o investidor pessoa física, em sua esmagadora maioria, tem do mercado de ações: Bolsa é jogo. Esta visão em parte se justifica pela péssima qualidade de informação e transparência do mercado de renda variável brasileiro em seu início e parte se justifica pelo comodismo gerado pela renda fixa inflada vigente durante anos pagando taxas estratosféricas. Trocando em miúdos, a geração passada – que ainda compõe boa

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Nova Bolsa de Valores. Vantagem?

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Opinião


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Opinião parte da população economicamente ativa e com bons recursos disponíveis para investimento – teve, no geral, experiências desagradáveis com a renda variável. Não que o mercado de variável seja ruim, mas na época, a coisa funcionava de maneira muito menos transparente e os próprios investidores pouco conheciam do que estavam fazendo. Além disso, a renda fixa pagava boas taxas – na época da ciranda financeira foi o auge para esta geração. Então, por que ir para renda variável? Essa questão norteou por anos e ainda influencia muitos investidores, que agora encontram uma situação de quebra de paradigma, de mudança cultural, e esse processo não é fácil e sem dúvida, não é rápido. Bem, até agora analisamos a viabilidade deste projeto do ponto de vista do negócio. Vamos olhar pelo lado dos usuários deste mercado. O grande problema da situação atual é o monopólio da BM&FBovespa. Desde 2008 – ano em que houve a fusão entre a Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F) e a Bovespa (Ações) – temos uma única bolsa ativa e sabemos que o monopólio gera condições muitas vezes desfavoráveis ao consumidor, principalmente no que tange aos preços dos serviços. É importante esclarecer aqui que a corretagem remunera a corretora não a bolsa. A bolsa é remunerada principalmente – no caso de uma operação de compra ou venda de ações – pelos chamados emolumentos. Hoje, em uma negociação com ações no mercado a vista, a bolsa recebe 0,035% do montante negociado em um Day trade (operação que é encerrada no mesmo dia e através da mesma corretora) e 0,025% em

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operações Finais (que duram mais de um dia). Há também receitas geradas por outras vias, como os custos para abertura de capital por exemplo. Mas o que quero demonstrar é que do meu ponto de vista, uma nova bolsa não geraria grandes reduções nos custos operacionais para a massa de clientes a ponto de ser um estímulo para operar através desta nova bolsa. Afinal, reduzir algo que já está na ordem de 0,025% não gerará grande economia em valores nominais para a massa de investidores de varejo. Então até agora temos dois pontos relevantes destacados. O mercado ainda numa condição de pouca penetração e com um crescimento em ritmo lento e a falta de vantagens para estimular o consumidor desta nova empresa. O terceiro ponto é a constituição de uma nova Clearing. De uma maneira generalizada, a clearing é responsável por todo andamento da operação desde a negociação no âmbito virtual até a sua liquidação, que no mercado de ações acontece em D+3. Sendo assim, a clearing responde pela operação neste período inclusive nos aspectos financeiros. É ela que assume riscos no caso de fraudes e operações mal sucedidas que podem gerar danos absurdos – pelo menos até a apuração dos fatos caso exista alguém agindo de má fé que deva ser responsabilizado. A questão “clearing” tem, portanto um fator crucial na viabilidade do projeto. Sem clearing, sem bolsa. Há também mais um ponto a ser levado em consideração. O número de empresas listadas é insuficiente. Em outras palavras, falta produto para ser negociado. Para termos uma ideia desta escassez de


Matheus Massari é graduado em Administração de Empresas. Desde 2005, dedica-se ao Mercado Financeiro, sendo fundador de um blog de análise técnica de investimentos. Certificado como analista de mercado (CNPI pela CVM e ANCORD), tem especialização nos mercados de ações e de opções. É coordenador da unidade de São Paulo da Trader Brasil – Escola de Investidores, em que ministra vários treinamentos e palestras sobre planejamento financeiro, renda fixa e variável, além de consultoria de investimentos E-mail: matheusmassari@traderbrasil.com

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empresas, atualmente o IBOVESPA (Índice Bovespa) que responde por cerca de 80% do volume negociado na bolsa de São Paulo é composto por 67 ações – destas ações, algumas são da mesma empresa, sendo listadas as preferenciais e as ordinárias. Em suma, em um mercado ainda pequeno, com baixo ritmo de crescimento, sem grandes vantagens que estimule os consumidores a operarem via nova bolsa, poucas empresas listadas e ainda com grandes dificuldades na escolha de uma nova clearing, acredito que a entrada da Nova Bolsa venha a ser viável num futuro um pouco mais distante do que a maioria espera.

