Revista Jurídica MPT/MS nº5

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Revista do MinistĂŠrio PĂşblico do Trabalho do Mato Grosso do Sul

Campo Grande - MS


COMISSÃO EDITORIAL Presidente: Odracir Juares Hecht Procurador do Trabalho Membros: Rosimara Delmoura Caldeira Procuradora do Trabalho Simone Beatriz Assis de Rezende Procuradora do Trabalho Anete de Oliveira Freitas Analista de Documentação/Biblioteconomista Keyla Borges Tormena Gusmão Assessora de Comunicação


Ministério Público do Trabalho Procuradoria Regional do Trabalho da 24ª Região

Revista do Ministério Público do Trabalho do Mato Grosso do Sul

Campo Grande – MS n. 5 - 2011

ISSN 1981-3457 R. do Min. Púb. Trab. do MS

Campo Grande-MS

n.5

p.1-348

2011


Revista do Ministério Público do Trabalho do Mato Grosso do Sul. -- V. 1, n.1 (abr. 2007)-. -- Campo Grande: PRT 24ª, 2007V. Anual ISSN 1981-3457 1. Direito do Trabalho. 2. Direito Previdenciário. 3. Direito Constitucional. 4. Direito Processual. CDD 341.6 CDU 349.2

Os artigos publicados são de responsabilidade dos seus autores. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Procuradoria Regional do Trabalho da 24ª Região www.prt24.mpt.gov.br Sede Campo Grande/MS Rua Pimenta Bueno, 139 Bairro Amambaí CEP 79005-020 Fone/Fax: (67) 3358-3000

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Capa: Obra “Peão Ervateiro”, do artista plástico Cecílio Vera. Tiragem: 1.500 exemplares Impressão: Gráfica Espaço


Ministério Público do Trabalho Procurador-Geral do Trabalho Luís Antônio Camargo de Melo Procuradoria Regional do Trabalho da 24ª Região Procurador-Chefe da 24ª Região Celso Henrique Rodrigues Fortes Procurador-Chefe Substituto Odracir Juares Hecht Procuradores Campo Grande Cícero Rufino Pereira Hiran Sebastião Meneghelli Filho Jonas Ratier Moreno Paulo Douglas Almeida de Moraes Rosimara Delmoura Caldeira Simone Beatriz Assis de Rezende Corumbá Rafael de Azevedo Rezende Salgado Dourados Cândice Gabriela Arosio Jeferson Pereira Três Lagoas Ana Raquel Machado Bueno Larissa Serrat de Oliveira Cremonini



SUMÁRIO

Apresentação do presidente da Comissão Editorial. Odracir Juares Hecht.............................................................................9 ARTIGOS As consequências físicas e sociais do trabalho do indígena no corte de cana-de-açúcar. Antonio Jacó Brand e Simone Beatriz Assis de Rezende......................13 O papel do Ministério Público do Trabalho na efetividade da Convenção n. 182 da OIT no ordenamento jurídico brasileiro. Cândice Gabriela Arosio....................................................................31 O trabalho dos índios Kaiowá e Guarani nos ervais da Companhia Matte Larangeira. Eva Maria Luiz Ferreira e Antonio Jacó Brand.................................61 Controle do e-mail do trabalhador pelo empregador: balizas. Francisco das C. Lima Filho...............................................................87 Avaliação das condições de conforto corporal de coletores de resíduos sólidos comercial e domiciliar de um município de grande porte: estudo de caso. Luiz Carlos Alves da Luz e Eglé Novaes Teixeira..........................107 O Termo de Ajustamento de Conduta como transformador da realidade social. Silvana Cypriano .............................................................................127 Os editais de concursos públicos como forma de exclusão da pessoa com deficiência do direito fundamental ao trabalho. Tânia Regina Noronha Cunha.........................................................149


RELATÓRIO Consulta às comunidades indígenas de Mato Grosso do Sul. Comissão Permanente de Investigação e Fiscalização das Condições de Trabalho em Mato Grosso do Sul.....................................................177 PEÇAS PROCESSUAIS Ação de execução e aditivo. Descumprimento de Termo de Compromisso de Conduta: MMX Metálicos. Jul/2011. Cícero Rufino Pereira........................................................................203 Ação civil pública. Segurança na construção civil: MRV Engenharia e Participações S.A. e Prime Incorporações. Ago/2011. Hiran Sebastião Meneghelil Filho.....................................................229 Ação civil pública. Implementação do Plano de Assistência Social: Central Energética Vicentina e União. Out/2010. Paulo Douglas Almeida de Moraes e Marco Antonio Delfino de Almeida. .........................................................................................................277 Acórdão. Processo nº 0000233-30.2010.5.24.0106.RO-1. Implementação do Plano de Assistência Social: Central Energética Vicentina e União. Set/2011. Tribunal Pleno do TRT da 24ª Região.............................................315 Sentença. Vara do Trabalho de Mundo Novo. Implementação do Pano de Assistência Social: Destilaria Centro Oeste Iguatemi, Usina Paraná e União. Jun/2011. Christian Gonçalves Mendonça Estadulho........................................335


APRESENTAÇÃO Chega-se à 5ª edição da Revista do Ministério Público do Trabalho do Mato Grosso do Sul com o mesmo propósito com o qual lançamos esse empreendimento: oferecer uma visão atual do Direito do Trabalho através de material doutrinário, pesquisas e peças processuais, fortalecendo, em especial, os direitos humanos trabalhistas. Não sem orgulho pode-se dizer que o objetivo vem sendo alcançado, fazendo com que a cada número a Revista contribua ainda mais para o reconhecimento dos direitos trabalhistas na sociedade sul-mato-grossense. Este volume conta com sete artigos, escritos por membros do Ministério Público do Trabalho e por valiosos colaboradores da magistratura trabalhista, da advocacia, estudiosos e servidores. O primeiro artigo, escrito pela Procuradora do Trabalho Simone Beatriz Assis de Rezende e pelo Doutor Antonio Brand, trata dos trabalhadores indígenas no corte da cana-de-açúcar e as consequências físicas e sociais na realização dessa atividade. O segundo artigo foi idealizado pela Procuradora do Trabalho Cândice Gabriela Arósio e tem por tema o papel do Ministério Público do Trabalho na efetividade da Convenção nº 182 da OIT, explanando sobre as nuances do trabalho infantil em nosso país. Na sequência, o estudo realizado pela Professora Mestre Eva Maria Luiz Ferreira e Doutor Antonio Brand, no qual o trabalho dos indígenas das etnias Kaiowá e Guarani na companhia Matte Larangeira é o objeto e bem ilustra que a atividade ervateira é parte da história do Mato Grosso do Sul e justifica a obra da capa do artista regional. No quarto artigo, escrito pelo Desembargador Francisco das C. Lima Filho, tem-se investigação acerca da relação entre o uso de correio eletrônico pelo trabalhador e os limites do controle realizado pelos empregadores nessa atividade.


Logo após, há pesquisa efetuada pelo servidor Luiz Carlos Alves da Luz, referente à sua tese de doutorado, e pela Doutora Eglé Novaes Teixeira, tecendo comentários acerca das condições de conforto corporal de coletores de resíduos sólidos comercial e domiciliar de um município de grande porte. A servidora Silvana Cypriano é a responsável pelo sexto artigo, no qual explora o Termo de Ajustamento de Conduta firmado entre empresas e o Ministério Público do Trabalho e seus reflexos na solução extrajudicial de conflitos trabalhistas. Finalizando os estudos doutrinários, a advogada Tânia Regina Noronha Cunha trata acerca dos editais de concursos públicos, bem como a maneira como esse instrumento pode excluir a pessoa com deficiência do direito fundamental ao trabalho. Dando seguimento à inovação apresentada na quarta edição, a revista traz mais uma vez importante relatório, desta vez acerca do trabalho indígena nas usinas de açúcar e álcool diante da mecanização no corte de cana-de-açúcar. Tal projeto foi executado pela Comissão Permanente de Investigação e Fiscalização das Condições de Trabalho no Estado de Mato Grosso do Sul – CPIFCT/MS, tendo por base a realização de consultas às comunidades indígenas de Mato Grosso do Sul nos municípios de Dourados, Caarapó, Amambai, Aquidauana e Miranda. Por fim, são apresentadas peças processuais elaboradas pelos Procuradores do Trabalho Cícero Rufino Pereira, Hiran Sebastião Meneguelli Filho e Paulo Douglas Almeida de Moraes, fazendo com que se vislumbre a atuação do Ministério Público do Trabalho na defesa dos direitos difusos e coletivos trabalhistas. Com a satisfação em presenciar a apresentação de mais um número, bem como o desejo de que os próximos continuem a consolidar a importância desta Revista, agradeço aos que contribuíram para o sucesso deste projeto e desejo a todos uma proveitosa leitura. Odracir Juares Hecht Presidente da Comissão Editorial


Doutrina



AS CONSEQUÊNCIAS FÍSICAS E SOCIAIS DO TRABALHO DO INDÍGENA NO CORTE DE CANA-DE-AÇÚCAR1

Antonio Jacó Brand2 Simone Beatriz Assis de Rezende3

Resumo: Anunciada a mecanização da lavoura de cana-de-açúcar em Mato Grosso do Sul, discute-se a diminuição dos postos de trabalho que atinge os trabalhadores indígenas. O esforço físico empreendido pelo cortador de cana é considerado excessivo e realizado sob precárias condições de trabalho e ambientais. Estudos indicam que, em um dia, cortam-se 12 toneladas de cana e, para isso, o trabalhador deve desferir por volta de 133.332 golpes de podão, em posição não ergonômica, e caminhar 8.800 metros sob altas temperaturas e baixa umidade do ar. O ambiente de trabalho, diante da necessidade da queima da palha da cana-de-açúcar para viabilizar o corte manual e aumentar o teor de açúcar da cana, apresenta partículas em suspensão causadoras de problemas respiratórios. Objetiva-se analisar os impactos físicos do labor e os impactos sociais causados na comunidade, já que a atividade 1 Este artigo é baseado no trabalho apresentado no IV Seminário Povos Indígenas e Sustentabilidade. Saberes Tradicionais e formação acadêmica, da Universidade Católica Dom Bosco, de 15 a 17 de agosto de 2011. 2 Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica. Docente na Universidade Católica Dom Bosco. E-mail: brand@ucdb.br. 3 Procuradora do Trabalho lotada na PRT 24ª Região e Mestre em Desenvolvimento Local pela Universidade Católica Dom Bosco - UCDB. E-mail: simone.rezende@mpt.gov.br.

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prepondera como forma de subsistência de parte da população indígena do estado. A pesquisa, bibliográfica e o método dedutivo, terá como referencial teórico estudos, artigos, dissertações e teses, como, por exemplo, “Impactos da indústria canavieira no Brasil” da Plataforma BNDES, e a tese “Avaliação cardiovascular e respiratória em um grupo de trabalhadores cortadores de cana-de-açúcar queimada no estado de São Paulo” de Cristiane Barbosa. Resultados iniciais permitem concluir que o pagamento por produção induz o trabalhador a intensificar o seu ritmo de trabalho para aumentar o seu ganho, mas traz prejuízos inexoráveis para a saúde e a diminuição de sua vida útil para a atividade. De outro viso, os canaviais situam-se em locais distantes e o trabalhador gasta, em média, de 2 a 3 horas por dia de percurso, o que diminui o tempo de descanso e de convívio familiar, desfavorecendo as relações comunitárias e dificultando a manutenção da cultura. Palavras-chave: Indígena no corte de cana. Esforço físico. Pagamento por produção e longos deslocamentos. Impactos físicos e sociais.

INTRODUÇÃO O corte manual da cana-de-açúcar, apesar de não ser uma atividade que demande especialização, apresenta um processo de trabalho complexo, que deve ser analisado não só sob a ótica dos direitos trabalhistas, mas também dos direitos sociais à saúde e dos fundamentos da República Federativa do Brasil. A cada dia, os produtores de cana-de-açúcar melhoram a sua produtividade e colhe-se mais por hectare plantado em decorrência dos avanços tecnológicos. A redução de custos e o aumento da produtividade são severamente perseguidos pelas empresas do setor, inclusive visando o mercado internacional.

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A propalada mecanização vem ocorrendo em todos os estados do país e, no Mato Grosso do Sul, a queima da cana, que viabiliza o corte manual, deverá ser totalmente eliminada a partir de 2016, diante da previsão inserta no art. 3º da Lei Estadual n. 3.404/2007, de 30 de julho de 20074, com drástica redução da mão de obra dos atuais trabalhadores rurais, inclusive indígena. Impende-se avaliar as consequências físicas e sociais desta atividade laboral na vida do trabalhador indígena e de sua comunidade, eis que, preponderante como atual fonte de subsistência, encontra-se em fase de extinção ou redução drástica. Ex positis, o objetivo das reflexões ora apresentadas consubstancia-se na análise do processo do corte manual da cana, das condições de trabalho a que são submetidos os trabalhadores e a forma de cálculo de sua remuneração e trazer à lume os seus efeitos.

ESFORÇO FÍSICO EMPREENDIDO NO CORTE DA CANA-DE-AÇÚCAR A atividade empreendida pelo trabalhador que corta manualmente a cana é altamente cansativa, pois se faz necessário o desferimento de inúmeros golpes, em posição não ergonômica, para o corte de cada tonelada de cana cortada. Ademais, o trabalho é realizado em condições ambientais adversas, tais como as altas temperaturas, tanto em face da queimada como da ação solar, a pouca umidade do ar que impera no período de colheita.

4 O art. 3° possui a seguinte redação: “Nas áreas em que a topografia permitir a colheita mecanizada, a queima de palha de cana-de-açúcar será totalmente eliminada no prazo máximo de 6 (seis) anos, a partir do ano de 2010, à razão de 16,75% (dezesseis vírgula setenta e cinco por cento) ao ano, pelo menos. Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, fica proibida a queima de palha de cana-de-açúcar em áreas situadas a menos de 5 (cinco) quilômetros do perímetro urbano”.

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Além disso, o trabalhador deve portar roupas grossas e sobrepostas e equipamentos de proteção individual, normalmente constituídos de botina, perneira de couro até o joelho, luvas, óculos e chapéu. Ressalte-se que as vestimentas e equipamentos de proteção são desprovidos de conforto físico e térmico, pois não ajudam a dissipar o calor. O dimensionamento do esforço físico5 evidencia-se de maneira mais real quando se enumeram as ações praticadas, como explica Alves (2006, p. 96): Um trabalhador que corta 12 toneladas de cana, em média, por dia de trabalho realiza as seguintes atividades no dia: caminha 8.800 metros; despende 133.332 golpes de podão; carrega 12 toneladas de cana em montes de 15 kg, em média; portanto, faz 800 trajetos e 800 flexões, levando 15 kg nos braços por uma distância de 1,5 a 3 metros; faz aproximadamente 36.630 flexões e entorses torácicos para golpear a cana; perde, em média, 8 litros de água por dia, por realizar toda esta atividade sob sol forte do interior de São Paulo, sob os efeitos da poeira, da fuligem expelida pela cana queimada, trajando uma indumentária que o protege da cana, mas aumenta sua temperatura corporal.

No início da década de 1950 a produtividade do trabalhador no corte de cana era de 3 toneladas por dia de trabalho e na década de 1980 saltou para 6 toneladas. Mas o aumento significativo ocorreu no final da década de 1990 e início dos anos 2000 quando a produtividade, por dia, atingiu 12 toneladas de cana (ALVES, 2006, p. 62)6. Observe-se que um dos fatores que influenciou o incremento da produtividade do trabalhador decorre da forma de aferimento do ganho do cortador de cana que há muitos anos implantou-se no setor, qual seja, o pagamento por produção. Por 5 O esforço físico depende também do tipo e da qualidade da cana a ser cortada, ou seja, elementos alheios ao controle do trabalhador. 6 Nota-se, também, a diminuição de mulheres no corte, pois os empregadores tendem a contratar pessoas com maior potencial para a atividade, preterindo-as.

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outro lado, a maior quantidade de cana plantada por hectare também contribuiu para este aumento. Denota-se também que a mecanização, antes mesmo de ser totalmente implementada, exerce forte influência no processo produtivo manual, tornando-se mais um elemento precarizador da mão de obra, como avalia Mendonça (2006 apud BOAS; DIAS, 2008, p. 26): Em algumas regiões, onde o ritmo das máquinas se tornou referência de produtividade, o corte mecanizado da cana se tornou referência para a quantidade que deve ser cortada pelos trabalhadores, subindo de 5 a 6 toneladas para 12 a 15 toneladas. Além disso, com a mecanização do setor, foi transferido para os trabalhadores o corte da cana em condições mais difíceis, onde o terreno não é plano, o plantio é mais irregular e a cana de pior qualidade. O trabalhador, nessas condições, tem que trabalhar mais para atingir a meta de produção, sofrendo com maior intensidade os efeitos deste trabalho penoso.

Em pesquisa de campo realizada no interior de São Paulo, Barbosa (2010, p. 44) relata que os trabalhadores afirmaram que cortavam de 7 a 14 toneladas de cana por dia, com média de 11 toneladas/homem, e que a “maioria informou que no final da safra diminui a produtividade devido ao cansaço e ao calor”. Desta forma, não causa estranheza o fato de a exaustão física ter sido considerada como causa mortis de pelo menos 19 (dezenove) trabalhadores rurais no estado de São Paulo desde 2004 até 2008 (HESS, 2008, p. 3). Outros resultados da atividade física intensa do cortador, tais como fadiga, os distúrbios do sono e diversas alterações de ordem física e psicológica também são apontados por Barbosa (2010, p. 6-7): A Síndrome de Overtraining é compreendida por sinais e sintomas caracterizados por diminuição da performance, Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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fadiga, alterações do sono, diminuição de peso, aumento dos níveis séricos de lactato, alterações hormonais, imunológicas, hematológicas e psicológicas Entretanto, não existem marcadores específicos que caracterizem a presença da síndrome e os seus mecanismos fisiopatológicos não estão completamente esclarecidos. [...]. É provável que na atividade de corte de cana devido ao ritmo de trabalho intenso, os ajustes fisiológicos que ocorrem em resposta ao exercício físico não consigam dar suporte à demanda do organismo para manter o equilíbrio interno, e com isto resposta anômala e/ou patológica passe a ocorrer, refletindo em níveis diversos de fadiga e insuficiência dos músculos envolvidos no trabalho e de órgão alvos exigidos acima do limite e analogamente ao que ocorre com os atletas, estes trabalhadores podem desenvolver quadro semelhante a ‘Síndrome de Overtraining’. [...] A fadiga, segundo Rossi L, pode ser definida como um conjunto de alterações causadas pelo trabalho ou exercício prolongado, que leva a uma diminuição da capacidade funcional de manter o rendimento esperado. Entre os cortadores de cana é frequente a referência à fadiga.

Entretanto, o esforço físico imposto ao trabalhador no corte de cana consubstancia-se em apenas um dos fatores que atua diretamente na diminuição de vida útil na atividade, devido aos problemas relacionados às “afecções de coluna e tendinites” (SILVA, 2008 apud BARBOSA, 2010, p. 8), pois também o ambiente de trabalho a que é submetido coopera para esta redução. Veja-se que, diante da necessidade da queima da palha da cana-de-açúcar para viabilizar o corte manual e aumentar o teor de açúcar da cana, torna o meio ambiente insalubre por conter partículas em suspensão causadoras de problemas respiratórios7 que, 7 De acordo com Barbosa (2010, p. 9-10), o “material particulado compreende uma mistura de partículas em suspensão no ar, de variável tamanho, composição e origem 49,53. As chamadas partículas grandes (coarse fraction) compreendem partículas com 10 mediana de diâmetro aerodinâmico entre 2,5 e 10 micrometros (μm), que penetram e se depositam em regiões mais altas do sistema respiratório até as vias aéreas inferiores. As partículas finas denominadas de MP2,5, possuem mediana de diâmetro aerodinâmico menor que 2,5 μm atingindo as regiões mais inferiores do trato respiratório e região alveolar, sendo consideradas mais danosas 49,54,55”.

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por sua vez, interferem no rendimento da atividade física8. Também a utilização de defensivos agrícolas nas lavouras de cana representa potencial danoso à saúde humana, como sublinha Hess (2008, p. 6): Estudo conclusivo do Pesquisador Britânico, Dr. Phoolchund (1991) dá conta de que “os trabalhadores das plantações de cana-de-açúcar apresentam elevados níveis de acidentes ocupacionais e estão expostos à alta toxicidade dos pesticidas. Eles também podem apresentar um risco elevado de adoecerem por câncer de pulmão (mesotelioma), e isto pode estar relacionado à prática da queima da palha, na época da colheita da cana”. Estudos recentes têm referendado as suspeitas daquele pesquisador (ZAMPERLINI et al., 1997; GODOI et al., 2004).

E, ao finalizar o Parecer Técnico n. 01/2008, elaborado em face de solicitação do Ministério Público do Trabalho, Hess (2008, p. 8) conclui que a poluição atmosférica causada pela queima da cana-de-açúcar expõe o trabalhador a riscos de contrair doenças cardiovasculares, que podem apresentar “efeitos agudos (aumento de internações, doença isquêmica do miocárdio e cerebral), como crônicos, por exposição em longo prazo, podendo, em casos extremos, conduzir ao evento morte”. Nota-se, ademais, das informações extraídas do Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário – NTEP9, que os trabalhadores cortadores de cana são potencialmente expostos a várias doenças, com grau de risco elevado, tais como transtornos visuais e cegueira, doenças hipertensivas, outras formas de doenças do coração, doenças 8 Atualmente é muito comum as empresas fornecerem suplementos alimentares, “repositores” e bebidas isotônicas junto à refeição. Há relatos de usos de “rebites”, ou seja, estimulantes para aumentar a capacidade respiratória e circulatória e, assim, incrementar a produção do trabalhador no corte. 9 O NTEP analisa e estabelece relação estatística entre os “fatores condicionantes e determinantes do fenômeno mórbido a partir das múltiplas representações e dimensões” coletivas, levando-se em conta a incidência das doenças (pelo CID – Classificação Internacional de Doenças) na massa de trabalhadores insertos em determinadas atividades (especificadas pelo CNAE - Classificação Nacional de Atividades Econômicas) contraposta à incidência do adoecimento da população em geral. Em resumo, o NTEP é a “relação que se estabelece entre entidade mórbida (Agrupamento – CID) e o segmento econômico (CNAE – Classe)” (OLIVEIRA, 2010).

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crônicas das vias aéreas inferiores, hérnias, antropatias, dorsopatias, traumatismos da cabeça, do tórax, do ombro e do braço e do punho e da mão. Além das evidências quanto ao adoecimento físico, Faker (2009, p. 48) anota que o risco de acidentes no meio rural pode ser “afetado pelas múltiplas atividades do trabalho agrícola, podendo agravar-se por fatores psicossociais relacionados às limitadas oportunidades de férias e ao trabalho de forma solitária”. Assim, além da atividade apresentar as consequências físicas consentâneas, este aumento da produtividade do trabalhador no corte de cana potencializou os resultados nos padrões de morbidade e de mortalidade da atividade.

PAGAMENTO POR PRODUÇÃO Entretanto, além dos problemas de saúde decorrentes do esforço físico extremado, das condições de trabalho e do meio ambiente pouco saudável a que são submetidos os cortadores de cana, o setor sucroenergético10 ainda instituiu uma perversa forma de remuneração, que ceifa a esperança de melhoria de vida do trabalhador rural e contribui para o aumento dos casos de acidente de trabalho11, qual seja, o pagamento por produtividade. Neste sistema, o trabalhador recebe importância variável e proporcional em função do resultado do trabalho, ou seja, da quantidade de cana cortada, aferida dia a dia e anotada no que se convencionou chamar de “pirulito”. 10 Atualmente utiliza-se a expressão “sucroenergético” em substituição à “sucroalcooleiro” diante da ampliação dos produtos derivados da cana, como a geração de energia elétrica e a fabricação do polietileno verde. 11 Acidente de trabalho engloba também o acidente típico, como no caso de ferimento por instrumento cortante, quanto às doenças ocupacionais e do trabalho.

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A produção do trabalhador é calculada tendo em vista a medida por metro de linha de cana plantada ou de rua de cana cortada e o seu pagamento é calculado pela quantidade de tonelada de cana cortada, “o que exige um sistema de conversão de medidas” (FERREIRA et al., 2008, p. 24) de difícil conferência por parte do interessado. Para o empregador é mais vantajoso o sistema remuneratório por tonelada, enquanto apresenta-se extremamente prejudicial para o trabalhador, pois a aferição do peso de cana cortada não é efetivada nas frentes de trabalho, diante da dificuldade de se transportar as grandes balanças. Assim, a pesagem é consumada na própria usina e raramente na presença do trabalhador. Desta feita, e considerando que a massa da cana depende de variáveis, tais como a fertilidade do solo, a variedade da espécie, época do corte e idade da cana, a remuneração do trabalhador acaba absorvendo parte da álea econômica de seu empregador. Sob outra senda, esta modalidade de pagamento induz o trabalhador a intensificar o seu ritmo de trabalho para aumentar o seu ganho, trazendo prejuízos inexoráveis para sua saúde e diminuição da vida útil para a atividade que, atualmente, é comparada à dos escravos, como sintetizam Boas e Dias (2008, p. 27): [...] Também, o novo ciclo da cana-de-açúcar impõe aos cortadores de cana uma rotina que para alguns estudiosos, equipara sua vida útil de trabalho à dos escravos (ZAFALON, 2007). Antes da proibição do tráfico de escravos da África, até 1850, o ciclo de vida útil dos escravos na agricultura era de 10 a 12 anos. Depois dessa data, os proprietários passaram a cuidar melhor dos escravos e a vida útil subiu para 15 a 20 anos. A busca por maior produtividade obriga os cortadores de cana a colher até 12 toneladas por dia e esse esforço físico encurta o ciclo de trabalho na atividade, que chega a ser inferior à do período da escravidão.

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Nas décadas de 1980 e 1990, o tempo em que o trabalhador do setor ficava na atividade era de 15 anos. Calcula-se que a partir de 2000, deva estar em torno de 12 anos.

Não é difícil perceber que o cálculo do salário por produção no corte manual da cana-de-açúcar atenta contra os fundamentos da República Federativa do Brasil, quais sejam, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, como enfatizado nas decisões proferidas pelo Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região e abaixo transcritas: EMENTA: Corte de cana/salário produção/horas extras. No corte da cana o salário produção atenta contra o princípio constitucional da função social da propriedade, não constitui sistema que implique melhoria da condição social e econômica do trabalhador, induz o empregado a um extenuante regime de sobrelabor pela subsistência, expondo-o a riscos e desgaste acelerado de seu arcabouço biológico, implica num sistema perverso do qual só globalmente resulta valor minimamente satisfatório para a subsistência se toda a família estiver empenhada neste processo, alienando-a a ponto de deixar de ser, na acepção humanista do termo, uma família, retira da prole qualquer perspectiva futura, decorre de manobra contábil com o objetivo de afetar a equação salário versus trabalho e constitui um atentado jurídico às normas de proteção para trabalhos repetitivos que ensejam sobrecarga muscular. Destas premissas resulta concluir que nula é a cláusula de remuneração por produção, admitindo-se que tudo o que pago, pela média, o fora como contraprestação da jornada ordinária, impondo-se o pagamento não só de adicionais e reflexos, mas também das horas extras em si. Recurso Ordinário obreiro ao qual se dá provimento à unanimidade (Processo TRT/15ª Região n.º 0126500-77.2009.5.15.0156, publicado no DEJT de 12/07/2010). TRABALHO POR PRODUÇÃO. CORTADOR DE CANA. PENOSIDADE. PAGAMENTO DA HORA E DO ADICIONAL. O trabalho de corte da cana-de-açúcar, face à sua penosidade, tem propiciado desgaste físico e psíquico do trabalhador de tal monta que, em muitos casos, chegou a levar até à morte por exaustão. Dados apontam que o cortador de cana, atualmente, corta em média cerca de 15 toneladas por dia. E é sabido que o cortador faz um conjunto 22

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de movimentos envolvendo torcer o tronco, flexão de joelho e tórax, agachar e carregar peso, sendo certo que, se ele vier a cortar 15 toneladas por dia, efetua aproximadamente 100 mil golpes de facão com cerca de 36 mil flexões de pernas. Ocorre que, dada a forma de remuneração do cortador de cana (por produção) e o ínfimo valor pago por metro de cana cortada, este se vê obrigado a laborar muito além do que deveria para auferir um salário mensal razoável. E, para agravar a situação, não se pode desconsiderar que são extremamente ruins as condições em que o trabalho é desenvolvido. Desta forma, sendo induvidoso o fato de que o serviço do cortador de cana enquadra-se como penoso, não se pode deixar sem a proteção devida o trabalhador que presta serviços nestas condições. E, neste contexto, considerando-se que, na Constituição Federal de 1988, os direitos fundamentais foram erigidos à sua máxima importância, sendo que o princípio da dignidade da pessoa humana foi adotado como fundamento da República do Brasil, conforme dispõe o art. 1º, III, da CF/1988, é indiscutível que a autonomia das relações de trabalho encontra limites na preservação da dignidade da pessoa humana. Sendo assim, procurando valorizar o trabalhador e protegê-lo, o operador do direito, ao verificar que o sofrimento deste se agiganta diante da penosidade do trabalho, há de ponderar, no exame da postulação, que, para corrigir essa situação, necessário se faz que o pagamento das horas extras prestadas pelo cortador de cana, que recebe salário por produção, seja deferido integralmente, acrescido do respectivo adicional. No aspecto, recurso provido (Processo TRT 15ª Região, n.º 00529-2008-156-15-00-0, publicado no DEJT de 05.11.2009).

TEMPO DE PERCURSO De todos os fatos acima expostos, poder-se-ia sublinhar que o corte manual da cana encontra-se dentre as atividades prejudiciais à saúde do trabalhador com reflexos deletérios a toda sociedade que arca, através da previdência social, com o pagamento de benefícios de auxílio-doença, auxílio-acidente e aposentadoria.

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Entretanto, outra condição de trabalho implementada no setor sucroenergético reforça ainda mais a existência de condições precárias de trabalho com o comprometimento da saúde do trabalhador e das relações familiares e sociais. Veja-se que as frentes de trabalho localizam-se em áreas de difícil acesso e distantes do local de origem dos trabalhadores. Desta forma, o empregador deve oferecer transporte aos trabalhadores, caso contrário não teria a mão de obra necessária para seu empreendimento. O § 2º do art. 58 da Consolidação das Leis do Trabalho prevê que o tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho de difícil acesso - ou não servido de transporte público - e para o seu retorno deve ser computado na jornada de trabalho quando o empregador fornecer o transporte12. Todavia, o direito anunciado no § 2º supra mencionado, através de manobras em negociação coletiva empreendida pelas entidades sindicais patronais e entidades sindicais laborais, foi suprimido absolutamente num primeiro momento. Posteriormente passou-se a mascarar a renúncia com a inclusão de “benefícios” concedidos pelos empregadores que nem de longe indenizam os prejuízos advindos do não pagamento das horas in itinere13. 12 A redação do § 2.º do art. 58 da CLT é a seguinte: “O tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de transporte, não será computado na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o empregador fornecer a condução. (Parágrafo incluído pela Lei nº 10.243, de 19.6.2001). Em 2006 houve a inclusão do parágrafo 3º ao art. 58 com a seguinte redação: “Poderão ser fixados, para as microempresas e empresas de pequeno porte, por meio de acordo ou convenção coletiva, em caso de transporte fornecido pelo empregador, em local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o tempo médio despendido pelo empregado, bem como a forma e a natureza da remuneração. (Incluído pela Lei Complementar nº 123, de 2006)”. Observe-se que nenhuma empresa do setor sucroenergético instalada no estado de Mato Grosso do Sul possui o status de microempresa ou empresa de pequeno porte. 13 Horas in itinere é a denominação técnico-jurídica para o tempo despendido pelo trabalhador no percurso empreendido entre o seu local de origem e a frente de trabalho.

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Outrossim, utiliza-se também o tabelamento das horas in itinere, ou seja, independentemente do número de horas de percurso gastas pelo trabalhador, paga-se o correspondente a apenas alguns minutos, persistindo o prejuízo do trabalhador em face do locupletamento ilícito do seu empregador. Via de regra, os cortadores de cana empreendem, em ônibus fornecido pelo empregador, uma hora e meia de percurso, partindo do local de moradia até a frente de trabalho, e mais uma hora e meia para o seu retorno, como se vê do relatório de diligência realizada nas dependências da usina Tonon Bioenergia S/A, localizada no Município de Maracaju/MS, no dia 27/04/2011, abaixo transcrito, sendo certo que se refere a uma turma de trabalhadores que reside no Assentamento Itamaraty, próximo de Ponta Porã/MS14: [...] Assim, o retorno à Fazenda São Pedro ocorreu e a equipe, composta pela Procuradora subscritora do presente relatório, o servidor Sérgio Ferreira, o Auditor Parron e outra pessoa da SRTE. A equipe foi acompanhada pelo Sr. Denival da TONON e juntou-se em comboio ao ônibus da empresa COLINA que transportava a Turma 913. [...] Dos fatos que se seguiram extrai-se: o ônibus iniciou o seu deslocamento às 15:53 da Fazenda São Pedro e o odômetro da camionete XTERRA, placa HSH 0801, da Procuradoria Regional do Trabalho marcava 85.570 km; a primeira parada ocorreu às 16:25 onde o trabalhador Dirceu Valmir Gonçalves dos Santos desceu; o odômetro marcava 85.587 km; a ultima parada deu-se às 17:19 onde desceu o Sr. José Ivanir da Costa; o odômetro marcava 85.636 km; o motorista do ônibus, Sr. Ademir Dalcigio Kener, confirmou que cerca de 6 (seis) trabalhadores não foram trabalhar e, assim, deixou de percorrer três entradas no assentamento que normalmente faz, o que encurtou o percurso. Isso posto, constata-se que o trajeto de retorno dos empregados da empresa TONON componentes da Turma 913 no dia 27 de abril de 2011 foi percorrido em 1 (uma) hora e 26 (vinte e seis minutos) [...] (grifos nossos).

14 A diligência foi acompanhada pessoalmente pela autora, subscritora do presente trabalho e também do aludido relatório.

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Atestou-se que, além das 8 (oito) horas diárias de trabalho, o cortador de cana gastou mais 3 (três) horas de percurso, perfazendo uma jornada diária de 11(onze) horas. Esta diligência, além de outras já efetivadas, noticia que, de fato, o trabalhador passa, em média, 3 (três) horas de percurso e, em consequência, sofre com a extrapolação da jornada e a diminuição do convívio familiar e social, mormente no que tange ao indígena, cujas relações sociais possuem uma representatividade que extrapola os laços afetivos e interfere no próprio modo de ser.

CONSEQUÊNCIAS SOCIAIS A exploração do trabalho indígena pelo setor sucroenergético ocorre desde o início da atividade no estado de Mato Grosso do Sul. No primeiro momento, o plantio e corte de cana possuíam sazonalidade marcada, possibilitando assim a conciliação entre o trabalho “para os de fora”15 e o processo produtivo tradicional. Entretanto, com os avanços tecnológicos, houve um aumento da produtividade da cana e modificações significativas no manejo das plantações e, como resultado, a necessidade perene de trabalhadores para os tratos culturais. Desta feita, a contratação de trabalhadores indígenas pelas usinas passou de periódica e de pequena duração para a contratação nos doze meses do ano apenas com pequenos intervalos com o retorno nas aldeias ou então o retorno após a jornada diária de trabalho. 15 Changa é “compreendida pelos índios como ‘trabalho’ para os de fora, para os estrangeiros [yvyporipeguarã]” e que tem sido utilizada no “decorrer dos últimos 500 anos na implantação de variadas iniciativas econômicas”. (ALMEIDA, 2001, P. 159)

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A saída dos homens da aldeia, em caráter temporário, mas de prolongada duração, causa o enfraquecimento de laços sociais diante de seu afastamento do convívio diário com seus familiares e conterrâneos. Almeida (2001, p. 166) registra que os períodos em que havia maior procura de trabalhadores nas aldeias sempre coincidia com aquele destinado aos trabalhos de lavoura na aldeia, o que acabava por atrasar a própria roça, como constata Schaden (1974, p. 39): De modo geral, a época em que o trabalho se acumula mais são os meses de agosto e setembro, enquanto a do “mantimento novo” é a de menos atividade nas plantações. Mas o período de trabalho mais intenso na roças de aldeia é também o da changa (trabalho remunerado) nas roças dos fazendeiros e sitiantes. [...] Convém mencionar, de passagem, ser este um dos fatores de desorganização econômica de todos os grupos indígenas daquela região, mesmo dos mais conservadores.

Como resultado do histórico de contratações sucessivas e atualmente diante da natureza jurídica destas, é pouco provável que a população indígena do estado de Mato Grosso do Sul possa vir a retomar o seu modo de viver e as suas tradições e organizar a sua economia independentemente da changa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A ocorrência da atividade laboral fora da aldeia, impossibilitando a conciliação de atividade inerente à comunidade indígena, não é novidade, pois desde a chegada dos exploradores de erva-mate nas terras tradicionais, ou seja, no século XIX, os indígenas se viram premidos a ofertar sua mão de obra para o não indígena, em evidente detrimento de sua cultura e de seu modo de ser. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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Também no que tange à atividade laboral no corte manual da cana-de-açúcar, empreendida por boa parte da população indígena de nosso estado, a situação se mostra inalterável, com a agravante de se adicionar as condições de trabalho a que são submetidos. Os estudos mencionados indicam que os esforços físicos diários empreendidos pelos trabalhadores no corte de cana diminuem a vida útil e contribuem para engrossar as fileiras dos inválidos e aposentados. O ganho mensal percebido pelos trabalhadores raramente é suficiente para garantir a sua subsistência e de sua família de forma digna e promover a melhoria de suas condições sociais, sendo certo que a fórmula utilizada para o cálculo de sua remuneração contribui sobremaneira para lhe ceifar as forças. A ausência do trabalhador indígena em momentos importantes da vida cotidiana da comunidade, mormente causada pela carga horária de aproximadamente 11 (onze) horas diárias à disposição do empregador, promove a impossibilidade da continuidade ou o retorno de suas tradições. A inserção do indígena no mercado de trabalho local promoveu uma aculturação econômica com relevantes alterações das instituições tradicionais e o grave “esfacelamento” das relações familiares (CATAFESTO DE SOUZA, 2002, p. 232 e 235). De todo o exposto, verifica-se que a atividade no corte de cana possui caráter degradante e, após quase três décadas, forçoso concluir que não contribui para a sustentabilidade das comunidades indígenas.

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REFERÊNCIAS ALMEIDA, Rubens Ferreira Thomaz de. Do desenvolvimento comunitário à mobilização política: o projeto Kaiowa-Ñandeva como experiência antropológica. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2001. ALVES, Francisco. Por que morrem os cortadores de cana? Saúde e Sociedade, v. 15, n. 3, p. 90-98, set.-dez. 2006. Disponível em: <http:// www.scielo.br/pdf/sausoc/v15n3/08.pdf>. Acesso em: 6 jul. 2009. BARBOSA, Cristiane Maria Galvão. Avaliação cardiovascular e respiratória em um grupo de trabalhadores cortadores de cana-de-açúcar queimada no estado de São Paulo. 2010. 144f. Tese (Doutorado em Medicina) - Faculdade de Medicina da USP, São Paulo, 2010. BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL. Impactos da indústria canavieira no Brasil. Poluição atmosférica, ameaça a recursos hídricos, riscos para a produção de alimentos, relações de trabalho atrasadas e proteção insuficiente à saúde de trabalhadores. Nov. 2008. Plataforma BNDES. Disponível em:<www.plataformabndes.org. br>. Acesso em: 27 abr. 2011. BOAS, Soraya Wingester Vilas; DIAS, Elizabeth Costa. Contribuição para a discussão sobre as políticas no setor sucro-alcooleiro e as repercussões sobre a saúde dos trabalhadores. Impactos da indústria canavieira no Brasil. Brasil. Plataforma BNDES, p. 23-35, nov., 2008. BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial da União, 9 de agosto de 1943. CATAFESTO DE SOUZA, José Otávio. Horizontes antropológicos. Porto Alegre, ano 8, n. 18, p. 211-253, dez. 2002. FAKER, Janis Naglis. A cana nossa de cada dia: saúde mental e qualidade de vida em trabalhadores rurais de uma usina de álcool e Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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açúcar de Mato Grosso do Sul. 2009. 152 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, 2009. FERREIRA, Leda Lela et al. Análise coletiva do trabalho dos cortadores de cana da região de Araraquara - São Paulo. 2.ed. São Paulo: FUNDACENTRO, 2008. HESS, Sonia Corina. Parecer Técnico n. 01/2008. Campo Grande. 06/05/2008. Disponível em: <http://pesquisa.fundacentro.gov.br/ linkpdf/40399.pdf>. Acesso em: 27 jul. 2011. OLIVEIRA, Paulo Rogério Albuquerque de. Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário – NTEP, Fator Acidentário de Prevenção – FAP: Um novo olhar sobre a saúde do trabalhador. 2 ed. São Paulo: LTr, 2010. SCHADEN, Egon. Aspectos fundamentais da cultura Guarani. 3 ed. São Paulo: EDUSP, 1974. TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO - 15ª Região. (Campinas – SP). Processo nº 00529-2008-156-15-00-0, publicado no DEJT de 05.11.2009. TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO - 15ª Região. (Campinas – SP). Processo nº 0126500-77.2009.5.15.0156, publicado no DEJT de 12/07/2010.

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O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NA EFETIVIDADE DA CONVENÇÃO N. 182 DA OIT NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO1

Cândice Gabriela Arosio2

Resumo: O presente artigo consiste em uma pesquisa bibliográfica, que segue base teórica, com fundamento em obras doutrinárias, bem como na legislação interna e internacional, sendo realizado sob a perspectiva jurídica, conceituando, logo no início, a terminologia trabalho infantil, levando em conta, inclusive, o que dispõe a Convenção n. 138 da OIT. Após, analisa-se como se dá o combate à exploração do trabalho infantil à luz da doutrina da proteção integral, já que se trata de direito humano fundamental da criança e do adolescente, bem como é o tratamento desse tema nas normas internacionais ratificadas pelo Brasil ao longo dos anos. Avança-se o estudo através da análise do conteúdo da Convenção n. 182 da OIT, os mitos e verdades sobre o trabalho infantil e a contribuição fundamental do Ministério Público do Trabalho no combate às piores formas de trabalho. Palavras-chave: Trabalho Infantil. Direitos Humanos. Piores Formas de Trabalho Infantil. Atuação. 1 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao IX Curso de Ingresso e Vitaliciamento para Procuradores do Trabalho da Escola Superior do Ministério Público da União. 2 Procuradora do Trabalho em Dourados e Coordenadora Regional da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes (Coordinfância).

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INTRODUÇÃO O combate à exploração ao trabalho infantil deriva diretamente do reconhecimento da dignidade da pessoa humana como direito basilar e fundamental a todo e qualquer ser humano. Nesse contexto, a proteção da criança e do adolescente passa a ser, segundo o art. 227 da Constituição Federal de 1988, dever da família, da sociedade e do Estado, os quais devem assegurar, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração (inclusive dos próprios pais), violência, crueldade e opressão.

Tudo isso inclui, por óbvio, manter a criança e o adolescente a salvo das piores formas de trabalho infantil. É esse dispositivo legal que inaugura no ordenamento jurídico brasileiro a doutrina da proteção integral da criança e do adolescente, base para todo o arcabouço normativo e principiológico formado a partir da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990), cujo conteúdo balizará toda e qualquer iniciativa em prol da infância no Brasil, inclusive nas relações de trabalho. No âmbito internacional, vários foram os documentos produzidos para proteger os interesses da infância, destacandose a Convenção sobre os Direitos da Criança aprovada pela ONU, cuja importância representa marco jurídico na história humana de combate ao trabalho infantil e, no âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobretudo a Convenção n. 182 da OIT sobre a proibição das piores formas de trabalho infantil. Ambas as Convenções foram ratificadas pelo Brasil.

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Nesse contexto, verifica-se que as convenções internacionais citadas estão incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro como normas materialmente constitucionais, não obstante a recente decisão do STF que entendeu, por maioria, que se tratam de normas supralegais. Assim, diante do sistema normativo constitucional formado no Brasil a partir de 1988, o que inclui os instrumentos internacionais incorporados desde então, torna-se imprescindível considerar a proibição ao trabalho infantil como decorrência lógica do reconhecimento e do respeito aos direitos humanos fundamentais, cuja base é a dignidade da pessoa humana. Cumpre, nesse contexto, ao Ministério Público, a salvaguarda dos direitos individuais indisponíveis das crianças e adolescentes, bem como do arcabouço normativo desses sujeitos e do Estado Democrático de Direito, cuja base está na dignidade da pessoa humana. Destarte, é papel institucional e faz parte do planejamento estratégico do Ministério Público do Trabalho enfrentar a problemática do trabalho infantil, tanto do viés repressivo como na sua prevenção, de modo a concretizar os direitos fundamentais da criança e do adolescente trabalhador, mormente do que pertine às piores formas de trabalho infantil, definidas pela Convenção 182 da OIT, objeto de reflexão desse artigo.

1 CONCEITO DE TRABALHO INFANTIL Atualmente, o conceito de trabalho infantil abrange tanto o que dispõe a legislação pátria, como também a Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho – OIT – que versa sobre a idade mínima de admissão ao emprego e da Convenção 182 da OIT, sobre as piores formas de trabalho infantil. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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Após a Emenda Constitucional n. 20, de 15 de dezembro de 1998, a Constituição Federal, no seu art. 7º, inciso XXXIII, passou a dispor o seguinte: Art.7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XXXIII - Proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito anos e de qualquer tipo de trabalho a menores de dezesseis anos anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos.

Já a Convenção 138 da OIT, ratificada pelo Brasil através do Decreto Presidencial n. 4.134, de 15 de fevereiro de 20023, foi o primeiro instrumento normativo que relacionou a idade mínima de admissão ao emprego ao fim da escolaridade da criança. De fato, esse dado possui sobremaneira importância ao tema ora debatido, uma vez que o indivíduo faz jus, em primeiro lugar, ao acesso ao direito à educação. Como bem explica Xisto Tiago de Medeiros Neto: Há, assim, constitucionalmente, duas situações de proteção à criança e ao adolescente, em face do trabalho: em primeiro, a regra geral de direito ao não trabalho da pessoa com idade inferior a 16 anos; em segundo, o direito ao trabalho protegido, a partir dos 16 até os 18 anos, e, excepcionalmente, a contar dos 14 anos, na condição de aprendiz (MEDEIROS NETO, 2010, p. 258).

Nessa esteira, o art. 2º, parágrafo 3º, da Convenção 138 da OIT estabelece: Artigo 2º. A idade mínima fixada nos termos do parágrafo 1º deste Artigo não será inferior à idade de conclusão da escolaridade obrigatória ou, em qualquer hipótese, não inferior a quinze anos. 3 O Decreto Presidencial n. 4.134, de 15 de fevereiro de 2002 promulgou a Convenção n. 138 da OIT sobre Idade Mínima de Admissão ao Emprego. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4134.htm>. Acesso em: 05 nov. 2011.

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Assim, é possível concluir que no Brasil considerase trabalho infantil as atividades econômicas e/ou atividades de sobrevivência, com ou sem finalidade de lucro, remunerados ou não, realizadas por indivíduos menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos, independentemente da sua condição ocupacional. Além disso, considera-se trabalho infantil proibido aquele realizado por menores de 18 anos em atividades perigosas, insalubres, penosas e noturnas. A delimitação da idade para a admissão ao trabalho, seja em uma relação de emprego, ou qualquer tipo de prestação de labor, dentro da definição apresentada acima, representa indubitavelmente um dos direitos fundamentais da criança e do adolescente trabalhador, cujo respeito e efetivação concretizam um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, que é o respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1, III da Constituição Federal). E, como bem define Flávia Piovesan (2009, p. 27), “o valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como núcleo básico e informador de todo o ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional”.

2 O COMBATE À EXPLORAÇÃO AO TRABALHO INFANTIL E A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL O combate à exploração do trabalho infantil mostrase como um dos maiores desafios para os profissionais que lutam diretamente com o tema. Isso porque o problema transcende as fronteiras da lei, não se mostrando simplesmente como conduta que transgride o que dispõe o sistema jurídico, mas sim como reflexo da

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pobreza, do descaso do Estado, da ausência de políticas públicas e mitos culturais. Como bem expõe Alice Monteiro de Barros (2008, p. 540) “a dificuldade econômica das famílias tem sido a principal responsável pela exploração de que são vítimas os menores, desde a primeira infância e nas mais variadas épocas da humanidade”. Não obstante os grandes obstáculos, é preciso enfrentar com coragem o problema. E, para tanto, é imprescindível pautar toda e qualquer iniciativa em prol do combate à exploração do trabalho infantil, principalmente aquelas definidas como as suas piores formas, na doutrina da proteção integral, inaugurada no Brasil a partir da Constituição Federal de 1988, em contrapartida à antiga teoria da situação irregular, trazida pelo Código de Menores. A doutrina da proteção integral é o princípio basilar do arcabouço normativo dos direitos da criança e do adolescente, consistindo na salvaguarda e na efetivação dos direitos fundamentais previstos tanto na Constituição Federal quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente e nas normas internacionais ratificadas pelo Estado, independentemente da existência de situação de risco dos titulares desses direitos. Na verdade, a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990) reúnem o arcabouço normativo (regras e princípios) que regem as iniciativas no campo da infância no Brasil. Trata-se de um sistema protetivo, dos mais avançados do mundo, que reconheceu a criança e o adolescente como sujeitos de direitos em especial condição de desenvolvimento, os quais devem ser respeitados e exigidos do Estado, da família e da sociedade, independentemente de se apresentarem em situação de risco premente. Como bem explicita André Viana Custódio (2010): 36

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Todos os atos relacionados ao atendimento das necessidades da criança e do adolescente devem ter como critério a perspectiva dos seus melhores interesses. Essa perspectiva é orientadora das ações da família, da sociedade e do Estado, que nos processos de tomada de decisão, sempre, devem considerar quais as oportunidades e facilidades que melhor alcançam os interesses da infância.

Dessa forma, conclui-se que o princípio da proteção integral detém força normativa, não representando mera norma programática, que anuncia intenções do Estado no campo da infância. No campo do trabalho o norte interpretativo é o mesmo. Isto é, o Estado tem o dever positivo de combater irrestritamente qualquer tipo de exploração ao trabalho infantil, mormente aquelas definidas como uma das piores formas, pois é direito fundamental da criança e do adolescente não ser submetido ao trabalho precoce e, quando admitido o seu labor, que seja protegido, na forma do que dispõe a lei. A Procuradora do Trabalho Jane Araújo dos Santos Vilani (out 2006/mar.2007, p. 87) leciona que: Nessa peculiar fase da vida, a criança tem o direito fundamental de não trabalhar, e isso deve importar em amplo acesso a políticas públicas e sociais de inclusão, providenciadas pelo poder público, que lhe garantam acesso à educação, à saúde, ao lazer, que lhe garantam, enfim, o direito de vivenciar plenamente a infância. Essa garantia lhe proporcionará condições favoráveis ao seu completo desenvolvimento físico, moral, psicológico e intelectual, a fim de que, na fase adulta de sua vida, possa contribuir para a construção da sociedade livre, justa e solidária projetada pela Constituição Federal.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), editada através do Decreto-Lei 5.452 de 1943, traz no seu Capítulo IV as normas relativas ao trabalho do menor. Por óbvio, muitas das disposições ali previstas já foram modificadas, seja porque foram Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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formalmente alteradas por leis mais recentes (como, por exemplo, a Lei 1.097/2000), seja porque não foram recepcionadas pela nova ordem constitucional inaugurada em 1988. Assim, a interpretação dos artigos da CLT sobre o trabalho do menor deve ser feita necessariamente sob a égide do que dispõe a Constituição Federal de 1988, através da doutrina da proteção integral e da prioridade absoluta, não podendo ser admitida qualquer forma de labor antes do dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos e, muito menos, as figuras definidas pela Convenção n. 182 da OIT como as piores formas de trabalho infantil. Quando a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e todos os Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil, que versam sobre a infância, descrevem a proteção integral e a prioridade absoluta como direitos fundamentais do indivíduo em desenvolvimento, eles visam, acima de tudo, priorizar a formulação e, na execução das políticas sociais públicas, a destinação privilegiada de recursos públicos que os contemplem em todas as suas necessidades, em um conjunto articulado de ações governamentais e nãogovernamentais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (VILANI, out 2006/mar.2007, p.87). Como se depreende do que dispõe o art. 86 do ECA, esse conjunto articulado de ações do Poder Público, em suas três esferas, tem caráter cogente, não se situando no campo da discricionariedade. Como bem conclui a Procuradora do Trabalho, Dra. Jane Vilane (out 2006/mar.2007, p.87), “ao contrário, ele tem o dever constitucional, vinculado e obrigatório de agir, de propor e implementar políticas sociais e de proteção com absoluta prioridade, inclusive orçamentária, sob pena de, não o fazendo, sujeitar-se à correção judicial”. Cabe citar a brilhante conclusão do Juiz do Trabalho Guilherme Guimarães Feliciano (2010, p. 327): 38

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Deve-se reconhecer, portanto, que tanto o princípio da proteção integral como o princípio da (absoluta) prioridade detêm inderrogável status constitucional. Essa constatação é particularmente importante em tempos de ativismo judicial e hermenêutica pós-positivista: a partir do reconhecimento do assento constitucional desses princípios, poder-se-á engendrar a releitura ou mesmo a rejeição de normas-regras legais que, votadas pelo Parlamento e sancionadas pelo Presidente da República, atentem flagrantemente contra aqueles princípios, dotados que são de imutabilidade e intangibilidade constitucional (ut art. 60, parágrafo 4º, IV, da CRFB).

