Edição 50

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André T. Susin/O Caxiense

Bispado ambiental

O bispo do Xingu dispensou a proteção dos quatro policiais que o acompanham normalmente para palestrar na cidade

PATRIMÔNIO

SAGRADO N

por VALQUÍRIA VITA valquiria.vita@ocaxiense.com.br

a Amazônia há dois tipos de morte. Morte matada ou morte morrida. Se não são as doenças como malária ou dengue, que assolam a região, morrese assassinado. É o que diz Dom Erwin Kraütler, 71, bispo do Xingu, que vive em Altamira, no Pará. Dom Erwin não tem medo de falar o que pensa. Já falou tanto e incomodou tanta gente, que hoje precisa estar 24 horas por dia escoltado por quatro policiais. Os seguranças só não o acompanharam em Caxias do Sul, por onde teve uma passagem rápida na noite abafada de segunda-feira (8), em palestra para o curso de Teologia da Catedral. Não havia espaço suficiente no auditório da Católica Domus para ouvir o que Dom Erwin tinha para falar. “Em 18 anos de curso nunca vi esse auditório tão lotado”, espantou-se o padre Leomar Brustolin. Por mais de uma hora, o público compreendeu que os problemas da Amazônia ultrapassam o desmatamento desenfreado que ouvimos falar. Alto e esguio, Dom Erwin fala com sotaque de quem não tem o português como língua materna. “Como se diz...?”, questiona antes de mencionar algumas palavras. Nascido na Áustria, Erwin embarcou para o Brasil em 1965. “Toda a minha vida está no Xingu”, diz o bispo, que foi diretamente para Altamira, cidade cortada pela Transamazônica desde o início dos anos 70, a. Foi durante a construção da rodovia, defendendo os canavieiros que não recebiam pagamento há nove meses, que o padre presenciou a maior demonstração de apoio dos trabalhadores. “‘O bispo está ajudando, então o bispo vai preso’, disse a polícia.

Fui jogado no chão, humilhado diante do povo. Até que as pessoas gritaram: ‘Larga ele! Ele é o nosso bispo’”, conta Erwin. Anos mais tarde, ele denunciou casos de abuso sexual de meninas de Altamira: “Eram pessoas abastadas que pegavam meninas na porta do colégio. As mães foram na polícia e eles nem registraram as queixas. No Brasil, existe um ditado: ‘Quando não tem mais jeito a gente tem que se queixar para o bispo’. E o bispo sou eu. Então abri o trombone”, conta Erwin, que prestou depoimento contra os abusadores. “Fui para a televisão, onde chamei todos aqueles homens de monstros, por terem destruído a vida de meninas de 12 anos.” Mas a principal luta de Dom Erwin sempre foi pelas comunidades indígenas, que, segundo ele, vivem sem nenhum tipo de assistência: “O povo indígena faz parte de um capítulo triste da Amazônia. Para quem acha que a igreja tem culpa no cartório, digo que não adianta lamentar séculos passados e jogar pedra em missionários. Temos que defender os índios hoje”, afirma o bispo, que é presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), cujo lema é “A causa indígena é de todos nós”. Erwin costuma dizer que defende um povo que não tem onde cair morto. Um povo que não tem ninguém mais que fale por eles. Uma grande amiga sua, que também lutou pelas mesmas causas, foi a irmã Dorothy Stang. “Lembro quando ela chegou, dizendo que queria trabalhar entre os povos mais pobres. E eu fiz um discurso para ela, disse que pobreza não tinha nada de romantismo, que ela não ia aguentar. E ela aguentou. Até o dia 12 de fevereiro de 2005, quando foi barbaramente executada”, conta Erwin. “Dez dias antes de morrer, eu disse para ela

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Erwin Kraütler viajou 3,6 mil quilômetros para falar em Caxias do Sul sobre preservação do ambiente que ela corria risco. E ela me respon- cessos de inconstitucionalidade na Jusdeu: ‘Quem vai querer matar uma se- tiça envolvendo Belo Monte, conforme nhora de 73 anos’?”. Erwin. O presidente Lula afirmou para O assassinato brutal da irmã Do- a Agência Estado, em abril deste ano, rothy, assim como a morte de outros que o governo assumirá a construção religiosos que conviveram com Erwin, da hidrelétrica sozinho, por meio das foram, para ele, os momentos mais di- estatais, se for necessário. “Estive no fíceis. “São fatos que aconteceram. Não gabinete do presidente Lula duas vezes, conto para espantar”, onde o advogado dizia diz, ao ver a plateia da para ele que o projeto é palestra em profundo “Dez dias antes inviável”, conta. silêncio. Toda noite an- de morrer, disse Um grande problema tes de dormir, o bispo, para ela que ela é que a hidrelétrica afeque denuncia a atuatará 1/3 do município corria risco. Ela ção de latifundiários, de Altamira, que é a cigrileiros, madeireiros disse: ‘Quem vai dade central do Xingu. e fazendeiros, agradece querer matar “Tem 110 mil habitanpor mais um dia vivo. uma senhora’?”, tes em Altamira. Com E diz não ter receio de construção teria que conta Erwin sobre atransferir ter o mesmo destino de 30 mil pessoDorothy Stang irmã Dorothy: “A gente as da cidade. E elas vão não pode viver eternapara onde?”, questiona mente com medo”. Erwin. “O governo diz que nenhuma área indígena, cujo povo Nos 45 anos em Altamira, Erwin vive na beira do rio, que vive de peixe, engajou-se fortemente nas causas am- será ocupada. ‘A gente vai dar um jeibientais. “Se nós não respeitamos o to’, diz o governo. Só que até hoje não mundo que Deus criou estamos fada- avisaram que jeito vão dar”, completa dos a desaparecer desse planeta”, ad- o bispo, alegando que ao contrário do verte. Ele ganhou, neste ano, o prêmio que dizem – que a Belo Monte é a única Right Livelihood, conhecido como o – há mais quatro hidrelétricas planejaPrêmio Nobel Alternativo, pela dedi- das para o Xingu. “Belo Monte é vendicação a favor dos direitos ambientais do como um projeto contra o Apagão. da região amazônica. “Em 1965 eu via Muitos têm medo de perder novela das mata virgem, Amazônia intacta. Não 8, de perder o chuveiro quente. Porque defendo que a gente não deve usar isso é a coisa mais importante para alriquezas da Amazônia, só acho que guns”, diz Erwin. como foi feito é um crime. E o crime O desmatamento necessário para a continua. Os projetos para a Amazônia construção da terceira maior hidresão arrasadores”, diz. létrica do mundo, segundo o bispo, O projeto mais arrasador, contra o afetará muito mais do que o Xingu: “A qual Erwin luta há 30 anos, é o da hi- gente pensa que aqui em Caxias isso drelétrica Belo Monte, que será cons- não vai nos atingir. Mas quem pensa truída no Rio Xingu. Ela será a maior assim está redondamente enganado. A hidrelétrica do Brasil e a terceira maior Ciência comprova que o clima de todo do mundo. O empreendimento apre- o Brasil será alterado se a Amazônia senta irregularidades, e afetaria as continuar a ser desmatada. Será que terras indígenas da região. Há 15 pro- podemos nos calar?”. 13 a 19 de novembro de 2010

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