Reportagem sobre a USF Âncora

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Motivação e entusiasmo renovam-se a cada dia O momento é crítico, reconhecem os profissionais da USF Âncora. A crise económica que o país atravessa não pode deixar de ter impacto no setor da Saúde. Contudo, longe de desanimar, a primeira USF a surgir no Algarve continua a trabalhar com o mesmo entusiasmo de sempre. “Não podemos estagnar”, afirma a coordenadora. Novos projetos de intervenção junto de grupos de risco e a acreditação da USF são os próximos passos da equipa. Solidez, maturidade e coesão são os três grandes pilares que têm contribuído para o bom desempenho da equipa da USF Âncora, em Olhão, a primeira a avançar no Algarve e a evoluir para Modelo B. “No início, foi precisa muita coragem”, reconhece a coordenadora, Irene Cardoso. “Já conhecíamos o Regime Remuneratório Experimental (RRE), mas também este teve muitas dificuldades para se afirmar. Apesar disso, quando surgiu a ideia das USF, decidimos avançar. Na altura, a responsável do Centro de Saúde de Olhão, Filomena Neto, estava um pouco cansada das tarefas inerentes à direção e considerou que este era um modelo atrativo para os profissionais. Mas não foi fácil constituir a equipa. Desejávamos

integrar um sexto elemento na equipa médica, mas não o conseguimos porque existia muita desconfiança em relação à sustentabilidade do modelo. A equi-


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pa avançou, assim, com cinco médicos, cinco enfermeiros e cinco secretários clínicos.” Até 2011, a USF teve um horário alargado, das 8 às 22 horas, incluindo a abertura aos sábados, das 8 às 14 horas. No ano seguinte, esse alargamento de horário foi retirado. Contudo, a médica de família considera conveniente voltar ao sistema anterior, dadas “as vantagens que oferece às pessoas em idade ativa e em termos da solução de situações agudas e urgentes da generalidade dos utentes, evitando o recurso ao Hospital de Faro”. Nesse sentido, Irene Cardoso congratula-se com a possibilidade, avançada pelo secretário de Estado adjunto do ministro da Saúde, Leal da Costa, de aumentar o horário de funcionamento das USF e UCSP, embora isso possa implicar um esforço adicional e a reorganização da equipa. Esta é responsável por uma população de mais de 9500 utentes, o que significa existirem listas de 1900 utentes por médico, com elevadas taxas de utilização dos serviços. “Em 2012, a taxa de cobertura global atingiu os 67%. Trata-se de uma população

muito carenciada economicamente que recorre, maioritariamente, aos serviços da USF.” Além disso, a USF possui uma carteira adicional de utentes do Centro de Saúde de Olhão que não têm médico de família atribuído. “Prestamos cuidados ao nível da Saúde Materna, do Planeamento Familiar e da Saúde Infantil. Muitos deles são imigrantes ou pessoas em trânsito.” Contudo, este compromisso deverá chegar ao fim dentro em breve, à semelhança do que acontece com outras USF do ACES Central. “Por razões económicas”, avança a coordenadora, que lamenta a perda de mais esta valência da carteira adicional, “gostamos daquilo que fazemos, é uma população diferente daquela a que nós assistimos e vamos deixar de ter a possibilidade de prestar cuidados a muitos imigrantes”.

Aplicação dos incentivos institucionais não chega aos 30% Em 2012, a equipa atingiu a maioria das metas contratualizadas e desde 2011 que recebe quer incentivos financeiros, quer institucionais. O processo de aplica-

ção destes últimos decorre, no entanto, “com alguma morosidade”. Essencialmente, “têm sido direcionados para formação dos profissionais da USF, mas ainda não conseguimos concretizar muitos dos projetos. O ACES dá o aval positivo, mas a ARS tarda em responder”. Até agora, “foram aplicados menos de 30% dos incentivos institucionais, o que resulta um pouco desmotivador para a equipa, cujos projetos incidem sobretudo na melhoria das instalações”. Nomeadamente, intervenções de beneficiação da sala de arrumos e do equipamento da copa, renovação das fardas do secretariado clínico, transformação da atual sala de reuniões num consultório médico e aproveitamento de um espaço do centro de saúde, contíguo à USF, para uma sala de reuniões mais ampla do que a atual. Apesar deste aspeto poder conduzir a alguma desmotivação da equipa, um risco apontado pela própria coordenadora numa recente reunião da USF, “fiquei satisfeita ao ouvir uma colega argumentar que, se estamos a trabalhar bem, é para continuar assim, independentemente das nossas condições não serem as melhores.