Nesse contexto, qualquer atuação sobre essa temática, principalmente em face das piores formas de trabalho infantil, deve ser planejada e implementada levando em conta o que dispõe a doutrina da proteção integral e o melhor interesse da criança e do adolescente, pois isso significa garantir, em última análise, o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. Como se verá mais adiante, muito mais que reprimir a ocorrência das piores formas de trabalho infantil no Brasil, é preciso ampliar as ações, para proporcionar respostas mais efetivas à problemática, principalmente cobrando a programação de políticas públicas perante as três esferas de Poder. Nesse contexto, cabe citar as palavras de Rafael Dias Marques (2010, p. 304), Procurador do Trabalho atualmente responsável pela COORDINFÂNCIA - Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes - do Ministério Público do Trabalho: A problemática do trabalho infantil e a proteção do trabalho do adolescente é multifacetada e complexa, de modo que transborda o aspecto meramente jurídico, para atingir, entre outras, questões sociais, econômicas, consumeristas, antropológicas e culturais. Ora, essa amplitude da problemática está a exigir respostas amplas e coordenadas, que contemplem aquelas múltiplas facetas; atuações que traduzam, pois, repercussões não apenas no mundo do direito, mas sobretudo, no mundo dos pensamentos, no Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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mundo dos fatos, no mundo da economia, no mundo do consumo etc.

A correta postura interpretativa dos aplicadores do direito frente às garantias fundamentais da criança e do adolescente proporcionará o adequado uso do arcabouço normativo existente em prol da infância no Brasil e, consequentemente, o avanço na resolução das mazelas decorrentes da pobreza e da exploração do trabalho infantil. Isso porque, ao se combater a exploração do trabalho infantil e suas piores formas hoje, estar-se-á a impedir que o adulto de amanhã seja reduzido à condição análoga a de escravo, sendo submetido a condições aviltantes e desrespeitadoras dos direitos humanos fundamentais.

3 O TRABALHO INFANTIL E AS NORMAS INTERNACIONAIS A proteção à criança e a proclamação de seus direitos, principalmente no que diz respeito à sua exploração no trabalho infantil, não estão presentes somente no ordenamento jurídico brasileiro. Ao contrário, é primeiro no âmbito internacional que a criança e adolescente ganham o status de sujeitos de direitos e pessoas em peculiar estado de desenvolvimento, obtendo especial destaque nos principais tratados internacionais de direitos humanos no último século. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1948, já continha o reconhecimento de direitos específicos às crianças. O grande marco internacional, que embasou a atuação nacional e internacional na infância, em todas as searas que envolvem 40

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a temática, foi a Declaração dos Direitos da Criança, proclamada em 1959. É no art. 9º que está localizada a referência específica ao direito da criança de ser protegida contra a exploração no trabalho. A partir daí, como bem salienta Flávia Piovesan e Gabriela de Luca (2010, p. 367), vários instrumentos internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU) passaram a incluir a proteção especial aos direitos da criança, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 (art. 24.1) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (art. 10.3). Em 1989, a Assembléia Geral da ONU aprovou a Convenção sobre os Direitos da Criança4, que representa o documento mais abrangente de todos os tratados de direitos humanos e instrumentos legais em favor da promoção e da proteção dos direitos da criança, inaugurando a era da doutrina da proteção integral (PIOVESAN e LUCA, 2010, p. 366). No âmbito da Organização Internacional do Trabalho existem diversas Convenções que versam sobre o trabalho infantil. Aliás, o tema sobre o trabalho de menores está presente desde o início do órgão internacional, pois as primeiras assembléias já discutiam o tema ora tratado, como, por exemplo, a Convenção n. 5 de 1919, que limitou a 14 anos a idade mínima para a admissão em minas, canteiros, indústrias, construção naval, centrais elétricas, transportes e construções (BARROS, 2008, p. 544). Como instrumento complementar à Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, a Organização Internacional do Trabalho lançou em 1999 a Convenção n. 182 sobre as Piores Formas de Trabalho Infantil, bem como a Recomendação n. 190, que implementa os dispositivos daquela convenção5. 4 Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, promulgada no Brasil pelo Decreto Presidencial n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm>. Acesso em: 31 out. 2011. 5 Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, promulgada no Brasil pelo Decreto Presidencial n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.

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Flávia Piovesan e Gabriela Luca explicam com muita clareza a importância desses instrumentos na definição das piores formas de trabalho infantil (2010, p. 368): Fazendo referência direta à Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU em seu preâmbulo, a Convenção n. 182 da OIT abriu o precedente de regulamentar um instrumento internacional. Especificadamente em seu art. 32, a Convenção sobre os Direitos da Criança reconhece o direito da criança de ser protegida contra ‘a exploração econômica e contra o desempenho de qualquer trabalho que possa ser perigoso ou interferir em sua educação, ou que seja nocivo para a sua saúde ou para o seu desenvolvimento físico, mental ou social’. Assim, a Convenção da OIT exige que todos os Estados signatários adotem medidas para eliminar progressivamente todas as formas de trabalho infantil, que ‘por sua natureza ou penas circunstâncias em que são executados, são suscetíveis de prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança’, incluindo todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, a prostituição e produção de material pornográfico, e a utilização de crianças para atividades ilícitas como o tráfico de drogas. A convenção n. 182 da OIT reconhece que a realidade das piores formas de trabalho infantil é definida por circunstâncias e não pela atividade laboral específica, reconhecendo que existem categorias diferentes de trabalho infantil.

Além disso, é preciso destacar que a Convenção n. 182 da OIT, bem como todas as Convenções da Organização Internacional do Trabalho, ao serem incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro, ganham força de norma materialmente constitucional, pois preenchem e completam o catálogo de direitos fundamentais previstos pelo texto da Constituição Federal de 1988. Isso porque, o § 2º, do art. 5 o da Constituição Federal, ao prescrever que “os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros direitos decorrentes dos tratados internacionais”, inclui no rol de direitos constitucionalmente protegidos todos os direitos fundamentais enunciados nos tratados internacionais, o que inclui as Convenções da OIT que o Brasil tenha ratificado. gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm>. Acesso em: 31 out. 2011.

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Segundo Piovesan (2009, p. 55), “os direitos internacionais integrariam, assim, o chamado ‘bloco de constitucionalidade’, densificando a regra constitucional positivada no parágrafo 2º do art. 5 o, caracterizada como cláusula constitucional aberta”. Entende-se que esse posicionamento se mantém mesmo após a Emenda Constitucional n. 45/2004, que incluiu o parágrafo 3º no art. 5 o da Constituição Federal6, bem como após o julgado do Supremo Tribunal Federal que entendeu pelo supralegalidade dos tratados que versam sobre direito humanos7. Assim, defende-se que o desrespeito ao que dispõe a Convenção n.182 da OIT sobre as piores formas de trabalho infantil corresponde a uma lesão direta à Constituição Federal e qualquer ato normativo ou jurisdicional prolatado contrariamente a ela poderá ter sua constitucionalidade questionada, tendo como base a referida Convenção.

4 A CONVENÇÃO N. 182 DA OIT E A DEFINIÇÃO DAS PIORES FORMAS DE TRABALHO INFANTIL No âmbito da Organização Internacional do Trabalho percebeu-se que, dentre todas as hipóteses de exploração do trabalho infantil, havia aquelas que eram especialmente degradantes e devastadoras ao indivíduo e, por conta dessa particularidade, mereciam destaque e combate específico, tanto pelos Estados, quanto pela família e pelos atores sociais responsáveis por atuar nessa seara. Trata-se das piores formas de trabalho infantil. 6 O art. 5 o, §3º, da Constituição Federal dispõe: “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que foram aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. 7 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, Segunda Turma, HC 90.172/SP. Relator: Gilmar Mendes, Brasília, DF, 05.06.2007, p. 91.

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Aliás, a definição das piores formas de trabalho infantil e o seu reconhecimento no âmbito internacional representam importante evolução jurídica no sistema de proteção às crianças e aos adolescentes trabalhadores, haja vista que a grande maioria dos casos de trabalho infantil encontrados no dia a dia está incluída nesse conceito. O instrumento internacional responsável por isso foi a Convenção n. 182 da OIT, aprovada no ano de 1999 pela Conferência Internacional do Trabalho, o órgão máximo da OIT. No processo de discussão e aprovação no âmbito da OIT merece destaque a importante participação do Brasil, que atuou ativamente na concretização dessa norma internacional. Aliás, a Convenção n. 182 da OIT, em tempo recorde, teve seus termos ratificados pela quase totalidade dos países membros da Organização Internacional do Trabalho. Na verdade, a análise do texto da Convenção n. 182 da OIT revela que ela foi criada como instrumento complementar à Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, fazendo referência expressa no seu preâmbulo. Trata-se, portanto, de uma regulamentação do instrumento internacional das Nações Unidas que visou a efetivar o que já se dispunha de forma genérica no art. 32 da Convenção sobre os Direitos da Criança8 (PIOVESAN E LUCA, 2010, p. 368). O texto da Convenção n. 182 da OIT contém, preliminarmente aos seus artigos, as premissas básicas que levaram os países pertencentes à OIT a aprovarem o seu conteúdo. Da análise do que foi considerado, destaca-se a constatação de que a efetiva eliminação das piores formas de trabalho infantil requer ação imediata 8 A Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, promulgada pelo Brasil pelo Decreto Presidencial n. 99710, de 21 de novembro de 1990, dispõe no seu artigo 32: “É direito da criança ser protegida contra a exploração econômica e contra o desempenho de qualquer trabalho que possa ser perigoso ou interferir físico, mental, espiritual, moral ou social”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm>. Acesso em: 19 nov. 2011.

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e global, que leve em conta a importância da educação fundamental e gratuita e a necessidade de retirar a criança de todos esses trabalhos, promover sua reabilitação e integração social e, ao mesmo tempo, atender às necessidades de suas famílias (MEDEIROS NETO, 2010, p. 263). Partindo dessas premissas, a Convenção n. 182 da OIT, em seu art. 3o: Artigo 3o: Para os fins desta Convenção, a expressão as piores formas de trabalho infantil compreende: a) todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, como vendas e tráfico de crianças, sujeição por dívida e servidão, trabalho forçado ou compulsório, inclusive recrutamento forçado ou compulsório para serem utilizadas em conflitos armados; b) utilização, procura e oferta de criança para fins de prostituição, de produção de material pornográfico ou espetáculos pornográficos; c) utilização, procura e oferta de crianças para atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de drogas conforme definidos nos tratados internacionais pertinentes; d) trabalhos que, por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, são susceptíveis de prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança.

Diante do que estabelece a Convenção n. 182 da OIT, o Brasil, em uma iniciativa de vanguarda no cenário internacional, regulamentou o assunto através do Decreto n. 6.481, de 12 de junho de 2008, que aprovou a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil9. 9 Decreto n. 6.481, de 12 de junho de 2008, regulamenta os artigos 3o, alínea “d”, e 4o da Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que trata da proibição das piores formas de trabalho infantil e ação imediata para sua eliminação, aprovada pelo Decreto Legislativo no 178, de 14 de dezembro de 1999, e promulgada pelo Decreto no 3.597, de 12 de setembro de 2000, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Decreto/D6481.htm>. Acesso em: 19 nov. 2011.

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A conhecida Lista TIP traz o rol de atividades que são entendidas como violadoras ao que estabelece a Convenção n. 182 da OIT, ou seja, as hipóteses consideradas como as piores formas de trabalho infantil no Brasil. Para tanto, as atividades foram divididas em dois grandes grupos, quais sejam, o de Trabalhos Prejudiciais à Saúde e à Segurança e o de Trabalhos Prejudiciais à Moralidade, de modo a abranger as hipóteses definidas pela Convenção n. 182 como as piores formas de trabalho infantil. Isso é o que estabelece o art. 4o do Decreto n. 6.481/2008. Mais uma vez, torna-se imprescindível interpretar o tema como típico direito humano fundamental da criança e do adolescente, à luz da doutrina da proteção integral, dando o tratamento adequado aos sujeitos de direito, para se chegar a mais efetiva atuação, principalmente para concretizar o que dispõe a Convenção n. 182 da OIT sobre as piores formas de trabalho infantil.

5 AS PIORES FORMAS DE TRABALHO INFANTIL E A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO 5.1 Os Mitos e as Verdades sobre o Trabalho Infantil A primeira observação que deve ser feita é que a maioria dos casos de exploração de trabalho infantil encontradas hoje se inserem em uma das piores formas de trabalho, conforme estabelecem a Convenção n. 182 da OIT e o Decreto n. 6.481, de 12 de junho de 2008, que aprovou a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil. A pesquisa e análise rápida dos dados do Sistema de Informações sobre Focos de Trabalho Infantil – Sistema SITI - do 46

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Ministério do Trabalho e Emprego revela, por exemplo, que no Município de Dourados, Estado de Mato Grosso do Sul, no ano de 2011, os Auditores Fiscais do Trabalho flagraram menores laborando em diversas atividades consideras pela Lista TIP como proibidas, tais como o trabalho em oficinas mecânicas, em pequenas metalúrgicas, em atividades perigosas, no serviço doméstico, dentre outras10. O que a experiência mostra é que comumente crianças e adolescentes são encontrados em subempregos, tais como vendedores de doces, ajudantes em oficinas mecânicas, lavadores de carros, garçons em lanchonetes de bairro pobres, olarias, carvoarias, trabalho doméstico, trabalho rural manuseando agrotóxicos, etc., sem qualquer tipo de proteção, indignação da sociedade e do poder público. Aliás, boa parte da população é conivente com esse tipo de situação, sob a justificativa de que o trabalho, genericamente falando, é benéfico para a criança e para o adolescente, pois o afasta da criminalidade, dá ocupação no tempo ocioso e responsabilidade ao indivíduo que está em desenvolvimento. O emérito Procurador do Trabalho, Dr. Xisto Tiago de Medeiros Neto (2010, p. 258) expõe muito bem os prejuízos causados pelo trabalho precoce: Com efeito, é incontestável que o labor precoce de crianças e adolescentes interfere diretamente em todas as dimensões do seu desenvolvimento, a saber: - afeta o desenvolvimento físico, uma vez que os expõe a riscos de lesões, deformidades físicas e doenças, muitas vezes superiores às possibilidades de defesa de seus corpos; - compromete o desenvolvimento emocional, na medida em que as crianças submetidas ao trabalho precoce podem apresentar, ao longo de suas vidas, dificuldades para estabelecer vínculos afetivos em razão das condições de exploração a

10 Disponível em: <http://sistemasiti.mte.gov.br/>. Acesso em: 19 nov. .2011.

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que estiverem expostas e dos maus-tratos que receberam de patrões e empregadores; e - prejudica o desenvolvimento social, pois as crianças e adolescentes, antes mesmo de atingir a idade adulta, se vêem obrigados a realizar trabalhos que requerem maturidade, comportamento e convivência com o mundo adulto, sendo afastados do convívio social com pessoas de sua idade.

A verdade é que muitos mitos falsos ainda cercam essa temática e são usados para justificar e defender o trabalho infantil. Contudo, mesmo diante dessa constatação, é inafastável a conclusão de que o trabalho precoce e o trabalho do adolescente desprotegido são prejudiciais e devem ser combatidos. Nesse ponto cabe a transcrição literal dos ensinamentos a respeito dos mitos e verdades sobre o trabalho infantil, elaborado com brilhantismo pela Procuradora do Trabalho Jane Araújo dos Santos Vilani (out 2006/mar.2007, p.88-90): 1. O MITO: “A causa da incorporação de crianças pelo mercado de trabalho é a precarização das relações de trabalho. Ora, o trabalho é formativo, uma escola de vida que torna o homem mais digno”. A VERDADE: “O trabalho precoce é deformador da infância. As longas jornadas de trabalho, as ferramentas, os utensílios e o próprio maquinário inadequado à idade resultam em vários problemas de saúde e elevação de índices de mortalidade” (texto reproduzido do jornal Folha de S. de Paulo, 1º de maio de 1997). Se a precarização das relações de trabalho atinge de modo nefasto o trabalhador adulto, teoricamente apto à defesa de seus direitos, ela massacra a criança trabalhadora, vítima indefesa de toda sorte de exploração! 2. O MITO: “O trabalho tem de ser considerado um fator positivo no caso de crianças que, dada a sua situação econômica e social, vivem em condições de pobreza e de risco social.”

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A VERDADE: esse pensamento implica perpetuação da pobreza daquela família e de suas futuras gerações, além de discriminação escancarada. 3. O MITO: “É melhor a criança trabalhar do que ficar na rua, exposta ao crime e aos maus-costumes.” A VERDADE: crianças e adolescentes que trabalham em condições desfavoráveis pagam com o próprio corpo, quando carregam pesos excessivos, são submetidos a ambientes nocivos à saúde, vivem nas ruas ou se entregam à exploração sexual. 4. O MITO: “Trabalhar educa o caráter da criança, é um valor ético e moral. É melhor ganhar uns trocados, aproveitar o tempo com algo útil, pois o trabalho é bom por natureza”. A VERDADE: a infância é tempo de formação física e psicológica; tempo de brincar e aprender. O trabalho precoce impede a freqüência escolar e prejudica toda essa formação, inclusive a profissional. É certo que a Constituição Federal de 1988 erigiu o valor social do trabalho como um dos fundamentos do Estado democrático de direito; todavia, antes de 14 anos, o direito resguardado é o de não trabalhar, e esse tempo deve ser preenchido com educação, com brincadeiras, com exercício do direito de aproveitar a infância. 5. O MITO: “É bom a criança ajudar na economia da família, ajudando-a a sobreviver.” A VERDADE: quando a família se torna incapaz de prover seu próprio sustento, cabe ao Estado apoiá-la, e não à criança. 6. O MITO: “Criança desocupada na rua é sinônimo de perigo, de algo perdido, sintoma de problema.” A VERDADE: esse era o fundamento do vetusto Código do Menor, de 1927, bem como da posterior ‘doutrina da situação irregular’. Estamos hoje sob um novo paradigma constitucional – a doutrina da proteção integral, que entende a criança como sujeito de direitos, alvo de proteção obrigatória do Estado, da família e da sociedade.

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7. O MITO: “Criança que trabalha fica mais esperta, aprende a lutar ela vida e tem condição de vencer profissionalmente quando adulta.” A VERDADE: o trabalho precoce é árduo e nunca foi estágio necessário para uma vida bem-sucedida, ele não qualifica e, portanto, é inútil como mecanismo de promoção social. 8. O MITO: “É natural que as crianças trabalhem com os pais, aprendendo um ofício; é natural que os pais levem seus filhos para seu local de trabalho quando não têm onde deixálas, ainda que seja uma carvoaria ou um lixão!” A VERDADE: a criança não está na verdade aprendendo um ofício, pois tais atividades não se confundem com aprendizagem, e, na maioria das vezes, nem remunerada é! Ela está perdendo a chance de estudar, poder se profissionalizar quando adulta e adentrar o mercado de trabalho com melhor qualificação do que a que tiveram os seus antepassados. 9. O MITO: “Criança trabalhadora é sinônimo de disciplina, seriedade e coragem; a que vive em vadiagem se torna preguiçosa, desonesta e desordeira”. A VERDADE: o trabalho infantil gera o absenteísmo escolar e rouba da criança o tempo e a disposição de estudar. A criança que trabalha sofre uma série de injustiças: é extremamente mal-remunerada, as jornadas de trabalho são extenuantes e os abusos vão de insultos a agressões física e sexual. Disciplina e outros valores se aprendem junto à família e à escola. 10. O MITO: “Mentalidade econométrica, segundo a qual primeiro se deve investir na economia; depois no social; afinal, se a economia vai bem, automaticamente o social se incrementará!” A VERDADE: os tão decantados exemplos da Coréia do Sul e do Chile desmascaram esse mito! É necessária a formação de uma base social que sustente o crescimento econômico. A OIT procedeu à pesquisa, condensada no livro Invertir em Todos Los Niños – Estudio económico de costos y benefícios de Erradicar el Trabajo Infantil – IPEC/OIT, em que conclui: O resultado individual mais importante é que se estima que a erradicação do trabalho infantil e sua substituição 50

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pela educação universal renderá enormes benefícios econômicos... Globalmente, os benefícios superam todos os custos em uma proporção de 6,7 para 1. Isto é equivalente, dada a distribuição no tempo de custos e benefícios, a uma taxa interna de retorno de 43,8% (tradução livre). 11. O MITO: “O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma utopia e está dissociado da realidade brasileira; é preciso adaptá-lo às reais condições sociais e econômicas do país”. A VERDADE: ora, a questão do trabalho infantil deve sempre ser enfocada sob a ótica dos direitos humanos, que são fundamentais, inegociáveis e inalienáveis! Nosso desafio, de todos nós, e principalmente do Estado, é tornar as garantias previstas no ECA a realidade de todas as nossas crianças.

Não se pode admitir que o indivíduo seja privado dos seus direitos fundamentais mais básicos para ser inserido precocemente no mercado de trabalho. Não é possível admitir que as crianças abdiquem de sua própria dignidade para sustentarem suas famílias pobres, deixando de frequentar a escola, ficando em contato com situações perigosas e de risco, em nome do trabalho infantil. É preciso efetivar o que dispõe a legislação e todo o arcabouço jurídico existente, de modo a proteger as crianças e adolescentes e não marginalizá-los, excluí-los e discriminá-los. 5.2 Atuações do Ministério Público do Trabalho na efetividade do que dispõe a Convenção 182 da OIT A Constituição Federal incumbiu ao Ministério Público a função de defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis mais relevantes da sociedade (art. 127 da CF/88). Trata-se, portanto, de instituição que tem o dever constitucional de defender e promover os direitos humanos fundamentais previstos no ordenamento jurídico, tanto na esfera Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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coletiva, quando na individual, se, neste caso, o interesse defendido tiver relevância social. Partindo dessas premissas, conclui-se que é imprescindível o combate às piores formas de trabalho infantil pelo Ministério Público do Trabalho, sendo considerado tema de alta relevância institucional, que merece atuação prioritária pelos membros, por força da dicção dos artigos 127, caput, 129, II e III, e 227, caput e §3º, da Constituição Federal. Para tanto, a própria Constituição Federal e as leis que formam o sistema coletivo de defesa de direitos prevêem uma série de instrumentos hábeis a alcançar o grande mister constitucional do Ministério Público (Inquérito Civil, Termo de Ajustamento de Conduta, Ação Civil Pública, etc.), que é o de proteger os interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis para concretizar os ideais democráticos e de cidadania proclamados pela Carta Magna, mormente aqueles que tem como destinatários as crianças e os adolescentes submetidos a uma das piores formas de trabalho infantil. Por óbvio que não existe regra ou ordem para atuação do Membro do Ministério Público do Trabalho, no caso de se estar diante de uma situação de trabalho infantil. A casuística dirá qual a melhor estratégia para se adotar diante do fato em concreto. Contudo, é possível definir alguns parâmetros básicos de atuação, de forma a orientar e concretizar o que dispõe a Convenção n. 182 da OIT sobre a proteção das crianças em face das piores formas de trabalho infantil. O primeiro passo, diante do conhecimento da situação de trabalho infantil e uma das suas piores formas (qualquer forma de escravidão, exploração sexual para fins comerciais, uso de crianças para o tráfico de drogas, atividades que prejudicam a saúde, a segurança e a moral da criança, etc.), é a instauração de procedimento administrativo (Procedimento Preparatório, Inquérito Civil). 52

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A notícia ensejadora da instauração pode chegar aos Membros do Ministério Público do Trabalho através de denúncias (inclusive anônimas), pela imprensa ou até mesmo pelo conhecimento pessoal dos fatos pelo Membro do MPT, que pode instaurar de ofício o procedimento administrativo, após a apreciação prévia dos fatos no bojo dos autos administrativos. Como a atuação pelo Membro do Ministério Público do Trabalho em face das piores formas de trabalho infantil tem caráter prioritariamente assistencial e protetivo (MEDEIROS NETO, 2010, p. 274), torna-se necessário ativar toda a rede de proteção da criança, principalmente o Conselho Tutelar, que deverá, em conjunto com psicólogos e assistentes sociais, elaborar relatório e estudo social sobre o caso. Essa análise auxiliará no encaminhamento da criança para programas de políticas públicas e entenderá os motivos que levaram esse indivíduo a ser submetido a uma das piores formas de trabalho infantil. Além disso, muitos casos que envolvem uma das piores formas de trabalho infantil, como o tráfico de drogas e a exploração sexual comercial, exigem a presença da Polícia, tanto para desmantelar a situação de risco, quanto para investigar e descobrir a rede de exploradores. Isso possibilitará tanto a responsabilização pelo ilícito trabalhista, quanto na esfera criminal, articulada e promovida pelo Ministério Público Estadual. Aliás, cumpre destacar a importância de ações articuladas entre o Ministério Público do Trabalho e o Ministério Público Estadual no combate às piores formas de trabalho infantil. As atribuições de cada um não são excludentes, ao contrário, são convergentes e complementares, no que se refere às áreas de iniciativa e responsabilização. Assim, é possível a atuação conjunta para expedir recomendações, realização de audiências públicas, realização de diligências e a propositura de Ação Civil Pública, em litisconsórcio ativo, segunda a dicção do art.5, §5, da Lei n. 7.347/85 e do art. 210, §1, do ECA (MEDEIROS NETO, 2010, p. 275). Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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Outro importante passo para efetivar o que dispõe a Convenção n. 182 da OIT é a requisição de realização de ação fiscal pela Superintendência Regional do Trabalho (MTE), com a verificação das ilicitudes trabalhistas encontradas, com a elaboração de Relatório Fiscal. Nesse ponto, cabe destacar que, não obstante as dificuldades de estrutura e pessoal da área da fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, é possível solicitar urgência em casos de ocorrência de uma das piores formas de trabalho infantil. Isso porque vigora em nosso ordenamento jurídico o princípio da prioridade absoluta (art. 4 do ECA), em prol da criança e do adolescente, que justifica a priorização da ação fiscalizatória. Normalmente, as informações levantadas pelos Auditores Fiscais do Trabalho são sobremaneira importantes para o início das tratativas da solução extrajudicial do ilícito, através do Termo de Ajustamento de Conduta, bem como para instruir a futura Ação Civil Pública, que pleiteará a cessação da situação de exploração de trabalho infantil e o pagamento de indenização por dano moral coletivo, caso não seja possível a composição amigável com o MPT. Torna-se, portanto, imprescindível a boa articulação, tanto com a equipe da Superintendência Regional do Trabalho, quanto com a rede de proteção da infância (Conselheiros Tutelares, Assistentes Sociais do CRAS, Promotor e Juiz da Infância, etc), de modo a aperfeiçoar os resultados do combate às piores formas de trabalho infantil. Continuando na ação repressiva contra as piores formas de trabalho infantil, quando for possível, é imperioso notificar os pais ou responsáveis legais do menor para participar de audiência administrativa com o Membro do Ministério Público do Trabalho, para conscientizá-los dos prejuízos do trabalho precoce e desprotegido. O resultado dessa atuação pode ser a assinatura de Termo de Ajustamento de Conduta, com a fixação de obrigações de fazer e não 54

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fazer aos pais, tais como obstar a prática do trabalho infantil, manter o filho na escola e em programas assistenciais e de políticas públicas, matrícula escolar do menor no turno diurno, inserção e frequência no PETI, etc. Ainda sob o aspecto da repressão do trabalho infantil e suas piores formas é cabível a notificação do representante do Poder Público para cobrar ações concretas e efetivas frente a uma situação real de trabalho infantil. Assim, é possível cobrar a inserção da criança em programas sociais de contraturno escolar, como o PETI, em programas de reabilitação de usuários de drogas (para o caso do uso do menor para fins de tráfico), inserção em cursos profissionalizantes, etc. Outra linha de atuação importantíssima e que concretiza, de forma muito efetiva, o princípio da proteção integral é a busca de implementação de políticas públicas pelos mais variados níveis de poder e pela sociedade, os quais são responsáveis por prevenir e combater as piores formas de trabalho infantil. A tarefa é sobremaneira difícil, pois, para a efetiva implementação de políticas públicas, é necessário envolver não só o gestor público, mas também profissionais de diversas áreas do conhecimento, as quais estão diretamente envolvidas com essa temática (Conselheiros Tutelares, Juízes, Promotores de Justiça, Assistentes Sociais, Psicólogos, etc.). Nesse ponto é interessante destacar que o Membro do MPT deve conscientizar e convencer o gestor público de que, para criar e administrar as políticas contra o trabalho infantil, é imprescindível organizar um conjunto articulado de ações, entre vários setores do governo e da sociedade, já que somente dessa forma será possível imaginar o mercado de trabalho sem crianças. Essa é a conclusão encontrada na publicação da Organização Internacional do Trabalho, realizada em parceria com o Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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Ministério Público do Trabalho, no ano de 2011, chamada Prevenção e eliminação do trabalho infantil: um guia para a ação governamental (OIT, 2011, p. 7-8), como se depreende abaixo: A eliminação do trabalho infantil só será uma realidade quando todas as dimensões da vida da criança estiverem voltadas – respeitando suas características – para a prevenção e a eliminação do problema. Esta atuação também precisa ser integrada porque é muito pouco provável que uma única organização – seja ela pública ou privada – consiga atender, de modo oportuno e com qualidade, todas as necessidades dessas crianças, sejam elas retiradas da situação de trabalho ou em risco de serem cooptadas para o trabalho ainda na infância. Logo, as estratégias precisam buscar a integração das políticas e dos projetos das várias organizações que atuam no Município ou no Estado.

Questão primordial nessa forma de atuação, em face das piores formas do trabalho infantil, é a articulação com os gestores públicos sobre a necessidade de inclusão dos projetos no orçamento municipal, estadual e federal, assim como nos respectivos Planos Plurianuais (OIT, 2011, p. 9). O Guia de Ação Governamental da OIT, de Prevenção e Eliminação do Trabalho Infantil (2011, p. 10) traz o seguinte: Considerando o modelo de planejamento adotado pelo governo federal, e para responder aos compromissos assumidos com as ratificações das Convenções 138, 182 e 169 da OIT, é esperado que os PPAs e orçamentos dos Estados e Municípios incluam um programa voltado para a prevenção e eliminação do trabalho infantil, com os seguintes elementos: a) um objetivo claramente estabelecido, neste caso, a prevenção e a eliminação do trabalho infantil no Estado e/ou no Município em questão; b) um indicador que permita ao gestor público e à sociedade verificar se os objetivos e metas propostos estão sendo alcançados; 56

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c) os projetos e as atividades que compõem o programa, atentando para a complementaridade entre as várias ações e a importância de envolver todos os órgãos e organizações governamentais neste esforço; d) a quantidade de beneficiários e demais metas previstas para cada um dos projetos e atividades do programa; e os recursos orçados para cada projeto ou atividade prevista.

Todavia, muitas vezes os agentes públicos não estão tendentes a efetivamente combater o trabalho infantil, mostrandose verdadeiramente omissos e negligentes, principalmente no que se refere à implantação de políticas públicas nessa seara. Nesses casos, a judicialização dessas políticas públicas é caminho irrefutável, sendo necessário recorrer ao ativismo judicial, para garantir que os direitos das crianças e dos adolescentes explorados sejam resguardados. Portanto, a implementação e a execução de políticas públicas voltadas diretamente ao combate do trabalho infantil é medida imprescindível para se efetivar o que dispõe a Convenção n. 182 e a Recomendação 190, ambas da OIT. Isso porque a origem desse problema está diretamente ligada a problemas econômicos, educacionais, sociais, culturais e familiares, cuja solução exige atuação ampla e global de diversas frentes, as quais passam, inexoravelmente, pela implementação de políticas públicas que atendam às necessidades da criança, da sua família e da sociedade. Não é possível combater, efetivamente, a chaga do trabalho infantil e suas piores formas, sem envolver diretamente os gestores públicos, em todos os níveis de governo (municipal, estadual e federal), pois a atuação repressiva tem alcance limitado, que só acontece quando a lesão aos direitos fundamentais da criança e do adolescente já se concretizaram. É preciso ampliar a atuação, de modo a atingir as causas do trabalho infantil. E isso indubitavelmente é papel do Ministério Público do Trabalho, instituição que detém o dever constitucional de Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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defender e promover os direitos humanos fundamentais previstos no ordenamento jurídico.

CONCLUSÃO O reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos e deveres pelo ordenamento jurídico brasileiro, a partir da Constituição de 1988 e todas as normas internacionais que compõe o arcabouço normativo e principiológico relativos ao tema, impõe o resguardo, pelos atores sociais, dos seus direitos fundamentais. Essa tarefa, que se revela sobremaneira complexa, deve levar em conta que os direitos fundamentais da criança e do adolescente derivam diretamente do princípio da dignidade da pessoa humana e, toda e qualquer interpretação feita nessa seara, seja de dispositivos legais, seja de um fato em concreto, deve levar em conta a doutrina da proteção integral e da prioridade absoluta. Nesse raciocínio se incluem as relações de trabalho e o combate incansável pela erradicação do trabalho infantil e suas piores formas, pois é direito humano fundamental da criança não ser submetida ao trabalho precoce, e do adolescente a ter sua relação laboral protegida. Os diversos instrumentos que embasam esse raciocínio, com destaque para a Convenção 182 da OIT, que versa sobre a proibição das piores formas de trabalho infantil, deixam cristalino o entendimento de que, para se ter um paradigma de trabalho decente e digno, é imprescindível extinguir todas as formas de exploração do trabalho da criança. Nesse contexto, o combate a essa chaga deve ser prioritária para aqueles que compõem o sistema de proteção da criança, com 58

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destaque para o Ministério Público do Trabalho, instituição que detém o dever constitucional de defender e promover os direitos humanos fundamentais previstos no ordenamento jurídico. Várias são as formas de atuação do Membro do Ministério Público do Trabalho para efetivar o que dispõe a Convenção n. 182 da OIT e enfrentar a problemática do trabalho infantil, tanto do viés repressivo como na sua prevenção, como por exemplo o uso da Recomendação, do Termo de Ajustamento de Conduta, da Ação Civil Pública, bem como a realização de projetos de conscientização e prevenção (por exemplo, o Projeto MPT na Escola), da realização de audiências públicas e seminários sobre a temática, tudo em prol da infância e do direito da criança em ser criança.

REFERÊNCIAS BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 4. ed. São Paulo: Ltr, 2008. CUSTÓDIO, André Viana. Teoria da proteção integral: pressuposto para compreensão do Direito da Criança e do Adolescente. Revista do Direito, v. 29, p. 22-43, 2008. Disponível em: <http://online.unisc. br/seer/index.php/direito/article/viewFile/657/454>. Acesso em: 15. nov. 2011. FELICIANO, Guilherme Guimarães. Violência sexual contra a criança e o adolescente no marco da precarização das relações de trabalho. In: NOCCHI, Andrea Saint Pastous et al. (Org.). Criança, adolescente, trabalho. São Paulo: LTr, 2010. MARQUES, Rafael Dias. Ações do Ministério Público do Trabalho na prevenção e repressão ao trabalho infantil – atuação e instrumentos processuais. In: NOCCHI, Andrea Saint Pastous et al. (Org.). Criança, adolescente, trabalho. São Paulo: LTr, 2010. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Trabalho Infantil e Fundamentos para a Proteção Jurídica da Criança e do Adolescente. In: NOCCHI, Andrea Saint Pastous et al. (Org.). Criança, adolescente, trabalho. São Paulo: LTr, 2010. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Prevenção e eliminação do trabalho infantil: um guia de ação governamental. Brasília: OIT, 2011. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2009. PIOVESAN, Flávia; LUCA, Gabriela de. Gênese e Atualidade da Proteção ao Trabalho Infantil nas Normas Internacionais: Trabalho Infantil como Violação aos Direitos Humanos. In: NOCCHI, Andrea Saint Pastous et al. (Org.). Criança, adolescente, trabalho. São Paulo: LTr, 2010. VILANI, Jane Araújo dos Santos. A questão do trabalho infantil: mitos e verdades. Revista Inclusão Social, v.2, n.1, p. 83-92, out.2006/ mar.2007.

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O TRABALHO DOS ÍNDIOS KAIOWÁ E GUARANI NOS ERVAIS DA COMPANHIA MATTE LARANGEIRA

Eva Maria Luiz Ferreira1 Antonio Jacó Brand2

INTRODUÇÃO Deflagrada a guerra entre o Brasil, Argentina, Uruguai e o Paraguai (1865-1870), conhecida como a Guerra do Paraguai, a mobilização das tropas trouxe consequências determinantes para a sobrevivência de diversos grupos indígenas localizados na região fronteiriça, que na época era desconhecida e de limites indefinidos. Com o final da Guerra, as autoridades locais veem a necessidade de proteger as fronteiras, adotando como medida urgente radicar aí homens “brancos” e estabelecer postos militares, para impedir a entrada de estrangeiros. Dessa forma, o pós-guerra assistiu a um incremento na vinda, para o sul de Mato Grosso, de inúmeros migrantes, tanto paraguaios como brasileiros vindos de Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul. Segundo Brand, “[...] 1 Mestre em História Regional, docente e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa das Populações Indígenas/NEPPI – UCDB. 2 Doutor em História, docente, pesquisador e Coordenador do Programa Kaiowá/Guarani – NEPPI/UCDB.

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grande parte dos ex-combatentes, especialmente paraguaios, ficaram pela região e se tornaram mão de obra nos trabalhos da Cia Matte Larangeira [...]” (1997, p.59). A partir dos trabalhos de demarcação e confirmação das fronteiras, no período de pós-guerra do Paraguai, instala-se a Companhia Matte Larangeira, em pleno território tradicional dos Kaiowá e Guarani, marcando um período de grande importância para a história regional do atual Mato Grosso do Sul e para a história dessa etnia.

A COMPANHIA MATTE LARANGEIRA Com o término da Guerra da Tríplice Aliança (18641870), uma comissão de limites percorre a região ocupada pelos Kaiowá e Guarani, entre o rio Apa, atual Mato Grosso do Sul e o Salto de Sete Quedas, em Guaíra, Paraná. Os trabalhos de demarcação da fronteira entre Brasil e Paraguai foram encerrados em 1874. Essa comissão de limites era chefiada pelo Coronel Enéas Galvão (Barão de Maracaju) e tinha como comandante militar, incumbido de evitar qualquer agressão indígena, o então capitão Antônio Maria Coelho. Também fazia parte da comissão de limites Thomaz Larangeira, empresário interessado nos fornecimentos de alimentação à expedição. Aos outros cabia a atividade de devassar os sertões que o último examinava com o olhar de empreendedor, procurando conhecer as possibilidades econômicas e explorá-las. Nesse mesmo ano, Thomaz Larangeira fundou uma fazenda de gado no Mato Grosso e logo depois, em 1877, iniciou o trabalho com a erva no Paraguai, enquanto aguardava do Governo Brasileiro uma concessão para instalar-se no Brasil (CORREA FILHO, 1925). Assim que o Barão Enéas Galvão foi nomeado presidente de Província, Larangeira recorreu a sua proteção e, pelo Decreto 62

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Imperial, de nº 8799, de 9 de dezembro de 1882, Larangeira tornouse o primeiro concessionário legal para a exploração da erva-mate nativa, por um período inicial de 10 anos. A atividade econômica da erva-mate, na análise de Arruda, consolida-se como a principal atividade econômica na região: “Desde o início da década de 1890, a exploração da erva-mate tornara-se a mais lucrativa empresa econômica no Estado” (1997, p. 33). A área de concessão é, sucessivamente, ampliada, sempre com o apoio de políticos influentes, como os Murtinho e Antônio Maria Coelho3. Com o advento da República, as terras legalmente consideradas devolutas passam para a responsabilidade das Constituições dos Estados, o que favorece os interesses da Empresa pelo seu grau de proximidade com os governantes locais. Como bem descreve Arruda: Desta forma, através do Decreto nº 520, de 23/06/1890, a Companhia amplia os limites de suas posses e consegue o monopólio na exploração da erva-mate em toda a região abrangida pelo arrendamento. Finalmente, através da Resolução nº 103, de 15/07/1895, ela obtém a maior área arrendada, tendo ultrapassado os 5.000.000 ha, “tornando-se um dos maiores arrendamentos de terras devolutas do regime republicano em todo o Brasil para um grupo particular (ARRUDA, 1986, p.218).

Segundo essa Resolução, os limites das posses da Companhia estendem-se “[...] desde as cabeceiras do ribeirão das Onças, na Serra de Amambay, pelo ribeirão S. João e rios Dourados, Brilhante e Sta Maria, até a Serra de Amambay e pela crista desta serra até as referidas cabeceiras do ribeirão das Onças” (idem: 218). A seguir a localização dos ervais (ARRUDA, 1986, p.213).

3 Joaquim Murtinho foi ministro da Fazenda no governo de Campos Sales e irmão de José Manoel Murtinho, o primeiro governador constitucional do período republicano, eleito em 20 de agosto de 1891. O General Antônio Maria Coelho foi governador provisório do estado de Mato Grosso. Essa proximidade com o poder político será fundamental para a defesa e expansão dos negócios da Companhia.

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O domínio da Companhia Matte Larangeira começou a encontrar oposição a partir de 1912, quando tratava de renovar os arrendamentos. Mesmo assim, a referida Companhia chegou ao seu auge em 1920. Logrou renovar o arrendamento sobre um total de 1.440.000 hectares, através da Lei n° 725, de 24 de setembro de 1915. Mas, a mesma lei liberou a venda de até dois lotes de 3.600 ha a terceiros e, com isto, já extinguiu o seu monopólio (BRAND, 1997). O artigo 31 dessa lei previa: A cada um dos ocupantes de terras de pastagens e de lavouras situadas dentro da área compreendida no contrato de arrendamento em vigor, será garantido dentro do prazo de dois anos, a contar de 27 de julho de 1916, a preferência para a aquisição de uma área nunca superior a dois lotes de três mil e seiscentos hectares cada um, ainda mesmo que dentro dessas terras existam pequenos ervais (CORREA FILHO, 1957, p. 67, apud BRAND, 1997, p. 86). 64

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Em 1916, com o decreto citado acima, quebrou-se, portanto, o monopólio da Companhia Matte Larangeira, embora seu domínio tivesse seguido até 1943, ano em que o então Presidente da República, Getúlio Vargas, criou o Território de Ponta Porã e anulou os direitos da Companhia (BRAND, 1997, p. 87). O engajamento indígena foi mais intenso em regiões densamente povoadas por aldeias Kaiowá e Guarani, tais como Caarapó, Juti, Campanário, Sassoró (Porto Sassoró), Porto Lindo/ rio Iguatemi, entre outras. Inclusive a localização de várias reservas indígenas demarcadas pelo Serviço de Proteção aos Índios-SPI, até 1928, deve-se ao fato de serem tais lugares acampamentos, ou locais de colheita de erva-mate. Embora a maioria dos historiadores revele que a mão de obra amplamente predominante nos ervais tenha sido a paraguaia, ocorreu em várias regiões o significativo engajamento de índios Kaiowá e Guarani nos trabalhos relacionados à colheita e ao preparo da erva-mate, como tem sido abundantemente descrito nos relatos de diversos indígenas.

O PAPEL DOS KAIOWÁ NO TRABALHO DA COMPANHIA MATTE: MODALIDADES DE TRABALHO Na década de 1920, toda a região dos ervais já estava esquadrinhada pela Companhia Matte Larangeira e dividida em “ranchos”. No rancho ocorria a elaboração da erva-mate, desde a sua localização dentro da mata até o seu ensacamento. A operação para o estabelecimento dos ranchos começava com o descobrimento dos ervais ou sua localização dentro das matas. Para que houvesse êxito em todas as etapas exigidas pela elaboração da erva, o trabalho era dividido por categoria. O habilitado Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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era aquela pessoa que saía nas matas em busca dos ervais. Depois de encontrado um erval novo era determinada a instalação, no local, de um rancho no qual a erva, depois de cortada, era levada para o devido preparo. O senhor Bernardo Vilfrido Brizuenha, proprietário da Erva Mate Globo, conhecia bem a importância do trabalho do mineiro, na condução do trabalho ervateiro. O mineiro era outra categoria de trabalho, pois o: [...] mineiro ia com o capataz, distribuindo, tinha paradas para tratar a erva, eles não podiam muito passar de 500 metros, passava de 600, passava de 300 de acordo com a parada, que seguramente cortavam e carregavam na cabeça. Um exemplo, até os 200, 300 quilos, na cabeça, conduzindo os mineiros. [...]4.

Esse trabalho demandava um número expressivo de pessoas que carregavam nas costas a erva cortada até os ranchos, para que, depois, pudesse ser levada ao barbaquá5, onde passava pelo processo de secagem, trabalho esse feito por um especialista, o “barbaquazeiro”, e, na sequência, a erva-mate era retirada do barbaquá e moída rusticamente para assumir a forma denominada de mbovire, só então estava pronta para ser ensacada. A fala do índio Kaiowá, João Aquino, que em setembro de 2004, data da entrevista, dizia-se com 103 anos, é de extrema importância, por se tratar de uma pessoa que se fez presente em todo o cotidiano que envolveu o período da Companhia Matte Larangeira. Aquino desempenhou o cargo de capitão, por 14 anos, no Posto Indígena de Fronteira José Bonifácio6, atualmente Terra Indígena 4 Entrevista realizada por Antonio Brand, Eva Mª L. Ferreira, Fernando A.A de Almeida e arquivada no CEDOC TEKO ARANDU UCDB - k7 2091, p. 12. 5 Estrutura destinada à secagem do mate possui, geralmente, a forma côncava. Seu tamanho varia de acordo com a produção. É construído, exclusivamente, de madeira, sendo guarnecido por pequenas peças laterais, conhecidas pelo nome de cambaraí. (SEREJO, 1986, p.59). 6 Entre as classificações para identificar os índios de acordo com o seu estágio de civilização, o SPI estipulou a classificação pelo tipo de unidade e orientação administrativa. Para os índios arredios instalaram-se Postos Indígenas de Atração; para os índios em transição para

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Te’ýikue, no município de Caarapó, MS. Também, por um período de 10 anos, ocupou a função de capitão na Terra Indígena de Takuara, município de Juti, MS. Na Companhia Matte Larangeira exerceu a função de habilitado no Porto Guairá, PR, sendo responsável por localizar nas matas os melhores ervais para posterior corte. João Aquino, mesmo residindo em Amambai, quando da entrevista, aguardava com ansiedade a demarcação da Terra Indígena de Takuara7 que, em 1999, foi reocupada parcialmente pelos índios Kaiowá e Guarani. Esse ilustre indígena, de fala mansa, lucidez invejável, sempre teve a disponibilidade de receber em sua casa as pessoas e compartilhar com elas a sua rica experiência. Nas conversas sobre a Companhia Matte Larangeira frisava que o índio foi uma peça chave em todo o desenrolar da atividade ervateira e na mesma intensidade explorado e a sua presença ocultada. Em abril passado, o senhor João Aquino veio a falecer, deixando uma lacuna na história indígena de Mato Grosso do Sul. Aquino descreve como era o trabalho com a erva-mate, desde a descoberta do erval à negociação do serviço com a Companhia Matte, até a finalização do trabalho. Na descrição evidencia a função de cada trabalhador: Trabalha, por exemplo, o senhor vai procurar um no mato [função do habilitado], aonde tem muito erva, que vai dar uns 300 saco, assim você já vai conversar com a Companhia: “aqui já achei erva, achei bastante lá no mato.” Então ele deu pra você ferramenta já pra você trabalhar, no mato, tirar erva. Dá tudo ferramenta e já vai, mas depois que você trabalha lá a civilização os Postos Indígenas de Assistência, Nacionalização e Educação; para aqueles índios em contato prolongado com a população abrangente, os Postos Indígenas de Alfabetização e Tratamento; para os grupos indígenas situados nas proximidades das fronteiras nacionais, os Postos Indígenas de Fronteira; e naquelas localidades onde fosse interessante, criaram-se os Postos Indígenas de Criação, destinados à pecuária (CORREA, 2000, p. 26). 7 Sobre a Terra Indígena Taquara ver: BRAND, Antonio. A aldeia Taquara - Documentos. TELLUS, ano 3 nº4. Ed. UCDB. Campo Grande, 2003, p. 149-167. PEREIRA, Levi M. 2005a. Relatório de identificação da Terra Indígena Taquara. Município de Juti, Mato Grosso do Sul, Documentação Funai, mimeo, Brasília.

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tira erva, embolsar tudo, bater, tem que bater primeiro, depois deixar moído e ensacar cada, aí se tem 20 saco já pode vender. A [...] Companhia já vem com 20 saco. Já vai trabalhando esse habilitado, por exemplo, eu fiquei habilitado quando eu estava no Porto Guaíra, mas não é aldeia, assim no mato. E também ali tem o, tá ocupado muito pessoa, alguém, a gente que trabalha na erva. Tem, tem que ter aquele pesador, pesando erva, erva, folha de erva sapecado aquele tem, que pesar, aquele chama Comissário. Agora tem o capataz, pra fazer, é, picada pra tirar erva ali do Picada e vim de lá do picada, aquele é o Capataz. Tem o Capataz, tem [...], 2o Capataz, 1o Capataz, assim que vai. Depois aquele que trouxe erva, é folha de erva, deixa no Barbakua, o Barbakua já está pronto ali também, tem que cavocar ali, lá, sai fogo lá, daqui, tem que cavocar fundo mesmo. E ali deixar em barbakua, deixa em cesina (charque), como assa também carne, mas assim, põe vara, aí carregava folha, folha verde, carregava tudo. Ali tem 1000, 2000 quilos erva, folha de erva né. Aí o barbakuasero sobe lá e vai mexendo, mexendo, mexendo até que ficou bem sequinho. Aí derruba aquele Barbakuasero, mas ele não, barbakuasero não pode moer, sabe, tem outro pessoa que vai, que vai bater, agora depois que ficar bem moído, entregar para aquele que tem saco pra embolsar. Assim que é, vai muito pessoa que tá trabalhando ali, tá ocupando muita pessoa aí8.

Todo o trabalho de preparo da erva se fazia de forma hierarquizada, com funções definidas de trabalho. Arruda distingue as modalidades de execução de trabalhos estabelecidos nos ranchos: [...] basicamente dois tipos de trabalhadores, diferenciados pela posição na produção e forma de remuneração. Num primeiro grupo estão os executores da elaboração da ervamate, os mineiros, os barbaquazeiros, os cancheadores (...). Este grupo tinha a remuneração baseada na produção, recebia por arroba ou saca de erva produzida. No outro grupo estão os de função ligada ao controle do processo de produção, o seu gerenciamento [...] (1997, p.70).

O trabalho indígena e a maioria dos paraguaios que serviam de mão de obra na elaboração da erva enquadravam-se no 8 Entrevista realizada por Antonio Brand, Eva Mª L. Ferreira, Fernando A.A de Almeida e arquivada no CEDOC TEKO ARANDU UCDB - k7 2092, p.5.

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primeiro grupo, citado por Arruda. Era um trabalho mais “pesado” e demandava um grande número de pessoas. Parece fugir dessa regra o Kaiowá João Aquino, que exerceu a função de habilitado, em Porto Guairá, no estado do Paraná. Os trabalhadores que desempenhavam essas funções residiam, provisoriamente, em “ranchitos”, nas proximidades do rancho. Quando do término do trabalho, o rancho era transferido para outro lugar. No caso dos índios Kaiowá e Guarani, várias famílias foram deslocadas de suas aldeias, acompanhando a instalação de ranchos para a coleta de erva. Consequentemente, esse deslocamento, e por vezes o intenso e prolongado contato com trabalhadores nãoindígenas nos ervais, contribuiu, certamente, para o enfraquecimento da sua organização social e da religião, sobre a qual interferiram também as epidemias e novas doenças que, segundo diversos informantes indígenas, tornaram-se comuns nesse período e são indicadas como causa para o abandono de muitas aldeias tradicionais (BRAND, 1997). Quando perguntado ao ex-funcionário da Companhia Mate Larangeira, não indígena, o Senhor Américo Aguilera, se o índio fazia ranchada, ele descreve como a vida transcorria a partir da construção do rancho: Fazia um rancho. Um barraco, um ranchinho. E às vezes ele vai dormir na erva. Na própria erva dormia por aí, com toda a família. Você sabe como que era, tendo fogo não precisava nem de coberta. E comida, comida mesmo ele achando um bichinho pra comer, come só aquele. Negócio de mercadoria, assim: trigo, arroz, quase eles não conheciam [...]. Vai trabalhá já não vem por aí. Já não vem em barraquinha, só fica por lá com a mulher e tudo. Pousa lá pelos matos, amanhã vem ver se acha serviço, quase ele não quer morar perto, junto com a gente9.

9 Entrevista realizada por Davi Marques Pereira e arquivada no CEDOC TEKO ARANDU UCDB - k7 1993-lado B, p.2-5.

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Percebe-se que o próprio estilo de vida dos trabalhadores indígenas, preferindo acampar com a família no mato, em vez de permanecer no acampamento com os demais trabalhadores, pode ter facilitado o esforço que a empresa já fazia no sentido de ocultar a presença indígena. Permanecendo no mato, o índio, mesmo trabalhando na erva, resguardava sua privacidade familiar, além de se livrar do ambiente de discriminação contra ele que muito provavelmente perpassava pelas relações no rancho ervateiro. Por outro lado, a permanência do índio na mata referendava o seu enquadramento enquanto incivilizado, associado à natureza bruta por seus costumes, inclusive por seus hábitos alimentares. O trabalho dos índios no corte de lenha é bem demonstrado por alguns depoimentos de não-indígenas, quando indagados sobre a participação dos índios no trabalho fora da aldeia. Na impossibilidade de negar o trabalho indígena, ele é admitido em uma atividade subsidiária. De outra parte, talvez os índios tenham tido certa predileção pela atividade de corte de lenha, pelo grau de liberdade que lhes assegurava. No depoimento do senhor Américo Aguilera, quando perguntado sobre a presença indígena nos ervais, ele afirma que: O Guarani trabalhou. É, então, ele trabalhava igual civilizado, trabalhava igual civilizado, trabalhava as crianças, trabalhava as mulheres, deles tudo. Criança que tem idade de 12 anos não carrega, mas trabalha na quebrança de erva, tudo. Ele trabalhava junto com a mulher e as crianças que tem 10, 12 anos. Trabalham juntos10.