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Opinião


Liberdade Política, Liberdade Econômica e os caminhos do desenvolvimento brasileiro

por Vinicius Augusto Nunes Pecora

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Atualidades

Em 2007, quando a crise financeira atingiu os Estados Unidos e o mundo, eclodiu um movimento crítico ao modelo de estado liberal. Entre as causas da crise foi apontada a omissão do estado em regular o sistema financeiro. As críticas ao modelo liberal, entretanto, foram muito além de apontar que a estabilidade do mercado financeiro depende do controle do governo: a crise representaria a falência desse sistema em benefício de um modelo de intervenção direta do estado na economia. A origem dessa ideia reside, possivelmente, no sucesso das economias asiáticas na segunda metade do século XX, mas reflete, sobretudo, a ascensão da China como a segunda maior economia do mundo e o êxito com que determinados países em desenvolvimento superaram a crise financeira. O fato da crise não ter representando um perigo significativo para a estabilidade do Brasil é positivo. Isso não significa, entretanto, que não enfrentamos enormes desafios para consolidar um caminho sólido para nosso desenvolvimento nas próximas décadas. Nesse aspecto, o debate sobre o fim do modelo liberal se mostra central para o país. Historicamente, o país se desenvolveu com base em uma intensa política de industrialização conduzida pelo estado – na primeira metade do século XX com

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Getúlio Vargas e na segunda metade, com o governo militar. A Constituição Federal de 1988 marcou o início de um processo de regressão do estado da economia, contribuindo para a expansão do setor privado e o surgimento de uma economia mais dinâmica e competitiva. Duas décadas após a democratização do país esse quadro parece estar se revertendo. Incentivado pela ascensão chinesa e a crise de 2007, o Brasil tem acelerado um projeto de desenvolvimento focado na atuação do estado. São diversos os exemplos do crescente controle do estado brasileiro sobre a produção econômica: sua expressiva presença no mercado de crédito1; uma maior participação no capital de empresas privadas; novas restrições alfandegárias para ‘proteção’ da indústria nacional; e o patrocínio às chamadas “campeãs nacionais”. As limitações tradicionais de um estado interventor são conhecidas: contribui para um ambiente imprevisível, desfavorável à iniciativa privada e anticompetitivo, beneficia grupos econômicos com um relacionamento privilegiado com o estado e cria uma burocracia inflada e mais inclinada à corrupção2. Em uma democracia, as limitações do modelo são ainda mais graves. Isso porque, a coordenação ativa da economia pelo estado depende de um governo cuja atuação é minima-


senvolvimentista aceita que o estado possa atuar como principal ator do desenvolvimento econômico enquanto permanecem preservadas as liberdades políticas dos indivíduos. Ocorre que as próprias características do modelo intervencionista inevitavelmente restringem um segundo pilar da democracia: a liberdade econômica. Tal liberdade não se caracteriza simplesmente pela garantia ao direito a propriedade e à livre iniciativa. Em outras palavras, uma democracia econômica requer muito mais do que uma serie de restrições ao poder do estado; representa um ambiente de participação efetiva do indivíduo na economia. Esse ambiente se concretiza a partir de liberdades como a de empreender sem o suporte do governo e sem contatos na burocracia estatal, negociar de forma livre com o mercado e ter acesso a uma oferta ampla de produtos e serviços a preços competitivos. Ao analisarmos com atenção o modelo híbrido instituído no país, é difícil concluir que vivemos uma democracia econômica. Em geral, temos uma economia pouco dinâmica e inovadora, marcada pelo alto custo dos produtos e serviços, concentração do poder econômico, subinvestimento de longo prazo e restrições à capacidade negocial dos indivíduos. Essa condição reflete uma serie de estruturas relacionadas ao modelo híbrido: carga tributária elevada (necessária para o custeio da máquina pública), controle intenso (e, em geral, complexo) da atividade econômica e políticas de desenvolvimento que criam vantagens competitivas para grupos próximos