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Irene Cardoso

A arte de conciliar o dever com o prazer Irene Cardoso terminou o curso de Medicina no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, no Porto, em 1992. Realizou o Internato Geral no Hospital de Faro e em 1994 fez o Internato Complementar de MGF, no Centro de Saúde de Olhão, onde mais tarde desenvolveria a sua atividade como médica de família. Quando, há cerca de seis anos, a então diretora do Centro de Saúde de Olhão, Filomena Neto, a desafiou para integrar uma USF, aceitou de imediato. Agradava-lhe, sobretudo, o trabalho em equipa e a autonomia organizacional. Aliás, “alguns dos modelos que aplicava na minha consulta foram adotados na USF, pelo que me sinto muito satisfeita”.

Em 2012, assumiu a função de coordenadora da USF, cargo que mantém em 2013, de acordo com o desejo da equipa que, todos os anos, elege o seu representante em assembleia-geral. “Já todos os membros da equipa médica assumiram a responsabilidade da coordenação da USF. Isso significa que todos conhecemos a responsabilidade e o desafio inerentes a esta função.” Casada e com dois filhos, não desiste dos seus tempos livres, dedicados à leitura, bordados e jardinagem. Gosta ainda de viajar e do exercício ao ar livre. Aos fins de semana troca o automóvel pela bicicleta e todas as manhãs, por volta das 6.30 h., não falha uma caminhada matinal com um grupo de amigas. É que, explica, “no final do dia estamos esgotados e precisamos de tempo para a família”.

Existe uma procura muito elevada ao nível da consulta do dia. A equipa procura educar os utentes no sentido de a utilizar apenas em caso de doença aguda, mas a população demora a compreender. No ACES Central USF reforça-se a cooperação O ACES Central, que conta com sete das nove USF existentes na ARS Algarve, decidiu reforçar a cooperação entre as suas unidades de saúde familiar através de reuniões periódicas. O objetivo é trabalhar e discutir, em conjunto, assuntos difíceis ou sensíveis. “Todos os dias surgem ideias novas do ministério e temos que estar preparados”, explica Irene Cardoso, para quem “a união entre as USF é essencial, até para não nos sentirmos sozinhos”.


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De facto, a nossa maior motivação é a satisfação revelada pelos utentes relativamente ao nosso trabalho”.

Autonomia organizacional permite melhorar a resposta no terreno A autonomia organizacional é uma das vertentes mais interessantes das USF. A este nível, Irene Cardoso salienta a intersubstituição, a capacidade de organizar os horários dos profissionais de acordo com as necessidades da população abrangida, as reuniões clínicas quinzenais e as reuniões de trabalho mensais com toda a equipa. “No início, como estávamos habituados a que as orientações viessem de cima, o processo deu um pouco de trabalho, mas pouco depois a equipa entrou em velocidade de cruzeiro. Estamos no terre-

no, conhecemos as necessidades da nossa população e respondemos em conformidade.” Por exemplo, existe uma procura muito elevada ao nível da consulta do dia. “Não possuímos um sistema de triagem, de modo que procuramos educar o doente para que só nos procure em caso de doença aguda. Mas a população estava habituada a recorrer ao SAP (Serviço de Atendimento Permanente) e muitas pessoas mantêm o mesmo comportamento. O secretariado clínico procura organizar os doentes e mesmo no que se refere à consulta do dia, é feita a marcação da hora, o que evita que o utente aguarde na sala de espera. Contudo, muitos conti­ nuam a preferir ficar quando, na realidade, com a consulta do dia marcada, o seu tempo de permanência na USF poderia

Trabalhar mais para a comunidade e avançar com a acreditação da USF são os principais projetos da equipa a médio prazo.