Interessante como na fala acima a diferenciação étnica entre Kaiowá e Guarani é percebida pelo grau e pelo tipo de mobilidade no engajamento no trabalho da erva e não por uma diferenciação cultural ou linguística. Outra distinção é que o grupo 10 Entrevista realizada por Davi Marques Pereira e arquivada no CEDOC TEKO ARANDU UCDB - K7 1993 lado B, p.1-2.

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de trabalho do índio é formado exclusivamente pelos integrantes de sua família nuclear. Outra entrevista importante foi com o senhor Manoel de Almeida, 81 anos, gravada em março de 1998. Funcionário da Companhia Matte Larangeira, nascido em Campanário, sendo que seus pais e tios foram empregados da Companhia, tendo crescido nesse cenário ervateiro, presenciou as mais diversas atrocidades contra os trabalhadores que por lá se estabeleciam. O senhor Manoel recordou como a vida das pessoas era controlada pela Companhia “Se ele alterava [mineiro], ele prendia, eles tinham a polícia deles mesmos, da Companhia Matte, não era polícia militar, deles mesmos da Companhia. Prendia, levava lá [...], tempo de diferente as coisas”. Recorda, também, da visita do Presidente Getúlio Vargas à Campanário “Não ele não viu [os mineiros]. Porque ele não parou muito tempo [...]. Ele armoçou, comeu churrasco com o capitão Antônio Mendes Gonçalves”11. Em relação aos índios, o Senhor Américo constatou a presença deles nos arredores da Campanário, no cultivo de roças, mas não no corte da erva-mate. Era paraguaio, era mais paraguaio. Índio não tinha, só paraguaio mesmo. Índio só fazia roça pra ali por perto da Campanário tem um lugar chamado Uyvypé e próprio terceiro Arroio tinha uma aldeia de índios. Chegava trabalhá sim [índios]. Fazia lenha prá trabalhá na Matte Larangeira também pra usá no barbaquá, que diz. Eu não cheguei vê esse aí [índio no corte da erva], porque eu participei do teko caá, mas o índio é relaxado, a gente não acostuma, [...], índio é demais relaxado é, na quebra da erva do raído da erva ele mija e faz tudo, prá não secá a erva12.

11 Entrevista realizada por Adelaido Luis Spinosa Vila e arquivada no CEDOC TEKO ARANDU UCDB - K7 2000, p.5. 12 Entrevista realizada por Adelaido Luiz Spinoda Vila e arquivada no CEDOC TEKO ARANDU UCDB - K7 2000, p. 2.

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O senhor Américo menciona que não viu índios no trabalho do corte da erva-mate, mas não hesitou em desqualificálos como trabalhadores, no tocante ao modo de tratar a erva, ao enquadrá-los como relaxados. O corte de lenha feito pelos indígenas era um trabalho importante e peça fundamental no processo de elaboração da erva. Com a falta da lenha não havia fogo para manter o barbaquá em atividade. Hélio Serejo afirma que o índio não trabalhou no barbaquá e, sim, no corte de lenha: [...]. Chegavam lá, não sabiam falar nossa língua, eles pediam assim: aácha, aácha, aí era preciso dar uma explicação aácha é o machado. Pegava o machado que distribuíam muito, porque nunca faltava na ranchada ervateira e saiam pro mato. Iam cortar lenha numa medida certa, mais ou menos 80cm, que era para as fornalhas dos barbaquá, não é[...]. Eles cortavam a lenha, porque viram que aquela fornalha imensa consumia muita lenha, então chegava lá e já pedia aácha [...] prestaram grandes serviços, porque não era muito fácil arrumar as lenhas para abastecer as fornalhas, porque a erva nessa época valia ouro em pó, ouro em pó. Se produzisse duzentas toneladas, duas mil toneladas, tudo isso tinha comércio [...]. Calculava que entre todos eles dariam uns 600. Não era muito não13.

Ao analisar os relatos do senhor Américo e de Hélio Serejo, é possível concluir que os indígenas, ao dedicar-se ao trabalho de corte de lenha, poderiam, de certo modo, já satisfazer suas demandas por bens que tanto buscavam, como ferramentas, especialmente o machete, o machado e roupas. Alguns dos relatos indígenas destacam que os índios recebiam, como pagamento pelo seu trabalho, ferramentas e aponta ter sido este um dos principais motivos do interesse indígena pelo trabalho nos ervais. Embora a ênfase da participação indígena recaia sobre o fornecimento de lenha, ela foi de fato mais ampla.

13 Entrevista realizada por Antônio Brand e arquivada no CEDOC TEKO ARANDU UCDB - K7 1990, p. 11-13.

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Os Kaiowá e os Guarani participaram, ativamente, nas várias atividades que o preparo da erva-mate exigia. Na maioria das vezes, junto com a família, se embrenhavam nas matas em busca de um melhor local para fazer o rancho, para executar todas as fases de elaboração da erva. Esse cotidiano ervateiro fez do índio um exímio conhecedor das técnicas de elaboração da erva-mate. Esse conhecimento foi explorado pelo SPI, que passou a agenciar o trabalho dos índios junto aos fazendeiros e à própria Companhia Matte Larangeira.

O CENÁRIO MULTIÉTNICO NOS ERVAIS Os Kaiowá e Guarani, ao se engajarem no trabalho da erva-mate, precisavam deslocar-se de suas aldeias para o local no qual fossem designados para o trabalho. A partir de então passavam a conviver em outros espaços, estabelecendo diferentes formas de interação e hábitos não próprios da sua cultura. Índios e paraguaios representavam um número significativo dos trabalhadores nos ervais, juntamente com outros segmentos presentes em menor número. Não é possível precisar a quantidade de índios trabalhadores nos ervais, pelo não registro destes nos controles administrativos da Companhia Matte Larangeira. Alguns autores, em suas obras sobre a temática ervateira, apontaram estimativas para o número de trabalhadores. Sobre esse assunto, Correa Filho (1925, p.33) escreveu que a Companhia Matte Larangeira “tem na empresa uns 2.500 a 3.000 peões quase todos paraguayos [...]”. Os seus números diferem dos de Serejo (1986, p.95), que apontam para um número bem maior de trabalhadores, “[...] 18 mil trabalhadores; 10 mil pessoas ‘dependentes’ [...]”. As estimativas do número de trabalhadores apresentadas por esses escritores se deram a partir do lugar onde eles estavam inseridos e das fontes consultadas. Correa Filho circulou nas instâncias da política estadual e federal, no antigo sul de Mato Grosso, e Hélio Serejo escreveu sobre a temática Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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ervateira, baseado na sua experiência pessoal como ervateiro. Vale lembrar que os índios não estavam nessa contagem, apenas os paraguaios e outros trabalhadores. E, ainda, que esses trabalhadores viviam espalhados por ranchos, localizados nos diversos locais de colheita de erva-mate. No relatório de 1927, o funcionário do SPI, Pimentel Barboza (MONTEIRO, 2003, p.81), traz importantes informações sobre a quantidade de índios no trabalho ervateiro: “a proporção de índios caiuás empregados na elaboração da herva, sobre o operário [não-indígena], é, em média, de 75% na região de Iguatemi”. Nos demais estabelecimentos ervateiros visitados, o funcionário aponta que “a quantidade de índios que neles trabalham é sempre superior do trabalhador paraguayo”. Se nos basearmos neste relatório, de 1927, focado diretamente na presença indígena, é possível considerar como um número razoável a proporção de 50% de trabalhadores indígenas nos ervais, pelo menos em determinadas regiões, o que indica um número elevado deles. Outro elemento que participou do universo ervateiro foi o “gaúcho”, que chegou ao sul de Mato Grosso em busca de terras devolutas e não com o intuito de se tornar um trabalhador da Companhia Matte Larangeira. Tal atitude forçou a empresa ervateira a tomar medidas inibidoras em relação a esse migrante que questionava a forma como se dava o arrendamento e ameaçava o controle sobre os ervais, exercido pela Companhia. Embora o interesse direto desses gaúchos fosse o de se estabelecerem como proprietários, o certo é que muitos deles acabaram trabalhando na atividade ervateira e boa parte deles em cargos administrativos. A presença paraguaia fica evidente no cotidiano dos Kaiowá e Guarani, no tocante à erva-mate, porque entre esses dois povos havia diferenças culturais, mas não uma barreira lingüística, uma vez que falavam o mesmo idioma, o guarani. O uso da língua guarani pode ser considerado um fator que levou a uma relação marcada, em muitos momentos, por conflitos, em decorrência das 74

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estratégias usadas pelos paraguaios para se sobressaírem aos índios que não concordavam com certos métodos de convencimento adotados. O fato é que índios e paraguaios interagiam de maneira muito próxima, como seguem fazendo até hoje na região, muito embora esta proximidade não exclua conflitos e rivalidades. Para Poutignat (1998, p. 163): Nem o fato de falarem uma mesma língua, nem a contigüidade territorial, nem a semelhança dos costumes representam por si próprios atributos étnicos. Apenas se tornam isso quando utilizados como marcadores de pertença por aqueles que reivindicam uma origem comum.

João Aquino relembra que nem sempre o índio tinha a presença da sua família quando da sua ida para os ervais, sendo que os que levavam suas famílias improvisavam uma moradia “E, às vezes, leva a família, também, faz um ranchinho né. Morava ali”. Não havia uma separação das moradias e o índio junto com a sua família precisava habitar “[...] misturado com o paraguaio. Depois não quer mais, aí tira, já vai pra casa outra vez, assim que era trabalhar. Agora paraguaio não, paraguaio até às vezes morre lá14”. Nas bibliografias que tratam da Companhia Matte Larangeira, especialmente de Arruda (1997) e Guilhen (1991), fica evidente que não era tão simples o voltar para casa. Havia perseguições por parte da empresa, que dispunha de pessoas para capturar aqueles que resistiam em não ficar nos ervais. Sobre esse assunto, João Aquino relata como se davam as fugas, a partir da sua vivência: Fugia no serviço dele, aí fugia. Às vezes encontrava, mas às vezes também já vai embora, no mato né. Porque se encontrar mandou matar mesmo. O patrão não deixava mesmo levar, só mata. Então o índio, também, não é burro né, saiu, fugiu já vai embora. Fugia se sabe pra fugir, também, escapava. Se não vai, porque o paraguaio sempre seguia o caminho né. Então, atrás que vem pra pegar ele né, é pelo 14 Entrevista realizada por Antonio Brand, Eva Mª L. Ferreira, Fernando A.A de Almeida e arquivada no CEDOC TEKO ARANDU UCDB k7 2092, p.5-6.

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caminho né, ele achava. É [ paraguai fugia], também, ali tem muita conta, não podia mais pagar. [...]15.

Numa conversa informal, João Aquino observa que os índios, geralmente, não eram alcançados nas fugas pela polícia da Companhia. O peão paraguaio desconhecia o caminho de volta para casa, quando eram contratados pela empresa para o trabalho nos ervais. O percurso para chegar ao local era desconhecido pelos peões, de forma que não reconheciam o caminho se, por ventura, pudessem ter o interesse em retornar para o seu lugar de origem. Por isso, a estratégia por parte dos contratantes não obtinha total êxito em relação aos indígenas, pois estes dominavam melhor os caminhos da mata. Em suma, parece que era mais fácil para o índio fugir do erval do que seria para o paraguaio. Nas palavras de João Aquino, pode-se observar que o amanhecer nos ervais se dava de forma agressiva e o dia iniciava, ainda, de madrugada. Desde o levantar, pela madrugada e no decorrer do dia havia um monitoramento, por parte do capataz, das atividades desenvolvidas pelos trabalhadores. Tem que levantar de madrugada, 2 horas tem que comer alguma coisa, pra ir, 2 horas. Estava escuro, o capataz já vem acordou o pessoal, tem que acordar, o capataz já avisa: “tem que levantar, vamos comer alguma coisa” e, 4, 5 horas já clareando o dia, já vai, já vai tudo o pessoal. O capataz atrás, também, quando vai aqui faz picada grande, assim. Aqui tem barbakua, então daqui foi, o capataz dava aqui, pedaço por pedaço, aqui entra um pessoa, aqui outra pessoa, aqui outra pessoa, marcava tudo. Depois até acabou lá de tirar ia pra outra parte, assim que é. Mas [...] não pode dá a gente dormir bem. Assim que a gente trabalha na erva, é Companhia Matte. E muito pessoa antiga diz que morreu no erval. O paraguaio mata, tudo pessoa mata índio, porque no mato né, era. Assim tem de e depois, depois que o governo toma conta no Mato Grosso, e depois já pouco que morre índio, não trabalha mais no erval. Aqui foi, é triste a vida do índio aquele tempo, aquela época. É cuidava o 1o capataz cuidava 15 Entrevista realizada por Antonio Brand, Eva Mª L. Ferreira, Fernando A. A de Almeida e arquivada no CEDOC TEKO ARANDU UCDB k7 2092, p.11.

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ali, mas no fundo trabalha, passava aqui. Quando não saiu meio logo, aí ele foi ver o que aconteceu, aí o pião dele tava quebrando tudo, aí ele ajudava também quebrar. O Capataz manda assim, manda assim, se não faz bem, aí é brabo [...]16.

Na fala a seguir, o Senhor Marcelino Recalde, morador de Sanga Puitã, MS, que trabalhou na Campanário17, recorda-se de como o trabalho era vigiado e complementa o depoimento de Aquino de que o capataz era uma pessoa que vigiava todos os passos dos trabalhadores: O ervateiro é assim. Eu tem que trabalhar, tem que levantar 3 horas da madrugada pra poder ir no meu serviço. Sabe, porque na erva você tem que chegar 4 horas no clarear o dia sabe, pra poder mexer com aquilo, pra poder tirar bastante. Porque eu tirava 50, 60 arroba. [...] E então ele mandava o chefe dele, não, não é o chefe, o pião dele, mandava acordar a turma e dormia na tarimba e se a tarimba, se, ele chamava uma vez ou duas vezes, se não acordava ele erguia a tarimba e derrubava no chão. E se alguém acha ruim ele já metia bala. Isso que é o problema. [...]. Então, a turma chamava e se não acordar, ia o capataz tirar da, tinha aquela forquilha de que a gente fala né, em cima da tarimba. Tarimba é o que faz em cima. Então a turma ia derrubar a tarimba, soltar, derrubar o pião pra poder acordar, porque o pião às vezes quer dormir. Porque eu, no meu tempo, eu sou pião novo, queria dormir de todo jeito e eu tenho que levantar 3 horas pra ir trabalhar, 3 horas tem que ir trabalhar, 3 da madrugada, cedo era, é cedo, 3 da madrugada né, e então a turma por isso que fazia muita coisa na Companhia Matte. Se a turma acha ruim mete-lhe bala, deixa que morre, não quer nem saber. E nós, eu com aquilo, depois que acabou aquilo, que é matação, eu comecei trabalhar com ele, se não ia morrer, também. Depois, depois acabou, acho que a justiça tomou conta da firma né, começaram de novo aí saiu bem18.

16 Entrevista realizada por Antonio Brand, Eva Mª L. Ferreira, Fernando A. A de Almeida e arquivada no CEDOC TEKO ARANDU UCDB k7 2092, p. 6 –7. 17 A Fazenda Campanário era a sede administrativa da Companhia Matte Larangeira, situada no município de Laguna Carapã, MS. 18 Entrevista realizada por Antonio Brand, Eva Mª L. Ferreira, Fernando A.A de Almeida e arquivada no CEDOC TEKO ARANDU UCDB - k72088, p.6.

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O amanhecer e a divisão do trabalho conduzido pelo capataz, conforme relatado por Aquino e Recalde, também constam no depoimento de Carlos Galhardo19, no livro de Gilmar Arruda, “Frutos da terra, os trabalhadores da Matte Larangeira”: Aí depois vinha o 1° capataz, tinha o 2° capataz, o que atendia ele lá no... lá no mato. Lá eles cortando erva, tirando, pra ver se cortava bem, na hora de quebrar a erva para ver se estava em ordem, porque tinha...não podia ser mais de quatro centímetros [...] aí então o capataz abria as picadas, né, entendeu? Abria as picadas largas pra poder vir com que eles traziam, o raído [...] aí então o capataz vai e abre as picadas. Então ele mais ou menos mede um tanto assim por exemplo, com outra picadinha e esta aqui é teu, vai e outro, mais encostado no outro é dele, mais pra lá um pouquinho é meu e assim ia indo. Separava [...] o lugar que você irá cortar, entendeu? Era desse jeito (ARRUDA, 1997, p. 80-81).

João Aquino enfatiza o trabalho da família nos ervais, especialmente o trabalho da mulher que, juntamente com o marido, não media esforços na árdua tarefa: “Criança não [trabalhava], agora mulher, também, trabalha, mulher que não tem família (filhos) tem que acompanhar o marido de madrugada, vai quebrar, também, vai sapecar erva primeiro, depois quebrar. [...]20”. Assim, distribuía cada trabalhador em talhão (parte), era uma forma de controlar o trabalho do peão. Segue João Aquino, a respeito da presença feminina nos ervais, além de ajudar o marido no trabalho, também era motivo de desavenças entre índio e paraguaio. É ruim mesmo, o Paraguaio, né. Por causa da mulher. Por causa da mulher que o Paraguaio matava índio, brigava mais do que índio. Porque não gostam do índio esses civilizados, paraguaio, outro, assim, às vezes, por causa da mulher, pra tomar dele, matava o índio. [...]21. 19 Filho de Segismundo Galhardo, administrador e depois habilitado da Companhia (Arruda, 1997, p.66). 20 Entrevista realizada por Antonio Brand, Eva Mª L. Ferreira, Fernando A. A de Almeida e arquivada no CEDOC TEKO ARANDU UCDB k7 2092, p.7. 21 Entrevista realizada por Antonio Brand, Eva Mª L. Ferreira, Fernando A. A de Almeida

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A mulher “branca”, na fala de Aquino, era mais respeitada do que as mulheres indígenas. “Tem [mulher branca], tinha algumas delas, também, mas, mas esse já é separado, como não pode, no meio do índio. Os que têm mulher já são separados. Não sei por que [...]”22. No dia-a-dia do árduo trabalho nos ervais ocorriam esses conflitos que precisavam ser administrados pelos índios, pois faziam parte desse longo dia que começava de madrugada. Dentro desse contexto de perseguição às mulheres, a mulher indígena era a maior vítima, porque, segundo o informante, o homem não-índio não “tomava” a mulher de outro branco, somente a indígena, fato que, certamente, contribuía para a desestruturação de uma família que já vinha de um rompimento do cotidiano familiar, a partir do momento que saía de sua aldeia para trabalhar nos ervais. O relato de João Aquino indica uma relação de extremo desconforto entre índios e paraguaios. Indica que a convivência foi marcada por conflitos que vão desde o roubo de mulheres à perseguição por conta de dívidas contraídas nos armazéns da Companhia: É aí mesmo, porque o índio é muito, como é, querendo é, não é sabido. O Paraguai é mais sabido. O Paraguai fala assim com o índio só pra enganar: “é, índio vou comer essa família que tem”. Mas Paraguai “não”, por causa isso que talvez brigava, por causa da palavra: “vou tomar mal”, xingava dos índios, que os índios não briga com Paraguai. Assim que foi era né23. Às vezes ele [o índio] não paga a conta, ele foi, fugia, ia embora, aí o patrão mandava procurar, se achava, matava lá. Assim que Paraguai faz, porque tudo é Paraguai, é cabeçante, tudo é Paraguai24. e arquivada no CEDOC TEKO ARANDU UCDB k7 2092, p.8. 22 Entrevista realizada por Antonio Brand, Eva Mª L. Ferreira, Fernando A. A de Almeida e arquivada no CEDOC TEKO ARANDU UCDB k7 2092, p.8. 23 Entrevista realizada por Antonio Brand, Eva Mª L. Ferreira, Fernando A. A de Almeida e arquivada no CEDOC TEKO ARANDU UCDB k7 2092, p.8. 24 Entrevista realizada por Antonio Brand, Eva Mª L. Ferreira, Fernando A. A de Almeida e arquivada no CEDOC TEKO ARANDU UCDB k7 2092, p.9.

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Nessa última parte da fala de Aquino fica evidente a reclamação contra o trabalhador paraguaio, por se considerar superior ao índio. Segundo Aquino, esse trabalhador estava mais inserido no empreendimento porque “é mais sabido” e o índio ocupava postos de trabalho inferiores. Ao que tudo indica, os cabeçantes eram paraguaios. Ao analisar os relatos percebe-se que o trabalhador paraguaio representava um elemento importante nas relações de trabalho e nas estratégias do empreendimento ervateiro. Eles foram amplamente usados por aqueles que lucravam com o comércio da erva-mate. O fato de falar o mesmo idioma dos índios era um elemento facilitador nas negociações com eles, característica explorada pela empresa para adentrar no território indígena e conseguir que estes concordassem com a exploração da erva nativa, abundante nesses locais. João Aquino afirma ainda que os cabeçantes eram paraguaios, ocupavam assim posições superiores no sistema. Muito provavelmente eles seriam os responsáveis por convencer os índios a se engajarem na atividade ervateira. Os relatos de João Aquino indicam, ainda, sua percepção de que os índios foram enganados ao trocarem a erva-mate por tecidos, embora essa troca por produtos, mesmo sem equivalência financeira, parece ter sido o grande objetivo perseguido pelos índios em suas relações com a Cia. Matte. Mediante as negociações de produtos de interesse dos índios, a Cia Matte não conseguia apenas a autorização para a exploração de muitos ervais, mas, ainda, que eles próprios cuidassem dos ervais, para que nos períodos de corte os mesmos ervateiros pudessem voltar e usufruir da mesma erva: Paraguai encontrava [índio] no mato. Paraguai ia conversar com índio, com cacique. Achava erva, grande erval que está ali em roda da casa dele. Pedação ali, tem que conversar com capitão. Aí Paraguai ia lá, mas patriciada é burro mesmo. Falava: “não eu não quero, eu não deixo você fazer, tá aqui erva. Essa erva é minha, é”. Então o paraguaio é muito sabido né. Falava: “é, é Deus que deu pra mim aqui esse pedaço”, índio falou pra ele. Então o Paraguai: “pois é, é Deus mesmo 80

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que mandou procurar você, pra mim falar.”índio já acreditava (risos). Aí que já vai entregar o erval dele. Até que a erva pegou tudo. Mas primeiro é índio, bastante índio, é tem erval grande, grande a aldeia, mas agora não tem mais. Aí o Capitão falava: “então, se Deus mesmo mandou procurar de mim, você aí, como é que nós vamos fazer”. Aí, eu venho, aqui eu trouxe aqui pra você”, quer dizer que é pano não, ele vai pagar pra ele. “Então esse Deus também mandou pra você, pra você entregar esse erval, agora eu vou pagar pra você” e deu pano, essas coisas antigamente saia 3, 10 metros cada peça, leva pra capitão. Agora o capitão repartia pra cada um. Então já deu, já enganou o índio.

O paraguaio valia-se do conhecimento da língua e da religião indígena para negociar junto aos índios uma forma de adentrar nos ervais. A remuneração pelo trabalho indígena com roupas, relatada por João Aquino, foi observada, também, pelo funcionário do SPI, Pimentel Barbosa, e registrada em seu relatório: Como fructo e producto de seu trabalho pesadíssimo, apenas sobre o corpo um terno de tecido ordinaríssimo do qual faz parte, indefectivelmnete, um lenço de seda de cor vermelha, distinctivo que lhes custa nunca menos de trezentos pesos, ou sejam cincoenta mil reis da nossa moeda (Monteiro, 2002, p. 79-80).

O índio estabelecia uma relação de aceitação daquela situação de extrema interferência de paraguaios em seu território. A seguir, na fala de João Aquino, fica a impressão de que, naquele momento, os índios não estavam preocupados com as consequências dessa presença, no sentido de que os ervais (natureza) acabassem, mas estavam preocupados em obter objetos de seu interesse, que também possibilitavam uma aproximação ao modo de vida dos paraguaios, permitindo, sob o olhar indígena, reduzir a discriminação. De outra parte, o cuidado dos ervais, acertado com os prepostos da Companhia, poderia traduzir-se também em proteção do espaço por eles ocupado. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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Não [saía do rancho], estava sempre aí. É [ajudava no corte da erva], aí o patriciada ajudava. Agora, depois que acabou ali o erval, e o encarregado do trabalhador de erva já procurava no outro lugar. Já deixou aquele, já vai embora. Então, também, o índio, conversar com índio. E assim que é. Às vezes não tem muito erval, mas não tem índio ali. Aí a Companhia entrava, folgadamente. Continuava ali, depois, saiu, ali já deixou né. Depois de três anos vai voltar outra vez ali, porque em três anos aquele broto já está tudo madura, né. Ficam sempre, falam pra eles cuidarem do erval, até voltarem novamente que trarão mais coisas ainda pra agradarem. Kaiowá e Guarani, tava junto ali, trabalhava também. É tudo pra poder ganhar algum, algum salzinho, algum roupa né. Dinheiro não, só roupa25.

O relato explicita que muitas vezes os índios foram utilizados como guardiães da erva em regeneração. Essa situação de pressão, vivenciada pelos Kaiowá e Guarani, que favorecia, de um lado, a possibilidade de acesso a objetos e bens muito desejados por eles, embora não próprios de sua cultura e, de outro, a cessão da erva-mate, abundante em seu território e a consequente presença de trabalhadores estranhos, remete-nos para a análise de Poutignat (1998) sobre a manutenção das fronteiras étnicas. E segue Aquino: A família tudo, o índio fica sempre ali, cuidando. Agora, então, saiu aquele patrão não é, falou pro cacique: “você cuida pra nós aqui, quando eu voltar eu trouxe mais pano, alguma coisa, pagar pra vocês. (riso), mas dinheiro não. É assim que trabalhava antigamente26.

Ao “remunerar” os indígenas com objetos de uso pessoal para, em contrapartida, adentrar o seu território e usufruir da erva-mate, com a ajuda dos próprios índios, possibilitava à empresa maior rendimento financeiro e aos Kaiowa e Guarani permanecer em seu território e, ao mesmo tempo, ter acesso a ferramentas, tecidos, 25 Entrevista realizada por Antonio Brand, Eva Mª L. Ferreira, Fernando A.A de Almeida e arquivada no CEDOC TEKO ARANDU UCDB k7 2092, p.9-10. 26 Entrevista realizada por Antonio Brand, Eva Mª L. Ferreira, Fernando A. A de Almeida e arquivada no CEDOC TEKO ARANDU UCDB k7 2092, p.11.

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artigos que despertavam seu interesse e que, com o decorrer do tempo, passam a fazer parte do cotidiano indígena. Os relatos indígenas e não indígenas permitem compreender melhor as atitudes e a posição social que os índios ocupavam no sistema ervateiro. Pode-se concluir que a submissão imposta pelo sistema aos indígenas e a forma como os próprios índios se inseriram no contexto ervateiro contribuíram para o seu ocultamento frente aos que estudaram ou viveram naquele período, conforme atestam bibliografias sobre a temática indígena e, igualmente, os depoimentos das pessoas que não conseguiram identificar com precisão essa presença. Sobre essa invisibilidade, Brand (1997, p.72) conclui que “a ausência de referências mais consistentes sobre a participação indígena [...] talvez possa ser explicada pelo seu provável ocultamento no meio dos paraguaios, falando a mesma língua e com costumes aparentemente próximos”. Pereira (2002), no relatório de identificação da Terra Indígena Guyraroká, segue a indicação dessa passagem de Brand e observa que os Kaiowá de Guyraroká tiveram uma participação ativa na construção da “invisibilidade” étnica de sua comunidade, uma vez que, ao não serem reconhecidos como indígenas, fugiam ao preconceito que pesava contra os índios, facilitando a sua interação no cenário multiétnico, que tinha lugar no acampamento de extração de erva. Percebe-se, então, que mesmo inseridos num contexto de forte dominação exercida pelos prepostos da Companhia Matte Larangeira, os Kaiowá e Guarani desenvolveram estratégias próprias, não abrindo mão do seu protagonismo sobre o processo que viviam, e conservaram as diferenças no próprio espaço organizado pelo ocupante, no caso, a Companhia Matte Larangeira. A proximidade linguística e cultural entre os Kaiowá, Guarani e os trabalhadores paraguaios facilitava essa invisibilidade e os Kaiowá e Guarani faziam de tudo para se parecerem com Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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os paraguaios, incorporando as formas de vestimenta, o uso de expressões linguísticas, além de outros aspectos comportamentais. É, no entanto, importante destacar que esse esforço dos índios não diluía as fronteiras étnicas entre eles e os paraguaios, uma vez que essas fronteiras eram sempre repostas, mas permitia a instauração de um sistema interétnico de interação, no qual os Kaiowá e Guarani ocupavam o lugar de menor prestígio. Isto redunda em um sistema organizado a partir de distintas posições hierárquicas.

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CONTROLE DO E-MAIL DO TRABALHADOR PELO EMPREGADOR: BALIZAS

Francisco das C. Lima Filho1

1 INTRODUÇÃO Com o desenvolvimento das novas tecnologias da informação, o uso do correio eletrônico (e-mail), além de ter se tornado uma ferramenta de trabalho, está praticamente generalizado na sociedade, que tem mudado com sua incorporação os modos de comunicação que até então prevaleciam como normais. De igual modo se está generalizando em praticamente todas as empresas o uso desse instrumento ou ferramenta de comunicação, tanto a nível interno como externo, sendo atualmente talvez o mais eficaz e veloz meio de comunicação de que dispõe a sociedade informacional, cada vez mais preocupada em poupar tempo e gastos. O e-mail ou correio eletrônico constitui uma forma de comunicação que adquiriu nos últimos anos uma grande importância 1 Mestre em Direito pela UNB. Mestre e doutorando em Direito Social pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha). Desembargador Vice-Presidente e ex-Diretor da Escola Judicial do TRT da 24ª Região. Professor em pós-graduação na UNIGRAN – Dourados e UCDB – Campo Grande – MS. E-mail: francisco.fil@dourados.br.

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no âmbito laboral, tendo se tornado num dos principais instrumentos de comunicação das organizações empresariais, se não o principal, na medida em que se transformou na “pedra angular2” das comunicações eletrônicas, pois a partir dele se estrutura toda uma série de serviços da sociedade de informação, alterando assim os modos de comunicação da sociedade informática e, por conseguinte, das empresas. Nesse contexto, essa ferramenta de comunicação se tornou um instrumento de trabalho, porém e ao mesmo tempo, pode também ser usada para fins privados. Tem assim, como lembra Teresa Alexandra Coelho Moreira3, “uma clara natureza dupla, pois para além de ser uma ferramenta de trabalho, é, também, um meio de comunicação”. Por conseguinte, protegido pelo direito fundamental do sigilo das comunicações, independentemente de ser utilizado “para comunicações internas e externas, com caráter habitual ou residual na empresa”4. Essa constatação leva a se fazer as seguintes interrogações: até que ponto os trabalhadores podem efetivamente utilizar este novo instrumento de comunicação para fins privados, mesmo sendo ele uma ferramenta de trabalho, e como separar esses fins privados da esfera laboral? E a segunda, pode o empregador controlar o conteúdo das mensagens recebidas e enviadas pelo e-mail do trabalhador, e, caso positivo, qual é o limite desse controle? Nesse contexto, há uma confrontação entre o poder de 2 RODRIGUES, Benjamim Silva. Das escutas telefônicas – à obtenção da prova (em ambiente) digital. Coimbra: Editora Coimbra, 2008, Tomo II, p. 115. 3 COELHO MOREIRA, 2010, p. 707. 4 “El correo electrónico constituye un servicio de mensajería electrónica que tiene por objeto la comunicación no interactiva de texto, datos, imágenes o mensajes de voz entre un “originador” y los destinatarios designados y que se desarrolla en sistemas que utilizan equipos informáticos y enlaces de telecomunicaciones”. ROJAS POZO, José Luís. O Uso del correo electrónico e internet en ámbito laboral: problemática jurídica. Disponível em: <http://social. internautas.org/html/648.html>. Acesso em: 8 maio 2011.

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controle de que se encontra munido o empregador e que lhe faculta adotar medidas de controle e vigilância para verificar o cumprimento dos deveres e das obrigações contratuais por parte do trabalhador e, ao mesmo tempo, salvaguardar o patrimônio da empresa e a segurança dos próprios trabalhadores e das pessoas com quem aquela mantém relações5 e o direito à intimidade e reserva da vida privada do trabalhador e ainda ao sigilo das comunicações. Por constituir uma dimensão do poder de direção empresarial, que encontra fundamento na liberdade de empresa e de iniciativa (art. 5º, inciso XIII da Carta de 1988), pode se confrontar com o direito à intimidade, de reserva da vida privada e das comunicações do trabalhador (incisos X e XII do art. 5º). Por conseguinte, deve ser exercido de forma ponderada, proporcionada. Como averba José Cuervo Alvaréz6, tomando por base o ordenamento jurídico espanhol: El debate jurídico nace de la confrontación entre el poder de dirección empresarial, que permite al empresario la adopción de medidas de vigilancia y control para verificar el cumplimiento por el trabajador de sus obligaciones y deberes laborales, reconocidos en el artículo 20.3 del Estatuto de los Trabajadores, y por otro, el derecho fundamental a la intimidad personal consagrado en el artículo 18 de la Constitución. Cuando el empresario utiliza programas informáticos de monitorización, no hace más que ejercer la facultad que le otorga el Estatuto de los Trabajadores, y ello con la finalidad de proteger el patrimonio empresarial o la productividad de los empleados. En este poder de dirección y organización del trabajo radica el principal fundamento del empresario para acceder y controlar las comunicaciones electrónicas realizadas por los trabajadores. Lo que implicaría que el empresario puede, en ejercicio de ese poder de dirección y control, establecer los mecanismos técnicos, como 5 Poder que a meu sentir encontra-se inserido nas faculdades previstas no art. 2º da CLT. 6 ALVARÉZ, José Cuervo. Privacidad del correo eletrónico del trabajador. Disponível em:. <http://www.informatica-juridica.com>. Acesso em 06 jun.2011.

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programas que permitan verificar que sus trabajadores llevan a cabo un uso correcto del correo electrónico, instrumento que el empresario ha puesto a disposición del trabajador para el cumplimiento de su prestación laboral. Por otro lado tenemos el concepto de intimidad que es recogido en nuestra Constitución como un derecho fundamental. Es el artículo 18 en su apartado 1 el que establece que se garantiza el derecho a la intimidad personal y desarrolla en sus apartados 3 y 4 que “se garantiza el secreto de las comunicaciones y, en especial, de las postales, telegráficas y telefónicas, salvo resolución judicial” , y que “la ley limitará el uso de la informática para garantizar el honor y la intimidad personal y familiar de los ciudadanos y el pleno ejercicio de sus derechos”. El trabajador, tiene derecho a su intimidad y privacidad reconocido constitucionalmente, tanto en el desempeño de operaciones profesionales como no profesionales, ya que además de la Constitución en el artículo 4.1.e. del Estatuto de los trabajadores se establece el derecho del trabajador “al respeto de su intimidad y a la consideración debida a su dignidad”, mientras que los artículos 5 y 20 del Estatuto de los Trabajadores delimitan las facultades de dirección y control del empresario, cuando se estable en al artículo 5.c. que “los trabajadores tienen como deber básico cumplir las órdenes e instrucciones del empresario en el ejercicio regular de sus actividades directivas” y el artículo 20, en su apartado 1, establece que “el trabajador estará obligado a realizar el trabajo convenido bajo la dirección del empresario”. Pero es en su apartado 3 donde reconoce y delimita las facultades de control y vigilancia, cuando establece que “el empresario puede adoptar las medidas que estime más oportunas de vigilancia y control para verificar el cumplimiento por el trabajador de sus obligaciones y deberes laborales, guardando en su adopción y aplicación la consideración debida a su dignidad humana y teniendo en cuenta la capacidad real de los trabajadores disminuidos en su caso”.

Nesse contexto, a questão que se põe à apreciação é de se saber até que ponto o controle pode ou não ser legitimado e quais as balizas que devem ser respeitadas. É o que se pretende discutir a seguir. 90

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2 LIMITES DO PODER DE CONTROLE DO E-MAIL DO TRABALHADOR PELO EMPREGADOR Para solucionar a colisão entre o poder de o empresário controlar o e-mail e o direito à intimidade e a reserva da vida privada e ao sigilo das comunicações do trabalhador, direitos de natureza fundamental, existem basicamente duas correntes: a) uma justificando o poder de o empregador controlar as mensagens recebidas e transmitidas pelo e-mail do trabalhador, fundada no direito de propriedade, na medida em que a empresa, sendo titular do bem, teria o poder de controlar os e-mails expedidos e recebidos pelo empregado, para verificar o cumprimento dos deveres e obrigações por parte deste, inclusive acautelando-se contra o uso ilícito do instrumento; b) a outra, alicerçada no direito fundamental à privacidade e à intimidade e no sigilo das comunicações, negando essa possibilidade. críticas.

A meu juízo nem uma nem a outra teoria são isentas de

Com efeito, o empregador não pode fiscalizar, sem o consentimento do empregado, os bens que este tem para seu uso e gozo. Mesmo tendo sido reservados em razão do trabalho, esses bens passam a integrar a esfera íntima e privada do trabalhador. Nesse passo, não se pode concordar com o entendimento de que o empregador pode monitorar o e-mail do trabalhador pelo mero fato de o computador ser de propriedade da empresa e usado como ferramenta de trabalho. O fato de esse instrumento ser ou não meio de comunicação e ferramenta de trabalho não autoriza, só por isso, a intromissão do empregador na esfera privada do empregado, pena de Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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afetação à garantia constitucional da intimidade e da reserva da vida privada e ao sigilo das comunicações. Nesse sentido é também o entendimento doutrinário de José Cuervo Alvaréz7 ao defender, com base no ordenamento espanhol que: Parece claro que, del hecho de que el ordenador y la dirección del e-mail sean propiedad del empresario, esto no puede habilitarle para un acceso indiscriminado sobre la actividad laboral llevada a cabo por el empleado a través del e-mail, porque en este caso se verían afectados derechos fundamentales como el derecho a la intimidad (Arts. 18.1CE y 4.2.e. ET), el derecho a la libre comunicación entre personas y libertad de expresión (Art. 20.1.a. CE) y el derecho al secreto de las comunicaciones (Art. 18.3 CE). Por tanto, de lo que se trata es de lograr un procedimiento que proteja los derechos personales del trabajador en el centro de trabajo y, también, los derechos de los empresarios, para evitar las situaciones de abuso.

De fato, o e-mail é ferramenta de trabalho, mas ao mesmo tempo serve ao indivíduo. Não é porque o empregador forneceu o equipamento que pode invadir a privacidade e a intimidade do seu subordinado que se manifesta por esse meio, naturalmente. O e-mail – lembra Teresa Alexandra Coelho Moreira8 – constitui atualmente um utilíssimo instrumento de trabalho que traz inúmeras vantagens do ponto de vista organizativo e produtivo, traduzindo-se numa mais-valia para a maior parte das empresas. Entretanto, não se pode deixar de lembrar, também, que se apresenta como um autêntico método de fiscalização, na medida em que facilita o controle da execução da atividade do trabalho e o seu uso incorreto, tendo assim o empregador legítimo interesse 7 ALVARÉZ, José Cuervo. Privacidad del correo eletrónico del trabajador. Disponível em: <http:// www.informatica-juridica.com>. Acesso em: 06 jun.2011. 8 COELHO MOREIRA, op. cit. p. 709.

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nesse controle. Porém, o interesse em controlar eletronicamente o trabalhador pode, de fato, colidir com uma não menos legítima expectativa de privacidade que o empregado tem e que encontra fundamento na confidencialidade e na inviolabilidade das comunicações por ele realizadas a partir do computador, surgindo desse fato a garantia de tutela do sigilo e, portanto, de suas mensagens privadas e seus arquivos, especialmente quando não vedado o uso do computador para fins privados ou quando a reiteração de certas práticas são tacitamente admitidas pelo empregador9. Nesse caso, inadmissível o controle do e-mail quanto a essas mensagens e arquivos, menos ainda com base no fundamento de que o empregador, sendo proprietário do computador e tendo fornecido o correio eletrônico, poderia controlá-lo sem qualquer limitação. Na verdade, como lembra Jorge Luiz Souto Maior10, por detrás da postura do empregador de defender seu “direito” de visualizar as mensagens enviadas e recebidas por seu empregado está embutida uma nova forma de controle, baseada muitas vezes no falso argumento da moralidade, para, no fundo, apenas potencializar o estado de sujeição do empregado.

Ademais, o fato de o empregador ser titular do computador e ter fornecido o e-mail não permite concluir que o acesso seja sempre alheio ao segredo das comunicações e constitua uma medida que não entra em contradição com o direito relativo à intimidade do trabalhador11. 9 De acordo com a doutrina, entende-se por práticas empresariais aquelas situações nas quais o empresário permite um determinado comportamento em tempo concreto, a partir do qual o trabalhador pode deduzir certos direitos. ZACHERT, Ulrich. Los principales problemas plenteados e el trabajo con las tenologías de la información y la comunicación: la experiencia alamana. Revista de Derecho Social Latinoamérica, Buenos Aires, v. 1, 175-180, 2006. 10 SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. O monitoramento de e-mail no local de trabalho. Revista de Derecho Social Latinoamérica, Buenos Aires, v. 1, p. 199-202, 2006. 11 CASTRO, Javier Gárate. Derechos Fundamentales del Trabajador y Control de la Prestación de Trabajo por Medio de Sistemas Proporcionados por las Tecnologícias. Minerva

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El principio de proporcionalidad rige también aquí y, por lo tanto, hará que valorar si no existe otra medida menos agresiva que permita satisfacer el legítimo interés de la empresa de controlar el correcto uso de la herramienta o comprobar la sospecha de comisión de irregularidades por parte del trabajador controlado. No creo que la irregularidad en el uso del correo electrónico, sancionable como incumplimiento contractual, justifique cualquier tipo de control. Al respecto, interesa tener presente que, tanto si se trata de la fiscalización del uso del correo electrónico como de otras posibles aplicaciones del ordenador, desde el punto de vista de la adecuación a principio de proporcionalidad, la menor agresividad de los derechos fundamentales afectados corresponde, como también han tenido oportunidad de señalar los Tribunales laborales, al control o registro informático que se circunscribe a los aspectos externos de la información registrada, como son el tipo de programas o aplicaciones utilizadas, el tipo de paginas Web consultadas o la cantidad de correos enviados y la fecha de la misión. Se a la empresa le basta para satisfacer su interés con el acceso a ese tipo de datos, no debe ir más lejos, salvo que quiera correr el riesgo de su actuación se estime contraria a los derechos fundamentales del trabajador.

Nesse quadro, o que se precisa é fazer a necessária distinção entre o e-mail corporativo - que se destina apenas ao uso pelo trabalhador como ferramenta de trabalho - daquele que além dessa destinação pode também ser usado para fins privados, o que, diga-se de passagem, é muito difícil, se não impossível. No primeiro caso – uso exclusivo como ferramenta de trabalho – em princípio estará o empregador capacitado para fiscalizar e vigiar o tráfego das mensagens recepcionadas e expedidas pelo trabalhador e que digam respeito exclusivamente ao cumprimento das obrigações e deveres laborais, pois esse procedimento não atenta contra o direito à intimidade e à reserva da vida privada, tampouco afeta o sigilo das comunicações, porque se trata de mero exercício do poder de controle do cumprimento das obrigações e deveres contratuais, derivado do poder de direção empresarial. Revista de Estudos Laborais. Lisboa: Almedina, Ano 5, n. 8, p. 176-177, mar. 2006.

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Todavia, quando não se proíbe o uso privado do e-mail ou pelo menos se tolera esse uso, criando para o trabalhador a legítima expectativa de privacidade das mensagens remetidas ou recebidas por esse instrumento de comunicação, o limite encontra abrigo na proteção da vida privada e na intimidade do trabalhador e ainda no sigilo das comunicações constitucionalmente previsto. Porém, mesmo quando autorizado o controle, parece razoável defender que somente poderá ocorrer, excepcionalmente, para verificar o correto uso da ferramenta ou quando vise comprovar eventual cometimento de irregularidades por parte do trabalhador controlado, na medida em que esse procedimento implica limitação ao direito à privacidade ou à intimidade do empregado e ainda ao sigilo das comunicações, vale repetir. Ademais, não se pode de todo impedir que alguém faça remessa de algum comunicado privado ao trabalhador, mesmo sendo o e-mail de natureza corporativa e, portanto, ferramenta de trabalho, e nessa hipótese o controle ilimitado pelo empregador viola a privacidade, a intimidade e o sigilo das comunicações do empregado. Deve-se levar em conta ainda que a restrição de direito fundamental, embora excepcionalmente admitida, precisa ser justificada pela necessidade de garantir outro bem ou direito constitucionalmente protegido, pois não existem direitos ilimitados. Todo direito tem seus limites. Em relação aos direitos fundamentais, estabelece a Constituição por si mesma em algumas ocasiões esses limites, enquanto em outras o limite é derivado de uma maneira mediata ou indireta dessa norma, enquanto justificados pela necessidade de proteger outros bens constitucionalmente protegidos. No escólio doutrinário de Rafael Naranjo de La Cruz12: 12 NARANJO DE LA CRUZ, 2000, p. 247.

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El ámbito del derecho únicamente podrá ser restringido cuando la limitación venga justificada por la necessidad de proteger otros biens o derechos garantizados en la Constitución, y satisfaga, además, los requisitos exigidos por el princípio de proporcionalidad.

Por essa razão: la restricción del derecho fundamental deve tener en cuenta también que éste disfruta igualmente de protección constitucional, aí como el carácter supremo de la misma. Por tanto, el limite ha de aparecer justificado por la necesidad de garantizar otro bien o derecho constitucionalmente protegido; ser adecuado, esto es, útil para consecución del fin propuesto; necesario, por no existir otro igualmente apto para garantizar el bien que se le opone que, sin embargo, no afecta el derecho fundamental en cuestión, o lo haga en menor medida; y finalmente, debe ser proporcional en sentido estricto, es decir, corresponderse a la importancia que, desde un punto de vista constitucional, cabe atribuir a cada una de las manifestaciones de los bienes en juego13.

Nesse sentido, aliás, foi o que entendeu o Tribunal Constitucional Espanhol na STC 2/1982. Desse modo, não é possível comungar com o entendimento daqueles que admitem possa o empregador monitorar o e-mail do trabalhador pela mera circunstância de ser proprietário do computador. Para essa corrente, sendo o e-mail mera ferramenta de trabalho, o empresário pode “monitorar e rastrear a atividade do empregado no ambiente de trabalho, em e-mail corporativo, isto é, checar suas mensagens, tanto do ponto de vista formal quanto sob o ângulo material ou de conteúdo”14. 13 NARANJO DE LA CRUZ, op. cit., p. 217. 14 Esse foi o entendimento acolhido pelo Tribunal Superior do Trabalho (1ª Turma), ao julgar o ED-RR 613/2000-013-10-00.7, afirmando que o e-mail corporativo ostenta “natureza jurídica equivalente à de uma ferramenta de trabalho proporcionada pelo empregador ao empregado para a consecução do serviço”, o que não parece acertado, pois é também, sem

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Ao se admitir essa tese como válida, estar-se-ia privilegiando o direito de propriedade em detrimento ao direito à privacidade, à intimidade do trabalhador e ao sigilo de correspondência, constitucionalmente garantidos (5º, incisos X e XII, da Carta de 1988). Deveras, o simples fato de uma linha telefônica e aparelho pertencerem a uma empresa, evidentemente não confere a essa organização o direito de interceptar as ligações de seus empregados sem autorização judicial15. O direito de propriedade não pode ser exercido de forma absoluta, mas de acordo com a função social, vale dizer: com respeito aos direitos fundamentais do trabalhador, entre os quais se encontram o direito à privacidade, à intimidade e ao sigilo das comunicações, expressamente tutelados pelo Texto Supremo, que não são eliminados apenas porque o empregador é titular dos meios de produção. Como se disse acima, o poder de controle do empregador, dimensão do poder empresarial, tem fundamento na liberdade de iniciativa ou empresa e não no direito de propriedade, que também não é absoluto, encontrando baliza na função social prevista nos art. 5º, inciso XXIII, e 170, inciso III, do Texto Supremo. Nessa linha de pensar, e sendo o e-mail considerado não apenas como ferramenta de trabalho, mas também como um meio de comunicação, deve ser protegido frente à intromissão externa, existindo ainda um elemento que exterioriza o caráter privado de seu conteúdo: a contrasenha ou chave de acesso personalizada. Desse modo, não é necessário ser titular de um computador físico para acessar a mensagem, que pode ser acessada dúvida alguma, um instrumento de comunicação e por isso mesmo, protegido pelo sigilo das comunicações. 15 Comunga desse entendimento, entre outros, Alexandra Agra Bel Monte. O Monitoramento da Correspondência Eletrônica nas Relações de Trabalho. São Paulo: LTr, 2004, p. 90.

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mesmo sem se ser proprietário desse aparato, o que evidencia o elemento de privacidade nesse tipo de comunicação, sendo isso suficiente para que se lhe aplique toda a proteção de que goza a correspondência postal.

3 DIMENSÃO DA PROTEÇÃO O sigilo das comunicações cobre toda a relação por correio eletrônico ou e-mail, desde que, como se tem entendido, sejam observados os seguintes requisitos: 1. Que se canalize através de um meio de comunicação no qual exista um emissor e um receptor que trocam mensagens. Por conseguinte, não será objeto de proteção, por exemplo, as páginas webs, nas quais se adota uma posição passiva, sem resposta; 2. Que a comunicação se produza entre sujeitos que estejam fisicamente separados, sendo importante assinalar que, para poder gozar da proteção prevista no Texto Supremo, deve existir um meio de transmissão da mensagem distinto da palavra ou gesto percebido diretamente entre as partes; 3. Que a comunicação seja secreta, ou seja, que não se desenvolva de forma pública. O sigilo de toda comunicação pode ser afastado de comum acordo pelo emissor e receptor, o que no âmbito da relação laboral deve ser analisado com redobrada reserva e cautela, face ao estado de subordinação em que se encontra o trabalhador em relação ao empresário ou empregador16. Por conseguinte, o 16 Para Ramón Castilla, perante o ordenamento jurídico espanhol o empresário pode, no uso das faculdades de controle e adaptação dos direitos fundamentais às características da organização produtiva na qual se encontra inserido o trabalhador, dar conhecimento prévio – e com isso obter a aprovação – da possibilidade de controle dos meios postos à disposição para o desenvolvimento do labor, sendo essa autorização implícita, quando se estabeleça parâmetros de controle, de cunho geral, à totalidade dos trabalhadores. CASTILLA, Ramón. Consecuencias Jurídicas en el uso de Internet (II): Aspectos Penales y Laborales. Disponível em: <www.alfa-redi.org./revista/data/31-9.asp>. Acesso em: 06 jun.2011. Todavia,

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consentimento livre é condição que exclui o sigilo. Uma comunicação perde essa proteção quando os participantes assim o queiram. Porém ,em geral e como regra, uma comunicação é sempre privada, salvo quando comprovado de forma efetiva que um dos intervenientes tenha advertido o contrário. No Brasil, de acordo com da Lei n.º 9.263, de 24.7.1996, “a interceptação de comunicações telefônicas de qualquer natureza, para prova de investigação criminal e em instrução processual penal, dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob requerimento de segredo de justiça”, prevendo ainda que “o disposto nesta lei aplica-se à interceptação de comunicações de sistemas e em telemática”, o que implica afirmar que referida norma tem inteira aplicação na interceptação da correspondência por meio do correio eletrônico ou e-mail. Nessa perspectiva, ninguém poderá, sem prévia autorização do trabalhador ou da autoridade judicial competente nos casos excepcionais expressamente previstos na própria Constituição e de acordo com o devido procedimento legal, ter acesso, conhecimento, menos ainda, divulgar o conteúdo das mensagens privadas dirigidas ao trabalhador ou por ele expedidas via e-mail, ainda que este tenha natureza corporativa, pena se violar as garantias fundamentais do direito à privacidade, à reserva da intimidade e ao sigilo das comunicações. Ademais, esses dados, quando acessados com violação aos aludidos requisitos constitucionais e legais, não podem servir de prova em juízo, pois são considerados como provas ilícitas. Deve-se, pois, entender quanto às comunicações eletrônicas, não podem ser monitoradas sob a singela alegação tanto esse posicionamento não nos parece o mais acertado, na medida em que o trabalhador encontrando-se em estado de sujeição frente ao empresário, em face da subordinação, está moral e economicamente coagido, o que implica afirmar que o consentimento não pode ser presumido, implícito pelo mero fato de o empregador ter estabelecido de forma geral parâmetros de controle. Antes tem de ser comprovado, e mais que isso, que tenha sido dado de forma livre e manifesta, isto é, evidente e inegável. Deve ainda ser específico a respeito do tipo de controle, não podendo ser genérico, não representando aceitação o mero fato de o trabalhador ser cientificado de que será objeto de controle.