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mente restringida. Essas restrições, via de regra, representam direitos e garantias que protegem instituições como a propriedade privada e a liberdade de iniciativa. No contexto do state capitalism, essas instituições podem até existir, mas não na forma de direitos e garantias; são políticas de estado extinguíveis à discrição do governo. À medida em que o papel do estado cresce, o espaço do indivíduo diminui. Ocorre que uma nova linha acadêmica vem defendendo a compatibilidade entre estado interventor e os direitos e garantias que sustentam uma democracia. Tal modelo, chamado de desenvolvimentismo, traz o Brasil como um dos mais importantes exemplos do modelo híbrido de liberdade política e domínio estatal da economia. A partir da premissa de que uma atuação intensa do governo pode acelerar o crescimento do país, o principal argumento da tese desenvolvimentista reside na alegação de que novas estruturas jurídicas criaram instrumentos de intervenção compatíveis com os direitos e garantias individuais de um estado de direito e, portanto, permitiriam a simbiose entre público e privado. São exemplos desses instrumentos as parcerias público-privadas, os investimentos de private equity do BNDESPar e CEFPar e a semiprivatização dos ativos do estado - no qual o estado mantém uma participação expressiva, porém minoritária, no capital da empresa privatizada. Tais ideias são preocupantes, uma vez que tendem a focar em apenas um aspecto da democracia – a liberdade política. O discurso de-

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Atualidades


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Atualidades ao governante da vez (como crédito subsidiado). Este modelo beneficia agentes econômicos com posição estabelecida no mercado em detrimento de novos agentes que tenderiam a ser mais competitivos e inovadores. Em outras palavras, os agentes econômicos existentes contam com enormes vantagens, uma vez que têm a estrutura capaz de lidar com as complexidades de um big state e contam com seu relacionamento próximo ao governo para garantir que se beneficiem das políticas de desenvolvimento. Permitir que o mercado atue como agente principal do processo de desenvolvimento econômico do país não se mostra, portanto, apenas mais eficiente. É também mais justo. Politicamente, isso não significa uma redução do papel do estado, mas uma mudança qualitativa desse papel. Primeiro, pelo fato de que nossa percepção do livre mercado se tornou mais sofisticada desde o laissez-faire do século XIX. Hoje é evidente que os benefícios de uma democracia econômica são desfrutados apenas pelos que têm a condição de participar deste ambiente livre e dinâmico. Cabe ao poder público, então, implementar medidas de democratização do mercado – por meio da educação, saúde, segurança e redução da miséria – para garantir a efetiva participação de todos nesse sistema. Sobretudo, entretanto, cabe ao poder público contribuir para que a democracia econômica funcione de forma plena. Raghuram Rajan e Luigi Zingales, professores da Universidade de Chicago, identificaram dois grupos que tendem a combater

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a expansão de liberdades econômicas: os agentes econômicos com posição garantida no mercado e parcela da sociedade que tende a perder com a ‘destruição criadora’ de uma economia livre3. A força política desses grupos, aliada ao seu interesse em manter o status quo, constitui a maior ameaça para um mercado livre, competitivo e precursor do desenvolvimento. Em outras palavras, a defesa do livre mercado é uma tarefa difícil, uma vez que preservá-lo beneficia a coletividade no longo prazo enquanto a criação de barreiras interessa tanto ao poder econômico estabelecido quanto aos grupos sociais politicamente organizados. Nesse contexto, nosso sistema político enfrenta um desafio: defender um interesse difuso, cujo reconhecimento pelos que dele se beneficiam é incerto. Essa é uma tarefa que, apesar de difícil, é fundamental para assegurar uma economia dinâmica, inclusiva e conduzida por um setor privado competitivo e inovador. É tempo de o Brasil repensar o caminho de seu desenvolvimento econômico e isso depende, necessariamente, do nosso sistema político aceitar a liberdade econômica como valor indispensável à democracia e fator central para o enriquecimento do país. Em diferentes momentos nosso país esteve próximo de se estabelecer como um país próspero, mas falhou. A Constituição de 88 foi, nesse aspecto, um passo importante para introduzir um caminho sólido ao desenvolvimento, ao trazer a inclusão política e social dos nossos cidadãos. Mas isso é insuficiente: o futuro do país depende, também, da inclusão econômica dos brasileiros4.