Secretariado clínico

Organização, transparência e coesão As USF vieram alterar radicalmente a organização do trabalho na área do secretariado clínico. Ana Aura, já com uma experiência profissional de 16 anos, aponta que, “antigamente, trabalhávamos de uma forma muito individualista – cada administrativo dava apoio a dois médicos – e não existia um trabalho em equipa. Hoje, a nossa responsabilidade é maior, mas realizamos um trabalho coeso no seu conjunto. Falamos todos a mesma língua, utilizamos os mesmos métodos de trabalho e tudo é mais transparente para os utentes”. A entrada em funcionamento do quiosque eletrónico, em 2010, constituiu uma mais-valia na organização do front office. “Os utentes dirigem-se ao quiosque eletrónico, onde colocam o seu cartão de cidadão, e selecionam o

Ana Aura | Hoje, a nossa responsabilidade é maior, mas realizamos um trabalho coeso, no seu conjunto. Falamos todos a mesma língua, utilizamos os mesmos métodos de trabalho e tudo é mais transparente para os utentes

seu médico de família através do touch screen. A informação surge imediatamente nos nossos computadores, o que

agiliza e facilita grandemente os procedimentos administrativos. No caso de o utente estar isento de taxa moderadora, basta simplesmente aguardar que o seu número de senha surja nos visores localizados na sala de espera para saberem onde se devem dirigir. No caso de utentes não isentos, o processo de atendimento processa-se normalmente de forma igualmente rápida e imediatamente surge no sistema informático dos médicos e enfermeiros a indicação de que o utente já se encontra na sala de espera”. No início, a equipa trabalhava com o SAM e a mudança prejudicou alguns indicadores nesse ano de viragem, uma vez que o Medicine One possui algumas características de registo que a equipa desconhecia, mas o certo é que “valeu a pena”.


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oscilar entre meia hora e uma hora, dependendo de cada situação específica”. O trabalho domiciliário é outra vertente importante do trabalho desenvolvido pela equipa da USF. Cada médico realiza uma média de 10 domicílios por mês, mas, na área da enfermagem, esse número é mais elevado. “Respondemos a todos os pedidos de domicílios, quer por doença crónica, quer por doença aguda.” A população abrangida pela USF é muito envelhecida. “Transitoriamente, alguns idosos poderão precisar de apoio domiciliário e. para nós, é uma grande satisfação verificar como alguns, progressivamente, recuperam a autonomia”.

Ficha técnica Caracterização da população inscrita na USF Âncora (dados do final de 2012): Nº de utentes – 9472 Nº de idosos – 1920 Nº de crianças e jovens – 2281 Nº de mulheres em idade fértil – 1995 Total de nascimentos – 98 Total de consultas médicas efetuadas em 2012: Consultas programadas: 12.458 Consultas não programadas: 11.995 Contactos indiretos: 6929 Contactos: Total de contactos de enfermagem – 46.473 Visitas domiciliárias – 596 dom. Enf. e 266 dom. Méd.

Ligação por telemedicina ao Hospital de Faro O Centro de Saúde de Olhão está equipado com telemedicina. O equipamento é utilizado pelas várias unidades localizadas no edifício do centro de saúde, na valência de Dermatologia, em liga-

ção ao Hospital de Faro. “Estamos a oito quilómetros do hospital, mas, em virtude da escassez de recursos humanos desta especialidade, o colega do hospital consegue resolver muitos casos à distância”, explica a coordenadora. “Alguns utentes não necessitam sequer de deslocar-se ao hospital. Quando isso acontece, as

consultas são marcadas muito rapidamente, o que constitui uma vantagem em caso de suspeita de malignidade”. Por facilitação de uma companhia farmacêutica, a USF conta ainda com uma consultadoria periódica do Núcleo de Diabetes do Hospital de Faro. “Não possuímos estatísticas, mas te-

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mos a perceção de que os nossos utentes não recorrem muito aos cuidados de saúde secundários. Normalmente, quando têm uma consulta no hospital comunicam-nos e trazem-nos uma carta do colega. São mais os casos que nós referenciamos, por motivo de urgência e de necessidade de cuidados hospitalares, do que aqueles


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que vão por iniciativa própria. Também, de acordo com os nossos internos, que realizam trabalho no Hospital de Faro, são raros os utentes da USF que recorrem às urgências. Sobretudo agora, que as taxas moderadoras são muito elevadas no hospital, fazemos um esforço suplementar para atender o máximo de doentes possível, mesmo aqueles que chegam pouco antes das oito da noite. Ficamos até mais tarde, mas vamos para casa satisfeitos porque evitamos que o doente se tenha que deslocar ao Hospital de Faro ou esteja toda a noite em sofrimento. Como eu costumo dizer, uma infeção urinária ou uma amigdalite não é uma emergência, mas dói! Obviar o sofrimento dos nossos utentes representa uma grande satisfação para todos nós.”