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da titularidade do contrato com do provedor de acesso à Internet quanto da propriedade dos recursos eletrônicos. De fato, o monitoramento do e-mail do empregado impede o exercício de outros direitos fundamentais além do direito à privacidade, como o direito à liberdade de expressão, à crítica e até mesmo de reflexão sobre as condições de trabalho. Como observa com propriedade Mario Antônio Lobato de Paiva17, o poder de direção e a necessidade de controle de tráfego de informações da empresa podem ser implementados recorrendo-se a outros recursos menos invasivos à privacidade, sendo desnecessário o rastreamento de todas as mensagens do empregado. A meu juízo parece acertado defender a inconstitucionalidade do monitoramento generalizado de todas as comunicações dos empregados realizadas por meio de recursos computacionais da empresa, ainda que essa previsão exista em norma interna da empresa ou tenha sido inserida como cláusula do contrato de trabalho, porque esse procedimento afronta a garantia constante do art. 5º da Lei Suprema, que também tutela o sigilo das comunicações, sem estabelecer qualquer distinção entre comunicação profissional e comunicação pessoal, permitindo a interceptação apenas para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, mas somente mediante ordem judicial e desde que observado o devido procedimento previsto em lei, hipótese em que evidentemente não se encaixa a autorrestrição em contrato de trabalho – relação marcadamente assimétrica em que não existe nem mesmo a liberdade do empregado na decisão de limitação do direito de personalidade. De fato, os direitos de personalidade recaem em certos atributos físicos, intelectuais ou morais do homem, visando resguardar a dignidade e a integridade física e psíquico-moral da pessoa humana enquanto tal, garantindo um âmbito de autonomia no qual o indivíduo pode desenvolver a sua própria individualidade. 17 LOBATO DE PAIVA, Mário Antônio. A privacidade do trabalhador no meio informático. Disponível em <http//www.ibdi.org.br/index.php?secao=&d_noticia=125&ação=lendo>. Acesso em: 06 jun.2011.

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Nesse direito estão compreendidos vários subdireitos relacionados com as várias facetas da personalidade humana como a representação ou a imagem que a pessoa queira fazer de si mesma na sociedade, de onde se depreende o direito à própria imagem, à palavra e à defesa da honra, ou o direito à ressocialização, à sexualidade, à família, o direito à autodeterminação informativa, tutelando ainda contra qualquer interferência na esfera privada. Desse modo, deve ser respeitado não apenas pelo Estado, mas também pelos particulares, entre os quais se encontra por óbvias razões o empregador18. Essa espécie de direito sequer pode ser objeto de renúncia pelo titular, máxime no seio do contrato de trabalho, em que o trabalhador, por se encontrar em estado de subordinação em relação ao empregador, tem sempre reduzida a capacidade para manifestar livremente a vontade. Como adverte Antonio Martín Valverde19, em geral o direito à dignidade e à intimidade do trabalhador exige um uso ponderado dos poderes empresariais de direção e organização do trabalho e, em particular, de suas faculdades de controle e vigilância. Não há dúvida de que o empregador pode adotar medidas que estime mais oportunas de vigilância e controle, inclusive aquelas que tenham como instrumentos aparatos telemáticos. Porém, essas medidas somente poderão estar referidas à verificação do cumprimento pelo empregado de suas obrigações laborais ou que se mostrem necessárias e proporcionais à segurança do patrimônio da empresa e das pessoas. Por conseguinte, nunca poderão afetar a esfera íntima e a vida privada do trabalhador, devendo sempre guardar “a consideração devida a sua dignidade”, como no âmbito do ordenamento espanhol preveem os arts. 10.1 e 18 da Constituição de 1978, 4.1e; 18 e 20.3 do Estatuto dos Trabalhadores. Nesse passo, o entendimento que vem sendo dado por 18 COELHO MOREIRA, Teresa Alexandra. op. cit., p. 210. 19 MARTÍN VALVERDE, 2007, p. 630-632.

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certa doutrina e pela jurisprudência laboral20 a respeito do tema do 20 Perante os Tribunais Espanhóis, a questão do controle do correio eletrônico do trabalhador pelo empregador tem sido fundamentada em geral na tese que sendo o empresário, enquanto proprietário dos meios de produção e, portanto, dos equipamentos de trabalho, entre os quais se encontra o computador, pode adotar as medidas de controle e vigilância que estime necessárias para verificação do cumprimento das obrigações contratuais por parte do empregado. Ademais, de acordo com essa doutrina, essas medidas de controle e vigilância objetivam proteger o patrimônio da empresa e a segurança das pessoas e que têm fundamento na liberdade de empresa. Por conseguinte, legitimada pelos arts. 38 da Constituição de 1978 e 20.3 do Estatuto. Nesse sentido vale trazer à colação as seguintes sentenças: a) Sentencia Tribunal Superior de Justicia Cataluña, de 21 septiembre de 2004: “Del examen de tal doctrina se deduce que en estos supuestos colisionan el derecho de la empresa al control de la actividad del trabajador (arts. 18 y 20 del Estatuto de los Trabajadores) con el derecho a la intimidad personal del mismo, garantizado, por el artículo 18-1 de la Constitución española, implicando un ámbito propio y reservado frente a la acción y el conocimiento de los demás, que no se pierde cuando se realicen trabajos por cuenta ajena (s.TS de 5-12-2003) como lo ponen de manifiesto los art. 4-2 e) y 20-3 del citado Estatuto de los Trabajadores. Reflejo de este último derecho es el secreto de las comunicaciones y en concreto cuando éstas se produzcan por medio de correo electrónico a través de ordenador puesto a disposición del trabajador como herramienta o instrumento de trabajo por el empresario y su utilización se lleva a cabo con fines estrictamente personales o extraproductivos en horario de trabajo. Que sobre esa parcela de actividad puede ejercer control el empresario es indudable, más lo que se ha de establecer para la validez probatoria del resultado obtenido es en qué forma y con qué garantías para la dignidad e intimidad del trabajador se ha de producir. Es difícil afirmar que existe al respecto una doctrina uniforme en las sentencias de las diversas Salas de lo Social de los Tribunales Superiores de Justicia o de la propia Sala del Tribunal Supremo en recurso de casación para unificación de doctrina, por lo casuístico de los supuestos, por la parcela personal o estrictamente productiva sobre el que el control empresarial se lleva a cabo, límites de tolerancia, advertencia previa, contenido del mensaje, previsión en convenio colectivo o contrato individual de trabajo, configuración del programa informático, etc. Lo que sí parece existir es una cierta corriente que prevalece sobre cualquier casuística disidencia es en que «para que el empresario pueda verificar si el trabajador cumplió con sus obligaciones o las infringió, hasta el punto de justificar una decisión extintiva, debe efectuarse teniendo en consideración el respeto a la dignidad del trabajador, es decir, la actividad de control empresarial se encuentra limitada por el derecho a la dignidad del trabajador (art. 1 de la CE, el derecho al honor, a la intimidad personal y familiar y a la propia imagen (art. 18 CE). De forma específica, de Estatuto de los trabajadores contempla el respeto a la intimidad y la consideración debida en los art. 4-2 e), 18 y 20-3 del Estatuto de los Trabajadores» (s.s de 20 y 23-2-2004 del Tribunal Superior de Cantabria).Tal doctrina equipara el control de los ordenadores al de las taquillas, en cuanto aquél se configura como instrumento de trabajo propiedad de la empresa y que no puede ser utilizado para otros fines distintos o ajenos a la actividad laboral (S. Sala de Social del Tribunal Superior de Justicia, sede en Málaga de 25-2-2000 y en las antes citadas que recogen a su vez la del Tribunal Supremo de 8-10-1988.En definitiva se impone la necesidad que el control del correo electrónico de que ha hecho uso el trabajador, se realice con las mínimas garantías establecidas en el art. 18 del Estatuto de los Trabajadores, en presencia del afectado por aquél, un representante de los trabajadores o en ausencia de éste del centro de trabajo, de otro trabajador de la empresa. Esta misma exigencia se recoge en la sentencia de esta Sala de 11.6.2003 en que se destacan las condiciones necesarias para que el resultado de tal control pueda aportarse como medio de prueba y surtir plenos efectos de validez: a) necesidad de un propósito específico, explícito y legítimo (elemento de causalidad), b) que la supervisión sea una respuesta proporcionada sobre un patrón de riesgo elemento de indispensabilidad, c) mínima referencia sobre los derechos a la intimidad del trabajador o trabajadores afectados/elemento de proporcionalidad) y d) presunción del trabajador y de su

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controle do correio eletrônico ou e-mail do trabalhador, que poderia representante en el momento de apertura del correo (elemento garantista). Como quiera que en el caso de autos tales exigencias no se cumplieron, fue correcta la solución adoptada por el Juzgador de instancia rechazando su eficacia probatoria”; b) Sentencia Tribunal Superior de Justicia Cataluña, de 12 de diciembre de 2003: “La cuestión previa que el escrito de recurso esgrime con denuncia de la utilización como prueba por parte de la demandada del conjunto de e-mail obrantes en las actuaciones y que por corresponder a correos electrónicos del demandante suponen vulneración del derecho fundamental al secreto de las comunicaciones que proclama el número 3 del artículo 18 del texto Constitucional ...siguiendo la pauta marcada por el TC en las suyas 114/1984 de 29 de noviembre y 6/1995 de 10 de enero, y reitera en las de 20 de septiembre de 2000 y 29 de enero de 2001, el derecho a la intimidad como el del secreto de las comunicaciones, no son ilimitados y si bien no pueden quedar excluidos ni cercenados por la relación de dependencia que el contrato de trabajo lleva aparejada, sí que íntrinsecamente quedan limitados en su contenido por la propia voluntad del titular en cuanto que es él quien con su decisión personal acota o decide la esfera de su privacidad personal sustrayéndola al conocimiento ajeno y es claro que partiendo de que en el supuesto concreto enjuiciado, si tal denunciada violación se contrae y refiere a correo remitido por el demandante en su calidad y condición de trabajador, dentro del ámbito, en relación con, referido a y por medio de los ordenadores, propiedad y en tiempo de jornada para y debida a la empresa para la que prestaba servicios como tal, es claro que ni tal correo puede legalmente calificarse como personal y privado ni utilizado como desvinculado de privacidad por el propio interesado, atribuirle las condiciones y protecciones que al mismo otorga el ordenamiento y al que se contraen y refieren las distintas sentencias del propio TC que el escrito de recurso aduce y que, por concernientes a supuestos de hecho diversos de los que motivan esta resolución, devienen inaplicables al casus”; c) Sentencia del Tribunal Superior de Justicia de Galicia de 21 de noviembre de 2003: “Tampoco cabe tildar de ilícita o atentatoria contra el derecho fundamental al secreto de las comunicaciones que aquélla pretende atribuir a la prueba relativa a la investigación llevada a cabo por la empresa en el PC que la actora tenía asignado y utilizaba en su lugar de trabajo, pues conviene tener presente que, aun cuando el artículo 18.3 de la Constitución Española (NSL000003) garantiza el secreto de las comunicaciones y, en especial de las postales, telegráfica y telefónica, salvo resolución judicial, en tanto que en el artículo 11.1 de la LOPJ se refiere que las pruebas obtenidas con vulneración de derechos o libertades fundamentales no surtirán efecto, no cabe olvidar que, a tenor de las actuaciones llevadas a cabo en el presente supuesto fáctico, pero en el presente caso no se ha vulnerado el derecho fundamental al secreto de las comunicaciones no es dado aseverar que se constate una situación conculcadora de los referidos preceptos, al evidenciarse la concurrencia de una indebida e ilícita utilización, con finalidad ajena y diferente a la estrictamente laboral, de elementos o instrumentos de trabajo facilitados por la empresa a la trabajadora, siendo innegables las facultades de la patronal en relación con los controles que puede llevar a cabo acerca del uso o forma de uso que la empleada haga de tales medios e incluso sobre el desarrollo de la actividad y rendimiento de ésta en su jornada laboral, sin duda, afectada y reducida por las «ocupaciones» extralaborales a que se refiere el relato histórico, singularmente, el hecho probado noveno, y la fundamentación jurídica, de la resolución impugnada, en especial el fundamento segundo in fine”; d) Sentencia del T.S.J de Andalucía de 9 de mayo de 2003: “el secreto de las comunicaciones informáticas y telemáticas puede originar conflictos en el trabajo, así con los registros de correo electrónico. De una parte, puede entenderse que el artículo 18.3 de la C. E, que garantiza «el secreto de las comunicaciones y, en especial, de las postales, telegráficas y telefónicas, salvo resolución judicial», se refiere a todas las comunicaciones, porque las referencias específicas son meramente ejemplificativas, abarcando, así, a las realizadas por el citado medio del correo electrónico”. Essas decisões evidenciam o entendimento ainda não unânime perante os Tribunais Espanhóis a respeito do tema do controle pelo empregador do e-mail ou correio eletrônico do trabalhador. Sin embargo, «por razones elementales de orden lógico y de buena fe, un trabajador no puede introducir datos ajenos a la empresa en un ordenador de la misma sin expresa autorización de ésta, pues todos los ins-

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ser controlado de forma ampla, com base no direito de propriedade dos meios de produção pelo empresário, não parece acertado, pois colide com as garantias constitucionais anteriormente mencionadas mostrando-se completamente desproporcional e, portanto, inconstitucional, na medida em que afeta ao direito à intimidade, à privacidade e ao sigilo das comunicações, direitos de natureza fundamental tutelados por preceitos constitucionais e legais expressos em vários em Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos.

4 CONCLUSÃO Do que acaba de ser exposto, pode-se afirmar que ,embora não se negue a possibilidade de o empregador acessar o e-mail do trabalhador, esse acesso somente se mostrará proporcionado e, trumentos están puestos a su exclusivo servicio», según razonó la Sentencia del Tribunal Superior de Justicia (STSJ) de Murcia de 15 de junio de 1999, criterio que hace suyo la STSJ de Cataluña de 14 de noviembre de 2000 para considerar procedente el despido del trabajador que hace uso indebido del correo electrónico de la empresa, con envío a sus compañeros de trabajo y amistades de mensajes humorísticos, sexistas y obscenos. En esta última, se describe el conocimiento por la empresa del contenido de tales mensajes, lo que presupone lógicamente que ha procedido a indagar sobre los mismos, sin que el recurrente cuestione la licitud del registro. Ante argumentación tan contundente, aquella conclusión debe matizarse. Unos y otros razonamientos son armonizables, atendiendo al contenido del derecho constitucional y a sus límites en ponderación con las obligaciones laborales. Por un lado, el artículo 18.3 de la C.E garantiza la impenetrabilidad desde fuera en el proceso de comunicación por terceros, públicos o privados, ajenos (STC 114/1994). Cuando nos referimos a medios o sistemas de comunicación de la empresa, el proceso a través de ellos no permite considerar al empresario como ajeno, de manera que no existe la penetración desde el exterior que la norma constitucional impide. Cuestión distinta sería que el empresario autorizase al empleado su uso por motivos distintos del trabajo o que fuese un medio propio o dentro de la esfera de disposición del trabajador, pues en este caso sería aquél un mero tercero no facultado para la intromisión, sino sólo legitimado, si es perjudicado por conductas graves del trabajador, de relevancia penal, para su denuncia, siendo el proceso penal el marco adecuado para que se dicte resolución judicial motivada que permita la investigación del correo electrónico. Por último, no obstante lo anterior, si el empresario investiga en ordenadores propios el correo de los empleados y revela el contenido de sus comunicaciones, puede merecer el reproche de quien revela cualquier comunicación propia si el contenido afecta a la intimidad del trabajador, esto es, no vulneraría el artículo 18.3 de la C.E , pero sí puede atacar al derecho reconocido en el artículo 18.1 de la Constitución Española. Ello sucedería cuando la comunicación conocida carece de toda relevancia a los fines disciplinarios u organizativos y se refiere a datos personales, físicos, económicos, familiares o profesionales propios de la intimidad del trabajador”.

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portanto, legítimo quando tiver por objetivo verificar o cumprimento das obrigações e deveres laborais e, ainda assim, ante um juízo de ponderação, tomando-se em conta a necessidade justificada de proteger outros bens ou valores constitucionalmente tutelados, ponderação essa que deve ser levada a cabo em cada caso concreto. Ademais, não pode jamais incidir quanto às mensagens e arquivos privados, salvo para constatação do uso ilícito da ferramenta, mas nesse caso, mediante autorização judicial com observância ao devido procedimento previsto em lei, sob pena de se atentar contra o direito à intimidade, à vida privada e ainda ao sigilo das comunicações do trabalhador, tutelados em nível constitucional e legal. Fora dessas hipóteses, se mostrará desproporcional e, portanto, inconstitucional, o controle pelo empregador sobre o e-mail do trabalhador.

REFERÊNCIAS AGRA BELMONTE, Alexandre. O Monitoramento da Correspondência Eletrônica nas Relações de Trabalho. São Paulo: LTr, 2004. ALVARÉZ, José Cuervo. Privacidad del correo eletrónico del trabajador. Disponível em: <http://www.informatica-juridica.com>. COELHO MOREIRA, Teresa Alexandra. A Privacidade dos Trabalhadores e as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação: contributo para um estudo dos limites do poder de controlo eletrônico do empregador. Coimbra: Almedina, 2010. CASTRO, Javier Gárate. Derechos Fundamentales del Trabajador y Control de la Prestación de Trabajo por Medio de Sistemas Proporcionados por las Tecnologícias. Minerva Revista de Estudos Laborais. Lisboa: Almedina, Ano 5, n. 8, mar. 2006. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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MARTÍN VALVERDE et al. Derecho del Trabajo. Madrid: Tecnos, 2007. NARANJO DE LA CRUZ, Rafael. Los límites de os derechos fundamentales en las relaciones entre particulares: la buena fe. Madrid: Boletín Oficial Del Estado. Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2000. ROJAS POZO, José Luís. O Uso del correo electrónico e internet en ámbito laboral: problemática jurídica. Disponível em: <http://social.internautas. org/html/648.html>. Acesso em: 8 maio 2011. RODRIGUES, Benjamim Silva. Das escutas telefônicas – à obtenção da prova (em ambiente) digital. Coimbra: Editora Coimbra, 2008, Tomo II. SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. O monitoramento de e-mail no local de trabalho. Revista de Derecho Social Latinoamérica, Buenos Aires, v. 1, 2006. ZACHERT, Ulrich. Los principales problemas plenteados e el trabajo con las tenologías de la información y la comunicación: la experiencia alamana. Revista de Derecho Social Latinoamérica, Buenos Aires, v.1, 2006.

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AVALIAÇÃO DAS CONDIÇÕES DE CONFORTO CORPORAL DE COLETORES DE RESÍDUOS SÓLIDOS COMERCIAL E DOMICILIAR DE UM MUNICÍPIO DE GRANDE PORTE: ESTUDO DE CASO1

Luiz Carlos Alves da Luz2 Eglé Novaes Teixeira3

Resumo: A avaliação das condições de conforto corporal de coletores de resíduos sólidos comercial e domiciliar de um município de grande porte, objeto do presente estudo, foi feita através de gráficos resultantes dos mapas de conforto corporal que foram obtidos individualmente de 83 trabalhadores entrevistados. Dentre as conclusões obtidas pode se destacar que as piores condições de desconfortos nas pernas dos trabalhadores ocorrem com até 6 meses na atividade; e que a intensidade de desconfortos na coluna lombar aumenta com o acréscimo de tempo na atividade. Palavras-chave: conforto corporal, coletores, resíduo sólido, carga de trabalho. 1 Pesquisa complementar, realizada com base em entrevistas feitas com trabalhadores de serviços de limpeza urbana, referentes à tese de doutorado elaborada junto à Unicamp/ FEC. 2 Analista de Engenharia de Segurança do Trabalho/Perito – Ministério Público do Trabalho / Procuradoria Regional do Trabalho da 24ª Região. Doutorando Unicamp/FEC. 3 Professora Assistente Doutora da Universidade Estadual de Campinas – Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo – FEC.

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INTRODUÇÃO Entre os indicadores do crescimento de uma nação, curiosamente, pode-se destacar o resíduo sólido (lixo). Quanto mais pujante for a economia, mais resíduo é produzido. É o sinal de que o país está crescendo, de que as pessoas estão consumindo mais (UFMG, 2010). Para Vasconcelos et al. (2010), é notória a importância do trabalho dos coletores de lixo na sociedade pós industrial para resolver um problema particularmente intenso, devido ao consumo massificado e utilização frequente de alimentos industrializados e produtos descartáveis. De acordo com a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 2008 (IBGE, 2010), em todo o Brasil são 374.861 pessoas atuando na área de resíduo sólido. Destas, em torno de 264.955 são do quadro permanente, sendo 114.397 em varrição e capina, 51.087 em coleta de resíduo e 7.735 na coleta de resíduo especial. Considerandose que é necessário um alto investimento em saneamento básico no Brasil, para que sejam atingidas condições satisfatórias e desejáveis do ponto de vista ambiental, é correto afirmar que isso pode ser considerado um indicador do considerável número de trabalhadores que estão expostos aos riscos inerentes ao trabalho no setor. Assim, a proposta neste estudo foi avaliar as condições de conforto corporal de trabalhadores da coleta de resíduo sólido de origem residencial e comercial de um município de grande porte, visando fornecer dados que venham a contribuir para a melhoria das condições de trabalho no setor.

REVISÃO BIBLIOGRÁFICA De acordo com a “Cartilha de Limpeza Urbana” elaborada por IBAM/SNS (2008) “lixo” é todo e qualquer resíduo sólido 108

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proveniente das atividades humanas, assim como aquele gerado pela natureza em aglomerações urbanas, como folhas, galhos de árvores, terra e areia espalhados pelo vento, etc. Para Jardim (2006), lixo, ou resíduo sólido, pode ser considerado como aquilo que a sociedade considera indesejável e quer abominar de seu meio. Para IBAM (2008) é todo material sólido ou semi-sólido indesejável e que necessita ser removido, por ter sido considerado inútil por quem o descarta. Teixeira (2007) destaca a falta de concordância quanto ao estado físico admitido para o resíduo sólido (sólido, liquido...) em algumas definições e acrescenta que as divergências em relação à definição do resíduo sólido ocorrem em diferentes países e também no Brasil, em termos de diferentes municípios e num mesmo município, em épocas diferentes. Segundo a “Cartilha de Limpeza Urbana” (IBAM/ SNS, 2008), o resíduo gerado nas atividades diárias em casas, apartamentos, condomínios e demais edificações residenciais é chamado de “lixo doméstico” ou “residencial”. Já o resíduo gerado em estabelecimentos comerciais, cujas características dependem da atividade ali desenvolvida, é chamado de lixo comercial. Tratando-se de limpeza urbana, os resíduos “doméstico” e “comercial” constituem o chamado “lixo domiciliar” que, junto com o lixo público, representam a maior parcela dos resíduos sólidos produzidos nas cidades. Para RESOL, citado por Streb et al. (2008), resíduo sólido domiciliar é sinônimo de resíduo sólido residencial, sendo aquele gerado e coletado diretamente nas residências. Zanta e Ferreira, citados por Streb et al (2008), consideram resíduo sólido doméstico como sendo a somatória do resíduo sólido domiciliar com aqueles resíduos de características similares ao domiciliar, que geralmente são encaminhados para disposição em aterros, como comercial e resíduo proveniente da limpeza pública. O resíduo sólido urbano (RSU), segundo Teixeira, citado por Streb et al. (2008), é constituído pelo resíduo proveniente de serviços, tais como limpeza de boca de lobo e/ou galerias, poda de arvores, coleta de carcaças de animais e Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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móveis usados, além dos resíduos industrial, de varrição, doméstico e comercial. ABNT (1993) define coleta domiciliar como sendo a coleta regular do resíduo domiciliar, formado por resíduos gerados em residências, estabelecimentos comerciais, industriais, públicos e de prestação de serviços, cujos volumes e características sejam compatíveis com a legislação municipal vigente. Quando todos os tipos de resíduo são coletados acondicionados juntos, a coleta pode ser chamada de comum, tradicional ou convencional. Quando a segregação é feita por fonte de geração (separando resíduos doméstico, industrial, de serviços de saúde e outros), a coleta é chamada diferenciada. Já a coleta seletiva ocorre quando existe a segregação sendo feita por tipo de material do resíduo (separa reciclável de não reciclável ou papel, vidro, metal etc.) (TEIXEIRA, 2007). O resíduo sólido de origem residencial e comercial é classificado como não perigoso, conforme ABNT (2004), entretanto, a alíquota relacionada ao grau de risco da atividade de coleta de resíduos não perigosos corresponde ao percentual máximo de 3%, conforme Decreto 6.042 de 12/02/07, que disciplina a aplicação, acompanhamento e avaliação do Fator Acidentário de Prevenção – FAP e do Nexo Técnico Epidemiológico (BRASIL, 2011). Já a Norma Regulamentadora nº 15, do Ministério do Trabalho e Emprego, que dispõe sobre as atividades e operações insalubres, em seu anexo nº 14, que trata dos agentes biológicos, classifica as atividades ligadas ao lixo urbano, tanto coleta como industrialização, como insalubres em grau máximo (MTE, 2010). Em trabalho realizado por Velloso (2008), onde se estudou o processo de trabalho e acidentes de trabalho na coleta de resíduo sólido domiciliar na cidade do Rio de Janeiro/RJ, no período compreendido entre junho de 1994 e janeiro de 1995, constatou-se que não havia pausas durante o processo da coleta. Os coletores realizavam suas tarefas em ritmo acelerado e as atividades eram interrompidas somente quando o veículo coletor ia despejar o resíduo sólido na 110

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unidade de depósito; entretanto, um período de aproximadamente uma hora era destinado à refeição da guarnição ou preparação do resíduo sólido para coleta. Além disso, esses trabalhadores consumiam tempo considerável do seu dia locomovendo-se de casa para o local de trabalho. Metade dos entrevistados gastava cerca de duas horas para realização desse trajeto. Pavelski (2010) constatou que durante a realização das tarefas por parte dos coletores de resíduo sólido, existem alguns fatores que podem ser considerados como causadores de lesões microtraumáticas dos joelhos. O autor salienta que não encontrou literatura que faça alguma inferência a respeito do tempo de serviço dos coletores de resíduo sólido, entretanto, em seu estudo que envolveu 60 trabalhadores portadores de microtraumatismo de joelho, na cidade de Curitiba/PR, pôde inferir que a maior incidência dessa lesão (52%) ocorre no período entre 6 e 10 anos de trabalho. Segundo Corrêa (2008), o trabalhador estará sempre regulando uma carga ou sobrecarga de trabalho, sendo que a Ergonomia dispõe de uma vasta quantidade de pesquisas sobre os mecanismos de regulação e sua interação com os sistemas organizacionais. Para Greco, Oliveira e Gomes, citados por Corrêa (2008), as cargas de trabalho podem ser definidas como exigências ou demandas psicobiológicas do processo de trabalho que podem, ao longo do tempo, gerar desgastes do trabalhador.

METODOLOGIA A metodologia foi subdividida nas seguintes etapas:  escolha da empresa;  obtenção de dados; e,  análise dos dados e conclusões.

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Os dados relativos às condições de conforto corporal dos coletores de resíduos sólidos comercial e domiciliar foram obtidos através de entrevistas onde se utilizou a Tabela 1 (mapa de conforto corporal) para a identificação das partes do corpo de cada trabalhador mais atingidas após uma jornada de trabalho. Nas entrevistas foram obtidos, ainda, dados relativos à idade dos trabalhadores e tempo de atividade na função de coletor de resíduos sólidos comercial e domiciliar. Com relação ao tempo de atividade na função de coletor de resíduos sólidos comercial e domiciliar, foram considerados os períodos trabalhados na empresa escolhida para pesquisa, bem como os períodos trabalhados em outras empresas. gráficos.

A análise dos dados foi realizada por intermédio de

Tabela 1 Escala de valores – mapa de conforto corporal Parte do corpo

Confortável

Leve

desconforto

Desconfortável

Cabeça

Escala: 0

Escala 1

Escala 2

Olhos

Escala: 0

Escala 1

Escala 2

Coluna cervical

Escala: 0

Escala 1

Escala 2

Ombro

Escala: 0

Escala 1

Escala 2

Coluna torácica

Escala: 0

Escala 1

Escala 2

Braços

Escala: 0

Escala 1

Escala 2

Cotovelo

Escala: 0

Escala 1

Escala 2

Antebraço

Escala: 0

Escala 1

Escala 2

Coluna lombar

Escala: 0

Escala 1

Escala 2

Punho

Escala: 0

Escala 1

Escala 2

Mão

Escala: 0

Escala 1

Escala 2

Coxa

Escala: 0

Escala 1

Escala 2

Joelho

Escala: 0

Escala 1

Escala 2

Perna

Escala: 0

Escala 1

Escala 2

Tornozelos e pés

Escala: 0

Escala 1

Escala 2

Fonte: Adaptado de Corrêa (2008)

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RESULTADOS E DISCUSSÃO A pesquisa foi realizada no município de Campo Grande/ MS, onde havia uma única empresa que realizava a coleta de resíduos sólidos comercial e domiciliar. Portanto, a pesquisa foi realizada com os trabalhadores (coletores de resíduos sólidos comercial e domiciliar) dessa empresa. Para efeito deste estudo, tal empresa, que é privada, foi denominada “Empresa A”. As entrevistas foram realizadas no período de 08/09/10 a 17/09/10. Nas Figuras 1 a 12 são mostrados os resultados obtidos nas entrevistas realizadas com trabalhadores com até 40 anos de idade. Além destes trabalhadores foram entrevistados outros dois trabalhadores, um com 46 e outro com 50 anos de idade. Verifica-se, conforme Figura 1, que as partes mais atingidas dos trabalhadores (coletores de resíduos sólidos comercial e domiciliar) com idade na faixa de 20 a 40 anos e até 6 meses na atividade, após uma jornada de trabalho, são as pernas, cuja escala de valores foi de 1,62, numa condição mais próxima a desconfortável do que de leve desconforto. As outras duas partes do corpo desses trabalhadores mais atingidas foram os tornozelos e pés, numa condição de leve desconforto, seguidas pelos joelhos, numa condição entre confortável e leve desconforto (escala de valores de 0,76). Observa-se, portanto, que as partes do corpo desses trabalhadores, mais atingidas, referem-se aos membros inferiores, na seguinte ordem decrescente de gravidade: pernas, tornozelos e pés; e, joelhos.

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Figura 1 Dados de conforto corporal - coletores de resíduos sólidos comercial e domiciliar com idade na faixa de 20 a 40 anos e até 6 meses na atividade

Analisando-se separadamente os resultados obtidos com os trabalhadores com até 6 meses na atividade, para as faixas de idade de 20 a 30 anos e 31 a 40 anos, observa-se, nas Figuras 2 e 3, o que segue: • o número de trabalhadores com idade na faixa de 20 a 30 anos é bastante superior ao número de trabalhadores com idade na faixa de 31 a 40 anos (16/5); • nos trabalhadores com idade na faixa de 20 a 30 anos a condição da coluna lombar ficou mais próxima a de leve desconforto do que nos trabalhadores com idade na faixa de 31 a 40 anos (condição próxima a confortável), sendo que o mesmo ocorreu com relação aos braços; e, • os trabalhadores com idade na faixa de 31 a 40 anos não apontaram nenhuma condição diferente de confortável para algumas partes do corpo, como mãos, antebraços, olhos, coluna cervical e outras, como ocorreu com os trabalhadores com idade na faixa de 20 a 30 anos, ainda que, neste caso, próximas a uma condição confortável. 114

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Nota-se, nos dados acima, que as diferenças obtidas nas duas faixas de idade podem ter ocorrido em razão da diferença no número de trabalhadores entrevistados (16/5).

Figura 2 Dados de conforto corporal - coletores de resíduos sólidos comercial e domiciliar com idade na faixa de 20 a 30 anos e até 6 meses na atividade

Figura 3 Dados de conforto corporal - coletores de resíduos sólidos comercial e domiciliar com idade na faixa de 31 a 40 anos e até 6 meses na atividade

Nas Figuras 4, 5 e 6, são mostrados os dados de conforto corporal dos trabalhadores com idade na faixa de 20 a 40 anos e tempo na atividade superior a 6 meses, até 2 anos. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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Nota-se, na Figura 4, que ocorreu um acréscimo significante de desconforto na coluna lombar, comparando-se com os dados obtidos com os trabalhadores com a mesma faixa de idade (20 a 40 anos) e até 6 meses na atividade. Supõe-se que os desconfortos na coluna lombar sejam ocasionados por posturas inadequadas adotadas pelos trabalhadores durante o recolhimento do resíduo acondicionado que é deixado no piso pelos munícipes, em virtude da inexistência de suportes adequados para sua disposição; ou pelo peso excessivo do resíduo acondicionado. Outro aspecto interessante verificado é que a condição de desconforto da coluna lombar, mostrada na Figura 4, é superior às condições de desconforto de joelhos, pernas, tornozelos e pés, sendo estas as outras partes do corpo mais atingidas.

Assim como nos trabalhadores com idade na faixa de 20 a 40 anos e tempo na atividade de até 6 meses, as partes mais atingidas dos membros inferiores foram, nesta ordem de gravidade: pernas, tornozelos e pés, joelhos e coxas. Figura 4 Dados de conforto corporal - coletores de resíduos sólidos comercial e domiciliar com idade na faixa de 20 a 40 anos e tempo na atividade superior a 6 meses, até 2 anos

Analisando-se separadamente os resultados obtidos com os trabalhadores com tempo na atividade superior a 6 meses, até 2 anos, para as faixas de idade de 20 a 30 anos; e 31 a 40 anos, observase, nas Figuras 5 e 6: • o número de trabalhadores com idade na faixa de 20 a 30 anos é bastante superior ao número de trabalhadores 116

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com idade entre 31 e 40 anos (29/4); • a condição de desconforto na coluna lombar nos trabalhadores com 20 a 30 anos foi superior à condição de desconforto das pernas, tornozelos e pés e joelhos dos mesmos trabalhadores, sendo que as condições de desconforto destas partes do corpo foram superiores às da coluna lombar, nos trabalhadores com idade na faixa de 31 a 40 anos; e • as condições de desconforto nos braços e ombros dos trabalhadores com idade na faixa de 31 a 40 anos foram bastante superiores às condições de desconforto destas partes do corpo em trabalhadores com idade na faixa de 20 a 30 anos. Supõe-se que as diferenças obtidas nas duas faixas de idade tenham ocorrido em virtude da considerável diferença no número de trabalhadores entrevistados (29/4).

Figura 5 Dados de conforto corporal - coletores de resíduos sólidos comercial e domiciliar com idade na faixa de 20 a 30 anos e tempo na atividade superior a 6 meses, até 2 anos

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Figura 6 Dados de conforto corporal - coletores de resíduos sólidos comercial e domiciliar com idade na faixa de 31 a 40 anos e tempo na atividade superior a 6 meses, até 2 anos

Nas Figuras 7, 8 e 9, são mostradas as condições de conforto corporal em trabalhadores com idade na faixa de 20 a 40 anos e tempo na atividade superior a 2 anos, até 5 anos. Observa-se nas Figuras 1, 4 e 7 um crescimento na condição de desconforto na coluna lombar dos trabalhadores com faixa de idade entre 20 e 40 anos em função do tempo de atividade. Para os trabalhadores com tempo na atividade de até 6 meses, a escala de valores do mapa de conforto corporal (coluna lombar) indicou valor um pouco superior a 0,5 para os trabalhadores com tempo na atividade superior a 6 meses, até 2 anos, o valor ficou próximo a 1,2; e, para trabalhadores com tempo na atividade superior a 2 anos, até 5 anos, o valor subiu para próximo de 1,4, ou seja, neste último caso, em uma condição bem próxima a desconfortável. Na Figura 7 verifica-se que as partes do corpo dos trabalhadores mais atingidas, além da coluna lombar, foram as pernas, tornozelos e pés; e joelhos. Verifica-se, ainda, que a condição de desconforto dos ombros foi superior à condição de desconforto das coxas. 118

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Figura 7 Dados de conforto corporal - coletores de resíduos sólidos comercial e domiciliar com idade na faixa de 20 a 40 anos e tempo na atividade superior a 2 anos, até 5 anos

Nas Figuras 8 e 9 são mostrados os dados dos mapas de conforto corporal de trabalhadores com tempo na atividade superior a 2 anos, até 5 anos, de acordo com as faixas de idade de 20 a 30 anos e 31 a 40 anos. Analisando-se separadamente os resultados obtidos com os trabalhadores com tempo na atividade superior a 2 anos, até 5 anos, para as faixas de idade de 20 a 30 anos e 31 a 40 anos, observa-se, nas Figuras 8 e 9: • o número de trabalhadores com idade na faixa de 20 a 30 anos é superior ao número de trabalhadores com idade na faixa de 31 a 40 anos (13 / 5); e • as pernas e coxas dos trabalhadores com idade na faixa de 31 a 40 anos apresentaram condições de desconforto superiores àquelas apresentadas para trabalhadores com idade na faixa de 20 a 30 anos. Supõe-se que parte das diferenças apresentadas para as duas faixas de idade seja devida à diferença no número de trabalhadores (13/5). Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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Figura 8 Dados de conforto corporal - coletores de resíduos sólidos comercial e domiciliar com idade na faixa de 20 a 30 anos e tempo na atividade superior a 2 anos, até 5 anos

Figura 9 Dados de conforto corporal - coletores de resíduos sólidos comercial e domiciliar com idade na faixa de 31 a 40 anos e tempo na atividade superior a 2 anos, até 5 anos

Nas Figuras 10, 11 e 12, são mostradas as condições de conforto corporal de trabalhadores com idade na faixa de 20 a 40 anos e tempo na atividade superior a 5 anos, até 10 anos. Assim como nas figuras 1, 4 e 7, verifica-se, na figura 10, um crescimento na condição de desconforto na coluna lombar, comparando-se com trabalhadores com menor tempo na atividade (abaixo de 5 anos). 120

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Com relação aos desconfortos nos joelhos, observa-se, nas Figuras 1, 4 e 7, que ocorreu pouca variação para períodos de atividade de até 5 anos (entre 0,76 a 0,83), no entanto, observa-se, na Figura 10, que houve um crescimento acentuado nas condições de desconforto, desta parte do corpo, para períodos de atividade de 5 a 10 anos (1,22). Verifica-se, ainda, nas figuras citadas, que situação semelhante ocorreu com relação aos tornozelos e pés. Nas Figuras 1, 4, 7 nota-se, também, que nos primeiros 6 meses de atividade (Figura 1) há uma grande condição de desconforto nas pernas (1,62); condição esta que é reduzida consideravelmente nos períodos de 6 meses a 2 anos de atividade (Figura 4 - 1,12) e 2 a 5 anos de atividade (Figura 7 – 0,89) e que volta a crescer gradativamente entre os períodos de 5 a 10 anos de atividade (Figura 10 – 1,11). Convém destacar que a pior condição de conforto corporal verificada nas pernas dos trabalhadores ocorreu no período de até 6 meses de atividade. Verifica-se, ainda, nas Figuras 1, 4, 7 e 10, que a maior quantidade de trabalhadores entrevistados (33) possuía entre 6 meses até 2 anos na atividade de coleta de resíduo sólido de origem comercial e residencial.

Figura 10 Dados de conforto corporal - coletores de resíduos sólidos comercial e domiciliar com idade na faixa de 20 a 40 anos e tempo na atividade superior a 5 anos, até 10 anos

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Analisando-se separadamente os resultados obtidos com os trabalhadores com tempo na atividade superior a 5 anos, até 10 anos, para as faixas de idade de 20 a 30 anos e 31 a 40 anos, observa-se, nas Figuras 11 e 12: • o número de trabalhadores com idade na faixa de 31 a 40 anos é o dobro do número de trabalhadores com idade na faixa de 20 a 30 anos; • as intensidades dos desconfortos nos joelhos, pernas e tornozelos e pés dos trabalhadores com idade na faixa de 31 a 40 anos foram, aproximadamente, o dobro daquelas verificadas nos trabalhadores com idade na faixa de 20 a 30 anos; e, • as condições de desconfortos na coluna torácica dos trabalhadores com idade na faixa de 20 a 30 anos foram superiores ao dobro daquelas verificadas entre trabalhadores com idade na faixa de 31 a 40 anos.

Figura 11 Dados de conforto corporal - coletores de resíduos sólidos comercial e domiciliar com idade na faixa de 20 a 30 anos e tempo na atividade superior a 5 anos, até 10 anos

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Figura 12 Dados de conforto corporal - coletores de resíduos sólidos comercial e domiciliar com idade na faixa de 31 a 40 anos e tempo na atividade superior a 5 anos, até 10 anos

Com relação às entrevistas realizadas com os trabalhadores (apenas dois) com 46 e 50 anos de idade, observou-se o que segue: O trabalhador com 50 anos de idade relatou como desconfortável (escala: 2) a condição dos ombros, braços, cotovelos, antebraços, coluna lombar, joelhos e pernas, após uma jornada de trabalho. Tal trabalhador possuía, aproximadamente, 3 anos na atividade de coletor de resíduos sólidos comercial e domiciliar. O trabalhador com 46 anos de idade possuía mais de 10 anos na atividade de coleta de resíduos sólidos comercial e domiciliar e relatou como desconfortável (escala: 2) a condição da coluna cervical, ombros e braços, após uma jornada de trabalho. Observa-se que as informações dos dois trabalhadores coincidem com relação às condições de conforto corporal dos ombros e braços.

CONCLUSÕES Com base nas informações colhidas nas entrevistas realizadas com os coletores de resíduos sólidos comercial e domiciliar e respectivos resultados obtidos, conclui-se que:  para os trabalhadores com tempo na atividade de até 6 Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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meses, não houve nenhum indício de que a idade (20 a 30 anos e 31 a 40 anos) tenha influenciado nas condições de conforto corporal, após uma jornada de trabalho;  os desconfortos na coluna lombar aumentam com o acréscimo de tempo na atividade;  as piores condições de desconfortos nas pernas dos trabalhadores ocorrem com até 6 meses na atividade;  os desconfortos nos joelhos, tornozelos e pés dos trabalhadores com tempo na atividade entre 5 a 10 anos foram bastante superiores àqueles verificados para os trabalhadores com tempo na atividade de até 5 anos;  para os trabalhadores com tempo na atividade entre 5 e 10 anos, as intensidades dos desconfortos nos joelhos, pernas e tornozelos e pés daqueles com idade na faixa de 31 a 40 anos foram, aproximadamente, o dobro daquelas verificadas nos trabalhadores com idade na faixa de 20 a 30 anos;  para os trabalhadores com tempo na atividade entre 5 e 10 anos, as condições de desconfortos na coluna torácica daqueles com idade na faixa de 20 a 30 anos foram superiores ao dobro daquelas verificadas entre aqueles com idade na faixa de 31 a 40 anos;  os dois trabalhadores com idade na faixa de 46 a 50 anos apontaram como desconfortáveis as condições dos ombros e braços, após uma jornada de trabalho;  os desconfortos apresentados na coluna lombar dos trabalhadores podem ter sido ocasionados pela adoção de posturas inadequadas, durante o recolhimento do resíduo acondicionado que é deixado no piso pelos munícipes, em virtude da inexistência de suportes adequados para sua disposição; ou pelo peso excessivo do resíduo acondicionado; e  a exigência de corridas, saltos e carregamento de peso, na atividade de coleta domiciliar, pode ter sido a razão de desconfortos nos membros inferiores dos coletores. 124

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O TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA COMO TRANSFORMADOR DA REALIDADE SOCIAL1

Silvana Cypriano2

INTRODUÇÃO A sociedade moderna é caracterizada por sempre buscar mudanças, dentre elas as de ordem profissional. Tais ambições levam o trabalhador a lutar por melhores condições de trabalho e, não havendo concessões por parte empresarial, muitas vezes o Poder Judiciário é acionado para decidir qual parte deve ser atendida. Entretanto, a constante busca da intervenção jurisdicional por vezes lota de tal forma a Justiça, que, ao invés de haver uma solução justa, a demora resulta em decisões ineficazes ou até mesmo injustas. Assim, aumenta a procura por outros mecanismos para solução dos conflitos, sobretudo sob a ótica administrativa, sem a intervenção judicial. Nesse campo, a atuação extrajudicial do Ministério Público do Trabalho torna-se mais valorizada a cada dia, principalmente pela possibilidade de produzir efetivas soluções de conflitos trabalhistas. 1 Texto extraído do Termo de Conclusão de Curso realizado para pós-graduação em Direito e Processo do Trabalho na Universidade Anhanguera-Uniderp, Rede de ensino Luiz Flávio Gomes. 2 Técnica Administrativa do MPT – 24ªRegião/MS - email: silvana.cypriano@mpt.gov.br.

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Neste trabalho será examinado o uso de Termos de Ajustamento de Conduta como meio eficaz de solução extrajudicial de conflitos trabalhistas, já que reflete os ideais de justiça buscados pelo trabalhador e igualmente proporciona melhorias à sociedade, beneficiada por ações realizadas pelas empresas compromissadas perante o Ministério Público do Trabalho.

1 ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO O Ministério Público já passou por diversas mudanças quanto à sua independência e atuação junto aos demais poderes. De acordo com a atual Constituição Federal da República, segundo estatuído no artigo 127, é instituição “essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Embora seja uma instituição única, para melhor realização de atribuições voltadas à sociedade, foi separada em Ministério Público da União e Ministério Público nos Estados. O primeiro ainda subdivide-se em Ministério Público Federal, Ministério Público Militar, Ministério Público do Trabalho e Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Para melhor delimitação do tema ora tratado, neste trabalho somente será analisada a atuação do Ministério Público do Trabalho. Como organização que preza pela defesa da democracia, atendendo aos interesses da sociedade, sobretudo dos trabalhadores, é indiscutível a possibilidade de atuação tanto na esfera judicial quanto na extrajudicial. No âmbito judicial, é costumeiro separar as funções exercidas pelo Parquet Laboral em duas: atuação como parte e atuação como fiscal da lei.

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Tal divisão pode possuir cunho didático-pedagógico, porém não retrata com fidelidade a atuação do Ministério Público do Trabalho – MPT, pois este não pode realizar suas funções somente fiscalizando o real cumprimento das leis, ou então, apenas como parte nos autos judiciais. Ao revés, o correto é admitir que não há distinção efetiva, já que o Parquet deve sempre, no uso de suas funções, zelar pela correta aplicação das normas legais, ainda que figure como parte processual. De igual modo, sempre que necessário, o Ministério Público pode intervir nos processos como parte, ainda que oficie, inicialmente, apenas como custos legis. Não é outro o entendimento do jurista Hugo Nigro Mazzili, citado por Carlos Henrique Bezerra Leite, cuja opinião impera transcrever: A maneira mais usual de distinguir a atuação do Ministério Público no processo civil consiste em separar suas funções de parte e fiscal da lei. Entretanto, essa distinção não satisfaz, primeiro, porque não enfrenta em profundidade todos os aspectos da atuação ministerial; em segundo lugar, porque, nem por ser parte, isso significa que o Ministério Público não esteja a zelar pelo correto cumprimento da lei; em último lugar, porque, nem por ser fiscal da lei, deixa o membro do Ministério Público de ser titular de ônus e faculdades processuais, e, portanto, ser considerado parte, para todos os fins processuais.3

Assim, resta reconhecida a inexistência de uma linha divisória entre as formas de atuação ministerial, pois deve predominar a tutela dos interesses transindividuais. O importante é que o Ministério Público funcione sempre como articulador social em defesa dos direitos sociais, coletivos e individuais indisponíveis. No âmbito administrativo, a atuação do Ministério Público é definida por algumas normatizações legais, dentre elas a Lei Complementar nº 75/1993, porém, melhor explicitação das atividades extrajudiciais no tocante a relações de trabalho encontram3LEITE, 2010, p.123.

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se presentes nas Resoluções expedidas pelo Conselho Superior do Ministério do Trabalho – CSMPT, sobretudo a Resolução nº 69/2007, que disciplina a instauração e tramitação do inquérito civil. Tal procedimento administrativo é utilizado de forma bastante comum pelos membros do MPT e, a exemplo do inquérito penal, possui natureza inquisitorial, não sendo necessário o contraditório, vez que, por ser procedimento, não possui o cunho de impor alguma sanção ao investigado, mas apenas verificar se o ato denunciado realmente foi contrário aos ditames legais. Como procedimento administrativo, segundo estipula o artigo 1º, parágrafo único da Resolução 69/2007 do CSMPT, “o inquérito civil não é condição de procedibilidade para o ajuizamento das ações a cargo do Ministério Público do Trabalho, nem para a realização das demais medidas de sua atribuição própria”. Em outras palavras, é possível a tomada de medidas judiciais ou extrajudiciais pelo MPT, com vistas a efetivar a solução de conflitos de interesses ocorridos entre trabalhadores e empregadores, sem a prévia instauração de inquérito civil. Em que pese a desnecessidade de inquérito civil para tomada de medidas pelo MPT, seja no âmbito judicial, quanto no extrajudicial, dificilmente alguma providência é realizada pelo Parquet sem o prévio procedimento administrativo, pois é este que, por sua natureza inquisitorial, permite a averiguação dos fatos e coleta de dados necessários ao deslinde da questão analisada. Dessa forma, existentes irregularidades envolvendo relações de trabalho, surge para o Ministério Público Laboral a competência para solucionar a questão, administrativa ou judicialmente.

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2 O TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA Um dos meios extrajudiciais de saneamento de conflitos trabalhistas, o Termo de Ajustamento de Conduta, encontra-se previsto no art. 5º, §6º, da Lei n. 7.347/85, também conhecida como Lei de Ação Civil Pública – LACP, o qual estabelece, verbis: “Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial”. A Resolução nº 69/2007 do CSMPT também regulamentou, no âmbito administrativo, a utilização do compromisso de ajustamento de conduta, conforme colacionado a seguir: Art. 14. O Ministério Público do Trabalho poderá firmar termo de ajuste de conduta, nos casos previstos em lei, com o responsável pela ameaça ou lesão aos interesses ou direitos mencionados no artigo 1º desta Resolução, visando à reparação do dano, à adequação da conduta às exigências legais ou normativas e, ainda, à compensação e/ou à indenização pelos danos que não possam ser reparados. § 1º A aferição do cumprimento do termo de ajuste de conduta ocorrerá nos próprios autos do procedimento preparatório ou do inquérito civil. § 2º O Ministério Público do Trabalho, se for o caso, poderá deprecar a realização de diligências necessárias para a verificação do cumprimento do TAC, enviando as cópias necessárias à realização do ato requerido, as quais serão autuadas no destino como “carta precatória de acompanhamento de TAC.

Em linhas gerais, pode-se afirmar que o Termo de Ajustamento de Conduta – TAC é um documento com força de título executivo extrajudicial, em que o investigado, ao assumir que sua conduta infringiu a legislação, compromete-se a adequar sua atuação, sob pena de sofrer sanções. O Ministério Público do Trabalho não é o único legitimado a tomar tal compromisso. Aliás, como dispõe o art. 5º da Lei n. 7.347/85, é possível que o TAC seja tomado em conjunto Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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pelos Ministérios Públicos da União e dos Estados. O importante é que haja efetiva defesa de direitos metaindividuais. E, na esfera trabalhista, embora outros órgãos públicos, conforme suas próprias competências e atribuições, também possam tomar o compromisso de ajuste de conduta às exigências legais, a exemplo do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE, o TAC é mais utilizado pelo Ministério Público do Trabalho, motivo pelo qual nesse trabalho serão analisados apenas os ajustes firmados perante este órgão. Cumpre observar, de início, que o TAC não visa substituir a atividade jurisdicional, mas evidentemente facilitar a solução de conflitos que, caso levados à apreciação pelo Poder Judiciário, seriam resolvidos após maior demanda de tempo, haja vista a necessidade de serem respeitados e seguidos alguns mecanismos próprios da máquina judiciária, que são burocráticos, lentos e onerosos. Nesse sentido, a tutela jurisdicional, que deveria consubstanciar-se em rápida solução das lides instauradas entre trabalhadores e empregadores, haja vista referir-se a interesses de natureza alimentar, devido aos burocráticos trâmites inerentes à atividade processual, torna-se mais morosa e dificulta a plena concretização dos direitos pleiteados. A problemática enfrentada pelos trabalhadores, ao buscar através da atuação do Poder Judiciário a solução para os conflitos instaurados entre eles e os empregadores, afeta inclusive o próprio princípio do livre acesso à justiça, insculpido na Carta Magna, pois as decisões obtidas via de regra são demoradas e nem sempre coadunam com o senso de justiça dantes por eles esperado. Como bem salientou Francisco das Chagas Lima Filho: [...] parece acertado, pois, afirmar que três aspectos do processo podem inibir o acesso à justiça: a) a sua duração prolongada

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e injustificada; b) a prevalência do custo sobre os benefícios que dele podem advir; e c) a eficácia de suas decisões4.

Além disso, é sabido que dificilmente um trabalhador, na duração de seu contrato de trabalho, procura a Justiça Especializada para reivindicar direitos não respeitados pelo empregador, ainda que fundamentais, descritos em normatizações internacionais ou mesmo na Constituição Federal. E a explicação para tal fato independe de conhecimentos técnicos: o trabalhador não reivindica o seu direito por temer represálias do empregador, dentre elas a perda do emprego e, por consequência, afetar a sua própria subsistência. Assim, muitos trabalhadores buscam a melhora de seus direitos pela via extrajudicial, denunciando irregularidades ao Ministério Público do Trabalho, por terem ciência de que é possível solicitar sigilo, e com isso preservar a sua identidade junto ao empregador. E um dos meios de solucionar os problemas trabalhistas enfrentados pela classe laboral é o compromisso tomado pela empresa, mediante assinatura de TAC. Convém ressaltar a manifestação externada por Geisa de Assis Rodrigues, ao asseverar que “conquanto as atividade ínsitas ao processo de celebração do ajustamento de conduta sejam patrocinadas por recursos públicos, podemos considerá-las menos onerosas que a movimentação da máquina jurisdicional”.5 Analisando-se a opinião da jurista, pode-se acrescentar que não se trata apenas de onerosidade financeira, como utilização de menos equipamentos e servidores para realização do direito pleiteado, mas é possível estabelecer um paralelo com a diminuição dos encargos atribuídos ao trabalhador, ao proporcionar-lhe um meio mais célere para solucionar o problema enfrentado, sem que sejam necessários atritos diretos com o empregador. 4 LIMA FILHO, 2003, p. 234. 5 RODRIGUES, 2006, p.119.