Tanto do ponto de vista da tomada quanto da concessão de recursos. A dívida pública representa mais da metade do endividamento do país, enquanto as instituições financeiras públicas como o BNDES, Banco do Brasil e CEF detêm uma quantidade enorme de ativos financeiros. 2 Dos inúmeros exemplos de corrupção, um específico noticiado pela revista Bloomberg Markets é paradigmático: Chinese See Communist Land Sales Hurting Mao’s Poor to Pay Rich. Disponível em: http://www.bloomberg.com/news/201110-23/chinese-see-communist-land-sales-hurting-mao-s-poor-to-pay-rich.html (acesso em 03/02/2012). 3 Podemos citar como exemplos desta parcela da sociedade: trabalhadores que, por terem sua profissão rigorosamente regulada, se beneficiam de uma reserva de mercado; e sindicatos, uma vez que representam aqueles atualmente empregados em face daqueles que estão procurando emprego. Vale citar uma matéria noticiada pelo Financial Times sobre a profissão de taxista na cidade de Milwaukee, EUA: Economics and society: Barrier to a breakthrough. Disponível em http://www. ft.com/intl/cms/s/0/7e316f80-5c80-11e1-911f-00144feabdc0.html#axzz1nKRq1xlO (acesso em 24/02/2012). 4 Faço referência aqui a um livro e a uma frase. Em Why Nations Fail: The Origins of Power, Prosperity and Profits, Daron Acemoglu e James Robinson indicam a forte relação entre uma economia inclusiva e a prosperidade de um país. A frase que gostaria de citar é uma do Professor Arnold Wald, em sua análise do Plano Real: “Vencer a inflação foi tão relevante para o país quanto restabelecer o Estado de Direito e, pode-se, assim, fazer certo paralelismo entre o Plano Real e a Constituição de 1988”. 1

Vinicius Augusto Nunes Pecora é graduado em Direito pela Faculdade de Direito da USP (2011) e fundador da Ayty (www.projetoayty.com. br) E-mail: vpecora@projetoayty.com.br

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Notas

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Atualidades


Os limites da cópia: O debate sobre copycats sob a perspectiva do ordenamento jurídico brasileiro por Luis Felipe Batista Luz e Pedro Henrique Soares Ramos

INTRODUÇÃO A Internet possibilitou o surgimento de diversos modelos de negócio inovadores e eficientes. Compras coletivas, produtos por assinatura, redes sociais, publicidade personalizada, armazenamento em nuvem e locadoras virtuais são só alguns exemplos de um mercado que possui, somente no Brasil, mais de 46 milhões de consumidores ativos. As características inerentes à arquitetura da Internet e ao crescimento exponencial desse mercado trazem um ambiente fértil não só à inovação, como também à replicação de modelos de negócio em diferentes países ou, ainda, em um mesmo mercado. Os copycats, expressão comumente utilizada para sites e empresas que reproduzem modelos de negócio consagrados, são hoje peças importantes num setor cada vez mais relevante da economia, e sua presença acende não só um debate moral sobre a replicação de negócios como também um rico campo de discussão na esfera jurídica. A ORIGEM DO TERMO 4° trimestre 2012

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Doutrina

O primeiro uso escrito que se tem notícia da expressão copycat surge no final do século XIX no romance Bar Harbor Days, de Cons-

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tance Cary Harrison, como uma gíria pejorativa que designava indivíduos que deliberadamente copiavam ou apoderavam-se de alguma ideia de outro – significado que, em sua essência, aproxima-se da sua utilização contemporânea. Mas o termo só ganhou notoriedade em 1982, com uma série de crimes cometidos nos EUA, que tiveram ampla cobertura pela empresa e envolviam a substituição do conteúdo de cápsulas de Tylenol por cianureto. No universo tecnologia e informática, a expressão alcançou rápida notoriedade. Em 1983, o New York Times já utilizava o termo copycat para se referir à batalha judicial que estava sendo travada entre a Apple Computers e a Franklin Computer Corporation, esta acusada de copiar o software da empresa de Steve Jobs. Com a popularização da Internet no final dos anos 90, a expressão passa a ser utilizada com frequência para designar sites que se utilizam das mesmas estratégias, métodos e modelos de negócio de um outro. No olho deste furacão, Oliver, Marc e Alexander Samwer, irmãos e empreendedores alemães, iniciaram seus primeiros negócios digitais ao basear-se em modelos de negócio desenvolvidos com sucesso nos EUA e replicá-los em outros países. Sua primeira empreitada copycat foi o