Acreditação da USF será o passo seguinte Em termos de projetos futuros, além da melhoria das instalações, através da aplicação integral dos incentivos institucionais, Irene Cardoso salienta: “Gostaríamos de trabalhar mais para a comunidade, com projetos de ensino a grupos específicos, como aquele que desenvolvemos, atualmente, em relação aos doentes diabéticos.” E, simultaneamente, avançar com o projeto de candidatura à acreditação da USF junto da Direção-Geral da Saúde. “Não podemos estagnar. A acreditação representa muito esforço da equipa, mas também uma evolução, e vamos trabalhar para a conseguir.”

No setor de enfermagem

Falhas de material começam a ser visíveis A organização do trabalho de enfermagem segundo a filosofia de enfermeiro de família, a autonomia dos profissionais e o bom ambiente de trabalho na USF são aspetos muito relevantes para a enfermeira Rocío Pulido que, em 2001, trocou Espanha por Portugal, onde as oportunidades de trabalho eram, na altura, mais interessantes. A integração na USF Âncora representou um desafio gratificante: “Os utentes conhecem o seu enfermeiro de família e sabem que têm em nós um apoio muito importante.” Contudo, a atual situação económica do país e os cortes na saúde começam a ser motivo de preocupação: “Gostaria que nos deixassem continuar a trabalhar desta forma, mas tem havido tantas mudanças…”. Nestes momentos críticos, as restrições e as falhas de material começam a ser visíveis: preserva-

Rocío Pulido | Os utentes conhecem o seu enfermeiro de família e sabem que têm em nós um apoio muito importante

tivos, material para pensos, rolos para marquesas, por exemplo. “A minha esperança é que, pelo menos, a situação não se agrave.”

Utentes destacam qualidade do atendimento A USF constitui um serviço público interessante, que proporciona uma qualidade de tratamento elevada, é a opinião de Armando José Gonçalves. “Os profissionais são excelentes e, no que diz respeito à organização, frequento regularmente a USF desde há dois anos e estou plenamente satisfeito”. O mesmo não acontece relativamente ao custo das taxas moderadoras: “São elevadas e isso condiciona o acesso.” Na sua opinião, o Governo “maneja o setor da saúde a seu bel-prazer, o que gera descontentamento e mal-estar nas pessoas”. A qualidade assistencial e de atendimento prestados pela equipa da USF são igualmente destacadas por Arnaldo Cipriano, segundo o qual a única coisa que tem a apontar é “o facto de estar doente e ter que cá vir”. De resto, a equipa é “excelente” e a organização não lhe fica atrás. Já não existem longas filas de espera, como antigamente, se bem que muitos dos problemas, na sua opinião, resultassem

do facto de as pessoas, especialmente os idosos, recorrerem aos serviços por tudo e por nada, enquanto agora “só vêm aqueles que realmente precisam”. Matilde Manuel não tem a mesma perspetiva. O tempo de espera para a consulta

do dia “é demasiado longo”, afirma. Os médicos de família intercalam as consultas do dia com as consultas programadas e isso deixa-a insatisfeita. Gostaria que o atendimento fosse mais célere e, embora o motivo da sua presença no centro de saúde não seja

urgente do ponto de vista clínico, uma vez que vem pedir um exame ao seu médico de família por indicação de outro especialista, no que diz respeito às consultas do dia, opina que, “embora se tenham registado algumas alterações, não melhorou nada”.

Lúcia Sousa salienta o mesmo problema: “Não posso dizer que seja mal atendida e nas consultas programadas o atendimento é rápido, mas quando queremos uma consulta no próprio dia os tempos de espera são longos.”

Armando José Gonçalves | Frequenta regularmente a USF desde há dois anos e diz estar “plenamente satisfeito”

Arnaldo Cipriano | A equipa é excelente e a organização não lhe fica atrás

Matilde Manuel | Não concorda que os médicos intercalem as consultas do dia com as consultas programadas

Lúcia Sousa | Gostaria que os tempos de espera para a consulta do dia fossem menores


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