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Saliente-se, ainda, que a utilização do TAC geralmente está relacionada à reparação de danos causados a um grupo de trabalhadores ou à coletividade – infração a direitos individuais homogêneos, difusos ou coletivos, no entanto, é possível que um TAC, a exemplo do ajuizamento da ação civil pública, seja firmado preventivamente, sem que exista o dano concreto. O Termo de Ajustamento de Conduta não se equipara a acordos ou transações referendadas pelo MPT; diverso dos demais acordos, no TAC não é permitido à parte negociar ou dispor interesses difusos de toda a coletividade, os quais foram afetados pela conduta ilegal praticada. Ao revés, caso reconhecida, ainda que implicitamente, a ofensa à legislação, com lesão a direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos dos trabalhadores, o infrator se compromete a regularizar o seu comportamento ao preceito legal. A possibilidade de execução judicial, na hipótese de descumprimento do avençado, característica inerente ao TAC, também o distingue de outros meios de composição extrajudiciais de conflitos de direitos transindividuais, a exemplo das negociações coletivas. Tal possibilidade de execução perante a Justiça Especializada está prevista tanto no art. 5º, §6º da Lei n. 7.347/85, como no art. 876, caput, da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT. No bojo do TAC geralmente é prevista uma cominação, a incidir no caso de eventual descumprimento. Esta sanção não é requisito de validade do TAC. Havendo, porém, execução sem prévia estipulação da multa, o juiz poderá fixá-la, assim como poderá reduzila ou majorá-la caso verifique ser excessiva ou insuficiente para reparar os efeitos danosos. Ora, se o intuito do acordo é forçar o devedor a cumprir a sua parte, eventual multa aplicável deve ser capaz de sensibilizálo a adimplir a obrigação, favorecendo o credor. E para tanto deve ser analisado o caso concreto, bem como a situação financeira do devedor. A multa não pode ser irrisória, senão não haveria a verdadeira 134

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reparação, nem excessiva, sob pena de resultar em enriquecimento ilícito do credor e inviabilizar o exercício da atividade empregatícia – ao invés de beneficiar os trabalhadores, o encerramento da atividade empresarial lhes traria o prejuízo do desemprego. Impera salientar, no entanto, que as multas não devem ser confundidas com a obrigação principal prevista no TAC. Afinal o seu objetivo é compelir o empregador-devedor a abster-se, com definitividade, de infringir a lei. Pelo ajuste, visa-se a regularidade da atuação empregatícia aos preceitos legais. E, caso cumprida, não haverá motivos para incidência de outros encargos. Embora o entendimento predominante seja no sentido de que as sanções sejam proporcionais ao dano ocorrido, o valor apresentado deve ser de tal monta que iniba o devedor de reiterar a ilegalidade. As multas diárias (astreintes), caso incidentes, devem ser reversíveis a um fundo, sendo que no âmbito trabalhista, na maioria das vezes é o Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT6. Mas nada obsta que sejam destinadas a outros fundos que visem resguardar os interesses da comunidade, a exemplo do Fundo para a Infância e a Adolescência – FIA7 e do Fundo de Defesa de Direitos Difusos – FDD8, ou ainda, no dizer de Raimundo Simão de Melo, “a órgãos públicos ou entidades privadas com atuação voltada à tutela dos interesses metaindividuais trabalhistas”9. 6 Nas palavras de Raimundo Simão de Melo, “O FAT foi criado pela Lei n.7.998/90 e se destina a custear o seguro-desemprego, o pagamento do abono salarial (PIS) e o financiamento de programas de desenvolvimento econômico, tendo, em convênio com sindicatos obreiros, patrocinado a requalificação profissional de trabalhadores desempregados e de categorias que, pelo atual processo tecnológico, necessitam de readaptação da mão de obra”. (MELO, 2008, p.79). 7 Fundo público criado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n. 8.069/90, destinado a arrecadar recursos, provenientes de doações feitas por pessoas físicas ou jurídicas, que são aplicados em ações e projetos sociais para fortalecer a atenção dada a crianças e adolescentes carentes. 8 Trata-se de fundo contábil vinculado ao Ministério da Justiça, criado pela Lei n. 7.347/85, e tem por finalidade reparar danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico, por infração à ordem econômica e a outros interesses difusos e coletivos. 9 MELO, Op. cit. p. 79.

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Por outro lado, o TAC sempre deve apresentar cláusulas contendo obrigações a serem assumidas pelo compromissado, que via de regra consistem em obrigações de fazer ou não fazer (regra geral), mas nada impede a imposição de obrigações de dar, haja vista inexistência de veto legal. A inobservância destas autoriza a imediata execução perante a Justiça do Trabalho, com competência para efetivar não só a obrigação principal como também a multa pecuniária. Entende-se que a única vedação às obrigações constantes do ajuste perante o Ministério Público do Trabalho seriam aquelas cuja imposição dependam exclusivamente de um mandamento judicial. Como bem salientou Luis Roberto Proença, não se admite um ajuste que preveja a perda de direitos políticos, por ato de improbidade administrativa, pois tal sanção depende de ordem judicial10. Outrossim, ainda que o compromisso verse sobre atos de improbidade, não há óbice a estipulações com intuito de devolver ao erário os valores indevidamente retirados. Os Termos de Ajustamento de Conduta podem ser firmados por pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas. No caso de compromissos assumidos pela Administração Pública, no âmbito trabalhista o desrespeito a direitos metaindividuais é observado principalmente no tocante à contratação de trabalhadores sem a realização de prévio concurso público. Ainda que seja um ente público o signatário do compromisso perante o MPT, nada obsta que no corpo do acordo haja previsão expressa de incidência de multa ou outros encargos financeiros, pois como já mencionado anteriormente, as astreintes não constituem requisito de validade do TAC; são estipuladas somente para que o devedor tenha o pré-conhecimento de que, se descumprir o ajuste, será sancionado e, quanto maior o retardo para o adimplemento da obrigação assumida, ou ainda quanto mais pessoas forem afetadas pela sua atitude irregular, maior será o valor que despenderá. 10 PROENÇA, 2001, p. 127.


Havendo execução do ajuste, tanto de multas como da obrigação principal, o rito será o mesmo para empresas privadas, empresas públicas ou sociedade de economia mista. Já no caso de TAC assinado pela Fazenda Pública – Administração Pública Direta, Autárquica ou Fundacional, apenas a execução da obrigação principal sujeita-se às regras impostas aos demais devedores, pois não há prerrogativas para o ente público, nesse particular. Nesse sentido se posiciona a Súmula n.º 279 do Colendo Superior Tribunal de Justiça, ao expressar que “é cabível execução por título extrajudicial contra a Fazenda Pública”. Em relação à execução das multas, no entanto, devese seguir a ordem cronológica dos precatórios, prevista no art. 100 da Constituição Federal de 1988, sendo necessário, para fixação do débito devido, o ajuizamento de ação cognitiva, a saber, Ação Civil Pública. Por outro lado, quanto aos acordos firmados pela Fazenda Pública, entendemos não ser possível prescrever obrigações de dar, haja vista que os atos de expropriação de bens públicos devem seguir normas legais específicas. Aliás, conforme dispõe a Carta Maior, a Administração Pública deve orientar-se pelo princípio da legalidade, sendo-lhe permitido fazer apenas o que a lei autorizar. Assim, a assunção de compromissos no tocante à perda de bens somente será possível mediante lei. Outrossim, tendo em vista que a principal irregularidade no âmbito dos entes públicos remete-se a contratações de pessoal sem prévia realização de concurso público, obrigações de fazer e não fazer, consubstanciadas, respectivamente, em realizar concurso público para preenchimento das vagas existentes no órgão, bem como rescindir os contratos de trabalho irregulares, e abster-se de admitir trabalhadores sem aprovação prévia em concurso público, ressalvadas as nomeações para cargos em comissão, declarados em lei de livre nomeação e exoneração, já atendem à finalidade pretendida. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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A multa a ser aplicada pelo eventual descumprimento não desvirtua o ajuste pactuado pelo ente público, apenas diferenciandose dos empregadores privados quanto ao modo de execução, o qual pressupõe ajuizamento de ação de conhecimento e, se reconhecida a dívida, será paga segundo a ordem cronológica dos precatórios.

3 FUNÇÃO SOCIAL DO AJUSTAMENTO DE CONDUTA

TERMO

DE

Em relação às empresas privadas, nem sempre as cláusulas contendo obrigações de fazer ou abster-se de fazer atingem a finalidade maior do acordo, que é efetivamente solucionar os conflitos trabalhistas, desafogando o Poder Judiciário de apreciar lides individuais. Afinal, como já mencionado, no TAC é previsto multa (astreinte) a incidir diariamente em caso de descumprimento e por trabalhador atingido, a ser revertida a um fundo, geralmente o FAT. Ora, não se pode imaginar um documento que somente terá resultados práticos se for descumprido. O ideal é que seja firmado e efetivamente cumprido pela empresa. E, principalmente, que esses resultados sejam sentidos pelos empregados prejudicados pela conduta empresarial ilícita, bem como a empresa seja efetivamente compelida a observar corretamente as normas trabalhistas a ela impostas. É inadmissível que os efeitos do TAC somente se operem ao se verificar a reincidência empresarial nas irregularidades constantes de um acordo em que se comprometeu a não mais realizar aquelas ilicitudes. Mesmo porque, quando um trabalhador recorre ao MPT para denunciar práticas irregulares existentes no local onde presta serviços, o seu intuito é que haja uma contraprestação pelo que já sofreu, além da efetiva reparação e prevenção do dano, a fim de que não aconteça mais, seja com ele, seja com os futuros empregados que laborarão para o empregador. Não se pode concordar que eventual 138

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efeito prático seja sentido quando verificado que a empresa, apesar de ter se obrigado perante o Ministério Público do Trabalho, não cumpriu a sua parte. Aliás, para comprovar a reincidência ou permanência nas ilegalidades, é necessária uma verificação por um órgão fiscalizador, seja o próprio Parquet Trabalhista, seja o Ministério do Trabalho e Emprego. E, comprovada a irregularidade, caberá intervenção do Poder Judiciário, mediante o ajuizamento de uma ação própria – execução de título executivo extrajudicial ou ação de conhecimento, conforme o caso. Em outras palavras, será utilizado o Estado para resolver uma situação que deveria ter sido solucionada de modo efetivo somente no plano extrajudicial. O intuito do compromisso resta alterado, já que se faz necessário buscar a tutela judicial para obter o resultado que, originariamente, deveria ter sido alcançado de modo extrajudicial. Ressalte-se que até mesmo a execução das sanções previstas no Termo de Ajustamento de Conduta precisa de atuação judicial, pois não é permitido ao Ministério Público executar as multas previstas no acordo. Ora, não há razão em se firmar um título extrajudicial se este somente terá efetividade com a prestação da tutela jurisdicional. Inclusive, porque a intervenção do Poder Judiciário poderia ser pleiteada individualmente pelo trabalhador, ou ainda coletivamente, através de sindicato. Tanto é verdade que o ajuizamento de uma ação coletiva não está adstrito a somente um autor legitimado, mas a própria Lei das ACP’s relaciona quais são os possíveis autores, e o MPT é apenas um dos legitimados, de modo que não haveria razão em buscar a tutela do Parquet apenas para propositura de uma ação coletiva. Caso contrário, esse importante documento para solução extrajudicial de conflitos poderá ser destinado a somente deflagrar resultados práticos e sensíveis à empresa caso seja descumprido. E a Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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intenção principal da assinatura do referido acordo, a saber, sanar as irregularidades sem a intervenção do Estado-juiz, estará prejudicada. Afinal, a execução da multa perante a Justiça do Trabalho revela que, na verdade, o problema não foi corrigido. Nesse ponto, comungamos com o posicionamento do doutrinador Raimundo Simão de Melo que, com base no entendimento dos juristas Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Laura Martins Maria de Andrade, afirmou: Com efeito, o Ministério Público, estrutura compatível com a defesa de direitos difusos e coletivos, deve evitar o dano ou o litígio, antecipando, via desse instrumento, a adequação da conduta dos infratores à lei porque outra importante finalidade a ser cumprida pelo compromisso de ajustamento de conduta é a de prevenir o litígio. A composição prévia desobstrui as vias judiciais, severamente congestionadas, e a força de título executivo extrajudicial, que a lei lhe atribui, permite reduzir consideravelmente a duração e o ônus da demanda, uma vez que elimina a fase de conhecimento11.

Além da permanência dos problemas trabalhistas observados no âmbito empresarial, com claro prejuízo aos trabalhadores, a necessidade do ajuizamento de uma demanda judicial torna a modificação pretendida demorada e, por vezes, até ineficaz. Afinal, ainda que a ação proposta seja de execução do TAC, por constituir em título executivo extrajudicial, mesmo assim hão que se respeitar os trâmites processuais, como a citação válida do réu, a concessão de prazo para pagar, a ocorrência de penhora e alienação de bens, em caso de ausência de pagamento, recursos próprios da fase executiva, enfim, atos morosos. A ação executiva apenas é mais célere por não depender de um processo de cognição para definir o valor devido pelo réu, pois este já é líquido, conforme previsto no título. Entretanto, a parte expropriatória tem os atos previstos na normatização jurídica e deve ser observada. Assim, determinado imbróglio que poderia ser sanado 11 MELO, Op. cit. p. 73.

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rapidamente pela via administrativa, pode demorar anos para ser solucionado pela via judicial. A atuação administrativa do MPT, portanto, precisa ser de tal forma que resolva definitivamente os problemas por ele analisados. E, se o Termo de Ajustamento de Conduta é disponibilizado por lei como uma forma de solução de conflitos, indubitável que seja buscada uma maneira de se acabar com as irregularidades de forma a não mais existir o mesmo tipo de problemas. Para tanto, a Lei Complementar n. 75/1993 põe à disposição do Parquet Laboral vários meios de coerção administrativa. O uso do TAC não pode servir apenas para arquivar procedimentos administrativos. O arquivamento é uma das consequências do desenrolar das verificações realizadas nos procedimentos em trâmite perante o Ministério Público do Trabalho, mas não pode ser o objetivo principal. Aliás, existindo uma investigação no âmbito ministerial, o termo de compromisso de conduta pode abarcar todas as irregularidades investigadas, como apenas algumas delas: nessa hipótese, em relação aos problemas remanescentes persistiria o interesse do Parquet em continuar investigando ou ajuizar a competente ação civil. O ideal, portanto, é que, através da assinatura do Termo de Ajustamento de Conduta, a empresa seja compelida a realizar alguma ação voltada à sociedade, com fundos próprios, de modo a efetivamente ser compelida a não mais praticar a mesma irregularidade. Para viabilizar esse tipo de ação, interessante observar o porte da empresa compromissada, bem como a atividade principal por ela desenvolvida e/ou o objeto infringido. Assim, faz-se mister que o ajuste firmado perante o Ministério Público do Trabalho não se limite a obrigações de fazer ou não fazer, mas tenha um alcance maior, com benefícios rápidos e diretos à sociedade, garantindo-se a observância de direitos mínimos Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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dos trabalhadores, sem que seja necessário o ajuizamento de uma ação perante a Justiça Laboral. Afinal, ao se firmar um Termo de Ajuste de Conduta no Ministério Público do Trabalho, dois objetivos devem ser buscados: desafogar o Poder Judiciário e cumprir a lei. É por isso que o uso do TAC não deve ser inadequado, mas o acordo deve ser suficiente em si mesmo, de modo a não ensejar futuras ações acerca das obrigações e/ou multas estipuladas. As medidas presentes no ajuste devem ser úteis e eficazes a toda a sociedade. Caso contrário, ainda que cumprido o TAC, segundo as cláusulas constantes do documento, pode persistir a ilegalidade, é dizer, a exigência normativa não foi atendida, sendo, portanto, ineficaz o compromisso tomado. Com bastante propriedade, Luís Roberto Proença assevera que um dos efeitos práticos alcançados pela assinatura de um TAC é a obtenção de maior tempo para que o infrator adeque a sua conduta às exigências legais, evitando-se assim prejuízos maiores aos interesses metaindividuais ou, ainda, intervenções judiciais12. Dentre os exemplos colacionados por esse autor, salientam-se ajustes em que “uma empresa ganha tempo para adequarse às normas legais ao invés de ser imediatamente interditada”, bem como “um município que tem a oportunidade de diluir em alguns meses ou anos, o dispêndio que terá para devolver ao ensino público os gastos que realizou, indevidamente, em outros setores”13 - grifo no original. Nessa perspectiva, a inclusão de uma obrigação de dar mostra-se extremamente viável, já que impele a empresa não somente a adequar a sua conduta, abstendo-se de realizar uma atitude irregular, 12 PROENÇA. Op. cit. p. 139. 13 PROENÇA. Op. cit. p. 140.

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como também realiza um ressarcimento pelas ilicitudes cometidas, que são sentidas pela classe laboral envolvida e pela própria sociedade. À guisa de exemplo, uma empresa cujos diretores exerçam assédio moral contra seus subordinados, pode ser condenada, no Termo de Ajustamento de Conduta, à obrigação de confeccionar outdoors, panfletos, manuais explicativos sobre esse tipo de assédio, como reconhecê-lo, evitá-lo, combatê-lo, a quem o empregado pode recorrer quando for assediado moralmente. Outras atividades igualmente podem ser realizadas como forma de cumprir os ajustes firmados perante o Ministério Público do Trabalho, podendo-se citar os seguintes exemplos: ▪ colocar propagandas em ônibus, confeccionar outdoors, cartazes, panfletos com dizeres sobre como combater irregularidades trabalhistas – ex.: sobre acidentes de trabalho, trabalho infantil, aprendizagem, assédio moral. O MPT pode decidir a forma e layout dos documentos; ▪ realizar campanhas de conscientização social acerca dos direitos trabalhistas assegurados pela Constituição Federal, CLT e demais legislações esparsas; ▪ doações financeiras em prol de instituições assistenciais, prestadoras de relevantes serviços de amparo aos necessitados – ex.: hospitais, asilos, associações de combate ao câncer; hospitais;

▪ doação de ambulâncias e equipamentos médicos a

▪ realizar palestras no âmbito da empresa, conscientizando os empregados acerca das práticas trabalhistas irregulares, como reconhecê-las e coibi-las; como o trabalhador pode se defender das práticas ilegais cometidas pela empresa. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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Essa posição acerca das mudanças sociais advindas através da assinatura do TAC já está sendo colocada em prática por muitos Procuradores do Trabalho, lotados em diversas Procuradorias. Embora não se possa afirmar estar-se diante de uma padronização pelo Ministério Público do Trabalho, o uso do TAC como transformador social vem sendo adotado com mais frequência ultimamente. Conforme se pode inferir, o objetivo é que, mediante a assinatura de um TAC, não apenas o trabalhador seja beneficiado, mas toda a sociedade, enquanto titular de direitos transindividuais seja atendida. Além de visar a predominância do interesse público, verifica-se que, através de medidas imediatas a serem realizadas pelas empresas, pode-se inclusive diminuir o valor das astreintes aplicáveis. Afinal, reitera-se, o ideal maior do TAC é que a lei seja cumprida, sem necessidade de buscar a tutela jurisdicional. Não se pode olvidar, ainda, a possibilidade de se firmar Termos de Ajustamento de Conduta sem a cominação de uma multa. Nessas hipóteses, tem-se que as existências de cláusulas com obrigação de dar permitirão ao acordo uma eficácia superior a simples obrigações de fazer, além de facilitar a verificação acerca do cumprimento do pactuado. No âmbito da Procuradoria Regional do Trabalho da 24ª Região, localizada no Estado de Mato Grosso do Sul, dois Termos de Ajustamento de Conduta merecem destaque. Um foi o firmado com frigoríficos do grupo empresarial JBS S/A, o qual, além de cláusulas contendo obrigações de fazer e não fazer atinentes à relação de trabalho, bem como ao meio ambiente de trabalho, incluiu cláusulas de obrigação de dar e de pagar, dentre elas, a obrigatoriedade de fornecimento de carnes a creches, asilos, centro de apoio a pessoas com deficiência, dentre outras entidades privadas sem fins lucrativos14. Observa-se a mantença das atividades laborais do empregador, porém 14 TAC nº 32/2009, firmado sob a condução do Procurador do Trabalho, Dr. Odracir Juares Hecht.

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com o produto sendo revertido para atendimento de associações beneficentes. Em outro TAC, desta feita assinado pela empresa JV – Indústria, Serviço, Comércio e Representações Ltda15, igualmente foi pactuado, a título de reparação pelos danos morais coletivos, a entrega de uma caminhonete à Superintendência Regional Polícia Federal no Estado de Mato Grosso do Sul e outra à Fundação do Trabalho de Mato Grosso do Sul. Neste caso, além das cláusulas convencionais acerca do cumprimento de normas legais, houve a destinação de veículos para viabilizar a atuação dos órgãos beneficiados diretamente no combate ao trabalho escravo e degradante no Estado de Mato Grosso do Sul. Observa-se que, com essas atitudes, não apenas os trabalhadores, mas a própria sociedade é beneficiada. E o custeio das ações pela empresa evita que persista a irregularidade, pois há uma imediata alteração em seu patrimônio, acrescido ao fato de que, caso não realize as ações propostas, haverá execução judicial do título extrajudicial – aplicação da multa pelo inadimplemento. As doações efetuadas pelas empresas necessitam observar o binômio ajuda à empresa assistida x benefícios à população em geral. Afinal, é importante que haja não só uma melhora à entidade que recebeu a doação, visto que, por seus próprios meios demandaria mais tempo ou, talvez, sequer conseguisse atingir a melhoria advinda pela atuação da empresa compromissada, como a coletividade em geral deve ser beneficiada, já que o interessante é que haja uma verdadeira reparação dos danos causados por práticas lesivas à sociedade. Em outro Termo de Ajustamento de Conduta, este firmado pela Procuradoria Regional do Trabalho da 1ª Região, localizada no Estado do Rio de Janeiro, foi inclusa cláusula de responsabilidade social – após investigação de irregularidades quanto 15 TAC firmado nos autos da Ação Civil Pública n. 0001387-89.2010.5.24.0007, sob a condução do Procurador do Trabalho, Dr. Jonas Ratier Moreno.

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à inserção de ex-presidiários e pessoas portadoras de doenças crônicas ou transtornos mentais, além do preenchimento da cota legal para pessoas portadoras de necessidades especiais pela rede de supermercados Prezunic Comercial Ltda16. Mediante tal ajuste, e com base principalmente no demonstrado engajamento empresarial com práticas voltadas à eliminação de preconceitos contra esses grupos, foi estabelecido cláusula promocional de direitos, em que a empresa comprometeuse a implantar programas de capacitação e qualificação profissional, inclusive participação em projetos e programas de inclusão social. Tal ajuste foi pactuado sem previsão de multas, porém conforme destacado pela Procuradora do Trabalho responsável pela condução do feito, Drª Lisyane Chaves Motta, a atuação da empresa após a assinatura do TAC servirá para verificar se houve descumprimento ou não do acordado, já que a implementação dos programas foram espontaneamente sugeridos pelo empregador. Pode-se dizer, portanto, que o Termo de Ajustamento de Conduta é um acordo extrajudicial proposto pelo Ministério Público do Trabalho às pessoas físicas ou jurídicas, inclusive a entes públicos, para evitar que irregularidades trabalhistas sejam perpetuadas. Assim, uma vez reconhecido o desacordo da ação empresarial com os dispositivos legais, o MPT propõe que seja ajustada a conduta, comprometendo-se a empresa a não mais cometer os ilícitos dantes praticados. Assinado o termo, a conduta é automaticamente considerada resolvida. Eventual procedimento administrativo em trâmite perante o Parquet será arquivado pela assinatura do TAC.

16 Informativo do MPT-RJ, Rio de Janeiro-RJ, ano 8, n. 13, p. 10.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A exigência de meios de solução de conflitos trabalhistas, sem a intervenção judicial tornou o Termo de Ajustamento de Conduta um dos instrumentos mais utilizados pelo Ministério Público do Trabalho para pôr fim a demandas de trabalhadores em face de seus empregadores. Há outros mecanismos de composição extrajudicial, a exemplo da mediação e da arbitragem, porém esses não possuem uso tão frequente quanto o TAC, visto que este, além de promover mudanças substanciais para os trabalhadores prejudicados, assegurando-lhes melhor forma para desfrutar dos direitos previstos em lei, também está voltado a beneficiar toda a sociedade. A atitude ministerial, ao constar obrigações de dar ou de cunho social nos ajustes, torna possível a execução de determinadas tarefas por entidades públicas e privadas, sem fins lucrativos, voltadas ao bem-estar da comunidade e assegura um caráter mais social ao Termo de Ajustamento de Conduta.

REFERÊNCIAS ARARUNA, Eduardo Varandas. A execução do termo de ajuste de conduta: pontos polêmicos. Revista do Ministério Público do Trabalho, Brasília, ano 12, n. 23, p. 22-30, mar. 2002. CASTILHO, Maria Augusta de. Roteiro para elaboração de monografia em ciências jurídicas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. DINIZ, José Janguiê Bezerra. Atuação do Ministério Público do Trabalho como árbitro. São Paulo: 2005.

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DIREITOS DIFUSOS (Notícias). Disponível em: <http://portal. mj.gov.br/cfdd>. Acesso em: 18 de maio 2011. LIMA FILHO, Francisco das Chagas. Acesso à justiça e os mecanismos extrajudiciais de solução de conflitos. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2003. Informativo DO MPT-RJ, Rio de Janeiro-RJ, ano 8, n. 13. Informativo PRT6 Notícias, Recife-PE, ano 3, n. 13. LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ministério Público do Trabalho: doutrina jurisprudência e prática. 4. ed. São Paulo: LTr, 2010. MELO, Raimundo Simão de. Ação Civil Pública na Justiça no Trabalho. 3. ed. São Paulo: LTr, 2008. NUNES, Rizzatto. Manual da monografia jurídica. Como se faz: uma monografia, uma dissertação, uma tese. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. O FIA – Fundo para a Infância e a Adolescência. Disponível em: <http://www.secri.org.br/pdf/o que e o fia.pdf>. Acesso em: 18 de maio 2011. PROENÇA, Luis Roberto. Inquérito Civil: atuação investigativa do Ministério Público a serviço da ampliação do acesso à Justiça. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. RODRIGUES, Geisa de Assis. Ação Civil Pública e Termo de Ajustamento de Conduta: Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

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OS EDITAIS DE CONCURSOS PÚBLICOS COMO FORMA DE EXCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO1

Tânia Regina Noronha Cunha2

Resumo: Este trabalho aborda itens dos editais de concursos públicos em âmbito federal, estadual e municipal relativos à pessoa com deficiência. Coteja-se tais regras com os princípios constitucionais, com os inseridos pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas e seu Protocolo Facultativo, ratificada pelo Brasil com equivalência de emenda constitucional, por meio do Decreto Legislativo n. 186, de 9 de julho de 2008, promulgada pelo Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009, bem como os preceitos da legislação infraconstitucional concernentes ao assunto. Esses temas objetivam fomentar a discussão sobre os entraves que tais pessoas têm encontrado no acesso às provas dos concursos e aos cargos públicos. Acreditamos desta forma na mudança de postura, na forma de enxergar a pessoa com deficiência no ambiente profissional, contribuindo para que se cumpra a legislação e efetivamente se realize a inclusão. Palavras-chave: Editais. Concurso público. Pessoa com deficiência. 1 Escrito em: 30/01/2011. 2 Bacharel em Ciências Jurídicas pelas Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso (1984/1988); Especialista em Direito do Estado com ênfase na Lei n. 8.112/1990, Universidade Estácio de Sá RJ (1993/1994); Especialista em Metodologia da Educação Especial II, conferido pela UNAES – Centro Universitário de Campo Grande-MS (2003/2005); Presidente do Conselho Estadual da Pessoa Portadora de Deficiência do Estado de Mato Grosso do Sul (2006/2007) e membro deste Conselho (2010/2011); Advogada, Presidente da Comissão de Direitos dos Idosos e das Pessoas com Deficiência da OAB/MS (2010/2011).

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1 INTRODUÇÃO As pessoas com deficiência sempre estiveram em situação de desvantagem em todos os espaços ocupados pelo ser humano, na medida em que eram vistos como “doentes” e incapazes. Nesta lógica, a coletividade os colocava na posição de sujeitos de assistência e de caridade e não como sujeitos de direitos e de obrigações. Ainda que vivamos hoje sob a égide da propalada inclusão dessas pessoas, verifica-se por parte do Poder Público e da sociedade em geral, uma associação da deficiência com incapacidade. Todavia, esta não é corolário daquela. A deficiência significa limitação física, sensorial ou mental, fato que não impossibilita a pessoa de exercer as atividades cotidianas, ainda que se faça necessária a disponibilização no ambiente de trabalho de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa com deficiência possa receber ou transmitir informações imprescindíveis ao seu bem-estar e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida (Artigo 3º, Inciso III, Decreto n. 3.298, de 20 de dezembro de 1999). Entretanto, a promoção da acessibilidade para as pessoas com deficiência constitui-se em nossa sociedade como favor, privilégio, ou até mesmo benesse. Na verdade, trata-se de uma obrigação do Estado e da sociedade, garantida pela legislação. Esta ausência de efetividade exige esforço descomunal desse segmento e de suas famílias para que a retórica da legislação constitucional e infraconstitucional brasileira seja cumprida no plano fático, com o reconhecimento dos direitos humanos e liberdades fundamentais desses cidadãos. Este estudo está baseado na militância da autora nos movimentos de luta para garantir a exequibilidade do direito fundamental ao trabalho dessa parcela da população, consagrado no ordenamento jurídico brasileiro.

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Nesse sentido, abordar-se-ão aspectos relativos aos editais de concursos públicos em todos os níveis da federação, demonstrando que tais regras não atendem aos parâmetros constitucionais e infraconstitucionais pertinentes, citando a doutrina e a jurisprudência dos tribunais pátrios e a necessidade da eliminação dessas barreiras. Os editais exemplificativamente aqui expostos veiculam, inegavelmente, práticas inconstitucionais e discriminatórias como avaliações prévias da compatibilidade da deficiência do candidato com as atribuições do cargo público realizadas pela equipe multiprofissional, pela junta ou perícia médica oficial, oferecimento pela Administração Pública de precárias condições diferenciadas e insuficiência de tempo adicional para que as pessoas com deficiência realizem as provas dos concursos, sujeitando tais pessoas a uma política excludente que as submete a uma gama de preconceitos e discriminações de toda a ordem, impedindo-as de assumir cargos públicos. Pretende-se com este estudo demonstrar e comprovar essa realidade e chamar a atenção da sociedade e do Poder Público para a reflexão do tema e para a urgente e imprescindível transformação social e para a implementação de uma política de inclusão que garanta a todos o acesso efetivo e contínuo ao espaço comum da vida em sociedade, sociedade essa que deve estar orientada por relações de acolhimento à diversidade humana, de aceitação das diferenças individuais, de esforço coletivo na equiparação de oportunidades em todas as dimensões da vida.

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2 AVALIAÇÃO PRÉVIA DA COMPATIBILIDADE DA DEFICIÊNCIA DO CANDIDATO COM AS ATRIBUIÇÕES DO CARGO PELA JUNTA MÉDICA OU PELA EQUIPE MULTIPROFISSIONAL Examinando vários editais de concursos públicos, encontramos disposições que submetem as pessoas com deficiência a avaliações prévias da compatibilidade de sua deficiência com as atribuições do cargo público realizadas pela junta médica oficial ou pela equipe multiprofissional, desatendendo aos parâmetros normativos previstos no ordenamento jurídico brasileiro, senão vejamos: a) Edital n. 85, da Escola de Administração Fazendária, de 18 de setembro de 2009, relativo ao concurso público para provimento de cargos de auditor-fiscal da Receita Federal do Brasil: 7 - DOS CANDIDATOS COM DEFICIÊNCIA. 7.7 - O candidato de que trata o subitem 7.1, se habilitado e classificado na forma do subitem 12.1, será, antes de sua matrícula na Segunda Etapa, submetido à avaliação de Equipe Multiprofissional, na forma do disposto no art. 43 do Decreto n. 3.298/99, alterado pelo Decreto n. 5.296/2004. 7.8 - Para os efeitos do subitem 7.7, o candidato será convocado uma única vez. 7.9 - O não comparecimento à avaliação de que trata o subitem 7.7, no prazo a ser estabelecido em edital de convocação, implicará ser o candidato considerado desistente do processo seletivo. 7.10 - A Coordenação-Geral de Recursos Humanos do Ministério da Fazenda, com base no parecer da Equipe Multiprofissional, decidirá sobre a qualificação do candidato como pessoa com deficiência e sobre a compatibilidade da deficiência, da qual é portador, com as atribuições do cargo. 7.13 - Caso o candidato tenha sido qualificado pela Equipe Multiprofissional como pessoa com deficiência, mas a sua deficiência seja considerada, pela Equipe Multiprofissional, incompatível para o exercício das atribuições do cargo, definidas no item 3 deste Edital, este será considerado INAPTO e, consequentemente, eliminado do concurso. 7.14 - A compatibilidade entre as atribuições do cargo e a deficiência apresentada pelo candidato, referida no subitem 7.10, será avaliada, ainda, durante o estágio 152

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probatório, na forma estabelecida no § 2º do art. 43 do Decreto n. 3.298/1999.

b) Edital n. 001, da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), de 30 de março de 2009, referente ao concurso público para provimento de cargos vagos de níveis superior e intermediário do quadro permanente da FUNASA: 5.6 - Os candidatos que se declararem portadores de deficiência, após a aprovação na primeira etapa ou na etapa única deste Concurso Público, conforme o cargo escolhido, deverão submeter-se à perícia médica promovida por equipe multiprofissional designada pela FUNASA, que verificará sobre a sua qualificação como portador de deficiência ou não, bem como sobre o grau de deficiência incapacitante para o exercício do cargo, nos termos do art. 43 do Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, alterado pelo Decreto nº 5.296, de 2 de dezembro de 2004.

c) Edital n. 01, de 23 de julho de 2009, relativo ao quinto concurso público de provas para provimento de cargos públicos da estrutura funcional do Poder Judiciário do Estado de Mato Grosso do Sul: 12.5. O candidato inscrito na condição de Portador de Necessidades Especiais apresentar-se-á, em data e horário previamente estabelecido em Edital, perante Junta Médica Oficial designada por meio de ato da Banca examinadora do Concurso, para efeitos de confirmação técnica sobre a deficiência informada no ato da inscrição. 12.6. A avaliação prévia do candidato se prestará a aferir a caracterização da condição de Portador de Necessidades Especiais e à compatibilidade da deficiência apresentada com as atribuições inerentes às funções do cargo a que concorre. 12.7. O parecer conclusivo da Junta Médica Oficial formalizará - caráter definitivo, eliminatório e soberano - em face do documento médico apresentado pelo candidato - o acolhimento ou não do candidato a concorrer na condição de Portador de Necessidades Especiais.

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12.8. A avaliação será realizada por Junta Médica, composta de 02 (dois) médicos, e por uma Comissão Especial composta por 03 (três) servidores, indicados pela Banca Examinadora. 12.9. Caberá à Junta Médica examinar o candidato quanto aos aspectos clínicos de sua deficiência. À Comissão Especial caberá examinar o candidato sob o aspecto de sua aptidão funcional para o exercício das funções do cargo. 12.10. A Junta Médica e a Comissão Especial deverão apresentar laudo conclusivo, cada um por si, indicando a existência, ou não, de compatibilidade da deficiência e aptidão do candidato para o exercício, ou não, das funções inerentes ao cargo, em toda sua extensão. 12.11. Concluindo quaisquer dos laudos pela inexistência da deficiência ou por sua insuficiência, passará o candidato a concorrer às vagas não reservadas a Portador de Necessidades Especiais. 12.12. Os laudos terão decisões terminativas e soberanas sobre a qualificação do candidato - caracterizando-o como deficiente ou não-; e quanto ao grau de deficiência, concluindo por sua aptidão para o exercício das funções do cargo.

d) Edital n. 02/10/2009, de 29 de outubro de 2009, relativo ao concurso público de provas e títulos da Secretaria Municipal de Educação de Campo Grande, Mato Grosso do Sul: 3. Dos candidatos portadores de deficiência: 3.2 - Das vagas destinadas aos cargos objeto do Concurso, cinco por cento serão destinadas a candidatos portadores de deficiência, exigida para a posse a comprovação da compatibilidade com as exigências físicas para o exercício das atribuições do cargo, observando-se os dispositivos do Decreto Federal nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999. 3.7 - O candidato que concorrer às vagas destinadas aos portadores de deficiência, se aprovado no Concurso, será submetido à avaliação realizada por equipe multiprofissional, para aferição de sua qualificação como portador de deficiência ou não e o grau de sua deficiência, bem como seu impedimento ou não para o exercício de tarefas do cargo. 3.7.2 - A não-observância do disposto no item anterior ou a declaração de inaptidão pela equipe multiprofissional acarretará a perda do direito à vaga reservada aos candidatos portadores de necessidades especiais. (grifo nosso). 154

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e) Edital n. 04/01/2009, de 20 de novembro de 2009, concernente ao concurso público de provas e títulos para formação do cadastro reserva para provimento de cargos do quadro permanente de pessoal da Prefeitura Municipal de Campo Grande, Mato Grosso do Sul: 3. DOS CANDIDATOS PORTADORES DE DEFICIÊNCIA. 3.2.1 - Será exigido para a posse no cargo da classificação a comprovação da compatibilidade física com as exigências para o exercício das atribuições e tarefas do cargo, observando-se, em especial, disposições do art. 37 do Decreto Federal nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999. 3.7 - O candidato que concorrer às vagas destinadas aos portadores de deficiência, aprovado no Concurso, será submetido à avaliação realizada por equipe multiprofissional, para aferição de sua qualificação como portador de deficiência ou não e o grau de sua deficiência bem como seu impedimento ou não para o exercício de tarefas do cargo. 3.7.1 - O candidato, na condição referida no item 3.2, deverá comparecer à avaliação pela equipe multiprofissional munido de cópia do laudo médico apresentado por ocasião de sua inscrição no Concurso. 3.7.2 - A não-observância do disposto no item anterior ou a declaração de inaptidão pela equipe multiprofissional acarretará a perda do direito à vaga reservada aos candidatos portadores de necessidades especiais.

Analisando as regras editalícias supramencionadas, observa-se o claro propósito de ceifar prematuramente as pessoas com deficiência do acesso ao direito fundamental ao trabalho e a violação da legislação pertinente. Primeiramente, cumpre ressaltar que o Decreto n. 5.296, de 2 de dezembro de 2004, alterou, por meio do Artigo 70, o Artigo 4º do Decreto n. 3.298/1999 e revogou, por intermédio do Art. 71, os arts. 50 a 54 deste último Decreto, não tendo procedência as citações editalícias concernentes à alteração de outros preceitos do mencionado Regulamento.

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Cotejando as regras dos editais em epígrafe com os princípios constitucionais, observa-se a sua clara inconstitucionalidade, senão vejamos: a) Princípio da legalidade: a avaliação da compatibilidade da deficiência do candidato com as atribuições do cargo realizada pela junta médica ou pela equipe multiprofissional antes do estágio probatório, destinada exclusivamente a candidatos que concorrem às vagas reservadas para as pessoas com deficiência, não encontra previsão no ordenamento jurídico brasileiro; b) Princípio da não discriminação: tais itens colidem com os preceitos elencados em nossa Carta Magna de 1988, dentre os quais os objetivos da República Federativa do Brasil que propugnam a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, incisos I e IV) proibindo no Artigo 7º, Inciso XXXI, a discriminação no tocante a salário e a critérios de admissão do trabalhador com deficiência. Referindo-se ao Artigo 3º, Inciso IV, da Constituição Federal de 1988, Fonseca e Freitas (2009, p. 4) assim se pronunciam quanto ao revogado Artigo 75 , da Resolução n. 75, de 12 de maio de 2009, do Conselho Nacional de Justiça: Uma pré-avaliação das aptidões da pessoa com deficiência, ainda antes da realização das provas objetivas do concurso público, discrimina tal candidato em relação aos demais, afrontando a legislação federal vigente, em especial o disposto no art. 3º, IV, da Constituição Federal. [...] O dispositivo constitucional em questão foca-se em verbos contundentes e exige uma postura pró-ativa da sociedade e do Estado para que as desigualdades econômicas, políticas e sociais sejam enfrentadas e, efetivamente, superadas, por intermédio de ações imperativas. Conclui-se que a Comissão Multiprofissional prevista no art. 75 e parágrafos da Resolução 75/09, do Conselho Nacional de Justiça, é inconstitucional, já que limita os direitos da pessoa com deficiência, restringindo seu acesso à magistratura por meio de uma rápida e 156

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superficial avaliação advinda de profissionais que não detêm, e nem poderiam deter, todos os elementos necessários para determinar as aptidões profissionais do candidato. [...] Dessa maneira, não se pode permitir retrocessos como o que ocorre com a forma de operacionalização desta comissão multiprofissional, determinada pelo ora atacado art. 75 da Resolução 75 do Conselho Nacional de Justiça.

Nesse sentido, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU) e de seu Protocolo Facultativo, inseridos na Constituição Federal vigente pelo Decreto Legislativo n. 186, de 9 de julho de 2008, como emenda constitucional, devidamente promulgada pelo Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009, que conceitua discriminação como: Artigo 2. Definições. Para os propósitos da presente Convenção: “Discriminação por motivo de deficiência” significa qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro. Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável.

que:

Acrescenta esse Diploma Internacional no Artigo 4º Os Estados Partes se comprometem a promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação por causa de sua deficiência. Para tanto, os Estados Partes se comprometem a: a) Adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção; b) Adotar todas as medidas necessárias, inclusive, legislativas, para modificar ou revogar leis, regulamentos, costumes e práticas vigentes, que constituírem discriminação contra pessoas com deficiência.

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c) Princípio do respeito à dignidade da pessoa humana: as regras editalícias transcritas nas linhas anteriores evidenciam práticas preconceituosas e discriminatórias que afrontam a dignidade da pessoa humana, erigida em nosso ordenamento constitucional como fundamento da República Federativa Brasileira (Artigo 1º, Inciso III, da Constituição Federal de 1988), reafirmada pela alínea “h” do Preâmbulo da multicitada Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU (Decreto n. 6.949/2009) reconhecendo os Estados Partes que a discriminação contra qualquer pessoa, por motivo de deficiência, configura violação da dignidade e do valor inerentes ao ser humano; d) Princípio da igualdade: afrontam ainda o primado da igualdade, instituindo para os candidatos com deficiência uma prematura avaliação de suas aptidões por equipe multiprofissional, não aplicável aos demais candidatos, ou seja, institui um tratamento desigual entre aqueles que se encontram na mesma situação fática: aprovados e classificados no certame público. Sob a mesma lógica, os magistrais ensinamentos de Fonseca e Freitas (2009, p. 4): Nosso ordenamento jurídico avança de forma substancial para a implementação da chamada igualdade real entre as pessoas, como um grande passo de aperfeiçoamento em face da igualdade material, já implementada pelos Direitos Sociais [...].

e) Princípio da acessibilidade aos cargos públicos: por derradeiro, os mencionados itens editalícios violam o amplo acesso de todos os brasileiros aos cargos públicos (Artigo 37, Inciso I, da Constituição Federal de 1988 c/c Artigo 2, alínea “F”, da Convenção da ONU – Decreto n. 6.949/2009), consistindo em barreiras atitudinais cuja identificação e eliminação são medidas a cargo dos Estados Partes, com o fito de assegurar a este segmento a participação plena em todos os aspectos da vida, consoante o Artigo 9 da mencionada Convenção. 158

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Cumpre salientar, igualmente, que tais itens editalícios destoam dos preceitos infraconstitucionais que regem a matéria, desatendendo inclusive às normas da composição da equipe multiprofissional e de suas atribuições previstas no Decreto n. 3.298/1999, senão vejamos: Art. 43. O órgão responsável pela realização do concurso terá a assistência de equipe multiprofissional composta de três profissionais capacitados e atuantes nas áreas das deficiências em questão, sendo um deles médico e três profissionais integrantes da carreira almejada pelo candidato.

O dispositivo acima estabelece a composição desta equipe por seis membros, dos quais três deverão ser capacitados e atuantes, inclusive o médico nas áreas das deficiências em questão (deficiência sensorial, física ou intelectual), pois somente o conhecimento e atuação nesta seara possibilitará aos membros da equipe indicar à Administração Pública as ajudas técnicas e as tecnologias assistivas para que a pessoa com deficiência realize as provas do concurso com plena acessibilidade e, se aprovada, classificada, nomeada e empossada, seja avaliada no estágio probatório por profissionais com conhecimentos técnicos especializados, portanto habilitados a adequar o ambiente de trabalho, tornando-o acessível e fornecendo todos os recursos tecnológicos para que possa bem desempenhar as atribuições do cargo. Por esta razão, também estabelece a norma em comento que os três outros componentes desta equipe devem pertencer à carreira almejada pelo candidato, isto porque o conhecimento prático desses profissionais será útil para sugerir procedimentos necessários à eliminação de barreiras existentes no ambiente laboral. Portanto, a formação de equipe multiprofissional em dissonância com a norma em comento torna o parecer (ato administrativo) por ela emitido, inválido, uma vez desatendido o pressuposto da competência da autoridade administrativa para tal ato. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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Ressalte-se que a equipe multiprofissional tem como atribuição apoiar e incluir a pessoa com deficiência no serviço público e de realizar, efetivamente, a igualdade de oportunidades a todos os cidadãos com deficiência neste setor. Por essa razão, o dispositivo em epígrafe prescreve como atribuições dessa equipe: § 1º A equipe multiprofissional emitirá parecer observando: I - as informações prestadas pelo candidato no ato da inscrição; II - a natureza das atribuições e tarefas essenciais do cargo ou da função a desempenhar; III - a viabilidade das condições de acessibilidade e as adequações do ambiente de trabalho na execução das tarefas; IV - a possibilidade de uso, pelo candidato, de equipamentos ou outros meios que habitualmente utilize; V - a CID e outros padrões reconhecidos nacional e internacionalmente.

Também entre as funções desta equipe está a de aferir a compatibilidade da deficiência da pessoa com as atribuições do cargo e o momento próprio para a efetivação deste ato: § 2º A equipe multiprofissional avaliará a compatibilidade entre as atribuições do cargo e a deficiência do candidato durante o estágio probatório. (grifo nosso). Art. 44. A análise dos aspectos relativos ao potencial de trabalho do candidato portador de deficiência obedecerá ao disposto no art. 20 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990.

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verbis:

Por sua vez, o Artigo 20 da Lei n. 8.112/1990 dispõe, in Art. 20. Ao entrar em exercício, o servidor nomeado para cargo de provimento efetivo ficará sujeito a estágio probatório por período de 24 (vinte e quatro) meses, durante o qual a sua aptidão e capacidade serão objetos de avaliação para o desempenho do cargo, observados os seguintes fatores: I assiduidade; II - disciplina; III - capacidade de iniciativa; IV - produtividade; V - responsabilidade. § 1º 4 (quatro) meses antes de findo o período do estágio probatório, será submetida à homologação da autoridade competente a avaliação do desempenho do servidor, realizada por comissão constituída para essa finalidade, de acordo com o que dispuser a lei ou o regulamento da respectiva carreira ou cargo, sem prejuízo da continuidade de apuração dos fatores enumerados nos incisos I a V do caput deste artigo. (Redação dada pela Lei nº 11.784, de 2008).

Comentando o disposto no § 2º do Artigo 43 do Decreto n. 3.298/1999, Fonseca e Freitas (2009, p. 6) asseveram: A leitura do dispositivo em apreço evidencia, ademais, a flagrante ilegalidade da Resolução nº 75/09 do CNJ, em particular no seu art. 75, eis que a função da comissão multiprofissional deveria ser a de municiar os candidatos com deficiência com os meios próprios para que sejam avaliados no período de estágio probatório.

Ora, se os servidores que não possuem deficiência, durante o período do estágio probatório são avaliados relativamente a sua aptidão e capacidade para o desempenho do cargo, qual é a razão que impele o Poder Público a avaliar a pessoa com deficiência antes desse período? Tais pessoas empossadas nos cargos públicos deverão ter à sua disposição todos os instrumentos necessários e as ajudas técnicas (Artigo 19 do Decreto n. 3.298/1999) para desempenhar suas tarefas. O modo e os mecanismos para a consecução das atribuições inerentes ao cargo público é que deverão sofrer as devidas adequações, a fim Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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de que a pessoa com deficiência demonstre sua capacidade integral de desempenho. A equipe multiprofissional representa o instrumental de apoio que a Administração Pública dispõe para incluir, dignamente, a pessoa com deficiência no ambiente laboral. Nessa linha, a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Amapá, in verbis: MANDADO DE SEGURANÇA N.º 1024/06. Impetrante: ADRIANO DE CANTUÁRIA MORAES. Advogado: CARLOS AUGUSTO PEREIRA JÚNIOR. Informantes: GOVERNADOR DO ESTADO DO AMAPÁ E SECRETÁRIO DE ESTADO DA ADMINISTRAÇÃO. Relator: Desembargador GILBERTO PINHEIRO. EMENTA. MANDADO DE SEGURANÇA - CONCURSO PÚBLICO - CARGO DE CONTADOR - DEFICIÊNCIA FÍSICA - COMPATIBILIDADE COM O CARGO LAUDO PERICIAL - PERÍCIA ESPECIALIZADA A SER REALIZADA DURANTE O ESTÁGIO PROBATÓRIO OBRIGATORIEDADE. 1) Face ao princípio da isonomia a Constituição Federal de 1988 e a Lei nº 7.853/89 garantem o acesso a cargos públicos aos deficientes físicos como forma de assegurarlhes o necessário tratamento diferenciado. 2) Nos termos do art. 43, § 2º do Decreto nº 3.298/99, a declaração de inaptidão do candidato deverá ser precedida de exame médico realizado por equipe multidisciplinar quando do estágio probatório, onde será aferida a compatibilidade entre a deficiência do servidor e as atribuições do cargo. 3) Segurança concedida. ACÓRDÃO. Vistos, relatados e discutidos os presentes autos, o TRIBUNAL PLENO do Egrégio TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO AMAPÁ, por unanimidade, conheceu do Mandado de Segurança apenas em relação ao Secretário de Administração, excluído o Governador do Estado. No mérito, concedeu a ordem, nos termos dos votos proferidos. Participaram do julgamento os Excelentíssimos Senhores 162

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Desembargadores RAIMUNDO VALES (Presidente), GILBERTO PINHEIRO (Relator), LUIZ CARLOS (1.º Vogal), CARMO ANTÔNIO (2.º Vogal), EDINARDO SOUZA (3.º Vogal), DÔGLAS EVANGELISTA (4.º Vogal) e MELLO CASTRO (5.º Vogal). Macapá-AP, 14 de fevereiro de 2007. Desembargador RAIMUNDO VALES. Presidente. Desembargador GILBERTO PINHEIRO. Relator.

Nessa esteira o Conselho Nacional de Justiça, perfilando seu entendimento na disposição constante no § 2º do Artigo 43 do Decreto n. 3.298/1999, aprovou mudanças na Resolução n. 75/2009, que dispõe sobre os concursos públicos para ingresso na carreira da magistratura, nos seguintes termos: Art. 73. [...] § 2º) A avaliação sobre a compatibilidade da deficiência com a função judicante deve ser empreendida no estágio probatório a que se submete o candidato aprovado no certame (NR). 10. Redação dada pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça, na 109ª Sessão Ordinária, de 03 de agosto de 2010, no julgamento do processo Ato Normativo 0003622-68.

Portanto, anteriormente ao ato de investidura do cargo, ou seja, antes da posse (Artigo 7º da Lei n. 8.112/1990), a legislação não determina nenhuma avaliação da compatibilidade da deficiência da pessoa com as atribuições do cargo a ser realizada pela junta médica, pela perícia médica oficial ou ainda pela equipe multiprofissional, sendo pois inconstitucionais e ilegais as mencionadas regras editalícias com esta previsão e tais atos, quando realizados pela Administração Pública, são inválidos, pois violam os princípios constitucionais já enumerados. 2.1 INSPEÇÃO MÉDICA A junta ou perícia médica oficial, ao examinar a aptidão física e mental da pessoa com deficiência de que trata o Inciso VI do Artigo 5º da Lei n. 8.112/1990, deverá, a exemplo do procedimento empregado para os demais candidatos, proceder à análise dos exames admissionais e também verificar a qualificação do candidato como Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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pessoa com deficiência, ou seja, se tal candidato se enquadra nos requisitos dos Incisos I a V do Artigo 4º do Decreto n. 3.298/1999, alterado pelo Artigo 70 do Decreto n. 5.296/2004, e atestar a saúde atual do servidor já nomeado, não lhe competindo por ocasião do exame admissional, como já dito anteriormente, aferir a compatibilidade da deficiência da pessoa com as atribuições do cargo público. Nesse sentido, os preclaros ensinamentos de Gugel (2006, p. 55): O exame admissional tem o caráter preventivo de rastreamento e de diagnóstico precoce de agravos à saúde relacionados ao trabalho do servidor ou empregado, até mesmo aqueles de natureza sub-clínica, assemelhando-se ao Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO), previsto na Portaria n. 3.214/78 do Ministério do Trabalho e Emprego, e a conhecida NR-7. Esse exame médico é obrigatório e compreende a avaliação clínica, abrangendo anamnese ocupacional, exame físico, mental, e exames complementares e, deve ser realizado antes que o trabalhador assuma as suas atividades. Com isso, podese constatar a pré-existência de alguma doença que possa justificar um pedido de aposentadoria, ficando a pessoa impedida de pleitear o benefício dela decorrente. A esfera de competência desse médico cinge-se a estas questões e não outras que serão avaliadas no curso do estágio probatório em conjunto com a equipe multiprofissional, da qual necessariamente participará um médico.