inovação e tecnologia desde os primórdios desse mercado. Nos anos 80, embora as cópias de programas de computador fossem tratadas como crime pela lei americana e bastante condenáveis pela sociedade, os piratas de software eram extremamente comuns na cultura empreendedora do Vale do Silício, epicentro da cultura tecnológica moderna. Um dos mais notáveis casos é narrado em detalhes por Walter Isaacson em sua biografia sobre Steve Jobs, em que conta como este utilizou conceitos da Xerox para criar o seu Macintosh – cujo sistema operacional foi utilizado como modelo literal para o Windows de Bill Gates, poucos anos depois. Também não é incomum em outros mercados a banalização dos conceitos de propriedade intelectual e não concorrência. Na indústria de moda, há uma clara leniência na aplicação dessas regras, o que é comumente visto como um incentivo à criatividade e à inovação. Na literatura, a Internet ajudou a popularizar as fan fictions, obras que criam novas histórias a partir de personagens e histórias best sellers – e que acabam possuindo um enorme impacto no aumento das vendas dos livros originais. O mesmo não ocorre em outras indústrias. A Walt Disney Corporation é atualmente uma das maiores litigantes do mundo em matéria de propriedade intelectual, com miDIFERENTES VISÕES lhões de dólares gastos anualmente SOBRE OS COPYCATS com a proteção de seus personagens, filmes e direitos de merchandising, Odiados e ao mesmo tempo inclusive através de lobbys no Conelogiados, os copycats tem acompa- gresso americano pelo aumento do nhado os principais debates sobre prazo de duração dos direitos de co-

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Alando.de, um site de leilões online que seguia a mesma fórmula de sucesso do eBay e que, quatro meses após seu lançamento, foi adquirido pelo próprio eBay por 43 milhões de dólares. Desde então, os irmãos Samwer já criaram “clones” da Amazon, Groupon, Airbnb, Pinterest, Zappos e de dezenas de outras companhias, com presença em cerca de 58 países (inclusive o Brasil) e um faturamento estimado de mais de 1 bilhão de dólares e mais de 20 mil empregos gerados. Em verdade, o exército de clones na Internet cresce de maneira exponencial. Na Alemanha, o StudioVZ, notadamente inspirado no Facebook, já possui cerca de 13 milhões de usuários no país. Em 2011, o site HoneyTech Blog listou 250 clones do Twitter. No Brasil, o mercado de compras coletivas, inaugurado pelo Groupon nos EUA, já possui mais de mil empresas, que juntas faturam mais de 800 milhões de reais por ano. Na China, os números são mais surpreendentes. O YouKu, clone chinês do YouTube, faturou 897 milhões de dólares em 2011 e é o 47o site mais acessado do mundo. O Baidu, clone do Google Search, tem números ainda mais impressionantes: seu faturamento em 2011 atingiu 2,3 bilhões de dólares, é o 5o site mais acessado do mundo e, desde julho, suas ações são listadas na NASDAQ.

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Doutrina pyright – motivo pelo qual a lei que estendeu esses direitos em 1998 tornou-se pejorativamente conhecida como Mickey Mouse Protection Act. Na verdade, o embate entre a liberdade de criação e os direitos do criador sempre fez parte da cultura ocidental. Em recente pesquisa, professores da Universidade de San Diego apontam que a República de Veneza emitia, em pleno século XIV, cartas de monopólio, permitindo que determinados comerciantes explorassem, com exclusividade, certos ramos de atividade. Na França, a doutrina do laissez-faire, positivada em 1791 no Decreto de Allarde, combateu duramente os monopólios garantidos por regulação estatal, através de uma defesa apaixonada da livre iniciativa - e que se tornou a gênese das leis contemporâneas sobre propriedade intelectual e domínio público. Já no mundo oriental, a questão possui contornos culturais distintos, em que o confucionismo exerceu um papel fundamental na filosofia por trás da cópia. Na China Imperial, a cópia de negócios, textos e até pinturas não era considerada uma ofensa moral, mas sim uma “homenagem” ao artista original: desde cedo, as crianças chinesas aprendiam a memorizar e copiar clássicos da literatura oriental, como forma de prestar respeito aos seus antepassados. Essa cultura influenciou consideravelmente a visão ocidental que se tem da economia chinesa, repleta de produtos “similares” a criações ocidentais e como um ambiente de difícil consolidação para inventores em geral.