Nessa esteira a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas que na decisão exarada no Agravo de Instrumento n. 2009.004394-2 pelo insigne Relator Desembargador Domingos Jorge Chalub Pereira assim se pronuncia: Pois bem, a questão que se põe é se a Administração poderia ter promovido o exame de compatibilidade entre o cargo e a deficiência do candidato durante o exame médico, ancorando-se no Decreto n° 3.298/99. Não se nega que o critério de seleção veiculado no edital encontra-se no âmbito da discricionariedade da Administração, inclusive com possibilidade de realização do exame médico que ateste quanto à saúde do candidato. Entretanto, não se pode aceitar é que este único exame tenha o condão de 164

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afastar do processo de seleção o candidato que apresente deficiência, sob pena de grave lesão a direito que lhe é constitucionalmente assegurado. Melhor e mais prudente que a aferição das condições do candidato quanto ao efetivo exercício do cargo público fosse realizada por minudencioso exame a cargo de junta composta por profissionais de múltiplas especialidades, os quais dotados do conhecimento técnico específico para dizer sobre a compatibilidade entre a deficiência de que é portador o interessado e as atribuições do cargo. Depreende-se que o simples exame médico só poderia ter trilhado, unicamente, pelas condições de saúde do candidato, sem aprofundar-se sobre sua deficiência, a qual só poderia ser definida em momento posterior, através da atuação de equipe multidisciplinar segundo dicção do artigo 43, do Decreto n°3.298/1999, tudo de molde a solidificar o entendimento deste Magistrado quanto à iminência da lesão grave e de difícil reparação noticiada pelo Agravante em nome dos candidatos portadores de deficiência.

Portanto, a atribuição da junta médica, da perícia médica ou mesmo da equipe multiprofissional antes da posse cinge-se ao exame admissional e a qualificação do candidato como pessoa com deficiência nos moldes dos parâmetros normativos dos Incisos I a V do Artigo 4º do Decreto n. 3.298/1999, com a finalidade de que as vagas constitucionalmente reservadas a tais pessoas sejam preenchidas por pessoas com compleição física e mental tipificada no referido Decreto.

3 CONDIÇÕES DIFERENCIADAS E TEMPO ADCIONAL PARA A REALIZAÇÃO DAS PROVAS 3.1 CONDIÇÕES DIFERENCIADAS A pessoa com deficiência deve ter acesso ao concurso público em igualdade de condições com os demais candidatos, logicamente na medida de suas desigualdades.

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Dessa forma, para que essas pessoas tenham acesso ao conteúdo das provas e possam resolver as questões apresentadas, é indispensável que o edital do certame preveja as disposições contidas no § 1º do Artigo 40 do Decreto n. 3.298/1999, in verbis: § 1º. No ato da inscrição o candidato portador de deficiência que necessite de tratamento diferenciado nos dias do concurso deverá requerê-lo, no prazo determinado em edital, indicando as condições diferenciadas de que necessita para a realização das provas.

Depreende-se do dispositivo supra que cabe ao candidato com deficiência indicar as condições diferenciadas que lhe são imprescindíveis para a realização das provas, no entanto a Procuradoria Geral da República (PGR)/Ministério Público da União (MPU), em seu Edital n. 1, de 30 de junho de 2010, dispôs no item 8.3 que: A prova discursiva deverá ser à mão, em letra legível, com caneta esferográfica de tinta preta, fabricada em material transparente, não sendo permitida a interferência e/ou a participação de outras pessoas, salvo em caso de candidato que tenha solicitado atendimento especial para a realização da prova. Nesse caso, se houver necessidade, o candidato será acompanhado por um agente do CESPE/UnB [Centro de Seleção e de Promoção de Eventos/Universidade de Brasília] devidamente treinado, para o qual deverá ditar o texto, especificando oralmente a grafia das palavras e os sinais gráficos de pontuação.

A regra editalícia acima se constitui inegavelmente em barreira atitudinal impeditiva da acessibilidade destas pessoas à prova discursiva do concurso em epígrafe, pois predetermina como a pessoa com deficiência deverá elaborá-la, violando os princípios da autonomia individual, da liberdade de fazer as próprias escolhas e da independência das pessoas com deficiência, primados gerais consubstanciados no Artigo 3 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, ratificada pelo Brasil com equivalência de emenda constitucional, por meio do 166

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Decreto Legislativo n. 186/2008, com a devida promulgação pelo Decreto n. 6.949/2009. 221):

Na mesma linha de análise, a lição de Gugel (2007, p. Trata-se de uma providência obrigatória que decorre do comando constitucional do amplo acesso de todos ao concurso público (Art. 37, I), de forma que os candidatos com deficiência, de acordo com o requerimento dirigido à comissão em prazo previsto no edital, possam solucionar as questões segundo sua proficiência. Essa providência à qual está obrigada a administração pública se dirige ao candidato com deficiência propiciando-lhe atingir a igualdade de condições com os demais candidatos. Portanto, por razões intrínsecas à deficiência declarada no ato da inscrição o candidato tem o direito de requerer, no prazo fixado no edital, tratamento diferenciado para a realização das provas, indicando explicitamente quais são as adaptações necessárias para prestá-las.

Dessa forma, cabe ao candidato com deficiência dizer qual é a sua necessidade para a realização das provas do concurso público e não é facultado à Administração Pública indicar qualquer meio ou instrumento para este fim, mormente porque cada deficiência tem as suas peculiaridades e cada pessoa utiliza habitualmente equipamentos para suprir ou neutralizar a sua limitação, competindo à Administração Pública a disponibilização dos recursos humanos e tecnológicos pleiteados pelo candidato. Nesse sentido, o Juízo da 4ª Vara Federal da 1ª Subseção da Seção Judiciária de Mato Grosso do Sul, sediada em Campo Grande, concedendo tutela antecipada a candidato com deficiência visual no Processo n. 0011691-82.2010.403.6000, assim se pronunciou: [...] o fato de o Estado disponibilizar vagas para portadores de necessidades especiais e não dar acessibilidade aos mesmos, no momento de realizar a prova, data vênia, soa-me como cinismo, que deve ser repreendido com firmeza. Condutas desse jaez ferem os princípios da moralidade e da eficiência previstos no caput do art. 37, da Constituição da República. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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3.2 TEMPO ADICIONAL No que tange ao tempo adicional para a realização das provas, observam-se algumas regras editalícias que contrariam o § 2º do Artigo 40 do Decreto n. 3.298/1999, é o caso do Edital n. 01/2009, relativo ao quinto concurso público de provas para provimento de cargos públicos da estrutura funcional do Poder Judiciário do Estado de Mato Grosso do Sul: 12.13. Os candidatos Portadores de Necessidades Especiais participarão do Concurso em igualdade de condições com os demais candidatos, no que tange ao conteúdo, avaliação, duração e local de aplicação das provas, ressalvada a situação quanto à forma de prestação das provas, a requerimento do candidato e mediante deliberação da Banca Examinadora do Concurso. (grifo nosso).

Nesse vetor também o Edital PGR/MPU n. 1/2010, que no item 3.2, alínea “c”, dispõe que: O candidato com deficiência que necessitar de tempo adicional de, no máximo, uma hora para realização das provas, deverá indicar na solicitação de inscrição e, além de enviar a documentação indicada na letra “b” deste subitem, deverá encaminhar solicitação, por escrito, na forma e no prazo previsto no subitem 5.4.9.1, com justificativa acompanhada de laudo e parecer emitido por especialista da área de sua deficiência que ateste a necessidade de tempo adicional, conforme prevê o parágrafo 2º do artigo 40 do Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, e suas alterações.

O mesmo tempo regulamentar concedido aos demais candidatos ou a predeterminação do tempo adicional para a realização das provas pelas pessoas com deficiência constante dos indigitados itens não encontra amparo em nosso ordenamento jurídico nem se encontram acobertados pelos princípios da igualdade de oportunidades e da razoabilidade. Faculta o § 2º do Artigo 40 do Decreto n. 3.298/1999 ao candidato com deficiência o direito de requerer tempo adicional 168

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para a realização das provas do concurso, apresentando justificativa acompanhada de parecer emitido por especialista da área de sua deficiência, no prazo fixado no edital do concurso. Não estabelece este dispositivo nenhum tempo mínimo ou máximo para que a pessoa com deficiência realize as provas, isto porque a real necessidade de tais pessoas estará especificada no parecer do especialista de cada tipo de deficiência. É natural que a pessoa com deficiência, em decorrência de suas limitações, despenda um tempo maior para resolver as questões da prova, isso porque, por exemplo, tratando-se de pessoa cega ou surda, faz-se necessário preliminarmente uma interação com o leitor da prova ou com o intérprete, a fim de definir o procedimento da leitura, iniciando-a posteriormente. Essa é a razão pela qual se entende que a justificativa para a concessão de tempo adicional e da sua duração ao candidato com deficiência deve ser vinculada ao parecer emitido por profissionais especialistas na área de cada deficiência, pois deverão ser observadas as necessidades peculiares de cada uma dessas pessoas para a efetivação das questões da prova. Portanto, a determinação do período do tempo adicional a ser concedido ao candidato com deficiência não é atribuição da Administração Pública ou da instituição responsável pelo concurso público, mas sim compete aos especialistas da área da deficiência declarada pelo candidato. Nesse diapasão o pronunciamento da Desembargadora Federal Maria Isabel Gallotti Rodrigues no voto proferido na Remessa Ex Officio em MS n. 2002.34.00.030749-9/DF: Não merece reforma, ao meu sentir, a sentença de primeiro grau. Isso porque há previsão legal para o deferimento de tempo adicional para a realização de provas de concurso público, no caso de o candidato o requerer, com apoio em Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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parecer de especialista da área de sua deficiência, como ocorreu na hipótese em exame (Decreto 3.298/99, art. 40, § 2º). A Administração reconheceu tal direito, conferindo ao candidato a ampliação de prazo de 30 minutos (cf. doc. fl. 22). Ocorre que o parecer médico recomendava dilação de 50% do tempo regulamentar de prova, para que o candidato pudesse ter asseguradas condições de igualdade com os demais concorrentes (cf. doc. de fl. 10). Correta, portanto, a sentença ao considerar que o deferimento, pela Administração, de ampliação de prazo inferior à recomendada no atestado médico, sem justificativa que o infirmasse, violou o direito do candidato de competir em igualdade de condições com os demais participantes do concurso. Em face do exposto, nego provimento à remessa. É como voto.

Dessa forma, as indigitadas previsões editalícias, não concedendo tempo adicional ou predeterminando esse tempo, violam os princípios da igualdade de oportunidades e da legalidade, pois instituem procedimentos não amparados na legislação pátria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS 1. As regras editalícias que determinam a realização de prévia avaliação da compatibilidade da deficiência do candidato com as atribuições do cargo público padecem de inconstitucionalidade. 2. Cabe à equipe multiprofissional (e não à junta médica) proceder à avaliação do servidor com deficiência no estágio probatório, providenciando todos os meios necessários para que ele possa desempenhar as atribuições do cargo (§ 2º do Artigo 43 do Decreto n. 3.298/1999). 3. A atribuição da junta médica cinge-se ao exame admissional e à qualificação do candidato como pessoa com deficiência, nos moldes dos parâmetros normativos dos Incisos I a V do Artigo 4º do Decreto n. 3.298/1999, alterado pelo art. 70 do Decreto 170

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5.296/2004, com a finalidade de que as vagas constitucionalmente reservadas a tais pessoas sejam por elas preenchidas. 4. Os editais que predeterminam as condições diferenciadas e tempo adicional para que os candidatos com deficiência elaborem as provas do concurso violam os princípios da acessibilidade e o da igualdade de oportunidades, consoante os §§ 1º e 2º do Artigo 40 do Decreto n. 3.298/1999. 5. O candidato com deficiência tem o direito de pleitear os recursos humanos e tecnológicos imprescindíveis para a elaboração das questões das provas dos concursos públicos, incumbindo a Administração Pública obrigatoriamente providenciar o seu fornecimento ao candidato, nos termos do § 1º do Artigo 40 do Decreto n. 3.298/1999. 6. O tempo adicional solicitado pelo candidato vinculase ao parecer emitido pelos especialistas da área da deficiência do candidato, não sendo facultado à Administração Pública determinar em edital o período de acréscimo ao tempo regular, conforme § 2º do Artigo 40 do Decreto n. 3.298/1999. 7. O Poder Público e seus órgãos devem assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício do seu direito ao trabalho (Artigo 2º da Lei n. 7.853, de 24 de outubro de 1989), fornecendo instrumentos para que a retórica legislativa se transforme em realidade e, mais do que isso, reconhecendo as potencialidades e possibilidades de tais pessoas e a sua capacidade de superar as limitações e de encontrar soluções próprias para desenvolver as atribuições do cargo público em ambiente inclusivo.

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Relat贸rio



CONSULTA ÀS COMUNIDADES INDÍGENAS DE MATO GROSSO DO SUL Dourados, Caarapó, Amambai, Aquidauana e Miranda março a junho de 2010

INTRODUÇÃO A Comissão Permanente de Investigação e Fiscalização das Condições de Trabalho no Estado de Mato Grosso do Sul CPIFCT MS, juntamente com o Ministério Público do Trabalho da 24ª Região/ MS e outras entidades que compõem esta Comissão, em constante contato com trabalhadores nas diversas visitas que empreendeu no ano de 2009, percebeu a preocupação dos indígenas com seus postos de trabalho nas usinas de açúcar e álcool diante da chegada de novas usinas e com um forte processo de mecanização. Assim, em reunião ordinária realizada no dia 02 de fevereiro de 2010, deliberou que a questão deveria ser pautada para os trabalhos de 2010. Posto isso, na reunião realizada no dia 26 de fevereiro de 2010, após exposição e análise da situação atual e futura dos trabalhadores indígenas e várias ponderações, inclusive de experts na questão indígena, os presentes chegaram à conclusão de que seria necessário efetuar consultas às comunidades interessadas para colher os seus anseios e proposituras e, após, delinear um projeto de atuação. Os encontros mostraram-se muito profícuos e corroboram a preocupação quanto à diminuição/extinção da mão Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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de obra indígenas nas usinas de cana de açúcar tendo em vista que, apesar da implantação de novas usinas, há um forte processo de mecanização com utilização de novas tecnologias, novos maquinários no plantio e na colheita da cana, que exige mão de obra qualificada. Os indígenas evidenciaram também que, apesar das dificuldades das condições de trabalho nas usinas, são elas que fornecem o sustento de grande parte das comunidades. Em todas as reuniões, ressaltou-se que não há soluções prontas e os caminhos para se construir alternativas viáveis para minimizar a eminente perda/redução dos postos de trabalho nas usinas são árduos e complexos e, ainda, lembrou-se que nem sempre as expectativas dos indígenas corresponde às possibilidades do mercado, mas mesmo assim é possível vislumbrar viabilidades da economia, que possuem regras fixas, porém sensíveis às necessidades locais. Em uma das localidades consultadas, os membros da Comissão foram recepcionados com canto e dança executada pelos caciques e os rezadores da aldeia, com o intuito de atentar para as estratégias de fortalecimento dos rezadores dentro do frágil tecido social indígena. Relatou-se ainda, que, sem nenhum recurso financeiro e com a descrença de alguns deles resolveram construir um local para cultivo de plantas nativas medicinais e afirmaram que o maior desejo dos rezadores é ensinar. Mais uma vez, a questão fundiária foi evidenciada como raiz dos problemas indígenas. Com a perda de terra e o comprometimento dos recursos naturais, não restou alternativa senão buscar o sustento através do trabalho na sociedade não indígena, ocasionando diversas alterações no seu modo de viver. Não se pode olvidar, ainda, que o crescimento demográfico nas aldeias, sem o proporcional aumento de seu território, provocou e provoca conflitos de toda ordem.

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Houve manifestações do poder público e de associações nas localidades visitadas no sentido de auxiliar no processo de reinserção dos indígenas no mercado de trabalho. Uma dura realidade também mencionada é o evidente preconceito que existe em face dos indígenas, apesar de serem, comprovadamente, consumidores do comércio local, gerando impostos e empregos aos não índios. Outra fala bastante recorrente nos encontros refere-se aos jovens indígenas que precisam de educação formal de qualidade e específica para concorrerem no mercado de trabalho com os não índios. Atualmente os jovens indígenas saem das escolas e vão para o mercado de trabalho, deixando de se qualificar. O resultado das consultas encontra-se sistematizado a seguir de duas formas. A primeira separada por localidade, em tópicos e de forma suscinta. A outra ordenou as propostas dentro dos temas qualificação profissional, formação profissional e economia própria, por aduzir aos objetivos propostos pelo grupo.

2 PARTICIPANTES Participaram de uma ou mais consultas, as seguintes pessoas: 1. Alaíde Maria dos Santos – Vice-Coordenadora da Comissão; 2. Antonio Jaco Brand – Historiador/Professor da UCDB; 3. Cícero Ávila de Lima – Presidente Diretor da Funtrab; 4. Carlos Jacobina - Indígena Terena Aldeia Passarinho - Miranda; 5. Cezar Francelino Fialho - Indígena Terena Aldeia Bananal Aquidauana; 6. Claudia Ferreira de Souza – Secretária da Comissão; 7. Esther Guimarães Cardoso – Engenheira Agrônoma - membro da Comissão; 8. Fabiane Vick – Representante da Funasa; Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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9. Fernando da Silva Souza - Presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena de MS – Indígena Terena; 10. Helder J. M. Silva – Procurador do Trabalho – 24ª Região/MS; 11. Idevar Chamarro - Indígena Guarani - Aldeia Amambaí; 12. José Resina Fernandes Júnior - Representante da Funai; 13. Joseleide Marcela Guimarães – Sindicado dos Trabalhadores em Carvoarias – SITIEMC/MS; 14. Keyla Tormena – Assessora de Comunicação do MPT/MS; 15. Leonardo Montenegro – Motorista da Funtrab; 16. Lirce Cânepa Couto – Fundação do Trabalho de MS; 17. Madalena Balbueno da Silva – Representante da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de MS – Fetagri/MS; 18. Marcela Guimarães – Sindicado dos Trabalhadores em Carvoarias – SITIEMC/MS; 19. Marcelo Naglis Barbosa – Chefe do ERMS da Fundacentro; 20. Marco Homero Ferreira Lima - Antropólogo do Ministério Público Federal – MPF de Dourados MS; 21. Maucir Pauletti – Coordenadora da Comissão; 22. Osvaldo Martins Júnior – Motorista da Fundacentro; 23. Otoniel Ricardo – Vereador de Caarapó; 24. Paulo Douglas Almeida de Moraes - Procurador do Trabalho do MPT/MS; 25. Sérgio Ferreira – Motorista do MPT/MS; 26. Sérgio Massao Hisano – Motorista do MPT/MS; 27. Simone Beatriz Assis de Rezende - Procuradora do Trabalho do MPT/MS.

3 CARACTERIZAÇÃO DA POPULAÇÃO INDÍGENA DE MATO GROSSO DO SUL O censo demográfico de 2000 (SOHN, 2009) indicava ser de 53.900 a população indígena do Estado de Mato Grosso do Sul, a terceira em número no Brasil, perdendo somente para os Estados do Amazonas e Bahia. Em termos demográficos, a população indígena no Brasil foi estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por ocasião do Censo Demográfico de 2000, em 734 mil pessoas (VERDUM, 2009). 180

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Contudo, dados mais atuais são os levantados anualmente pelo Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena - SIASI da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), órgão vinculado ao Ministério da Saúde. Atualmente, segundo esta base de dados, Mato Grosso do Sul tem a segunda maior população indígena do país (Tabela 1), o que corresponde a 67.574 índios. Tabela 1 Populações indígenas mais numerosas no Brasil em 2010 Colocação Localidade População indígena 1º lugar Amazonas 148.435 2º lugar Mato Grosso do Sul 67.574 3º lugar Roraima 51.056 4º lugar Pernambuco 44.472 5º lugar Mato Grosso 36.132 Fonte: SIASI – FUNASA/MS – 03/10/2010

As etnias mais populosas residentes no estado são a Terena, a Kaiowá e a Guarani (Figura 1), representando 97% da população total.

Figura1 Numero de indígenas das etnias mais populosas (compreendem 65.814 índios ou 97% da população indígena do estado).SIASI Funasa 2010

A distribuição etária destas populações, ilustrada na figura 2, chama atenção pelo expressivo número de pessoas adultas (de 15 a 59 anos), padrão este que se repete dentro das principais etnias, com destaque para os Terena onde estes são 57% da população (Figura 3). Outro número notável é o de jovens de 5 a 14 anos, representando Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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cerca de 25% da população, a qual em breve estará compondo a força ativa destes povos. (Figura 3).

Figura 2 Número total de indígenas no Mato Grosso do Sul por sexo e faixa etária. (SIASI, Funasa, 2010)

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE-, trata a população brasileira como jovem (0 a 14 anos), adulta (15 a 59 anos) e idosa (> que 60 anos). Feita esta mesma distribuição de classes para a população indígena de Mato Grosso do Sul, nota-se um grande descompasso: os índios jovens de Mato Grosso do Sul são percentualmente em maior número que os jovens da população brasileira e, de maneira contrária, percentualmente inferiores aos adultos da população brasileira (Figura 4). Embora aqui se esteja comparando dados do Brasil em 2000 com a população indígena de 2010, os números são tão notavelmente diferentes que permitem inferir haver um elevado índice de mortalidade entre os índios em idade produtiva comparativamente à população brasileira como um todo. Isto fica evidenciado também quando se desagregam os dados populacionais dos indígenas de Mato Grosso do Sul entre 20 e 54 anos de idade (Figura 5). A tendência de decréscimo populacional é acentuada. Este padrão demográfico de crescimento populacional com taxa de natalidade relativamente elevada, seguido de mortalidade 182

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precoce na idade adulta, observado para a população indígena, enquanto a população brasileira segue aumentando o número de idosos, é um indicativo de que os índios ainda são carentes de políticas públicas que os valorizem.

Figura 3 Distribuição etária – número de pessoas e porcentagem dentro da etnia - dos Terena, Kaiowá e Guarani, em Mato Grosso do Sul. SIASI Funasa 2010.

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Figura 4 Comparação do percentual de jovens (0 a 14 anos), adultos (15 a 59 anos) e idosos (> que 60 anos) na população brasileira em 2000 (IBGE) e na população indígena em Mato Grosso do Sul (SIASI Funasa 2010)

Figura 5 População indígena em Mato Grosso do Sul segundo a idade.(SIASI Funasa 2010)

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4 SELEÇÃO DOS MUNICÍPIOS PARA CONSULTA AOS ÍNDIOS Ainda com base nos dados da Funasa, que organiza sua atuação em torno dos chamados “pólos base”, onde estão aglutinados os principais municípios e as 75 aldeias indígenas do estado, foi feita a seleção daqueles municípios de maior representatividade. Tomados os municípios com mais de mil índios a população indígena estadual distribui-se como mostrado na figura 4. Os municípios de Dourados, Amambaí, Miranda, Aquidauana e Caarapó juntos compreendem 56% da população indígena estadual e foram selecionados para a consulta em questão.

Figura 6 Municípios com mais de 1.000 indígenas (compreendem 91% da população indígena estadual), salientando aqueles onde as reuniões foram realizadas e que concentram 56% da população indígena estadual. SIASI Funasa, 2010.

5 METODOLOGIA UTILIZADA Os encontros foram previamente preparados em várias reuniões da CPIFCT MS, com a parceria do MPT, Funasa, Funtrab, e outras entidades. Participações especiais tiveram os senhores Dr. Antonio Jacó Brand, antropólogo e professor da Universidade Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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Católica Dom Bosco – UCDB e o Senhor Fernando da Silva Souza índio Terena. Foram então feitos contatos com autoridades municipais e lideranças indígenas de cada localidade. Por ocasião das reuniões, foi explicada pelo coordenador aos participantes qual a finalidade daquele encontro - conhecer as necessidades e expectativas dos índios relativamente a questões de trabalho e/ou renda neste novo panorama de mudança tecnológica nas usinas e destilarias de canade-açúcar. Isto posto, foi dada a palavra aos indígenas que sucessivamente – a palavra foi aberta a todos que o quisessem - expunham suas idéias, reclamações, sentimentos. Os pleitos e sugestões apresentados foram anotados pelos membros da CPIFCT presentes à reunião/consulta e depois reunidos para compor o presente relatório. Ao final da reunião, a CPIFCT e o MPT se comprometiam a repassar os fatos ali tratados às autoridades, entidades, organizações ou empresas que de alguma forma pudessem colaborar na construção de alternativas para atender aos pleitos indígenas. Todas as reuniões foram integralmente filmadas, constituindo precioso documento para novos estudos e consultas. Listas de presença foram registradas.

6 NECESSIDADES, SUGESTÕES E PLEITOS DOS INDÍGENAS A seguir são elencadas as necessidades, sugestões e pleitos dos indígenas, por município de reunião, a saber: Dourados, em reunião realizada em 18 de março; Caarapó, em 30 de abril; 186

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Amambaí em 16 de abril; Aquidauana em 20 de maio e Miranda em 11 de junho de 2010. Com a finalidade de não alterar muito as falas e pleitos, manteve-se o formato de tópicos anotados, agrupados por temas. 6.1 DOURADOS 6.1.1 Educação - Bolsa de estudos para o indígena que faz EJA; - capacitação das lideranças; - capacitar as meninas; - centro de formação específico para encaminhar indígenas para as empresas; - incentivo ao jovem aprendiz indígena; - incentivo à Educação Indígena com qualidade, desde o ensino primário, até o 2º grau; - incentivo à Educação Indígena de nível superior, nas universidades, a partir do sistema de “cotas” para índios. 6.1.2 Alternativas de renda - Aprender a se organizar e a fazer projetos; mulheres precisam de “assessoria” para se organizar e elaborar atividades que gerem renda; - curso para as mulheres gerarem renda; - “seguro” (seguro-desemprego) para os indígenas nos moldes daquele conferido aos pescadores. 6.1.3 Projetos de interesse - Casa do artesão para os indígenas; - incentivo à cultura, como o artesanato, para comercialização dentro e fora do Estado, gerando renda; Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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- tanques de peixes; - assessoramento para a elaboração de projetos mais efetivos nas aldeias, com acompanhamento constante destes; - incentivo à agricultura familiar e orgânica, com a possibilidade de comercialização de partes desses produtos para fins de geração de renda; - organização quanto aos locais de comercialização de artesanatos e produtos hortifruti. 6.1.4 Postos de trabalho - Emprego no comércio; - cotas para os indígenas nos postos de trabalho; - instituir cotas para os indígenas para a inserção no emprego; - incentivo fiscal para os empresários que contratarem indígenas; - incentivo à mão de obra indígena, com mais oportunidades no mercado de trabalho (no setor empresarial), talvez como sistema de “cota” para índios; - projetos alternativos e não só vaga para professores. 6.1.5 Re-qualificação profissional - Educação; curso de qualificação profissional para operar máquinas; - qualificação profissional aos jovens indígenas, como, por exemplo, operador de máquinas agrícolas; - tirar carteira de motorista para operar as máquinas (além da carteira de reservista); - parceria com o Sistema “S”, para qualificação profissional. 6.1.6 Outros pleitos sociais - Enfrentamento da discriminação; - conversar/pesquisa com os próprios trabalhadores;

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- incentivo à política de demarcação de terra, tendo em vista que a terra existente é insuficiente para o plantio; - audiências públicas com a participação também dos usineiros, além dos órgãos estaduais e federais que vêm participando (MPT, MPF, CPIFCT/MS, FUNTRAB, FUNASA, FUNAI, entre outros). 6.2 CAARAPÓ 6.2.1 Educação - Estudo formal e valorização dos estudantes; - construção e ampliação das estruturas físicas das escolas indígenas, que encontram-se limitadas; - incentivo à Educação Indígena com qualidade, desde o ensino primário, até o 2º grau; - levantamento do grau de escolaridade dos indígenas, para fins de cursos de capacitação; - envolver o conhecimento tradicional e o conhecimento universal. - incentivo à Educação Indígena de nível superior, nas universidades, a partir do sistema de “cotas” para índios. 6.2.2 Alternativas de renda - Incentivo à cultura, a partir de construção de casa de artesanato, para que principalmente as mulheres tenham renda; - negociação junto aos usineiros e outros órgãos competentes, para a liberação dos trabalhadores indígenas aos sábados para que estes possam ajudar suas famílias nas aldeias, como por exemplo com o plantio, roças e manutenção destas; - roça comunitária (criação de viveiros de hortifruti nas aldeias). 6.2.3 Projetos de interesse - Incentivo à produção agrícola e agricultura familiar, com a possibilidade de comercialização de partes desses produtos para fins Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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de geração de renda; - política própria para agricultura dos indígenas; - criação de Lei que ampara a comercialização dos alimentos produzidos nas aldeias (diminuição da burocracia para a comercialização dos produtos). 6.2.4 Postos de trabalho - Incentivo à mão de obra indígena, com mais oportunidades no mercado de trabalho (sensibilização do setor empresarial); - criação de uma Política de inserção de mão de obra indígena no mercado de trabalho; - necessidade de tirarem o Registro Civil, para minimizar dificuldades encontradas em diversas situações. 6.2.5 Re-qualificação profissional - Qualificação e capacitação profissional (ex. Tec. Agrícola); - incentivo ao jovem aprendiz indígena. 6.2.6 Outros pleitos sociais - Incentivo à política de demarcação de terra, tendo em vista que a terra existente é insuficiente para o plantio; - elaboração coletiva de projetos nas aldeias, com a participação direta da comunidade e acompanhamento desses projetos; - audiências públicas com a participação também dos usineiros, além dos órgãos estaduais e federais que vêm participando (MPT, MPF, CPI-FCT/MS, FUNTRAB, FUNASA, FUNAI entre outros). Observações: 1- Falta de continuidade dos estudos por parte dos indígenas, que geralmente estudam no máximo até o 2º grau, e depois diante das dificuldades, ou desistem por não terem oportunidades nas universidades, ou para irem trabalhar nas usinas. 190

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2- Existência de curso Profissionalizante de Agroecologia, para o ensino médio, oferecido pela Secretaria Municipal de Educação. 3- Projeto Pró Jovem, com oferecimento de cursos de Mecânico Industrial e Eletricista Industrial. 6.3 AMAMBAI 6.3.1 Educação - Escola profissionalizante; - incentivo ao jovem aprendiz indígena; - cursos profissionalizantes para os jovens; - cursos nas aldeias; - incentivo à Educação Indígena com qualidade, do ensino primário até as universidades, dando oportunidades principalmente aqueles mais interessados nos estudos. Obs: Manifestação de uma professora: Para que a escola? Ela sente que prepara o aluno para cortar cana. Não consegue estimular as pessoas aos estudos com o propósito de atingir um patamar de vida mais elevado, pois, sabe que não chegarão a lugar algum. Muitos abandonam os estudos porque não dispõem de apoio financeiro. Não há índio trabalhando em outro lugar que não seja na usina. 6.3.2 Alternativas de renda - Incentivo à produção agrícola e agricultura familiar, com a possibilidade de comercialização de partes desses produtos para fins de geração de renda (Ex. merenda escolar); - quanto à produção, alguns índios disseram que não conseguem plantar devido ao solo fraco, há muita formiga e por isso precisam de muito investimento para comprar adubo e inseticida. Ressaltam ainda que o pouco cultivo é para subsistência. Não há nem mesmo rio para pescar, para garantir o alimento.

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6.3.3 Projetos de interesse - Criação de lei que ampare a comercialização dos alimentos produzidos nas aldeias; - linha de Crédito com empréstimo para investimentos na agricultura familiar; - local específico na área urbana para que os produtos (agrícolas, artesanato, entre outros) produzidos nas aldeias possam ser comercializados. 6.3.4 Postos de trabalho - Reserva de vagas de emprego de 25% para indígenas; - criar/ampliar mercado de trabalho no próprio município; - criação de uma política de inserção de mão de obra indígena no mercado de trabalho; - campanha de conscientização - incentivo à mão de obra indígena, com mais oportunidades no mercado de trabalho (sensibilização do setor empresarial). 6.3.5 Re-qualificação profissional - Carteira para dirigir e trabalhar com trator; - verificar junto às usinas as possibilidades delas oferecerem cursos profissionalizantes na área; - qualificação e capacitação profissional; - levantamento do grau de escolaridade dos indígenas, para fins de cursos de capacitação. 6.3.6 Outros pleitos sociais - Reduzir burocracia em projetos para captação de recursos; - investimento na aldeia; - a questão fundiária foi evidenciada no sentido de que têm a posse da terra e não a titulação da mesma, por pertencer à União. Percebem 192

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que estão sendo exterminados de outra maneira, pois as comunidades estão crescendo e as terras diminuindo; - discutem e provocam reflexões sobre a dupla cidadania (indígena e não indígena). Acreditam que podem perder os benefícios de ser indígena pelo fato de estarem incorporando alguns processos do não indígena, a exemplo do porte da identidade civil, expedida pelo Estado. Observações: 1- Existência de cursos de qualificação rural, através do SENAR, oferecido pelo Sindicato Rural do Município. 2- Representantes da comunidade indígena relatam que a problemática quanto a terra não gira em torno da falta da mesma, mas sim, pela falta de financiamento e incentivo para o plantio. 3- A comunidade indígena relata a situação de discriminação que sofrem no que diz respeito a possibilidades no mercado de trabalho no município. 4- A comunidade indígena tem um papel importante e significativo na economia do município (PIB), pois deixa na cidade a sua renda. 6.4 AQUIDAUANA 6.4.1 Educação - Diversificar a “preparação do amanhã”; - incentivo à Educação Indígena com qualidade, do ensino primário até as universidades, dando oportunidades principalmente aqueles mais interessados nos estudos; - viabilização de curso na própria comunidade; (existe uma grande necessidade dos cursos serem realizados dentro das aldeias, em função da dificuldade de locomoção e distância para ambos os sexos); - cursos profissionalizantes aos jovens indígenas, como por exemplo, informática; Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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- os jovens indígenas precisam de cursos de informática, maior escolaridade, tanto a nível fundamental, médio e ensino superior para poderem concorrer no mercado de trabalho com os nãos índios; - incentivo ao jovem aprendiz indígena; - cursos profissionalizantes; - agroecologia; - falta de continuidade dos estudos por parte dos indígenas, que geralmente estudam no máximo até o 2º grau, e depois diante das dificuldades, ou desistem por não terem oportunidades nas universidades, ou para irem trabalhar nas usinas; - levantamento do grau de escolaridade dos indígenas, para fins de cursos de capacitação e qualificação. 6.4.2 Alternativas de renda - Incentivo à cultura, a partir de construção de casa de artesanato, para que principalmente as mulheres tenham renda; - incentivo à cultura, como o artesanato, para comercialização dentro e fora do Estado, gerando renda; - produção agrícola e comércio de mandioca e outros produtos; - hortas comunitárias; - criação de viveiros de hortifruti e hortaliças nas aldeias; - incentivo à produção agrícola e agricultura familiar, com a possibilidade de comercialização de partes desses produtos para fins de geração de renda; - local específico na área urbana para que os produtos (agrícolas, artesanato, entre outros) produzidos nas aldeias possam ser comercializados; - organização quanto aos locais de comercialização de artesanatos e produtos hortifruti; - criação de lei que ampare a comercialização dos alimentos produzidos nas aldeias; - linhas de crédito; 194

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- criação de linhas de crédito nos bancos para que os indígenas invistam dentro da própria comunidade. 6.4.3 Projetos de interesse - Criação de projetos pelos próprios indígenas; - cooperativa para a criação de frango; - elaboração coletiva de projetos nas aldeias, com a participação direta da comunidade e acompanhamento desses projetos, como criação de frango e peixes; - “ajuda” do governo enquanto esperam a colheita; - poço artesiano; - equipamentos para a padaria; - necessidade de incentivo como arame farpado; - projeto de uma cooperativa dentro da comunidade. 6.4.4 Postos de trabalho - Criar novos empregos na própria usina (tratorista e parte administrativa); - verificar junto às usinas as possibilidades destas oferecerem cursos profissionalizantes na área; - cota para a inclusão na usina como técnico de operação; - incentivo à mão de obra indígena, com mais oportunidades no mercado de trabalho (no setor empresarial), talvez como sistema de “cota” para índios (17% da população são indígenas); - criação de uma política de inserção de mão de obra indígena no mercado de trabalho (A comunidade indígena relata a situação de discriminação que sofre no que diz respeito a possibilidades no mercado de trabalho no município); - gerar emprego dentro da aldeia. 6.4.5 Re-qualificação profissional - Diversificação da capacitação, inclusive de máquinas; Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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- capacitação em técnico de automóveis; - capacitação na construção civil; - capacitação na cultura do eucalipto; - parceria com o Sistema “S” e FUNTRAB, para qualificação e capacitação profissional (para comércio e indústria) principalmente para os homens, como: maquinário agrícola, tratorista, pedreiro, carpinteiro encanador, pintor, mecânico de moto, entre outros e já para as mulheres, cursos de corte e costura; - necessidade de “acompanhar” as tecnologias. 6.4.6 Outros pleitos sociais - Os caciques devem “pensar” um novo conceito de indígena; - reunião das lideranças para fazer sugestões; - política condizente com os indígenas que moram nas aldeias e outro para os indígenas de moram fora das aldeias; - incentivo a política de demarcação de terra, tendo em vista que a terra existe é insuficiente para o plantio e é dela que vêm os seus sustentos: “Terra pra nós é vida, é através da terra que vivemos”. 6.5 MIRANDA 6.5.1 Educação - Incentivo à educação indígena com qualidade, do ensino primário até as universidades, dando oportunidades principalmente aqueles mais interessados nos estudos; - necessidade de escolas técnicas dentro das aldeias, voltada para o mercado local, aulas durante o período matutino e cursos no vespertino; - melhoria da forma de escolha daqueles que iram fazer os cursos oferecidos e não deixar apenas nas mãos dos “órgãos públicos”.

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6.5.2 Alternativas de renda - Explorar a existência de manga e mandioca; - criação de lei que ampare a comercialização dos alimentos produzidos nas aldeias; - incentivo à cultura, a partir de construção de casa de artesanato (Ponto de Cultura), para que principalmente as mulheres tenham renda; - incentivo à produção agrícola e agricultura familiar (PRONAF), com a possibilidade de comercialização de partes desses produtos para fins de geração de renda. 6.5.3 Projetos de interesse - Projeto de uma cooperativa dentro da comunidade; - local específico na área urbana para que os produtos (agrícolas, artesanato, entre outros) produzidos nas aldeias possam ser comercializados; - necessidade de água potável e também para fazer horta; - atendimento dos projetos enviados pelos indígenas; - criação de linhas de crédito nos bancos para que os indígenas invistam dentro da própria comunidade. 6.5.4 Postos de trabalho - Incentivo a mão de obra indígena, com mais oportunidades no mercado de trabalho (no setor empresarial); - criação de uma política de inserção de mão de obra indígena no mercado de trabalho. 6.5.5 Re-qualificação profissional - Curso profissionalizante na construção civil; - curso de pedreiro “de acabamentos”; - qualificação para trabalhar em máquinas nas próprias usinas; - capacitação para trabalhar nas usinas; Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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- envolver as usinas na questão social do trabalhador indígena. 6.5.6 Outros pleitos sociais - Necessidade de se olhar para os trabalhadores indígenas que estão “encostados” (aposentados ou por ocorrência de acidente); - incentivo à política de demarcação de terra, tendo em vista que a terra existente é insuficiente para o plantio; - consulta às lideranças indígenas; - Funai está desarticulada. Observações: 1- Existência de cursos de qualificação rural (mais de 50), através do SENAR, oferecido pelo Sindicato Rural do Município. 2- A comunidade indígena tem um papel importante e significativo na economia do município (PIB), pois deixa na cidade a sua renda. 3- Falta de continuidade dos estudos por parte dos indígenas, que geralmente estudam no máximo até o 2º grau, e depois diante das dificuldades, ou desistem por não terem oportunidades nas universidades, ou para irem trabalhar nas usinas. 4- Levantamento do grau de escolaridade dos indígenas, para fins de cursos de capacitações e qualificação (talvez a partir de um Censo). 5- Existência de 5 (cinco) técnicos agrícola na Aldeia Cachoeirinha (valorização da mão de obra local). 6- Parceria com o Sistema “S” e FUNTRAB, para qualificação e capacitação profissional (para comércio e indústria) principalmente para os homens, como: maquinário agrícola, tratorista, pedreiro, pintor, reciclagem de lixo, entre outros e já para as mulheres, cursos de corte e costura (existe uma grande necessidade dos cursos serem realizados dentro das aldeias, em função da dificuldade de locomoção e distância para ambos os sexos). 198

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7 CONSIDERAÇÕES E ENCAMINHAMENTOS Não há dúvida de que as comunidades indígenas, ao longo de décadas, foram negligenciadas pelas autoridades públicas e a influência dos usos e costumes dos “brancos” alterou indelevelmente sua organização societária, levando a um processo de degradação dos seus valores culturais, fato bastante visível no comportamento das gerações mais jovens. O grande desafio agora é garantir um trabalho digno para os índios e principalmente investir na qualificação para garantir qualidade de vida e renda para os trabalhadores indígenas. Assim, a Comissão Permanente, em reunião colegiada, deliberou empreender reuniões com os órgãos competentes para viabilizar alternativas de empregabilidade e também de geração de rendas para os indígenas.

8 REFERÊNCIAS SOHN, Maria Cristina D´Almeida Moretz. A distribuição demográfica da população indígena no Brasil: mudanças, conflitos e territorialidade. VI Encontro Nacional sobre Migrações. Associação Brasileira de Estudos Populacionais – ABEP. Rio de Janeiro. 2009. 21p. Disponível em: <http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/ outros/6EncNacSobreMigracoes/ST5/MariaCristina.pdf>. Acesso em: 1º nov. 2010. VERDUM, Ricardo. Dados Sociodemográficos, Políticas Públicas e Direitos Indígenas. Seminário do Social Watch, “Orçamento e Direitos”, Rio de Janeiro de 24 a 26 de agosto de 2009. Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc. Brasília, DF – Disponível em: <http://www.inesc.org.br/biblioteca/publicacoes/artigos/dadossociodemograficos-politicas-publicas-e-direitos-indigenas>. Acesso Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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em: 1º nov. 2010. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Séries Estatísticas e Séries Históricas. População e Demografia » Características Gerais. 2000. Disponível em: <http://www.ibge.gov. br/series_estatisticas/subtema.php?idsubtema=107>.

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Peรงas processuais



EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) JUI(Í) Z(A) DO TRABALHO DA EGRÉGIA VARA DO TRABALHO DE CAMPO GRANDE (MS)

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO, por intermédio do Procurador do Trabalho que esta subscreve, vem, respeitosamente, à presença de V. Exa., com fulcro nos arts. 876 e 877-A, ambos da Consolidação das Leis do Trabalho, no art. 5º, § 6º, da LACP e no art. 585, VII, do Código de Processo Civil, propor a presente

AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL

em face das empresas abaixo elencadas, pelos fatos e fundamentos a seguir expostos: MMX METÁLICOS CORUMBÁ LTDA, pessoa jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ sob o n. 06.129.747/000120 e MMX CORUMBÁ MINERAÇÃO S.A, integrantes do Grupo EBX, podendo ser notificadas na pessoa de seus advogados Dr. (s) Gustavo Romanowki Pereira e Álvaro de Barros Guerra Filho, os quais têm procuração nos procedimentos administrativos em trâmite nesta PRT 24ª, com endereço sito à Rua Dr. Michel Scaff, n. 397, Chácara Cachoeira, Cep: 79040-860, Campo Grande/MS; e Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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GRUPO EBX, de propriedade de Eike Batista, localizado na Praia do Flamengo, n. 154, 10º Andar, Flamengo, Cep: 22210-030, Rio de Janeiro/RJ.

I – DO GRUPO ECONÔMICO A cláusula 14 do Termo de Compromisso de Conduta TCC 68/2008 prevê expressamente que: “Aplicam-se ao presente TCC as disposições dos artigos 10 e 448 da CLT, atingindo-se inclusive às empresas do mesmo grupo econômico envolvidas na atividade siderúrgica” (fl. 15 do TCC 68/2008).

Ante o exposto, e por excesso de zelo, já foram inclusos no polo passivo desta ação todas as empresas integrantes do grupo econômico, afastando, assim, quaisquer dúvidas acerca de quem estará sendo demandado. Para além da previsão já contida na cláusula 14 acima transcrita, também o artigo 2º, §2º, da CLT estabelece: Art. 2º Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço. (…) § 2º Sempre que uma ou mais empresas, tendo embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria estiverem sob a direção, controle ou administração de outra constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas.

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E também a Súmula 331, inciso IV, do C. TST (utilizada aqui por analogia e por excesso de zelo pois trata-se de responsabilidade subsidiária e o caso dos autos é de responsabilidade solidária por se tratar de grupo econômico) prevê: IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial.

Logo, perfazem-se legítimas todas as empresas demandadas no polo passivo desta ação.

II – DA COMPETÊNCIA DA VARA DO TRABALHO DA CAPITAL PARA EXECUÇÃO DO PRESENTE TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL (TCC 68/2008) E DA COMPETÊNCIA DA SEDE DA PROCURADORIA REGIONAL DO TRABALHO DA 24ª REGIÃO PARA O RESPECTIVO AJUIZAMENTO O Título Executivo Extrajudicial (artigo 876 da CLT e artigo 5º, §6º da Lei n. 7.347/85), TCC 68/08 (o qual tem a qualidade de título executivo extrajudicial, conforme constante no cabeçalho do mesmo), é um documento que foi firmado em Campo Grande/ MS, na sede desta Procuradoria Regional do Trabalho da 24ª Região, envolvendo uma empresa que possui sua sede em Corumbá/MS, mas cujos efeitos abrangem todo o Estado de Mato Grosso do Sul. Isso porque, em primeiro eito, as carvoarias então fornecedoras da MMX, objeto do referido Termo de Compromisso de Conduta (TCC), estão espalhadas por todo o Estado (conforme Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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relação anexa – doc. anexo); locais estes onde podem e acontecem os danos que o título executivo extrajudicial pretende reparar e/ou prevenir. Tendo, no caso, ocorrência de dano no âmbito regional (assim entendido como aquele cujos efeitos abrange território de mais de uma vara do trabalho e, por extensão, por mais de um município), também o dano em análise abrange mais de uma PTM (Procuradoria do Trabalho no Município), trazendo a competência para uma das varas do trabalho da capital do Estado de Mato Grosso do Sul, e atribuição para Procurador do Trabalho lotado na sede da Procuradoria Regional do Trabalho da 24ª Região. Em segundo eito porque, a doutrina e a jurisprudência predominante entendem, a teor da OJ 130 da SDI2 que: “OJ-SDI2-130. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. COMPETÊNCIA TERRITORIAL. EXTENSÃO DO DANO CAUSADO OU A SER REPARADO. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 93 DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. Para a fixação da competência territorial em sede de ação civil pública, cumpre tomar em conta a extensão do dano causado ou a ser reparado, pautando-se pela incidência analógica do art. 93 do Código de Defesa do Consumidor. Assim, se a extensão do dano a ser reparado limitar-se ao âmbito regional, a competência é de uma das Varas do Trabalho da Capital do Estado; se for de âmbito supra-regional ou nacional, o foro é o do Distrito Federal”. (grifo nosso)

Assim, quando os prejuízos alcançam área de jurisdição de mais de uma vara, a abrangência territorial da condenação é de todo o Estado de Mato Grosso do Sul, por ser um dano regional. A justificativa para tal entendimento é exatamente evitar a absurda exigência de se ter que ajuizar ações idênticas em diversas Varas do Trabalho do Estado, com a possibilidade de decisões conflitantes. 206

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A ementa abaixo corrobora o entendimento ora defendido, in verbis: “LIMITAÇÃO DOS EFEITOS DA SENTENÇA AOS LIMITES TERRITORIAIS DO ÓRGÃO PROLATOR. A alteração realizada pela Lei nº 9.494/97 é ineficaz, na medida em que a competência territorial do juiz prolator nada tem a ver com a imutabilidade do julgado. O que deve levar em conta é a extensão do dano causado ou a ser reparado. Tratando-se de interesse essencialmente indivisível, na modalidade difuso, objeto da ação civil pública, os efeitos da coisa julgada podem ultrapassar os limites jurisdicionais do prolator da sentença, como definido na OJ nº 130 da SDI-2 do C. TST. É de se atentar, ainda, para o fato de que a propositura de várias ações com o mesmo objeto poderia gerar decisões conflitantes, desgastando o sistema de ação pública e o próprio Poder Judiciário”. (TRT 18ª Região (GO). RO n. 00205-2004-007-18-00-3. Desembargador Relator Gentil Pio de Oliveira. Publicado no DJ em 14.01.2005).

Portanto, resta claro que a vara do trabalho competente é uma das varas da capital, qual seja, Campo Grande/MS, por ser um dano regional, portanto, sendo a de competência para ajuizamento da presente ação de execução é da sede da Procuradoria Regional do Trabalho em Campo Grande/MS.

III – DOS FATOS A empresa executada firmou com o Ministério Público do Trabalho, no dia 30.08.2008, o Termo de Compromisso de Conduta n. 68/2008 (TCC 68/2008 – doc. anexo), e o TAC 69/2008 (doc. anexo), comprometendo-se, além de diversas obrigações de fazer e não fazer, a pagar despesas e contratar equipe de técnicos para diagnosticar nas carvoarias, então suas fornecedoras, as condições de trabalho e orientá-las no intuito de não haver trabalho escravo e degradante nas mesmas. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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Posteriormente, firmou-se Termo Aditivo ao TCC 68/2008 (doc. anexo) em 03.08.2009. A importância para o Estado de Mato Grosso do Sul do TCC 68/08 está demonstrada no relatório CODEMAT/MS – FSSHT/MS, datado de 31.01.2011, cujo item 1 é chamado de informações gerais sobre o TCC 68/08 (documento esclarecedor, anexo). Inobstante, diversas obrigações estão deixando de ser adimplidas, razão pela qual ajuiza-se a presente execução: III.1 – Do descumprimento das obrigações adicionais Imperativo destacar que o processo em face da empresa MMX teve início a partir de denúncia em face da Orvil, carvoaria então fornecedora de produtos para a MMX nas proximidades de Campo Grande/MS, sendo certo que após realizada reunião administrativa em 10.03.2007 (doc. anexo), a carvoria Orvil regularizou sua situação, remanescendo, contudo, as irregularidades em face da MMX. Nesse contexto, diversos procedimentos foram instaurados em face das empresas MMX, as quais pertencem ao grupo enconômico EBX do empresário Eike Batista, aqui no Estado de Mato Grosso do Sul; sendo tais representações distribuídas ao Procurador, Dr. Cícero Rufino Pereira. Por entendimentos com os advogados que representavam a MMX à época, combinou-se que todos os procedimentos seriam discutidos e resolvidos simultaneamente; tanto que nas atas de reunião constaram, diversas vezes, vários números das referidas representações. Por isso, o deslinde deste TCC 68/2008 resultará no andamento independente de todas as demais representações em face da MMX que ficaram aguardando o desfecho final (conforme documento anexo de ata com diversos números de procedimentos).