ASPECTOS LEGAIS Mas, em que ponto um copycat deixa de ser um modelo lícito e passa a ser um crime? No Brasil, a Constituição de 1988 estabeleceu como fundamento da ordem econômica a livre iniciativa, tendo como um dos seus princípios cardeais a livre concorrência. Esses dois dispositivos, reciprocamente complementares, possuem como principal objetivo regular o sistema de mercado, mitigando a natural tendência de concentração de riquezas. A própria Constituição já orienta, em seu artigo 170, qual é a finalidade da ordem econômica: assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Esse comando parece inevitavelmente se voltar à ideia de que a defesa da livre iniciativa não se baseia em uma política econômica exclusivamente voltada às empresas, e sim uma política voltada aos cidadãos como titulares de direito. A livre concorrência é, nesse sentido, um direito do cidadão enquanto consumidor, pois favorece a desconcentração de poder e de riqueza, a igualdade formal entre pequenos e grandes agentes econômicos e a competição por preços. A liberdade de empresa também relaciona-se diretamente com outro princípio basilar de nossa Carta Magna: a função social da propriedade. Nosso ordenamento, ao contrário de uma visão hobbesiana, afastou o conceito de propriedade como direito absoluto, consagrando-a como um direito que deve ser interpretado de acordo com os ditames da justiça social e do desenvol-

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Lei de Propriedade Industrial que afasta os programas de computador da proteção do sistema de patentes de invenção, sendo os programas de computador protegidos pelo direito autoral. Nesse mesmo sentido, dois importantes diplomas vieram consolidar a liberdade de criação como um dos vetores do software no Brasil: a Lei 7.232/84, que estabeleceu, como princípio da Política Nacional de Software, a proibição de situações monopolísticas, de direito ou de fato; e o artigo 6° da Lei 9.609/98, que afastou da proteção dos direitos autorais “a ocorrência de semelhança de programa a outro, preexistente, quando se der por força das características funcionais de sua aplicação, da observância de preceitos normativos e técnicos, ou de limitação de forma alternativa para a sua expressão”. O Tribunal de Justiça de São Paulo, entre 2000 e 2010, julgou diversas ações intentadas pelo canal de televisão ShopTour, que buscou tutela de seu modelo de negócio perante outros concorrentes, com o argumento da similitude do modelo de programas, no vestuário dos apresentadores e na abordagem de clientes. Em uma dessas decisões, o desembargador Francisco Loureiro ponderou que “a concorrência agressiva, ainda que com a finalidade de desviar clientela alheia e arrogar-se uma melhor posição no mercado, não é reprimida pelo ordenamento, sendo, aliás, inerente ao próprio funcionamento do capitalismo. A entrada no mercado de novos concorrentes e o ataque à clientela alheia são antes incentivados pela própria Constitui-

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vimento econômico. Nessa ótica, a propriedade exclusiva sobre um determinado modelo de negócios impediria que toda uma sociedade pudesse se valer de uma nova forma de comércio ou serviço, na medida em que um monopólio jamais seria capaz de atingir todo o mercado consumidor de maneira justa e eficiente. Há que se reconhecer ainda que a existência de várias empresas explorando uma mesma atividade traz importantes benefícios econômicos: (i) a ampliação do alcance de determinado serviço para um número maior de regiões e consumidores; (ii) o estabelecimento de preços justos e margens de lucro mais razoáveis; (iii) o estímulo à pesquisa e inovação dentro do próprio setor, com o aperfeiçoamento de métodos e técnicas de produção que, como consequência, geram o aperfeiçoamento da própria oferta no mercado; e (iv) a promoção do desenvolvimento econômico lato sensu, com o aumento da circulação de riqueza, distribuição de renda e geração de empregos. Nossa legislação infraconstitucional e jurisprudência parecem albergar com consistência esses objetivos. A Lei de Direitos Autorais, em seu artigo 8°, afasta da proteção do direito autoral as ideias, procedimentos normativos, sistemas, métodos, projetos ou conceitos matemáticos; e os esquemas, planos ou regras para realizar atos mentais, jogos ou negócios. Há, nesse comando, uma preocupação em proteger a própria liberdade de expressão e de mercado. O mesmo princípio parece ter orientado a redação do artigo 10° da