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A partir de meados de 2010, a empresa MMX Metálicos LTDA, através de seu Diretor Jurídico, Vladimir Moreira, e de seus advogados em Mato Grosso do Sul, entendeu por bem deixar de cumprir as obrigações do referido TCC 68/2008. Conforme documentos anexos, dentre eles trocas de e-mails com diversas pessoas ligadas ao TCC 68/2008 referentes de como se daria o cumprimento do pactuado, e conforme documentos, petições e notificações em geral, trocadas entre, principalmente (mas não apenas), MPT/MS e MMX Metálicos, resta indene de dúvidas que a MMX Metálicos comprova e demonstra seu interesse em não cumprir o quanto pactuado no TCC 68/2008. Com efeito, apesar da previsão das obrigações adicionais contidas nas cláusulas 5 e seguintes do TCC 68/2008, e de contrato de prestação de serviços assinado entre a MMX Metálicos e a empresa Halcrow, com o compromisso de realizarem, com a presença do MPT e da Comissão Permanente/MS, diligências orientativas e de levantamento do “Diagnóstico da Cadeia Produtiva do Carvão Vegetal em MS”, e ter firmado TAC junto ao MPE para colaborar no referido diagnóstico, tal intuito não ocorreu integral e adequadamente, pois apenas algumas visitas técnicas, com o apoio da empresa PróAtiva (contratada pela MMX, a teor de obrigação contida no TCC 68/2008), foram feitas nos anos de 2008 e 2009 começando a resultar em alguma melhoria, ainda que mínima, para os trabalhadores e os donos de carvoarias. Assim, aos poucos, vagarosamente, iniciou-se um certo tipo precário de cumprimento do TCC 68/2008 quando, por exemplo, a MMX contratou a empresa Pró-Ativa acima mencionada para começar as visitas técnicas às carvoarias então fornecedoras. Como resultados, o relatório de novembro de 2008 (doc. anexo) demonstrou-se ruim. Já após a contratação da empresa Pró-Ativa que procedeu uma orientação mais adequada, em junho de 2009 (doc. anexo) já houve uma certa melhoria. Contudo, em junho de 2010 (doc. anexo), o resultado foi péssimo e em junho de 2011 (doc. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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anexo – relatório conduzido pelo MPT, sem a presença da empresa Halcrow, que descumpriu o pacto, no particular), infelizmente, o relatório noticia ocorrência de trabalho escravo (relatório escrito e fotográfico referente à Carvoaria Maracujá/Fazenda Dannemann). Nesse contexto, foram constatados diversos problemas para o cumprimento deste diagnóstico, pois, as empresas MMX e Halcrow não têm honrado o que foi combinado, o que inviabiliza o referido diagnóstico, tendo tanto a MMX quanto a Halcrow (inclusive em relação à Halcrow foi fornecida ficha de pesquisa – cópia anexa), de maneira ilegal e desrespeitosa ao contrato e ao combinado, tomado medidas ao arrepio de informações e dados e providências indispensáveis, referentes ao citado diagnóstico e, a despeito do MPT ter sido informado de que a empresa MMX está em vias de firmar um novo acordo com o MPE/MS, para que este possa conduzir o citado diagnóstico, há outras informações que dão conta da continuidade fora do pactuado, de um pseudo diagnóstico pela MMX/Halcrow, pois há em total contrasenso documentos produzidos pela própria empresa informando de seu desinteresse em adimplir (cópias anexas). Outro descumprimento foi em relação ao importe de R$ 150.000,00 que deveria ser destinado a publicações, informações e eventos que orientariam o enfrentamento ao trabalho escravo e infantil, e regularização do meio ambiente de trabalho, para utilização nas visitas que seriam realizadas por equipes especializadas, contudo, apenas foram produzidas duas publicações, uma para orientar aos trabalhadores do estado acerca de quais são seus principais direitos e obrigações (Cartilha Trabalho Legal), e outra para os empregadores, donos das fazendas e carvoarias de como instalar e manter carvoarias, dentro da legalidade do meio ambiente natural e do trabalho, afastando-se a ocorrência de trabalho escravo ou degradante (Manual Carvoaria Saudável). Insta destacar que se estivesse sendo cumprida referida obrigação, estaria ajudando, inclusive, no diagnóstico da cadeia 210

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produtiva vegetal prevista num TAC (ou acordo judicial) firmado entre a MMX e o MPE, bem como levando a resultados positivos o combate ao trabalho escravo, degradante e infantil. Logo, o grande interesse do MPT (mas não o único) é que haja efetivamente a atuação da equipe técnica, de modo a extirpar carvoarias com trabalho escravo, ao menos em relação às carvoarias então fornecedoras da empresa executada. O MPT informa ainda que notificou por Ofício, via fax (doc. anexo), para que a empresa informasse se pretendia ou não cumprir os termos do TCC 68/2008 e do Termo Aditivo ao mesmo. Também foi tentada uma notificação no escritório dos advogados constituídos nos autos administrativos, porém a secretária, na ocasião, informou que não teria autorização para receber, chegando a ligar para um dos advogados, o Dr. Gustavo, lendo para o mesmo o teor da notificação, porém sendo mais uma vez desautorizada a receber o referido documento. Aliás, quando tentou-se fazer a notificação pelo escritório, foram encaminhados, em anexo, dois outros documentos elucidativos, um trazendo como subtítulo “Do trabalho degradante” e o outro sem estar dividido no subtítulo (doc. anexo). Enfim, recentemente em 07.07.2011 nova notificação foi encaminhada por fax (ante a recusa de receber no escritório dos advogados da MMX - doc. anexo) concedendo prazo de 24 horas para que a MMX informasse se prentede cumprir o TCC em comento, porém a mesma quedou-se silente. III.2 – Do descumprimento das obrigações trabalhistas Para constatar o que tem acontecido durante este tempo de descumprimento pela MMX e pela Halcrow do TCC 68/2008 e do pactuado em atas, contrato entre MMX e Halcrow e reuniões com o MPE, o MPT/MS e o Fórum de Saúde/MS evidaram nos dias 28 e 29 de junho de 2011 visitas técnicas em carvoaria então fornecedora de carvão vegetal à MMX, encontrando o total desrespeito aos mais básicos direitos trabalhistas e ambientais da sociedade. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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A situação mais crítica foi constatada em visita técnica na Fazenda Maracujá, em Porto Murtinho/MS, a qual, com o nome de Fazenda Carvoaria Dannemann (informação confirmada pelas coordenadas geográficas da referida fazenda) fornecia carvão à MMX e, portanto, deveria estar sendo objeto da orientação, do planejamento e de solução imediata por parte da MMX, a teor do contido no TCC 68/2008. O relatório (doc. anexo) esclarece que na ocasião foram encontrados 16 trabalhadores homens e uma trabalhadora mulher laborando há meses na Fazenda Maracujá/Carvoaria Dannemann, nas seguintes circunstâncias: a) sem anotação na Carteira de Trabalho; Individual;

b) sem o uso de EPI – Equipamentos de Proteção

c) alojamentos precários e totalmente fora das normas ambientais, tendo inclusive trabalhador “morando” num “fornoalojamento”; d) consumo de água inadequada (a caixa d’água estava vazia e suja e não há disponibilização de copos coletivos, sendo que a tampa da mesma estava quebrada e jogada no chão); conforto; forno;

e) as condições de trabalho inadequadas, sem o mínimo f) trabalho sob tensão, sobremaneira, na fase de vigiar o g) exigências de grande esforço físico;

motosserra; 212

h) exposição ao ruído e vibração pelo uso da Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05


i) radiação solar excessiva; j) exposição ao calor emitido pelos fornos; k) aspiração de substâncias químicas produzidas na combustão da madeira, principalmente quando da abertura dos fornos; socorros;

l) ausência de materiais destinados aos primeiros m) paredes não-caiadas; n) ventilação insuficiente; e o) não recolhimento de FGTS e INSS. Veja-se trechos do relatório nesse sentido: “Também conversou com o Sr. Cícero Rufino Pereira (Procurador do Trabalho, e também Coordenador-Geral do Fórum de Saúde, Segurança e Higiene no Trabalho de Mato Grosso do Sul), o Senhor Sílvio Teixeira da Silva, o qual disse que trabalha a mais ou menos 4 (quatro) meses, e que recebe de R$ 800,00 (oitocentos reais) à R$ 1.000,00 (mil reais) por mês, destacou que não tem anotação de registro na sua CTPS (Carteira de Trabalho e Previdência Social), observou-se que o Sr. Sílvio não utilizava nenhum tipo de EPI (Equipamento de Proteção Individual), informou-nos também que era de Minas Gerais (MG).” (fl. 11 do relatório anexo)

As fotos são suficientes para demonstrar a situação absurda encontrada, sejam as adunadas ao escandaloso relatório fotográfico anexo, e também as abaixo expostas: 1. Um dos fornos serve de dormitório para trabalhadores. 2. Procurador do Trabalho constatando a condição degradante dos trabalhadores (sem EPI’s) de carvoarias na Fazenda Dannemann – Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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em desconformidade com a NR- 31.20 Medidas de Proteção Pessoal e NR- 31.20.1 É obrigatório o fornecimento aos trabalhadores, gratuitamente dos (EPI). 3. Trabalhador (sem EPI, por exemplo: a luva) de carvoaria fazendo uma das etapas de produção que é o ‘enchimento’ dos fornos – em desconformidade com a NR- 31.20.1.3 Cabe ao empregador orientar o empregado sobre o uso do EPI. 4. Procurador do Trabalho mostra as péssimas condições do ‘alojamento’ dos trabalhadores da Fazenda Dannemann – o estado da ‘cama’ (estrado quebrado sobre barris de óleo diesel) e com colchão rasgado e sem qualquer espessura que dê conforto para o descanso dos trabalhadores, totalmente em desconformidade com a NR31.23.5.3 O empregador deve fornecer roupas de cama adequadas às condiçõe climáticas locais. 5. Procurador do Trabalho mostra ‘alojamento’ dos trabalhadores da Fazenda Dannemann – a insegurança (abertura) nas janelas, possibilitando a entrada de animais peçonhentos e do frio intenso na região e na época do ano, totalmente em desconformidade com a NR-31.23.5.1 Os alojamentos devem: a) ter camas com colchão, separadas por no mínimo um metro, sendo permitido o uso de beliches, limitados a duas camas na mesma vertical, com espaço livre mínimo de cento e dez centímetros acima do colchão; b) ter armários individuais para guarda de objetos pessoais; c) ter portas e janelas capazes de oferecer boas condições de vedação e segurança; d) ter recipientes para coleta de lixo; 6. Caminhão ‘pipa’ utilizado para fazer o transporte de água para o uso e consumo dos trabalhadores, totalmente em desconformidade com a NR-31.24.10 A água potável deve ser disponibilizada em condições higiênicas, sendo proibida a utilização de copos coletivos. 7. Caixa d’água, sem a tampa (totalmente destruída) usada pelos trabalhadores para armazenamento de água para uso e consumo, em desconformidade 214

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com a NR-31.24.11.1 Letra g) poço ou caixa de água protegido contra contaminação.

8. Banheiro sem chuveiro, totalmente em desconformidade com a NR 31.23.3.3 A água para banho deve ser disponibilizada em conformidade com os usos e costumes da região ou na forma estabelecida em convenção ou acordo coletivo. 9. Banheiro com vaso sanitário sem tampa e sem caixa de descarga, totalmente em desconformidade com a NR-31.23.3.2. As instalações sanitárias devem: d) dispor de água limpa e papel higiênico; e f) possuir recipiente para coleta de lixo. 10. Condição degradante do meio ambiente de trabalho do motorista do trator-caminhão pipa, totalmente em desconformidade com a NR 31.3.3 Cabe ao empregador rural ou equiparado: a) garantir adequadas condições de trabalho, higiene e conforto, definidas nesta Norma Regulamentadora, para todos os trabalhadores, segundo as especificidades de cada atividade. 11. Condições precárias do estado de conservação do veículo utilizado para fazer, no caso o transporte de água para os trabalhadores, totalmente em desconformidade com a NR 31.3.3 letra b) realizar avaliações dos riscos para a segurança e saúde dos trabalhadores e, com base nos resultados, adotar medidas de prevenção e proteção para garantir que todas as atividades, lugares de trabalho, máquinas, equipamentos, ferramentas e processos produtivos sejam seguros e em conformidade com as normas de segurança e saúde. 12. Recipientes de óleo diesel deixado e depositado de forma inadequada no meio ambiente natural, totalmente em desconformidade com a NR 31.9 Meio Ambiente e resíduos 31.9.1 Os resíduos provenientes dos processos produtivos devem ser eliminados dos locais de trabalho, segundo métodos e procedimentos adequados que não provoquem contaminação ambiental.

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13. Recipientes de pneus e óleo diesel deixados e depositados de forma inadequada na parte interna da Fazenda Dannemann (ou Maracujá, o seu novo nome), acarretando sérios impactos ao meio ambiente natural, totalmente em desconformidade com a NR- 31.9.2 As emissões de resíduos para o meio ambiente devem estar de acordo com a legislação em vigor sobre a matéria.

IV – DO DIREITO IV.1 - Da validade do título executivo extrajudicial O Termo de Compromisso de Conduta firmado equivale ao Termo de Ajustamento de Conduta, eis que fora elaborado em observância ao artigo 876 da CLT e artigo 5º, §6º da Lei n. 7.347/85. Tanto assim o é que no próprio TCC 68/2008 constaram referências aos dispositivos, ora mencionados. Ademais, imperativo destacar que a nomenclatura adotada é irrelevante, por ser o conteúdo o aspecto primordial para caracterizar o título em análise, no caso o TCC 68/2008, e seu Termo Aditivo. análise.

Logo, perfeitamente válido o título executivo em

IV.2 – Fixação de critério por arbitramento A execução deve ser por arbitramento, e com parâmetro na quantidade de trabalhadores que prestam serviços nas carvoarias então fornecedores da MMX. Constatou-se que, numa carvoaria de médio porte, há em média de 10 a 20 empregados, podendo chegar a 50 ou mais empregados em sendo de porte maior (conforme dados constantes no relatório de visita técnica a carvoarias fornecedoras da 216

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MMX na região de Aquidauana/MS, visitadas em dezembro de 2008 – documento anexo). Daí requer o Parquet que o número médio de trabalhadores por carvoaria a ser considerado para o cálculo da presente execução seja de 20 (número correspondente a uma carvoaria de porte médio). IV.3 – Do dano moral coletivo É cediço que o pactuado, às vezes, acaba sendo insuficiente diante da gravidade do dano causado, referido fato é exatamente a situação deste feito, razão pela qual o Parquet postula aumento judicial da condenação em valores econômicos. É que o que seria dano moral coletivo no TAC 69/2008 deixou de ser aplicado, posto que referido dano nele previsto transformou-se, em tese, nos valores que deveriam ter sido gastos para a aplicação do TAC (TCC) 68/2008 (conforme previsão do item 1.20 e seu parágrafo único do TAC 69/2008). Contudo, conforme já exposto no decorrer da presente exordial, o referido TCC 68/2008 não está sendo cumprido. Outrossim, é imperativo destacar que não se está inovando com o presente pedido, na medida em que o TAC 69/2008 já previa o referido dano moral coletivo, contudo o seu valor deveria ter sido convertido para o cumprimento das obrigações do TCC 68/2008, o que, repita-se, inocorreu. Segue anexa cópia do TAC 69/2008, e, imediatamente após, relatório fotográfico pertinente ao citado TAC 69/2008. Ademais, o TCC 68/2008, por si só, já não resolve mais, e, portanto, além de executá-lo, o Órgão Ministerial entende ser Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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imprescindível uma indenização pelo dano moral coletivo causado, eis que a conduta da executada prejudica toda a sociedade. Os descumprimentos, ora noticiados, têm gerado consequências gravíssimas, mormente as verificadas na Fazenda Maracujá/Carvoaria Dannemann (especificada no item II.2 desta petição inicial), a qual se denomina ex fornecedora da empresa MMX, e, evidentemente, não foi atendida pela mesma nos termos estipulados pelo TCC 68/2008, gerando, até mesmo, alojamento de trabalhador dentro do próprio forno de carvão. Questionamentos sobre as condições de trabalho precárias dos carvoeiros, em alguns casos comparadas à do trabalho escravo, constituíram-se na produção desta imagem, encontrada no alojamento dos carvoeiros da Fazenda Maracujá/Carvoaria Dannemann: Diante desta figura, percebe-se que os trabalhadores presentes no local, quando da vistoria, se vêem vulnerabilizados e a mercê de um empregador. Ora, é um absurdo que a MMX Metálicos - LTDA, de propriedade do homem mais rico do Brasil, Sr. Eike Batista, não honre e não cumpra um termo de compromisso que visa enfrentar o trabalho escravo nas carvoarias de MS, orientando e apoiando tanto aos trabalhadores como aos donos de carvoarias e ao desrespeitar o pactuado corrobore, ainda que indiretamente, pela situação degradante e desumana que se encontram os trabalhadores em questão, da qual a MMX foi favorecida e lucrou com a produção do carvão na referida carvoaria. Imperioso destacar que o aumento judicial da condenação em valores econômicos encontra respaldo nos artigos 461 e seu §1º do CPC e 84 e seu §1º do Código de Defesa do Consumidor, os quais prescrevem:

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“Art. 461 - Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. § 1º - A obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente. “Art. 84 - Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o Juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. § 1º - A conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.”

Diante de todo o exposto, o Parquet requer, com base na previsão anterior já contida no TAC 69/2008, e nos artigos 461 e seu §1º do CPC e 84 e seu §1º do Código de Defesa do Consumidor, que sejam as executadas condenadas também ao pagamento de indenização pelos danos morais coletivos causados no importe de R$ 750.000,00, a ser revertido, 20% ao FAT, 30% em favor da Comissão Permanente e 50% ao Forum de Higiene Saúde e Segurança do Trabalho em Mato Grosso do Sul, cujos CNPJ e contas correntes serão oportunamente fornecidas.

V - DA QUANTIFICAÇÃO DA EXECUÇÃO Prescreve o artigo 876 da Consolidação das Leis do Trabalho que os termos de ajuste de conduta firmados perante o Ministério Público do Trabalho serão executados na forma ali estabelecida. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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Cabe demonstrar, desde logo, o quantum devido em função de cada descumprimento. No tocante ao descumprimento das obrigações trabalhistas:R$ 1.680.000,00 Sendo 20 trabalhadores para cada carvoaria prejudicada (número adotado por arbitramento conforme fundamentado no item IV.2), multiplicado pela multa de R$ 1.000,00 por trabalhador prevista na cláusula 11 do TCC 68/08, chega-se ao valor de R$ 20.000,00 para cada carvoaria a ser considerada. Logo, constando na relação informada recentemente pela MMX como sendo 84 os estabelecimentos fornecedores de produtos, chega-se ao valor devido, para fins de descumprimento das normas trabalhistas, ao valor de R$ 1.680.000,00. No tocante ao descumprimento das obrigações adicionais: R$ 1.440.000,00 A multa prevista na cláusula 11.1 do TCC 68/08 é de R$ 3.000,00 por dia de atraso e por obrigação descumprida. No caso, foram, por ora, detectadas (sem prejuízo de nova verificação futura) duas cláusulas inadimplidas, quais sejam: a) ausência de continuidade na contratação de equipe técnica e b) ausência de confecção de materiais, informativos e de financiamento de eventos em prol da informação e orientação dos trabalhadores, o que já se chega a um total parcial de R$ 6.000,00, por dia de atraso. Quanto aos dias de atraso, a despeito de ser há tempos o inadimplemento das obrigações, será tomado como referência (por ora) o descumprimento formal (ocasião em que a empresa MMX peticionou informando de seu desinteresse em cumpir o quanto pactuado no TCC 68/08). 220

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Assim, sendo oito meses já transcorridos (de dezembro de 2010 a julho de 2011), serão 240 dias de atraso (30 dias por mês x 8 meses), os quais, multiplicados por R$ 6.000,00 (duas obrigações descumpridas) chega-se ao valor de R$ 1.440.000,00. No tocante ao dano moral coletivo: R$ 750.000,00 Conforme exposto no item IV.3, o valor a ser pago pela empresa MMX Metálicos Ltda, (com responsabilidade solidária para o Grupo EBX, do empresário Eike Batista, conforme alhures comprovado), para fins de indenização pelos danos morais coletivos causados à sociedade é de R$ 750.000,00. Do Elastecimento Do Prazo Para Cumprimento Do TCC 68/2008: Observe-se que a empresa MMX Metálicos Corumbá Ltda pretendeu pagar, para encerrar de maneira indevida e ilegal as obrigações constantes no TCC 68/2008, o irrisório valor de R$ 264.686,10, conforme documento anexo quando informa seu desinteresse em cumprir o TCC 68/2008. Por óbvio, o MPT não concorda com esse valor, primeiro porque diversas obrigações do TCC 68/2008 foram descumpridas, devendo incidir as multas e responsabilizações constantes do mesmo, geradoras desta ação de execução (aliás, os argumentos e ponderações da MMX para descumprir o TCC 68/2008 foram repelidos comprovadamente, demonstrando a real situação do referido título executivo extrajudicial, na Notificação Recomendatória n. 10/2011, datada de 01.03.2011, cópia anexa, a demonstrar o total interesse do MPT no sentido de que o TCC 68/2008 fosse cumprido integralmente). Porém, ante o passar do tempo e o descumprimento do título executivo extrajudicial a prejudicar todos os trabalhadores das carvoarias então fornecedoras da MMX, bem como toda a sociedade sulmato-grossense, com a constatação do trabalho escravo nas Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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referidas carvoarias, somente restou ao Parquet o caminho da execução do título executivo extrajudicial em tela. Por estes mesmos motivos, ausência de cumprimento do TCC 68/2008, e o passar do tempo, aproximando-se perigosamente o término do prazo pactuado para o cumprimento do citado documento, qual seja, dia 03.08.2011 (consoante teor do termo aditivo ao TCC 68/2008, ora anexado), o MPT ora requer o elastecimento por mais dois anos (prazo original constante do TCC 68/2008), a partir da data da decisão final judicial desta execução, para que o TCC 68/2008 seja integralmente cumprido, ante ao descumprimento, por parte da MMX Metálicos Ltda (com responsabilidade solidária do Grupo EBX), o que inviabilizou que o título executivo extrajudicial fosse cumprido a tempo e a modo (dois anos originais mais um ano do termo aditivo, totalizando três anos, o que encerraria o prazo para cumprimento no dia 03.08.2011, próximo futuro).

VALOR TOTAL A SER EXECUTADO: R$ 3.870.000,00 Consoante supra demonstrado, ante a inadimplência de cláusulas de multa de R$ 1.000,00 por trabalhador, considerando-se em média 20 trabalhadores por carvoaria (total de R$ 20.000,00 por carvoaria) x 84 carvoarias ex fornecedoras da MMX, resulta num total de 1.680.000,00. A esse valor somam-se R$ 1.440.000,00 (240 dias de atraso no cumprimento de duas obrigações x R$ 6.000,00 – já que são R$ 3.000,00 por obrigação descumprida, sendo duas obrigações, por ora, detectadas como descumpridas). Acrescente-se ainda a tudo quanto nesse tópico referido, o valor de R$ 750.000,00 a título de dano moral coletivo; resultando no valor total desta execução, por ora, de R$ 3.870.000,00 (R$ 1.440.000,00 + R$ 1.680.000,00 + R$ 750.000,00). 222

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O Parquet requer ainda que seja imposta às executadas a obrigação de adimplir integralmente os termos do TCC 68/08 e seu aditivo, com a imediata retomada das atividades por parte da equipe técnica especializada, com o objetivo de garantir que fatos absurdos, como os constatados nas vistorias expostas nesta exordial, permaneçam, eis que a obrigação de evitar o trabalho escravo nas ex carvoarias fornecedoras da MMX, é, exatamente, uma das obrigações principais do TCC 68/2008.

VI – DOS PEDIDOS E REQUERIMENTOS Diante do exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO requer a citação das executadas para pagarem, em 48 (quarenta e oito) horas, sob pena de penhora nos termos do artigo 880 da CLT, o valor de R$ 3.870.000,00 (três milhões, oiticentos e setenta mil reais), a ser revertido 20% ao FAT, 30% em favor da Comissão Permanente e 50% ao Forum de Higiene Saúde e Segurança do Trabalho em Mato Grosso do Sul. Reserva-se o Ministério Público do Trabalho o direito de nova ação de execução, caso vislumbre novos descumprimentos do TCC 68/2008, bem como verifique que o inadimplemento do ora executado continue. Requer, ainda, que seja decretado o elastecimento do prazo para cumprimento do TCC com relação às obrigações de fazer e não fazer, em 02 (dois) anos (prazo original), pois o pouco que foi feito restou perdido pela desídia da empresa MMX Metálicos. Por fim, requer a intimação pessoal e nos autos do Ministério Público do Trabalho, na forma do disposto no art. 18, inciso II, alínea “h”, da Lei Complementar nº 75/93 c/c art. 217 do Provimento Geral Consolidado do egrégio TRT da 24ª Região Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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(MS), tudo sem prejuízo do ajuizamento de nova execução, enquanto perdurar o descumprimento do TAC em questão. Dá-se ao valor da causa R$ 3.870.000,00 (três milhões, oitocentos e setenta mil reais). Pede deferimento. Campo Grande (MS), 11 de julho de 2011.

CÍCERO RUFINO PEREIRA Procurador do Trabalho

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EXMA. SRA. JUÍZA DO TRABALHO DA EGRÉGIA 7ª VARA DO TRABALHO DE CAMPO GRANDE (MS)

Processo n.º 0000940-67.2011.5.24.0007 Ação de Execução de Título Executivo Extrajudicial Exquente: Ministério Público do Trabalho Executados: MMX Corumbá Mineração S.A. MX Metálicos Corumbá Ltda Grupo EBX O MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO, por intermédio do Procurador do Trabalho que esta subscreve, vem à presença de V. Exa., com fulcro no artigo 294 do Código de Processo Civil, aplicado subsidiariamente ao processo do trabalho nos termos do artigo 769 da Consolidação das Leis do Trabalho,

ADITAR A EXORDIAL DA AÇÃO DE EXECUÇÃO EM EPÍGRAFE, nos seguintes termos: Diante da necessidade, dentro da mais correta boa fé processual e lealdade em busca da verdade real, o Parquet apresenta este aditamento para proceder a juntada de novos documentos, dentre eles, por exemplo, cópia de algumas outras atas de reuniões e troca de email´s. Outrossim, no tocante às notícias veiculadas pelos jornais, a partir de informações prestadas pela MMX, insta destacar que as mesmas não retratam a verdade. Isso porque o fato da MMX não estar mais atuando/ produzindo desde meados de 2008 (segundo alegou e precisa provar) não impediu que a mesma, tanto em novembro de 2008, junho de Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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2009, quanto em dezembro de 2009 e em junho de 2010 (conforme relatórios já juntados aos autos) cumprisse, ainda que parcialmente, os termos do TCC 68/08, e seu aditivo. Logo, tal justificativa não é fator impeditivo para continuar cumprindo o referido termo de compromisso. O mesmo argumento supra, por parte da empresa, não foi impedimento para a MMX, em parceria com o MPE/MS (Promotoria do Meio Ambiente em Corumbá/MS), MPT/MS, Comissão Permanente/MS, Plataforma de Diagnósticos (conjunto de ONG´S ambientais de Corumbá e Região) pactuarem a maneira que seria feito o “Diagnóstico da Cadeia Produtiva do Carvão Vegetal”, ora anexo, contratando-se a empresa Halcrow, a qual, mais ou menos de abril a junho de 2011, está, ainda que de maneira afrontosa ao combinado com o MPT/MS e a Comissão Permanente/MS (portanto sem qualquer validade moral, de boa fé e de validade técnica duvidosa para os objetivos originalmente combinados) produzindo o referido Diagnóstico, a partir de um acordo judicial feito com o MPE/MS, assinado na mesma época em que foi firmado o TCC 68/08. Ademais, conforme cláusula 141 do TCC 68/2008, a obrigação de cumprir o TCC 68/08 é de todo o Grupo Econômico EBX, portanto, pouco importa se a MMX está produzindo carvão, pois todo o Grupo EBX, do empresário Eike Batista, é responsável por cumprir o título executivo extrajudicial em comento. Aliás, em nenhum momento do TCC 68/08, o qual obriga as partes (segundo a doutrina faz “lei entre as partes”), firmado na mais absoluta boa fé, e com advogados competentes, não consta que seria condição suspensiva ou resolutiva do referido TCC o fato da MMX Metálicos deixar de produzir ferro gusa no Estado de Mato Grosso do Sul, até porque o responsável pelo cumprimento é também da MMX Corumbá Mineração S.A, e de todo o Grupo 1 Aplicam-se ao presente TCC as disposições dos artigos 10 e 448 da CLT, atingindo-se inclusive às empresas do mesmo grupo econômico envolvidas na atividade siderúrgica” (fl. 15 do TCC 68/2008).

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EBX, do proprietário Eike Batista, de modo a abranger todas as empresas do referido Grupo. Logo, qualquer empresa é solidária e pode ser escolhida como a responsável pelas obrigações de fazer, não fazer, pagar, bem como responsabilidade civil pelo descumprimento do TCC 68/08 e seu aditivo, por gerar dano moral coletivo, sendo exatamente esse o teor da causa de pedir e do pedido da presente ação de execução. Até porque o local do cumprimento das cláusulas que ora se executa são as 86 (oitenta e seis) carvoarias, ex fornecedoras da MMX, espalhadas por todas as regiões do Estado de Mato Grosso do Sul (conforme documento anexado). Deste modo, a MMX não está agindo dentro da estreita legalidade, conforme os jornais demonstram, os quais, aliás, sequer procuraram o MPT/MS para apurar a procedência das informações prestadas pela empresa, ora executada, que registram total ausência de veracidade. Seguem ainda anexas ao presente aditamento fotos coloridas extraídas na ocasião da Fiscalização nas dependências da Carvoaria Maracujá/Fazenda Dannemann, então fornecedora da MMX, cujas cópias já se encontram adunadas aos autos. Isto posto, requer o Ministério Público do Trabalho o recebimento do presente aditamento, para que produza seus jurídicos e legais efeitos. Pede deferimento. Campo Grande (MS), 20 de julho de 2011.

CÍCERO RUFINO PEREIRA Procurador do Trabalho

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EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) JUI(Í)Z(A) DO TRABALHO DA EGRÉGIA VARA DO TRABALHO DE CAMPO GRANDE (MS)

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO, por intermédio do Procurador do Trabalho que esta subscreve, vem à presença de Vossa Excelência, com fundamento nos artigos 129, III, da Constituição da República, c/c arts. 5º, I e III, e 83, III, da Lei Complementar nº 75/93 e na Lei nº 7.347/85, com os acréscimos introduzidos pela Lei nº 8.078/90, promover a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA JURISDICIONAL em face de 1) PRIME INCORPORAÇÕES E CONSTRUÇÕES S.A., CNPJ n. 00.409.834/0005-89, situada na Rua Dom Aquino, n. 1.789, Andar 9, Conjunto 91, Edifício Cruz de Malta, Centro, CEP n. 79.002-184, em Campo Grande (MS); e 2) MRV ENGENHARIA E PARTICIPAÇÕES S.A., CNPJ n. 08.343.492/0001-20, situada na Avenida Raja Gabaglia, n. 2.720, Bairro Estoril, CEP n. 30.494-170, em Belo Horizonte (MG), pelos fatos e fundamentos jurídicos a seguir expostos.

I DOS FATOS I.1 Dos empreendimentos imobiliários geridos pelas empresas demandadas A presente ação tem por objetivo adequar as condições de segurança, saúde e higiene às Normas Regulamentadoras do Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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Ministério do Trabalho e Emprego nos canteiros de obras de responsabilidade das acionadas. As empresas demandadas Prime Incorporações e MRV Engenharia e Participações S.A. são, conjuntamente, responsáveis pelas obras e comercialização dos apartamentos atualmente em construção em diversos canteiros de obras situados em Campo Grande (MS), quais sejam: 1) Parque Castelo de Luxemburgo; 2) Parque Ciudad de Vigo; 3) Spazio Classique e 4) Parque Castelo de Mônaco. A documentação impressa do sítio eletrônico das empresas rés (doc. 1) revela a construção e comercialização dos referidos apartamentos.

I.2 Da Representação n. 000671.2010.24.000/9 Em decorrência da elaboração do Programa Nacional de Combate às Irregularidades Trabalhistas na Indústria da Construção Civil, oriundo da ideia dos membros da Coordenadoria Nacional de Defesa do Meio Ambiente de Trabalho – CODEMAT – e da Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho – CONAFRET –, foi instaurada, no âmbito da Procuradoria Regional do Trabalho da 24ª Região (MS), a Representação n. 00671.2010, com objetivo de averiguar a regularidade na terceirização e no meio ambiente de trabalho da demandada MRV no território do Estado de Mato Grosso do Sul, por meio de inspeção in loco nos canteiros de obras, de análise documental e de entrevista com os trabalhadores. A denúncia que deu origem à representação epigrafada, inclusive demonstrando a uniformização, em âmbito nacional, nos procedimentos adotados pelo Ministério Público do Trabalho com relação às empresas de construção civil, representa o doc. 2 da presente ação.

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I.3 Da Representação n. 00203.2011.24.000/0 Por outro lado, em fevereiro de 2011, instaurou-se a Representação n. 00203.2011.24.000/0 em decorrência do termo de declarações prestadas pelo Sr. Luiz Carlos Botelho Batista, escrivão de Polícia Civil, o qual atesta a ilicitude na contratação de mão de obra de outros Estados para prestarem serviços em benefício das demandadas, com cobranças indevidas pelo transporte, pagamentos inferiores ao pactuado no momento da contratação e acomodação dos trabalhadores em alojamentos indignos. Por esclarecedor, transcreve-se, na íntegra, o aludido termo de declarações: O declarante é Escrivão de Polícia há cerca de vinte anos, lotado desde 2008 na DERF. Vem a este Órgão informar que mediante denúncia anônima, tomou conhecimento da possível existência de trabalho escravo nesta Capital, onde homens/trabalhadores do ramo da construção civil estariam sendo recrutados na região nordeste do país, para atuarem na construção civil em grandes empreendimentos nesta cidade. Tais trabalhadores recebem propostas de emprego de ganho aproximado de R$ 1.500,00 (mil e quinhentos reais). Iludidos com a proposta, o agenciador os traz de ônibus ou caminhão e na realidade, quando aqui se fazem presentes, tal proposta não se confirma. O ganho real seria na ordem de R$ 800,00 (oitocentos reais), porém são descontadas as despesas de transporte, material de trabalho, sendo que são alojados em lugares inapropriados. Quando porventura adoecem, os dias que faltam ao trabalho são descontados, com o agravante de receberem punições, a exemplo, ficam de “gancho” por alguns dias, ou seja, não trabalham nos dias subsequentes e não percebem remuneração, como castigo. Na Travessa dos Engraxates, n. 30, no Bairro Arnaldo Estevão Figueiredo, tal imóvel foi locado para abrigar cerca de dezessete trabalhadores, imóvel este que contém apenas dois quartos para acomodá-los, sem estrutura adequada. Tais trabalhadores são, em sua maioria, homens analfabetos. Suas carteiras de trabalho são retidas, não recebem comprovantes de pagamento, apenas assinam recibos. Em seus vencimentos estariam sendo descontados despesas de residência, alimentação e outros descontos ilegais. Tais ocorrências não estariam apenas no endereço já mencionado, mas segundo informações, outros trabalhadores estão sendo subjugados Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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em outros polos desta Capital. Estes dezessete trabalhadores já citados estão prestando serviços em um empreendimento imobiliário na Avenida Marquês de Pombal, imediações do residencial Dahma, empreendimento imobiliário com ampla divulgação na mídia e naquela região, responsabilidade da construtora MRV. O declarante tomou conhecimento destes fatos através de conversa informal com três trabalhadores que sofrem com tal situação, os quais informaram que se a investigação der andamento serão descobertos locais onde cerca de cinquenta a cem trabalhadores da região nordeste estão confinados em galpões. Vale ressaltar que, segundo os trabalhadores, aqueles que desistem do trabalho são facilmente substituídos por outros trabalhadores nordestinos.

Diante da instauração dessas representações, requisitouse, em março de 2011, à Superintendência Regional do Trabalho e Emprego implementação de ação fiscal para verificação do desrespeito à legislação trabalhista. A cópia integral da representação em questão forma o doc. 3 desta ação.

I.4 Do resultado da ação fiscal conjunta de abril de 2011. Ilicitude na terceirização Em relação à requisição feita em março de 2011 (vide doc. 3), o Ministério Público do Trabalho (MPT) e o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em abril de 2011, realizaram fiscalização conjunta no canteiro de obras das rés, situado na Avenida Ernesto Geisel esquina com a Avenida Mascarenhas de Moraes, destinado à edificação de 96 (noventa e seis) apartamentos em residencial fechado denominado “Conquista São Francisco” e de 448 (quatrocentos e quarenta e oito) apartamentos em residencial fechado denominado “Spazio Classique”. A obra iniciou-se em novembro de 2009 com previsão de término para outubro de 2011.

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No decorrer da ação fiscal, foi requisitada a apresentação de documentos relativos aos contratos de prestação de serviço (terceirização) firmados entre a ré Prime e as subempreiteiras, de modo que restou comprovado, aliado às demais provas produzidas, a irregularidade na terceirização das atividades por meio de contratação de subempreiteiras de fachadas. A ilegalidade na terceirização por meio de contrato com subempreiteiras resultou no ajuizamento de ação civil pública específica quanto a tais irregularidades, cuja cópia da respectiva exordial representa o doc. 4 desta ação.

I.5 Do resultado da ação fiscal conjunta de abril de 2011 e da fiscalização empreendida pelo Setor Pericial desta Procuradoria em agosto de 2011. Desrespeito aberto às Normas Regulamentadoras do Ministério do Trabalho e Emprego A par da irregularidade acima, também verificou-se durante a inspeção conjunta realizada em abril de 2011 no canteiro de obras das rés, situado na Avenida Ernesto Geisel esquina com a Avenida Mascarenhas de Moraes (Spazio Classique), que as demandadas não observam as normas protetivas da saúde e segurança dos trabalhadores. Com efeito, no canteiro de obras do residencial da Avenida Mascarenhas de Moraes, não eram observados os preceitos das Normas Regulamentadoras n. 6, 10, 18, 23 e 24, todas do Ministério do Trabalho e Emprego. Durante a realização da ação fiscal conjunta, foram tiradas dezenas de fotos dos pavimentos do residencial, da fiação, dos andaimes, das aberturas e dos trabalhadores, as quais foram devidamente analisadas pelo Setor Pericial desta Procuradoria, corroborando, pois, o desrespeito franco às normas trabalhista.

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Após esta primeira operação, em agosto de 2011, o Setor Pericial desta Procuradoria empreendeu diligência novamente ao canteiro de obras do Spazio Classique, localizado na confluência da Mascarenhas de Moraes com a Ernesto Geisel, e verificou que as irregularidades detectadas em abril, pela ação conjunta, persistem. Mesmo tendo ocorrida uma primeira inspeção fiscal, em abril de 2011, detectando as irregularidades e tendo as demandadas sido advertidas sobre a necessidade de corrigi-las, nova fiscalização, agora em agosto de 2011, comprovou que a situação ainda permanece crítica. Ademais, o Setor Pericial desta Procuradoria também verificou in loco as condições de saúde e segurança dos trabalhadores das demandadas que se ativam nos canteiros de obras do residencial Parque Castelo de Luxemburgo, localizado no Bairro Pioneiros, e do residencial Ciudad de Vigo, no Bairro Tiradentes. A situação encontrada nesses dois outros canteiros de obras também vai de encontro ao estuário normativo protetivo do trabalhador. O Laudo Pericial n. 38/2011 (doc. 5), confeccionado criteriosamente pela Assessoria Técnica Pericial desta Procuradoria, recheado de fotos ilustrativas dos canteiros de obras inspecionados, pois, é o documento idôneo que demonstra o total descaso com a segurança dos trabalhadores das demandadas, revelando tal condição como política empresarial. O documento em questão indica especificamente as irregularidades verificadas e, para comprová-las, apresenta as fotos ilustrativas.

I.6 Do recebimento, pelas demandadas, de financiamento oriundo da CAIXA ECONÔMICA FEDERAL – RECURSOS DO FGTS Os empreendimentos tocados pelas demandadas recebem 234

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recursos/financiamento diretamente da Caixa Econômica Federal (CEF), conforme atestam as fotos tiradas do canteiro de obras do residencial Spazio Classique, reveladoras de outdoor com a logomarca da CEF, bem como o prospecto elaborado pela própria MRV, dando conta da participação maciça desta na execução do Programa Minha Casa, Minha Vida, encabeçado pelo Governo Federal. Ressalta-se que tais recursos em regra são provenientes do FGTS, ou seja, são provenientes de haveres dos próprios trabalhadores (inclusive daqueles que têm sua vida/saúde/segurança colocada em risco pela falta de medidas de segurança nos canteiros de obras das rés). Os documentos que comprovam a utilização de recursos do FGTS, por meio do Programa Minha Casa, Minha Vida formam o doc. 6 desta actio.

I.7 Da ligação entre as demandadas Compulsando a 19ª Alteração do Contrato Social da demandada Prime Incorporações e Construções Ltda., verifica-se que o quadro societário é composto pelas seguintes pessoas (físicas e jurídicas): Alexandre Machado Vilela, José Luiz Meireles, Eduardo Koenigkam Caetano e a própria demandada MRV Engenharia e Participações S.A.. Assim, a demandada Prime engloba, no seu quadro societário, a demandada MRV, demonstrando assim a interdependência entre ambas as demandadas, impondo que a condenação judicial recaia sobre as duas, indiscriminadamente. O contrato social com a respectiva alteração social da demandada Prime, bem como demais documentos que comprovam a ligação entre as demandadas representam o doc. 7 desta ação.

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II DO DIREITO Na ordem jurídica internacional, existe notável preocupação da comunidade jurídica mundial em proteger efetivamente os trabalhadores que se ativam na construção civil. A Convenção n. 168 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), adotada, na Genebra, na Suíça, em junho de 1988, e promulgada no Brasil em novembro de 2007, por meio do Decreto Executivo n. 6.271, trata especificamente sobre segurança e saúde na construção civil. Por elucidativo, transcrevem-se alguns artigos desta Convenção de relevante importância para o presente caso, textualmente: Artigo 8º 1. Quando dois ou mais empregadores estiverem realizando atividades simultaneamente na mesma obra: (a) a coordenação das medidas prescritas em matéria de segurança e saúde e, na medida em que for compatível com a legislação nacional, a responsabilidade de zelar pelo cumprimento efetivo de tais medidas recairá sobre o empreiteiro principal ou sobre outra pessoa ou organismo que estiver exercendo controle efetivo ou tiver a principal responsabilidade pelo conjunto de atividades na obra; (...) Artigo 14 Andaimes e escadas de mão 1. Quando o trabalho não puder ser executado com plena segurança no nível do chão ou a partir do chão ou de uma parte de um edifício ou de outra estrutura permanente, deverão ser montados e mantidos em bom estado andaimes seguros e adequados ou se recorrer a 236

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qualquer outro meio igualmente seguro e adequado. 2. Havendo falta de outros meios seguros de acesso a locais de trabalho em pontos elevados, deverão ser proporcionadas escadas de mão adequadas e de boa qualidade. Elas deverão estar convenientemente presas para impedir todo movimento involuntário. 3. Todos os andaimes e escadas de mão deverão ser construídos e utilizados em conformidade com a legislação nacional. 4. Os andaimes deverão ser inspecionados por uma pessoa competente nos casos e nos momentos prescritos pela legislação nacional. Artigo 15 Aparelhos elevadores e acessórios de içamento 1. Todo aparelho elevador e todo acessório de içamento, inclusive seus elementos constitutivos, peças para fixação e ancoragem e suportes deverão: (a) ser bem projetados e construídos, estar fabricados com materiais de boa qualidade e ter a resistência apropriada para o uso ao qual estejam destinados; (b) ser instalados e utilizados corretamente; (c) ser mantidos em bom estado de funcionamento; (d) ser examinados e submetidos a teste por pessoa competente nos momentos e nos casos prescritos pela legislação nacional; os resultados dos exames e testes devem ser registrados; (e) ser manipulados pelos trabalhadores que tiverem recebido treinamento adequado em conformidade com a legislação nacional. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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2. Não deverão ser içadas, descidas nem transportadas pessoas por meio de nenhum aparelho elevador, a não ser que ele tenha sido construído e instalado com esse objetivo, em conformidade com a legislação nacional, exceto no caso de uma situação de urgência em que for preciso evitar riscos de ferimentos graves ou acidente mortal, quando o aparelho elevador puder ser utilizado com absoluta segurança. (…) Artigo 26 Eletricidade 1. Todos os equipamentos e instalações elétricas deverão ser construídos, instalados e conservados por pessoa competente, e utilizados de maneira a prevenir qualquer perigo. 2. Antes de se iniciar obras de construção, bem como durante a sua execução, deverão ser adotadas medidas adequadas para verificar a existência de algum cabo ou aparelho elétrico sob tensão nas obras, por cima ou sob elas, e prevenir qualquer risco que a sua existência possa implicar para os trabalhadores. 3. A colocação e a manutenção de cabos e aparelhos elétricos nas obras deverão responder às normas e regras técnicas aplicadas em nível nacional. (…) Artigo 30 Roupas e equipamentos de proteção pessoal 1. Quando não for possível garantir por outros meios a proteção adequada contra riscos de acidentes ou danos para a saúde, inclusive aqueles derivados da exposição a condições adversas, o empregador deverá proporcionar 238

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e manter, sem custo para os trabalhadores, roupas e equipamentos de proteção pessoal adequados aos tipos de trabalho e riscos, em conformidade com a legislação nacional. 2. O empregador deverá proporcionar aos trabalhadores os meios adequados para possibilitar o uso dos equipamentos de proteção pessoal e assegurar a correta utilização dos mesmos. 3. As roupas e os equipamentos de proteção pessoal deverão estar ajustados às normas estabelecidas pela autoridade competente, levando em conta, na medida do possível, os princípios de ergonomia. 4. Os trabalhadores terão a obrigação de utilizar e tratar de maneira adequada as roupas e os equipamentos de proteção pessoal que lhes sejam fornecidos.

Na ordem jurídica doméstica, a atual Carta Política elegeu dentre os fundamentos da República Federativa do Brasil os valores sociais do trabalho e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, incisos III e IV). A norma de maior hierarquia no ordenamento jurídico pátrio ressalvou de forma expressa a importância do trabalho humano, dispondo que o mesmo deverá ser desenvolvido com respeito à dignidade do trabalhador, que não pode ser tratado como mera mercadoria ou instrumento de produção de riquezas. As disposições da Carta Magna deverão nortear e orientar todo o ordenamento jurídico pátrio. Com isso, fica completamente inviabilizado qualquer texto legal e muito menos conduta empresária que possa atentar contra os fundamentos da República Federativa do Brasil. De fato, a Constituição Federal de 1988 elegeu o meio ambiente do trabalho como um bem a ser protegido por todas as esferas jurídicas (arts. 6º; 7º, inciso XXII e 200, inciso VIII). Especificamente sobre saúde e segurança no trabalho, vejam-se os seguintes dispositivos: Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança. Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: (…) VIII – colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho. Sem grifos na redação original.

Se é certo que o legislador constituinte preocupou-se com a higidez do empregado (artigos 1º, 7º e 170), não é menos correto dizer que o infraconstitucional imputou ao empregador o dever de cumprir as normas de segurança e medicina, inclusive aquelas fixadas pelo Ministério do Trabalho (artigos 157, incisos I e III, e 200, ambos da CLT). Assim, como se vê, o trabalho seguro e sadio não é apenas um princípio, mas sim uma obrigação concreta de todo o empregador. Neste sentido, a Consolidação das Leis do Trabalho, em seu art. 157, estatui: Art. 157 - Cabe às empresas: I - cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho; II - instruir os empregados, através de ordens de serviço, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais; 240

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III - adotar as medidas que lhe sejam determinadas pelo órgão regional competente. IV - facilitar o exercício da fiscalização pela autoridade competente. Sem grifo na redação original.

Ademais, de acordo com o art. 200 da Consolidação das Leis do Trabalho, cabe ao Ministério do Trabalho, por meio de normas regulamentadoras, disciplinar medidas complementares de segurança e saúde relacionadas a determinados tipos de atividade, sobretudo as que dizem respeito à construção civil: Art. 200. Cabe ao Ministério do Trabalho estabelecer disposições complementares às normas de que trata este Capítulo, tendo em vista as peculiaridades de cada ativudade ou setor de trabalho, especialmente sobre: I – medidas de prevenção de acidentes e os equipamentos de proteção individual em obras de construção, demolição ou reparos; (…) V – proteção contra insolação, calor, frio, umidade e ventos, sobretudo no trabalho a céu aberto, com provisão quanto a este, de água potável, alojamento e profilaxias de endemias; (...) VII - higiene nos locais de trabalho, com discriminação das exigências, instalações sanitárias com separação de sexos, chuveiros, lavatórios, vestiários e armários individuais, refeitórios ou condições de conforto por ocasião das refeições, fornecimento de água potável, condições de limpeza dos locais de trabalho e modo de sua execução, tratamento de resíduos industriais. Sem grifo na redação original.

Desta forma, em consonância com a Carta Magna, aos empregadores cabe adotar as medidas necessárias e suficientes para reduzir os riscos do ambiente laboral. Com este norte devem Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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ser interpretadas as normas de saúde e segurança do trabalho da legislação ordinária, notadamente no caso dos autos, que se refere a trabalho em construção civil, locais altamente perigosos à saúde e à integridade física do trabalhador. Disciplinando o comando legal emanado da própria Consolidação das Leis do Trabalho, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), após estudos aprofundados sobre cada assunto, editou inúmeras Normas Regulamentadoras, cujos preceitos devem ser obrigatoriamente observados. No entanto, após a fiscalização conjunta do Ministério do Trabalho e Emprego e do Ministério Público do Trabalho (MPT), bem como a fiscalização levada a cabo pelo Setor Pericial do MPT, ficou comprovado que as demandadas não atendem os itens das Normas Regulamentadoras do MTE. Abaixo, portanto, abordar-se-á, topicamente, cada uma das Normas Regulamentadoras que foram violadas, com a indicação precisa dos itens desrespeitados e as fotos que fazem prova da violação, para, afinal, postular-se os pedidos de cunho preventivo-inibitório, objetivando que cessem tais irregularidades, bem como pedido por reparação ao dano que a conduta das rés já causou à coletividade.

II.1 Nor ma Regulamentadora n. 6 do Ministério do Trabalho e Emprego A Norma Regulamentadora n. 6 do Ministério do Trabalho e Emprego, mais especificamente nos itens 6.3 e 6.6, exige que as empresas forneçam equipamentos de proteção individual aos seus empregados e fiscalizem o uso por parte destes. Assim é a redação dos dispositivos citados: 6.3. A empresa é obrigada a fornecer aos empregados, gratuitamente, EPI adequado ao risco, em perfeito estado de conservação e funcionamento, nas seguintes circunstâncias: 242

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a) sempre que as medidas de ordem geral não ofereçam completa proteção contra os riscos de acidentes do trabalho ou de doenças profissionais e do trabalho; b) enquanto as medidas de proteção coletiva estiverem sendo implantadas; e c) para atender a situações de emergência. (...) 6.6. Cabe ao empregador 6.6.1. Cabe ao empregador quanto ao EPI: a) adquirir o adequado ao risco de cada atividade; b) exigir seu uso; c) fornecer ao trabalhador somente o aprovado pelo órgão nacional competente em matéria de segurança e saúde no trabalho; d) orientar e treinar o trabalhador sobre o uso adequado, guarda e conservação; e) substituir extraviado;

imediatamente,

quando

danificado

ou

f) responsabilizar-se pela higienização e manutenção periódica; e g) comunicar ao MTE qualquer irregularidade observada. h) registrar o seu fornecimento ao trabalhador, podendo ser adotados livros, fichas ou sistema eletrônico.

No entanto, constatou-se, durante as fiscalizações, as seguintes irregularidades: - quanto ao Spazio Classique: ausência do fornecimento de equipamentos de proteção individual para os trabalhadores, sendo Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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que estes eram obrigados a trabalhar sem qualquer vestimenta de trabalho adequada ou sem qualquer EPI, especificamente ausente o cinto paraquedista, conforme atestam as Fotos 26, 27 e 28 encartadas às fls. 22/23 do Laudo Pericial; - quanto ao Parque Castelo de Luxemburgo: ausência do fornecimento de vestimenta adequada ao trabalho, conforme atesta a Foto 51 encartada à f. 35 do Laudo Pericial; e - quanto ao Conjunto Ciudad de Vigo: ausência do fornecimento de vestimenta adequada, conforme atestam as Fotos 54 e 55 de fls. 36/37 do Laudo Pericial; trabalhadores com cinto não ligado a cabo de segurança, conforme fotos 59 e 60 de f. 39; e trabalhadores sem luvas de proteção, conforme fotos 69 e 70 de f. 44. Portanto, à luz do exposto, requer o Ministério Público do Trabalho a condenação das rés na obrigação de fazer, consistente em cumprirem rigorosamente toda a Norma Regulamentadora n. 6 do Ministério do Trabalho e Emprego, especificamente (mas não apenas) para fornecer e exigir o uso por parte dos trabalhadores, em quantidade e qualidade suficientes, de vestimenta adequada e de todos os equipamentos de proteção individual necessários e adequados ao risco da atividade exercida (principalmente luvas de proteção), sob pena de cominação de astreinte no importe de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por trabalhador prejudicado e por infração verificada, reversível, em princípio, ao FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador (Lei nº 7.998/90) –, sem prejuízo de se conferir outra destinação social em favor da coletividade, com a concordância do juízo e do MPT, em sede de execução.

II.2 Nor ma Regulamentadora n. 10 do Ministério do Trabalho e Emprego A Norma Regulamentadora n. 10 do Ministério do Trabalho e Emprego cuida da segurança em instalações e serviços em eletricidade. 244

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A redação dos itens 10.4.1 e 10.4.4 da NR em questão é a seguinte, textualmente: 10.4 - SEGURANÇA NA CONSTRUÇÃO, MONTAGEM, OPERAÇÃO E MANUTENÇÃO 10.4.1 As instalações elétricas devem ser construídas, montadas, operadas, reformadas, ampliadas, reparadas e inspecionadas de forma a garantir a segurança e a saúde dos trabalhadores e dos usuários, e serem supervisionadas por profissional autorizado, conforme dispõe esta NR. 10.4.4 As instalações elétricas devem ser mantidas em condições seguras de funcionamento e seus sistemas de proteção devem ser inspecionados e controlados periodicamente, de acordo com as regulamentações existentes e definições de projetos.

Ocorre que, durante as fiscalizações, percebeu-se, no canteiro de obras do Spazio Classique, a existência de instalações elétricas em condições inseguras de funcionamento, com fios desencapados (parte viva) próximos a trabalhadores sem qualquer luva de proteção, conforme Fotos 14, 15 e 16 encartadas à fls. 16/17 do Laudo Pericial. Ademais, o ponto de abastecimento de máquinas e equipamentos com motor a explosão estava em condição insegura, conforme revela a imagem das Fotos 32 e 33 de fls. 25/26 do Laudo Pericial. Portanto, requer o Ministério Público do Trabalho a condenação das rés na obrigação de fazer, consistente em cumprirem rigorosamente toda a Norma Regulamentadora n. 10 do Ministério do Trabalho e Emprego, especificamente (mas não apenas) mantendo em condições seguras de funcionamento as instalações elétricas, evitando a exposição de fios desencapados (parte viva), sob pena de cominação de astreinte no importe de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por trabalhador prejudicado e por infração verificada, reversível, em princípio, ao FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador (Lei nº Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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7.998/90) –, sem prejuízo de se conferir outra destinação social em favor da coletividade, com a concordância do juízo e do MPT, em sede de execução.