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ção Federal”. O Superior Tribunal de Justiça também já se posicionou no mesmo sentido: no Recurso Especial 906.269, essa Corte afirmou que os “estilos, métodos ou técnicas não são objetos de proteção intelectual; o que se tem sob guarida legal são as obras resultantes da utilização de estilos, métodos ou técnicas”. Naturalmente, a liberdade de iniciativa tampouco é princípio absoluto, e deve ser interpretada em conjunto com outros dispositivos constitucionais. O artigo 170 da Constituição Federal coloca, ao lado da livre iniciativa, a valorização do trabalho humano como princípio da ordem econômica. Tal fundamento constitucional é o fundamento de todo o sistema de Propriedade Intelectual no país, que garante ao criador o direito de explorar exclusivamente a sua obra ou invenção por um período determinado de tempo.

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O mesmo conceito vale para as marcas: a construção da reputação de uma marca ao longo do tempo, baseada em serviços e produtos confiáveis, é uma consequência natural de uma economia de mercado, favorecendo consumidores e merecendo proteção estatal. Frise-se que o objetivo do ordenamento não é somente defender o inventor: em última instância, a proibição de cópias e uso não-autorizado de marcas visa proteger o consumidor, que não deve ser exposto a práticas e atividades que possam induzi-lo a erro ou confusão em relação a certo produto ou serviço. É de se notar que nossa legislação é rigorosa na punição das violações aos direitos de Propriedade

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Intelectual: a violação de direito autoral é crime previsto no Código Penal (art. 184), agravado quando a violação consistir em reprodução total ou parcial com intuito de lucro. As violações de marcas e patentes também são crimes previstos na Lei de Propriedade Industrial, puníveis com detenção ou multa. Assim, é preciso cotejar, de um lado, os princípios da função social da propriedade e da livre iniciativa e, de outro, o princípio da valorização do trabalho humano. Assim, pode-se afirmar que nem toda forma de copycat é bem recebida em nosso ordenamento jurídico. Aqueles que se baseiam na utilização e no vazamento de informações confidenciais e no emprego de outros meios desleais e fraudulentos para desvio de clientela, aliciamento de colaboradores e obtenção de vantagens competitivas têm sido reiteradamente repudiados por nossos tribunais (nesse sentido, AC 994.09.325734-5 SP). CONCLUSÃO O debate sobre os copycats, constantemente carregado de fatores ideológicos, interesses econômicos e concepções políticas, traz à tona dilemas importantes entre inovação, criatividade, liberdade de iniciativa e propriedade intelectual, elementos estes que também são carregados de fatores jurídicos. Todavia, não se pode ter uma visão destes conflitos desconectada da percepção da realidade socioeconômica, especialmente no que concerne ao acesso à Internet e ao desenvolvimento do setor de tecnologia. A ordem constitucional brasi-


Luis Felipe Baptista Luz é advogado, formado na Faculdade de Direito da USP – Largo São Francisco, especializado em fusões e aquisições e em estruturações de investimentos no Brasil e exterior. É mentor e palestrante em diversas aceleradoras e programas de apoio a startups em São Paulo. É sócio fundador do Baptista Luz, Gimenez e Freitas Advogados.

Pedro Henrique Soares Ramos é advogado, formado na Faculdade de Direito da USP – Largo São Francisco, com especialização pela University of Southern California. Advogado especializado em direito digital, é palestrante em diversos eventos e programas de apoio a startups em São Paulo. É advogado associado no Baptista Luz, Gimenez e Freitas Advogados.

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leira, ao preservar o direito dos criadores sobre suas obras e invenções e permitir a liberdade de empresa para criação de modelos de negócios similares possui um importante papel indutor de desenvolvimento econômico: num mercado em plena adolescência, o amadurecimento da oferta e das condições de consumo na Internet abre espaço para novas formas de inovação dentro de uma mesma atividade, proporcionando também a investidores um importante referencial de que determinado empreendimento traz segurança e solidez, haja vista a sua aplicação prática anterior.

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