II.3 Nor ma Regulamentadora n. 18 do Ministério do Trabalho e Emprego A Norma Regulamentadora n. 18 do Ministério do Trabalho e Emprego é o diploma que, com maior profundidade, disciplina as condições e meio ambiente de trabalho nas indústrias da construção. Reproduzem-se, na sequência, alguns dos itens dessa louvável NR, os quais muito se parecem com os dispositivos constantes na Convenção n. 168 da OIT, textualmente: 18.3.1 São obrigatórios a elaboração e o cumprimento do PCMAT nos estabelecimentos com 20 (vinte) trabalhadores ou mais, contemplando os aspectos desta NR e outros dispositivos complementares de segurança. (...) 18.4.1 Os canteiros de obras devem dispor de: a) instalações sanitárias; b) vestiário; c) alojamento; d) local de refeições; e) cozinha, quando houver preparo de refeições; f) lavanderia; g) área de lazer; 246

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h) ambulatório, quando se tratar de frentes de trabalho com 50 (cinqüenta) ou mais trabalhadores. (…) 18.4.1.2 As áreas de vivência devem ser mantidas em perfeito estado de conservação, higiene e limpeza. (…) 18.4.2.3 As instalações sanitárias devem: a) ser mantidas em perfeito estado de conservação e higiene; b) ter portas de acesso que impeçam o devassamento e ser construídas de modo a manter o resguardo conveniente; c) ter paredes de material resistente e lavável, podendo ser de madeira; (…) 18.4.2.4 A instalação sanitária deve ser constituída de lavatório, vaso sanitário e mictório, na proporção de 1 (um) conjunto para cada grupo de 20 (vinte) trabalhadores ou fração, bem como de chuveiro, na proporção de 1 (uma) unidade para cada grupo de 10 (dez) trabalhadores ou fração. (...) 18.4.2.8.3 Os chuveiros devem ser de metal ou plástico, individuais ou coletivos, dispondo de água quente. 18.4.2.8.4 Deve haver um suporte para sabonete e cabide para toalha, correspondente a cada chuveiro. (...) 18.4.2.9.1 Todo canteiro de obra deve possuir vestiário para troca de roupa dos trabalhadores que não residem no local.

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(…) 18.4.2.9.3 Os vestiários devem: a) ter paredes de alvenaria, madeira ou material equivalente; b) ter pisos de concreto, cimentado, madeira ou material equivalente; c) ter cobertura que proteja contra as intempéries; d) ter área de ventilação correspondente a 1/10 (um décimo) de área do piso; e) ter iluminação natural e/ou artificial; f) ter armários individuais dotados de fechadura ou dispositivo com cadeado; g) ter pé-direito mínimo de 2,50m (dois metros e cinqüenta centímetros), ou respeitando-se o que determina o Código de Obras do Município, da obra; h) ser mantidos em perfeito estado de conservação, higiene e limpeza; i) ter bancos em número suficiente para atender aos usuários, com largura mínima de 0,30m (trinta centímetros). (…) 18.4.2.11.2 O local para refeições deve: a) ter paredes que permitam o isolamento durante as refeições; b) ter piso de concreto, cimentado ou de outro material lavável; c) ter cobertura que proteja das intempéries; d) ter capacidade para garantir o atendimento de todos os 248

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trabalhadores no horário das refeições; e) ter ventilação e iluminação natural e/ou artificial; f) ter lavatório instalado em suas proximidades ou no seu interior; g) ter mesas com tampos lisos e laváveis; h) ter assentos em número suficiente para atender aos usuários; i) ter depósito, com tampa, para detritos; j) não estar situado em subsolos ou porões das edificações; k) não ter comunicação direta com as instalações sanitárias; l) ter pé-direito mínimo de 2,80m (dois metros e oitenta centímetros), ou respeitando-se o que determina o Código de Obras do Município, da obra. (...) 18.5.8 A remoção dos entulhos, por gravidade, deve ser feita em calhas fechadas de material resistente, com inclinação máxima de 45º (quarenta e cinco graus), fixadas à edificação em todos os pavimentos. 18.5.9 No ponto de descarga da calha, deve existir dispositivo de fechamento. (…) 18.8.3 A área de trabalho onde está situada a bancada de armação deve ter cobertura resistente para proteção dos trabalhadores contra a queda de materiais e intempéries. (...) 18.8.5. É proibida a existência de pontas verticais de vergalhões de aço desprotegidas. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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(…) 18.12.5.2 A escada de mão deve ter seu uso restrito para acessos provisórios e serviços de pequeno porte. (...) 18.12.5.5 É proibido colocar escada de mão: a) nas proximidades de portas ou áreas de circulação; b) onde houver risco de queda de objetos ou materiais; c) nas proximidades de aberturas e vãos. (…) 18.12.5.6 A escada de mão deve: a) ultrapassar em 1,00m (um metro) o piso superior; b) ser fixada nos pisos inferior e superior ou ser dotada de dispositivo que impeça o seu escorregamento; c) ser dotada de degraus antiderrapantes; d) ser apoiada em piso resistente. (...) 18.12.6.1 As rampas e passarelas provisórias devem ser construídas e mantidas em perfeitas condições de uso e segurança. (…) 18.13.1 É obrigatória a instalação de proteção coletiva onde houver risco de queda de trabalhadores ou de projeção e materiais. (…) 250

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18.13.2 As aberturas no piso devem ter fechamento provisório resistente. 18.13.2.1 As aberturas, em caso de serem utilizadas para o transporte vertical de materiais e equipamentos, devem ser protegidas por guarda-corpo fixo, no ponto de entrada e saída de material, e por sistema de fechamento do tipo cancela ou similar. (...) 18.13.3 Os vãos de acesso às caixas dos elevadores devem ter fechamento provisório de, no mínimo, 1,20m (um metro e vinte centímetros) de altura, constituído de material resistente e seguramente fixado à estrutura, até a colocação definitiva das portas. 18.13.4 É obrigatória, na periferia da edificação, a instalação de proteção contra queda de trabalhadores e projeção de materiais a partir do início dos serviços necessários à concretagem da primeira laje. 18.13.5 A proteção contra quedas, quando constituída de anteparos rígidos, em sistema de guarda-corpo e rodapé, deve atender aos seguintes requisitos: a) ser construída com altura de 1,20m (um metro e vinte centímetros) para o travessão superior e 0,70m (setenta centímetros) para o travessão intermediário; b) ter rodapé com altura de 0,20m (vinte centímetros); c) ter vãos entre travessas preenchidos com tela ou outro dispositivo que garanta o fechamento seguro da abertura. (…) 18.13.6 Em todo perímetro da construção de edifícios com mais de 4 (quatro) pavimentos ou altura equivalente, é obrigatória a instalação de uma plataforma principal de proteção na altura da primeira laje que esteja, no mínimo, um pé-direito acima do nível do terreno. 18.13.6.1 Essa plataforma deve ter, no mínimo, 2,50m (dois Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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metros e cinqüenta centímetros) de projeção horizontal da face externa da construção e 1 (um) complemento de 0,80m (oitenta centímetros) de extensão, com inclinação de 45º (quarenta e cinco graus), a partir de sua extremidade. 18.13.6.2 A plataforma deve ser instalada logo após a concretagem da laje a que se refere e retirada, somente, quando o revestimento externo do prédio acima dessa plataforma estiver concluído. (…) 18.13.11 As plataformas de proteção devem ser construídas de maneira resistente e mantidas sem sobrecarga que prejudique a estabilidade de sua estrutura. (…) 18.14.21.9 Para elevadores tracionados a cabo ou do tipo cremalheira a quantidade e tipo de amarração deve ser especificada pelo fabricante ou pelo profissional legalmente habilitado responsável pelo equipamento. 18.14.21.10 A altura livre para trabalho após amarração na última laje concretada deve ser: a) nos elevadores tracionados a cabo, com a cabina nivelada no último pavimento concretado, a distância entre a viga da cabina e a viga superior da torre do elevador deve estar compreendida entre quatro e seis metros, sendo que para os elevadores com caçamba automática, esta distância deve ser aumentada em dois metros; b) nos elevadores do tipo cremalheira, a altura da torre após o último pavimento concretado será determinada pelo fabricante, em função do tipo de torre e seus acessórios de amarração. (…) 18.14.21.12 A torre e o guincho do elevador devem ser aterrados eletricamente. 18.14.21.13 Em todos os acessos de entrada à torre do 252

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elevador deve ser instalada uma barreira que tenha, no mínimo, um metro e oitenta centímetros de altura, impedindo que pessoas exponham alguma parte de seu corpo no interior da mesma. 18.14.21.14 A torre do elevador deve ser dotada de proteção e sinalização, de forma a proibir a circulação de trabalhadores através da mesma. 18.14.21.15 As torres de elevadores de materiais devem ter suas faces revestidas com tela de arame galvanizado ou material de resistência e durabilidade equivalentes. 18.14.21.15.1 Nos elevadores de materiais, onde a cabina for fechada por painéis fixos de, no mínimo, dois metros de altura, e dotada de um único acesso, o entelamento da torre é dispensável. 18.14.21.16 As torres do elevador de material e do elevador de passageiros devem ser equipadas com chaves de segurança com ruptura positiva que dificulte a burla e impeça a abertura da barreira (cancela), quando o elevador não estiver no nível do pavimento. 18.14.21.17 As rampas de acesso à torre de elevador devem: a) ser providas de sistema de guarda-corpo e rodapé, conforme subitem 18.13.5; b) ter pisos de material resistente, sem apresentar aberturas; c) não ter inclinação descendente no sentido da torre; d) ser fixadas à estrutura do prédio ou da torre, nos elevadores tracionados a cabo; e) nos elevadores de cremalheira a rampa pode estar fixada à cabine de forma articulada. 18.14.21.18 Deve haver altura livre de no mínimo dois metros sobre a rampa. (…) Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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18.14.22.2 Deve ser fixada uma placa no interior do elevador de material, contendo a indicação de carga máxima e a proibição de transporte de pessoas. 18.14.22.3 O posto de trabalho do guincheiro deve ser isolado, dispor de proteção segura contra queda de materiais, e os assentos utilizados devem atender ao disposto na NR-17 (Ergonomia). (…) 18.15.3 O piso de trabalho dos andaimes deve ter forração completa, ser antiderrapante, nivelado e fixado ou travado de modo seguro e resistente. (…) 18.15.5.1 É proibida a utilização de aparas de madeira na confecção de andaimes. 18.15.6 Os andaimes devem dispor de sistema guarda-corpo e rodapé, inclusive nas cabeceiras, em todo o perímetro, conforme subitem 18.13.5, com exceção do lado da face de trabalho. (…) 18.15.9 O acesso aos andaimes deve ser feito de maneira segura. 18.15.9.1 O acesso aos andaimes tubulares deve ser feito de maneira segura por escada incorporada à sua estrutura, que pode ser: a) escada metálica, incorporada ou acoplada aos painéis com dimensões de quarenta centímetros de largura mínima e a distância entre os degraus uniforme e compreendida entre vinte e cinco e trinta e cinco centímetros; b) escada do tipo marinheiro, montada externamente à estrutura do andaime conforme os itens 18.12.5.10 e 18.12.5.10.1; ou

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c) escada para uso coletivo, montada interna ou externamente ao andaime, com largura mínima de oitenta centímetros, corrimãos e degraus antiderrapantes. (…) 18.15.10 Os montantes dos andaimes devem ser apoiados em sapatas sobre base sólida e nivelada capazes de resistir aos esforços solicitantes e às cargas transmitidas. (…) 18.15.14 Os andaimes cujos pisos de trabalho estejam situados a mais de um metro de altura devem possuir escadas ou rampas. (…) 18.15.17 O andaime deve ser fixado à estrutura da construção, edificação ou instalação, por meio de amarração e estroncamento, de modo a resistir aos esforços a que estará sujeito. (…) 18.21.3 É proibida a existência de partes vivas expostas de circuitos e equipamentos elétricos. (…) 18.22.5 O abastecimento de máquinas e equipamentos com motor a explosão deve ser realizado por trabalhador qualificado, em local apropriado, utilizando-se de técnicas e equipamentos que garantam a segurança da operação. (..) 18.23.3 O cinto de segurança tipo pára-quedista deve ser utilizado em atividades a mais de 2,00m (dois metros) de altura do piso, nas quais haja risco de queda do trabalhador. (…) Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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18.26 Proteção Contra Incêndio 18.26.1 É obrigatória a adoção de medidas que atendam, de forma eficaz, às necessidades de prevenção e combate a incêndio para os diversos setores, atividades, máquinas e equipamentos do canteiro de obras. (…) 18.27 Sinalização de Segurança 18.27.1 O canteiro de obras deve ser sinalizado com o objetivo de: a) identificar os locais de apoio que compõem o canteiro de obras; b) indicar as saídas por meio de dizeres ou setas; c) manter comunicação através de avisos, cartazes ou similares; d) advertir contra perigo de contato ou acionamento acidental com partes móveis das máquinas e equipamentos; e) advertir quanto a risco de queda; f) alertar quanto à obrigatoriedade do uso de EPI, específico para a atividade executada, com a devida sinalização e advertência próximas ao posto de trabalho; g) alertar quanto ao isolamento das áreas de transporte e circulação de materiais por grua, guincho e guindaste; h) identificar acessos, circulação de veículos e equipamentos na obra; i) advertir contra risco de passagem de trabalhadores onde o pé-direito for inferior a 1,80m (um metro e oitenta centímetros); j) identificar locais com substâncias tóxicas, corrosivas, inflamáveis, explosivas e radioativas. 256

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(...) 18.29.2 O entulho e quaisquer sobras de materiais devem ser regulamente coletados e removidos. Por ocasião de sua remoção, devem ser tomados cuidados especiais, de forma a evitar poeira excessiva e eventuais riscos. (...) 18.37.2 É obrigatório o fornecimento de água potável, filtrada e fresca para os trabalhadores por meio de bebedouros de jato inclinado ou equipamento similar que garanta as mesmas condições, na proporção de 1 (um) para cada grupo de 25 (vinte e cinco) trabalhadores ou fração. 18.37.2.1 O disposto neste subitem deve ser garantido de forma que, do posto de trabalho ao bebedouro, não haja deslocamento superior a 100 (cem) metros, no plano horizontal e 15 (quinze) metros no plano vertical. 18.37.2.2 Na impossibilidade de instalação de bebedouro dentro dos limites referidos no subitem anterior, as empresas devem garantir, nos postos de trabalho, suprimento de água potável, filtrada e fresca fornecida em recipientes portáteis hermeticamente fechados, confeccionados em material apropriado, sendo proibido o uso de copos coletivos. (...) 18.37.3 É obrigatório o fornecimento gratuito pelo empregador de vestimenta de trabalho e sua reposição, quando danificada.

No curso da ação fiscal, detectou-se o desrespeito aos itens reproduzidos, uma vez que: * Quanto ao Spazio Classique: - não havia proteção coletiva contra quedas e a torre do elevador de cargas não tinha tela de proteção (Fotos 1 e 2 da f. 10 do Laudo Pericial); Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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- não havia proteção coletiva contra quedas e as pontas verticais de vergalhões eram desprotegidas (Fotos 3 e 4 da f. 11 do Laudo Pericial); - escada de mão em condição irregular, inexistindo: proteção coletiva contra quedas, fechamento provisório de aberturas em piso e proteção contra quedas na periferia da edificação (Fotos 5, 6, 7 e 8 das fls. 12/13 do Laudo Pericial); - plataformas principais em condições irregulares (Fotos 9, 10, 11, 12 e 13 das fls. 14/16 do Laudo Pericial); - instalações elétricas em condições inseguras de funcionamento (Fotos 14, 15 e 16 das fls. 16/17 do Laudo Pericial); - abertura em piso sem fechamento provisório e sem guarda-corpo de proteção contra quedas (Fotos 17, 18, 19, 20, 21 e 22 das fls. 18/20 do Laudo Pericial); - rampa sem condição de uso e segurança (Fotos 23 e 24 de f. 21 do Laudo Pericial); - descarga de entulhos mediante simples lançamento deles dos andares superiores (Fotos 25, 26 e 27 das fls. 22/23 do Laudo Pericial); - elevador de carga irregular, não protegido por cancela ou similar (Fotos 28, 29, 30 das fls. 23/24 do Laudo Pericial); - posto de trabalho de guincheiro sem proteção segura contra quedas de materiais (Foto 31 de f. 25 do Laudo Pericial); - canteiros de obras com muito entulho e sobras de materiais (Fotos 33 e 34 da f. 26 do Laudo Pericial); - andaimes em situação irregular e inadequadamente apoiados (Fotos 35, 36, 37, 38, 39 e 40 das fls. 27/29 do Laudo Pericial); 258

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- armários individuais não localizados em vestiários e em número incompatível com a quantidade de trabalhadores (Fotos 42 e 43 das fls. 30/31 do Laudo Pericial); - não fornecimento de copos descartáveis (Foto 45 da f. 32 do Laudo Pericial); - falta de chuveiros com água quente, inexistência de paredes divisórias entre chuveiros, de saboneteiras e de cabide, bem como paredes sem pintura que permita a lavagem (Fotos 46 e 47 de fls. 32/33 do Laudo Pericial); e - número de vasos sanitários incompatível com a quantidade de trabalhadores (Foto 48 de f. 33 do Laudo Pericial). * Quanto ao Parque Castelo de Luxemburgo: - não fornecimento de copos descartáveis (conforme Foto 48 de f. 34 do Laudo Pericial); - inexistência de paredes divisórias entre chuveiros, de saboneteiras e de cabides (Foto 50 de f. 34 do Laudo Pericial); e Pericial).

- utilização de copos coletivos (Foto 53 de f. 36 do Laudo * Quanto ao Residencial Ciudad de Vigo

- piso de andaime sem forração completa e desprovido de sistema de guarda corpo e rodapé (Fotos 56, 57 e 58 de fls. 37/38 do Laudo Pericial; - uso de copo coletivo, inexistência de copos descartáveis (Fotos 63, 64 e 65 de fls. 41/42 do Laudo Pericial); - inexistência de proteção coletiva contra quedas na periferia da educação (Fotos 66 e 67 de fls. 42/43 do Laudo Pericial); Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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- inexistência de cobertura da área de armação (Foto 68 de f. 43 do Laudo Pericial); e - descarga de entulhos mediante simples lançamentos deles dos andares superiores, causando levantamento excessivo de poeira (Fotos 71 e 72 de f. 45 do Laudo Pericial). Portanto, requer o Ministério Público do Trabalho a condenação das rés na obrigação de fazer, consistente em cumprirem rigorosamente todos os itens da Norma Regulamentadora n. 18 do Ministério do Trabalho e Emprego, especificamente os transcritos no bojo deste tópico II.3, sob pena de cominação de astreinte no importe de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por trabalhador prejudicado e por infração verificada, reversível, em princípio, ao FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador (Lei nº 7.998/90) –, sem prejuízo de se conferir outra destinação social em favor da coletividade, com a concordância do juízo e do MPT, em sede de execução.

II.4. Nor ma Regulamentadora n. 23 do Ministério do Trabalho e Emprego A Norma Regulamentadora epigrafada trata das medidas adotadas para proteção de incêndios. Os itens relacionados à localização e sinalização dos extintores são os que se transcrevem abaixo: 23.17 Localização e Sinalização dos Extintores. 23.17.1 Os extintores deverão ser colocados em locais: a) de fácil visualização; b) de fácil acesso; c) onde haja menos probabilidade de o fogo bloquear o seu acesso. 260

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23.17.2 Os locais destinados aos extintores devem ser assinalados por um círculo vermelho ou por uma seta larga, vermelha, com bordas amarelas. 23.17.3 Deverá ser pintada de vermelho uma larga área do piso embaixo do extintor, a qual não poderá ser obstruída por forma nenhuma. Essa área deverá ser no mínimo de 1,00m x 1,00m (um metro x um metro). 23.17.4 Os extintores não deverão ter sua parte superior a mais de 1,60m (um metro e sessenta centímetros) acima do piso. Os baldes não deverão ter seus rebordos a menos de 0,60m (sessenta centímetros) nem a mais de 1,50m (um metro e cinqüenta centímetros) acima do piso. 23.17.5 Os extintores não deverão ser localizados nas paredes das escadas. 23.17.6 Os extintores sobre rodas deverão ter garantido sempre o livre acesso a qualquer ponto de fábrica. 23.17.7 Os extintores não poderão ser encobertos por pilhas de materiais.

Contudo, a fiscalização conjunta do Ministério Público do Trabalho e do Ministério do Trabalho e Emprego apontou que inexistia, no canteiro de obras do Spazio Classique, sinalização adequada de combate a incêndio, violando-se, desse modo, as normas transcritas. Portanto, requer o Ministério Público do Trabalho a condenação das rés na obrigação de fazer, consistente em cumprirem rigorosamente toda a Norma Regulamentadora n. 23 do Ministério do Trabalho e Emprego, especificamente (mas não apenas) inserindo a correta sinalização de combate a incêndio, sob pena de cominação de astreinte no importe de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por trabalhador prejudicado e por infração verificada, reversível, em princípio, ao FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador (Lei nº 7.998/90) –, sem prejuízo de se conferir outra destinação social em favor da coletividade, com a concordância do juízo e do MPT, em sede de execução.

II.5. Nor ma Regulamentadora n. 24 do Ministério do Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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Trabalho e Emprego A NR em questão dispõe sobre as condições sanitárias e de conforto nos locais de trabalho. As inspeções in loco confirmaram a violação aos seguintes itens, abaixo transcritos, in verbis: 24.1 Instalações sanitárias. (...) 24.1.20 A cobertura das instalações sanitárias deverá ter estrutura de madeira ou metálica, e as telhas poderão ser de barro ou de fibrocimento. (…) 24.3 Refeitórios. (...) 24.3.6 A cobertura deverá ter estrutura de madeira ou metálica e as telhas poderão ser de barro ou fibrocimento.

Na vistoria realizada no canteiro de obras do Spazio Classique, constatou-se que o lavatório está localizado em área sem cobertura, de acordo com o que revela a Foto 44 da f. 31 do Laudo Pericial. Já no canteiro de obras do Ciudad de Vigo, existe lavatório sem cobertura e com falta de torneiras (Fotos 61 e 62 de f. 40 do Laudo Pericial). Portanto, requer o Ministério Público do Trabalho a condenação das rés na obrigação de fazer, consistente em cumprirem rigorosamente toda a Norma Regulamentadora n. 24 do Ministério do Trabalho e Emprego, especificamente (mas não apenas) disponibilizando cobertura em toda a extensão do(s) lavatório(s) dos canteiros de obras, sob pena de cominação de astreinte no importe de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por trabalhador prejudicado e por infração verificada, reversível, em princípio, ao FAT – Fundo de Amparo ao 262

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Trabalhador (Lei nº 7.998/90) –, sem prejuízo de se conferir outra destinação social em favor da coletividade, com a concordância do juízo e do MPT, em sede de execução.

II.6. Dano moral coletivo O dano moral coletivo, nos dizeres do Exmo. Procurador Regional do Trabalho Xisto Tiago de Medeiros Neto: corresponde à lesão injusta e intolerável a interesses ou direitos titularizados pela coletividade (considerada em seu todo ou em qualquer de suas expressões – grupos, classes ou categorias de pessoas), os quais possuem natureza extrapatrimonial, refletindo valores e bens fundamentais para a sociedade. (Dano moral coletivo. 2ª Edição. 2007. Editora Ltr. Página 137).

O dano moral coletivo desponta, pois, como sendo a violação em dimensão transindividual dos direitos da personalidade. Se o particular sofre uma dor psíquica ou passa por uma situação vexatória, a coletividade, vítima de dano moral, sofre de desapreço, descrença em relação ao poder público e à ordem jurídica. Padece a coletividade de intranqüilidade, insegurança. Atualmente, o instituto do dano moral coletivo assume relevante importância para a ordem jurídica brasileira, em face da coletivização do direito, isto é, com o reconhecimento e tutela de direitos coletivos e difusos, que é fruto de uma sociedade de massas, de relações e conflitos multiformes, geradores de interesses específicos a coletividade de pessoas (grupos, categorias ou classes), exigindo, portanto, uma estrutura jurídica necessária e adequada a sua defesa e à punição em decorrência de violação dessa classe de direitos. Em se tratando de danos a interesses difusos e coletivos, a responsabilidade deve ser objetiva, porque é a única capaz de assegurar proteção eficaz a esses interesses. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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Oportuno se torna dizer que: não somente a dor psíquica pode gerar danos morais; devemos ainda considerar que o tratamento transindividual aos chamados interesses difusos e coletivos origina-se justamente da importância destes interesses e da necessidade de uma efetiva tutela jurídica. Ora, tal importância somente reforça a necessidade de aceitação do dano moral coletivo, já que a dor psíquica que alicerçou a teoria do dano moral individual acaba cedendo lugar, no caso do dano moral coletivo, a um sentimento de desapreço e de perda de valores essenciais que afetam negativamente toda uma coletividade. (...) Assim, é preciso sempre enfatizar o imenso dano moral coletivo causado pelas agressões aos interesses transindividuais afetase a boa imagem da proteção legal a estes direitos e afeta-se a tranqüilidade do cidadão, que se vê em verdadeira selva, onde a lei do mais forte impera. Tal intranqüilidade e sentimento de desapreço gerado pelos danos coletivos, justamente por serem indivisíveis, acarretam lesão moral que também deve ser reparada coletivamente. Ou será que alguém duvida que o cidadão brasileiro, a cada notícia de lesão a seus direitos, não se vê desprestigiado e ofendido no seu sentimento de pertencer a uma comunidade séria, onde as leis são cumpridas? [...]. A reparação moral deve se utilizar dos mesmos instrumentos da reparação material, já que os pressupostos (dano e nexo causal) são os mesmos. A destinação de eventual indenização deve ser o Fundo Federal de Direitos Difusos, que será responsável pela utilização do montante para a efetiva reparação deste patrimônio moral lesado. Com isso, vê-se que a coletividade é passível de ser indenizada pelo abalo moral, o qual, por sua vez, não necessita ser a dor subjetiva ou estado anímico negativo, que caracterizariam o dano moral na pessoa física... (In, André de Carvalho Ramos, “A Ação Civil Pública e o Dano Moral Coletivo”, “Revista de Direito do Consumidor” nº 25, 1998, Editora Revista dos Tribunais, p. 80-98).

As demandadas expõem os trabalhadores a situações calamitosas de trabalho, submetendo-os a perigo iminente à integridade física e à própria vida.

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Da inspeção fiscal conjunta desencadeada pela Inspeção do Trabalho e pelo próprio Ministério Público do Trabalho, por intermédio deste subscritor, bem como pela vistoria levada a efeito pelo competente Setor Pericial desta Procuradoria, verificou-se, de forma cristalina, que não foi implementado o PCMAT, que os empregados das demandadas que se ativam no canteiro de obras não utilizam os obrigatórios equipamentos de proteção individual para protegê-los e/ou para evitar ou amenizar eventuais acidentes de trabalho. Ainda, não há proteção coletiva contra quedas de pessoas e/ou materiais, além do que as escadas e andaimes estão irregularmente alocados. As plataformas principais encontram-se em condições totalmente irregulares. As partes elétricas estão expostas, com fios desencapados próximos aos trabalhadores, que não utilizam os obrigatórios equipamentos de proteção individual. Ademais, os entulhos dos andares superiores são simplesmente jogados às caçambas que se encontram no térreo, sem nenhuma proteção, levantando excessiva poeira em decorrência da queda dos entulhos. A quantidade de aberturas no piso, seja no andar térreo, seja nos andares superiores, sem fechamento provisório, é preocupante, expondo constantemente os trabalhadores a quedas de altura significativa. As rampas não têm condições de uso, configurando-se como amontoado de madeiras precariamente sobrepostas. A torre dos elevadores de carga não tem tela de proteção, de modo a não evitar acidente ocasionado pela queda de algum material dos andares superiores. Os banheiros não são totalmente cobertos, sendo que não existem portas separando os chuveiros. A água para banho não é aquecida, não sendo disponibilizados saboneteiras nem cabides. Os Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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vasos sanitários são em número inferior à quantidade de trabalhadores dos canteiros de obras. Os trabalhadores não têm acesso a copos descartáveis, sendo obrigados a dividirem um mesmo copo de uso coletivo para tomarem água. Os armários individuais também estão aquém da quantidade necessário, localizados a céu aberto, e não em vestiários. Alguns trabalhadores, que se ativam sobre andaimes, não prendem o cinto de segurança paraquedista ao cabo de segurança, ficando totalmente expostos a quedas. Por oportuno, transcreve-se julgado no qual houve o reconhecimento da ocorrência do dano moral coletivo pelo nefasto desrespeito às normas de proteção à saúde e segurança, in verbis: Ementa: 1. NULIDADE DE SENTENÇA. CERCEAMENTO DE DEFESA. EMBARGOS DECLARATÓRIOS. AMEAÇA. A mera citação do teor de dispositivo legal acerca da imposição de multa para casos em que forem opostos embargos de declaração protelatórios não pode ser considerada ameaça. Inexistindo impossibilidade imposta pela Magistrada de que a parte, em querendo, opusesse embargos, não há de se falar em cerceamento de defesa. Prefacial rejeitada. PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. CPC, ARTIGO 132. JUSTIÇA DO TRABALHO. INAPLICABILIDADE. Pacífico o entendimento de que na Justiça do Trabalho não se aplica o princípio invocado - inteligência da Súmula n.° 136/TST. 2. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE ATIVA. DIREITOS COLETIVOS E DIFUSOS. DANO MORAL COLETIVO. Inarredável o reconhecimento da legitimidade do Ministério Público do Trabalho para a proposição de ação civil pública que busque indenização por dano moral (que, no caso, indubitavelmente possui feição coletiva), haja vista sua função institucional, porquanto se cogita da proteção de interesses coletivos e difusos tutelados juridicamente, que, uma vez desrespeitados, podem ensejar a violação aos direitos do ser coletivo. 3. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AUSÊNCIA DE PERDA DO OBJETO. INTERESSE DE AGIR. Se já houve a transgressão da ordem jurídica (no dizer 266

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autoral), dando ensejo ao ajuizamento da presente ação civil pública cuja indenização por danos morais ora se busca, há de se reconstituir o mal que porventura já tenha sido causado à coletividade, impondo-se ao transgressor sanção pelo ilícito praticado. Não pode o Ministério Público, ante sua função institucional albergada pela Carta Política de 1988, compactuar com o silêncio apenas pelo fato do término das obras. Se já houve afronta à ordem jurídica; se já houve lesão a direitos coletivos e difusos, o objeto da ação ainda paira no ar, incólume, desafiando a decisão judicial, desta feita em sede recursal. 4. DANO MORAL COLETIVO. CONFIGURAÇÃO. INDENIZAÇÃO. Se a prova documental fartamente colacionada é preponderante no sentido de demonstrar o desrespeito às normas de medicina e segurança do trabalho, mormente se considerados os prazos impostos pelo Termo de Ajuste de Conduta, fica patenteada a ocorrência de dano moral consubstanciado em prejuízo moral de que foi alvo toda a coletividade de trabalhadores da ré, assim como a própria sociedade, na medida em que foram violados os Direitos e Garantias Fundamentais. Em se tratando de direitos coletivos e difusos, não se pode cogitar de “meio-termo”. A vida do trabalhador, sua dignidade enquanto ser humano merecedor de consideração, não admite transações. Concluindo-se que houve permanência no cometimento de irregularidades, que vieram a ferir direitos coletivos, como também difusos, justifica-se a reparação genérica, não só pela transgressão ao ordenamento pátrio vigente, com o que não pode compactuar a sociedade, mas também pela feição pedagógica da sanção imposta, que, ao menos indiretamente, restabelece a legalidade pela certeza de punição do ato ilícito. 5. Recursos conhecidos e desprovidos. Sem grifo na redação original. (TRT 10ª Região. Processo n. 140-2004-801-10-00-7. 3ª Turma. Exmo. Desembargador Relator Brasilino Santos Ramos. Publicado no DJ em 24.02.2006).

A presente demanda objetiva proteger, sobretudo, os interesses difusos, uma vez que colima tornar efetivos direitos sociais constitucionalmente previstos, bem como visa a garantir o acesso à justiça para proteção de direitos que, individual e isoladamente, por óbvio não seriam objeto de ação, tendo em vista sua matiz difusa.

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Também há de se levar em conta a afronta ao próprio Ordenamento Jurídico, que, erigido pelo legislador como caminho seguro para atingir o bem comum, é flagrantemente aviltado pelas rés. Faz-se mister ressaltar que a recomposição da ordem jurídico-social fazendo-se simplesmente mediante ordens de fazer, dirigidas ao futuro, é o mesmo que consagrar a impunidade das infrações trabalhistas, arriscando-se a eficácia do ordenamento juslaboral, pois restará cômodo e vantajoso às empresas o inadimplemento das leis do trabalho. O Ministério Público pretende com esta ação civil pública a reparação do dano jurídico social emergente das condutas ilícitas das rés, cuja responsabilidade pode e deve ser apurada através de ação civil pública (Lei n° 7.347/85, art. 1º, IV). Destarte, o Ministério Público requer a condenação solidária das rés na obrigação de dar, consistente no pagamento de indenização por dano moral coletivo no valor de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais), reversível, em princípio, ao Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT –, sem prejuízo de se conferir outra destinação social em favor da coletividade, com a concordância do juízo, em sede de execução. Importante destacar que o valor acima não constitui uma quantia excepcional para as demandadas e apenas procura dar efetividade ao caráter pedagógico que deve conter a condenação em dano moral, já que a segunda-ré é uma das maiores construtoras do País, com um ativo total de 6.791.338.000,00 (seis BILHÕES, setecentos e noventa e um milhões, trezentos e trinta e oito mil reais) – Dados do balanço patrimonial de dezembro de 2010 (doc. 8).

II.7. Do cabimento da tutela antecipada. Presença da prova inequívoca (verossimilhança das alegações) e fundado receio de dano ir reparável e/ou abuso do 268

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direito de defesa. Necessidade de medida liminar suficiente para efetivação da tutela antecipada A Lei n. 7.347/85, em seu artigo 12, caput, autoriza “o juiz conceder mandado liminar, com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita a agravo”. Por seu turno, os artigos 19 e 21 do mesmo diploma legal autorizam a aplicação do Código de Processo Civil e do Código de Defesa do Consumidor à Ação Civil Pública. O art. 273 do Código de Processo Civil1, por sua vez, informa que o deferimento da antecipação da tutela há de ser observado sempre que o magistrado, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança das alegações e haja fundado receio de dano ou fique caracterizado o abuso do direito de defesa do réu. Teme-se que a morosidade do processamento desta ação civil pública, entre o ajuizamento e a prolação da sentença, em que pese a evidente abnegação e esforço pessoal dos Magistrados e Servidores na entrega da prestação jurisdicional, venha a tornar inócua qualquer medida protetiva dos trabalhadores, inclusive, no caso em tela, com a conclusão definitiva dos edifícios e desnecessidade da utilização da mão de obra dos trabalhadores. 1 Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: I- haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou II- fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu. §1o Na decisão que antecipar a tutela, o juiz indicará, de modo claro e preciso, as razões do seu convencimento. §2o Não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado. § 3o A efetivação da tutela antecipada observará, no que couber e conforme sua natureza, as normas previstas nos arts. 588, 461, §§ 4o e 5o, e 461-A. §4o A tutela antecipada poderá ser revogada ou modificada a qualquer tempo, em decisão fundamentada. §5o Concedida ou não a antecipação da tutela, prosseguirá o processo até final julgamento. § 6o A tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso. § 7o Se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado.

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In casu, estão amplamente demonstrados e caracterizados os requisitos suso mencionados. No caso concreto, a prova inequívoca pré-constituída que resulta na verossimilhança das alegações restou sobejamente demonstrada. A partir da ação fiscal conjunta desencadeada pela Inspeção do Trabalho e pelo próprio Ministério Público do Trabalho, bem como pela inspeção do Setor Pericial desta Procuradoria, todas devidamente fotografadas, comprovou-se o total descaso com os itens das Normas Regulamentadoras do Ministério do Trabalho e Emprego. As fotos reveladas e a criteriosa análise técnica feita sobre as mesmas revelam o perigo pulsante à vida e à integridade física dos trabalhadores. O fundado receio de dano irreparável decorre do risco acentuado, quase palpável, de que o término das obras dos residenciais situados no canteiro de obras da Avenida Mascarenhas de Moraes se dê antes da instrução e prolação da sentença, deixando desprotegidos os obreiros que ali se ativam, podendo eles virem a sofrer acidente com seqüelas físicas ou até mesmo a morte. A concessão da tutela antecipada, inaudita altera parte, torna-se, diante do quadro atual, indispensável e inadiável, sob pena de se tornarem inócuos ou menos eficazes os direitos adiante postulados. O artigo 461 do Código de Processo Civil2, sobretudo com a redação do seu § 5º, faculta ao magistrado, ex officio ou a requerimento da parte, nos autos cujo objeto diga respeito a obrigações 2 Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. (...) § 5o Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.

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de fazer, a adoção de todas as medidas necessárias para a efetividade prática do comando judicial. Trata-se do poder geral de cautela do juiz, traduzido na atuação mais ativa do juiz (ativismo judicial), diante de uma realidade de lides cada vez mais multiformes, notadamente nas relações de trabalho, onde estão em jogo a vida e dignidade dos hipossuficientes da relação empregatícia. Registra-se que as demandadas mesmo tendo sido advertidas, em abril de 2011, pela ação conjunta desencadeada pelo Ministério do Trabalho e pelo Ministério Público do Trabalho de que deveriam adequar os canteiros de obras às normas de saúde e segurança do trabalho na construção civil, persistiram no descaso, conforme comprovou a recente fiscalização ocorrida em agosto de 2011, deixando de propiciar aos seus empregados um meio ambiente de trabalho compatível à dignidade da pessoa humana. Aguardar que as demandadas cumpram suas obrigações trabalhistas em decorrência de simples condenação judicial com previsão de imposição de astreintes que serão cobradas em sede de ação de execução ulterior é o mesmo que consagrar a impunidade empresarial, pois, conforme as demandadas vêm lidando com seus trabalhadores, certamente será mais vantajoso a elas transfigurar a futura execução em morosa e interminável pendenga judicial do que, efetivamente, cumprir com o ordenamento justrabalhista. No caso dos autos, portanto, considerando a gravidade da situação encontrada e a imperiosa necessidade de adequação dos canteiros de obras das demandadas à ordem jurídica, faz-se mister a adoção de medida mais enérgica, consistente na suspensão do repasse dos recursos provenientes da Caixa Econômica Federal por força de financiamento e/ou do Programa Minha Casa, Minha Vida, às rés, até que os seus canteiros de obras estejam em condições dignas de trabalho. Portanto, o Ministério Público do Trabalho requer como medida liminar para efetivação da antecipação de tutela – caso este seja deferida, evidentemente –, a intimação judicial da Caixa Econômica Federal, na pessoa do Superintendente Sr. Paulo Antunes de Siqueira, com endereço na Avenida Mato Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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Grosso, n. 2.942, em Campo Grande (MS), para que, de imediato, suspenda todo e qualquer repasse financeiro às demandadas, até segunda ordem judicial. Para tanto, tão logo seja deferida a antecipação de tutela, com a medida liminar necessária para efetividade plena dos efeitos antecipatórios e, manifestando-se as rés terem cumprido as medidas de segurança aqui pleiteadas, o Ministério Público do Trabalho compromete-se a empreender nova fiscalização nos canteiros de obra na cidade de Campo Grande (MS), a fim de verificar a melhoria nas condições de trabalho, para, só então, se levantar a suspensão do repasse dos recursos financeiros.

III DOS PEDIDOS Em face do exposto, requer o Ministério Público do Trabalho a procedência dos pedidos da presente ação civil pública para condenar as rés, seus sucessores ou beneficiados da alteração da natureza jurídica da empresa, conforme vaticinam o art. 10 e o art. 448, ambos da Consolidação das Leis do Trabalho, EM SEDE DE TUTELA ANTECIPADA a: III.1. na obrigação de fazer, consistente em cumprirem rigorosamente toda a Norma Regulamentadora n. 6 do Ministério do Trabalho e Emprego, especificamente (mas não apenas) para fornecer e exigir o uso por parte dos trabalhadores, em quantidade e qualidade suficientes, de vestimenta adequada e de todos os equipamentos de proteção individual necessários e adequados ao risco da atividade exercida (principalmente luvas de proteção), sob pena de cominação de astreinte no importe de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por trabalhador prejudicado e por infração verificada, reversível, em princípio, ao FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador (Lei nº 7.998/90) –, sem prejuízo de se conferir outra destinação social em favor da coletividade, com a concordância do juízo e do MPT, em sede de execução; III.2. na obrigação de fazer, consistente em cumprirem 272

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rigorosamente toda a Norma Regulamentadora n. 10 do Ministério do Trabalho e Emprego, especificamente (mas não apenas) mantendo em condições seguras de funcionamento as instalações elétricas, evitando a exposição de fios desencapados (parte viva), sob pena de cominação de astreinte no importe de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por trabalhador prejudicado e por infração verificada, reversível, em princípio, ao FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador (Lei nº 7.998/90) –, sem prejuízo de se conferir outra destinação social em favor da coletividade, com a concordância do juízo e do MPT, em sede de execução; III.3. na obrigação de fazer, consistente em cumprirem rigorosamente todos os itens da Norma Regulamentadora n. 18 do Ministério do Trabalho e Emprego, especificamente quanto aos itens reproduzidos no tópico II.3 desta ação, de modo que se pede vênia para remeter à leitura daquele tópico, sob pena de cominação de astreinte no importe de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por trabalhador prejudicado e por infração verificada, reversível, em princípio, ao FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador (Lei nº 7.998/90) –, sem prejuízo de se conferir outra destinação social em favor da coletividade, com a concordância do juízo e do MPT, em sede de execução; e III.4. na obrigação de fazer, consistente em cumprirem rigorosamente toda a Norma Regulamentadora n. 23 do Ministério do Trabalho e Emprego, especificamente (mas não apenas) inserindo a correta sinalização de combate a incêndio, sob pena de cominação de astreinte no importe de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por trabalhador prejudicado e por infração verificada, reversível, em princípio, ao FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador (Lei nº 7.998/90) –, sem prejuízo de se conferir outra destinação social em favor da coletividade, com a concordância do juízo e do MPT, em sede de execução; III.5. na obrigação de fazer, consistente em cumprirem rigorosamente toda a Norma Regulamentadora n. 24 do Ministério do Trabalho e Emprego, especificamente (mas não apenas) disponibilizando cobertura em toda a extensão do(s) lavatório(s) dos canteiros de obras, sob pena de cominação de astreinte no importe de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por trabalhador prejudicado e por infração verificada, reversível, em princípio, ao FAT – Fundo de Amparo ao Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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Trabalhador (Lei nº 7.998/90) –, sem prejuízo de se conferir outra destinação social em favor da coletividade, com a concordância do juízo e do MPT, em sede de execução. Como medida liminar apta a efetividade prática dos efeitos da antecipação da tutela, requer: III.6. a intimação judicial da Caixa Econômica Federal, na pessoa do Superintendente Regional Sr. Paulo Antunes de Siqueira, com endereço na Avenida Mato Grosso, n. 2.942, em Campo Grande (MS), para que, de imediato, suspenda todo e qualquer repasse financeiro às demandadas, seja por meio do Programa Minha Casa, Minha Vida, ou por qualquer outra forma, até segunda ordem judicial. Requer, ainda, em CARÁTER DEFINITIVO a confirmação da tutela antecipada relativa aos pedidos dos itens III.1, III.2, III.3, III.4 e III.5 e, ainda, a condenação solidária das demandadas na seguinte obrigação: III.7. na obrigação de dar, consistente no pagamento de indenização por dano moral coletivo no valor de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais), reversível, em princípio, ao FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador (Lei nº 7.998/90) –, sem prejuízo de se conferir outra destinação social em favor da coletividade, com a concordância do juízo e do MPT, em sede de execução.

IV REQUERIMENTOS FINAIS O Ministério Público do Trabalho ainda requer: IV.1. Após o deferimento da antecipação dos efeitos da tutela, com a medida liminar necessária, a citação das rés nos endereços indicados no preâmbulo, para, querendo, contestarem a presente ação, sob pena de se presumirem verdadeiros os fatos ora articulados; 274

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IV.2. A produção por todos os meios de prova em direito admitidos, tais como o depoimento pessoal das rés, oitiva de testemunhas e juntada de documentos; 1.3. A intimação pessoal e nos autos do Ministério Público do Trabalho, na forma do disposto no art. 18, inciso II, alínea “h”, da Lei Complementar nº 75/93 c/c art. 217 do Provimento Geral Consolidado do egrégio TRT da 24ª Região (MS); 1.4. A procedência dos pedidos e a condenação das demandadas ao pagamento das custas e despesas processuais. Dá-se à causa, para efeitos de alçada, o valor de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais). Campo Grande (MS), 31 de agosto de 2011.

HIRAN SEBASTIÃO MENEGHELLI FILHO Procurador do Trabalho

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EXMO(A) SR(A) JUIZ(ÍZA) DO TRABALHO DA VARA DO TRABALHO DE FÁTIMA DO SUL/MS

Mais de um bilhão de pessoas vivem abaixo da linha da miséria (...) Outros milhões e milhões sentem-se excluídos da família humana, tidos por zeros sociais, descartáveis, peso morto da história. Países inteiros, considerados desinteressantes para a economia capitalista mundial, inexistem para o mercado e são deixados de fora de qualquer planificação referente à saúde, à habitação, à educação e à segurança1.

Inquérito Civil Público (ICP) 28/2010 O MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO E O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL por meio do Procurador do Trabalho e do Procurador da República que a presente subscrevem, no exercício de suas atribuições constitucionais e legais, com fulcro nos artigos 127 e 129 da Constituição Federal, c.c. artigos 3, 5, 12 e 21 da Lei n.º 7.347/85, c.c. artigo 6º, inciso VII, alíneas “a” e “d” da Lei Complementar n.º 75/93 e artigos 36 e 37 da Lei 4.870/65, vêm, respeitosamente perante Vossa Excelência propor a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA2 com pedido de antecipação dos efeitos da tutela em face da seguintes pessoa jurídica: 1 Leonardo Boff. A Oração de São Francisco, 2ª ed., Sextante, 1999, p. 93 e 109. 2 Esta inicial baseia-se em ação semelhante, proposta pelo Procurador da República em Presidente Prudente-SP, Tito Lívio Seabra.

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I) CENTRAL ENERGÉTICA VICENTINA, pessoa jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ sob o nº 07.863.768/0001-38, localizada na Fazenda Dois Córregos, Lote 43, Qd 20, no município de Vicentina-MS; II) UNIÃO, pessoa jurídica de direito público, representada pela Advocacia Geral da União, sito à Rua Rio Grande do Sul, nº 665, Jardim dos Estados, CEP: 79020-010, Campo Grande/ MS pelas razões de fato e de direito a seguir expostas. A presente ação tem por base o procedimento administrativo acima epigrafado e as razões de fato e de direito a seguir aduzidas:

1 OBJETIVO A presente demanda visa propiciar eficácia material ao direito coletivo de natureza assistencial dos trabalhadores industriais e agrícolas da agroindústria canavieira, a fim de evitar que o seu efetivo exercício permaneça submetido ao exclusivo alvitre dos tomadores de serviços e às inerentes oscilações do mercado, bem como, e sobretudo, expostos aos efeitos deletérios da indiscriminada automação do corte de cana.

2 DOS FATOS No dia 11 de fevereiro de 2010, por iniciativa ex-officio, determinou-se a instauração de Procedimento Preparatório de Inquérito Civil Público no âmbito da Procuradoria do Trabalho no Município de Dourados em face das Usinas de Cana-de-Açúcar da região de atribuições do MPT-Dourados, a fim de verificar a efetiva aplicação do PAS – Plano de Assistência Social previsto pela 278

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Lei federal nº 4.870/65, em programas assistenciais destinados aos trabalhadores do setor da agroindústria da cana (DOC. 01). Com vistas à instrução do procedimento em curso, o MPT expediu ofícios à requerida, acima qualificada, a fim de que prestasse informações circunstanciadas a respeito da aplicação ou não dos recursos do Plano de Assistência Social (PAS), instituído pela Lei federal nº 4.870/65, justificando as razões e fundamentos de eventual negativa (DOC. 02). A requerida, a usina CENTRAL ENERGÉTICA VICENTINA LTDA em cumprimento à aludida requisição, devidamente representada por um de seus sócios, apresentou manifestação sustentanto a inaplicabilidade do PAS em razão da alegada inconstitucionalidade da exigência legal. Aduziu que a atual Constituição Federal adotou o regime da livre iniciativa e, pela conotação da universalidade dada ao novo sistema de Segurida Social – arts. 170 e 194 da CF/88. Afirma, todavia, prestar assistência social a seus empregados em conformidade com política interna de benefícios da usina, bem como com a observação de normas coletivas (DOC. 03). A Lei n.º 4.870/65, mais especificamente no Capítulo referente à Assistência dos Trabalhadores, dentro do qual insere-se o artigo 36 e seus parágrafos, dispõe acerca da obrigatoriedade de aplicação de percentuais incidentes sobre o preço oficial do saco de açúcar, o valor oficial da tonelada de cana de açúcar entregue, ou o valor oficial do litro de álcool, pelas usinas, destilarias e fornecedores de cana, individualmente ou através de suas respectivas associações de classe, mediante plano de sua iniciativa. A finalidade da norma sob comento, assim como de uma vasta gama de dispositivos infralegais que a sucederam quanto à exigibilidade de elaboração de um plano de assistência social voltado à melhoria das condições sociais e de saúde dos trabalhadores em empresas sucroalcooleiras, consiste exatamente no incremento das Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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ações sociais pelo setor privado da economia, tal como permite a Lei n.º 8.742, de 07-12-1993 (LOAS), que em seu artigo 1.º, prevê que a Assistência Social “... é direito do cidadão e dever do Estado, sendo política de Seguridade Social não-contributiva, que prevê os mínimos sociais, realizada por meio de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade para garantir o atendimento às necessidades básicas”. A obrigação para com o PAS apresenta cunho essencialmente assistencial, e natureza jurídica social, porquanto voltada às necessidades básicas dos trabalhadores ligados à indústria e agricultura canavieira, traduzindo-se mais como uma obrigação de fazer dos usineiros e afins, frente à Seguridade Social, do que como uma obrigação de dar coisa certa, “(...) do mesmo conteúdo da obrigação prevista pelo art. 863 e ss., do Código Civil”; A Instrução Normativa n.º 01/96, do Departamento de Álcool e Açúcar do Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo, determina em seu item 1.8.1, com base no Convênio MICT/ SECOM n.º 01/95, que o PAS será elaborado em consonância com as disposições da Lei Orgânica de Assistência Social (Lei n.º 8.742/93), visando “(...) o enfrentamento à pobreza, a garantia dos mínimos sociais e a universalização dos serviços sociais ...”; A aplicação de recursos para o PAS está, desta forma, de acordo com os princípios do sistema de Seguridade Social;A elaboração do Programa de Assistência Social e a aplicação dos recursos respectivos encontram seu fundamento maior de validade no próprio texto constitucional (art. 194), que prevê em sentido amplo que as ações sociais devem provir do esforço conjunto de toda a sociedade, aliada ao poder público; Da mesma forma, o artigo 7º da Constituição Federal, ao longo dos incisos I a XXXIV, prescreve os direitos inerentes aos trabalhadores urbanos e rurais, “...além de outros que visem à melhoria de sua condição social” (caput); 280

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Cuida-se na hipótese, não apenas de recepção da Lei n.º 4.870/65 pelo texto constitucional, como também de sua ratificação pela legislação pertinente posterior, conforme observa-se na alínea “o” do § 9.º do artigo 28 da Lei n.º 8.212/91, com a redação dada pela Lei n.º 9.528/97, abaixo transcrito: Art. 28 – Entende-se por salário-de-contribuição: (...) § 9.º - Não integram o salário-de-contribuição para os fins desta Lei, exclusivamente3: ... o) as parcelas destinadas à assistência ao trabalhador da agroindústria canavieira, de que trata o art. 36 da Lei n. 4.870, de 1.º de dezembro de 19954;

Evidenciada, portanto a subsistência da eficácia da Lei n.º 4.870/65 após o advento da Constituição Federal de 1988, bem assim a imprescindibilidade da exigência do cumprimento da obrigação para o PAS, com iniciativas voltadas à educação e saúde. A Constituição Federal, em seu artigo 198, inciso II, estabelece a prioridade das ações e serviços públicos de saúde de caráter preventivo, determinando “a participação da comunidade”. Percebe-se então, que a argumentação de algumas empresas de que prestam assistência a seus empregados, a maioria delas através de assistência à saúde, não merece guarida. Isso porque, o PAS é muito mais do que assistência à saúde – é assistência social como um todo: melhoria na qualidade de vida, saúde, educação, higiene, segurança, amparo para mulheres grávidas, crianças desnutridas, 3 § 9.º com redação determinada pela Lei 9.528/97 (DOU de 11/12/97, em vigor desde a publicação). 4 alínea “o” acrescida pela Lei n.º 9.528, de 10-12-97 (DOU de 11-12-97, em vigor desde a publicação).

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e todo tipo de mal que atinge as classes mais desfavorecidas, que sujeitam-se ao trabalho nos canaviais. Registre-se que todas as tentativas para solucionar o impasse extrajudicialmente foram tomadas, mas a questão chegou em um ponto de controvérsia intransponível, precisamente a crença das empresas de que não estão obrigadas ao cumprimento do PAS, por sua não recepção pela Constituição Federal, bem como pela inércia da União, que não fiscaliza o cumprimento do PAS e não toma qualquer atitude diante do não cumprimento da Lei, em prejuízo aos trabalhadores. Enfim, o caso necessita ser analisado pelo Judiciário, para que se tenha uma decisão definitiva acerca do PAS.

3 DA COMPETÊNCIA MATERIAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO A competência da Justiça do Trabalho sofreu significativa ampliação com a alteração do artigo 114 da Constituição Federal promovida com a edição da Emenda Constitucional 45/2004, sendo pertinentes a transcrição dos dispositivos a seguir: “Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; (...) IX – outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.” 282

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Conforme exposto, a Emenda Constitucional nº 45/2004 estabeleceu a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho, hipótese à qual se subsume a ação ora em exame. Senão vejamos: o artigo 36 da lei 4.870/65 obriga os produtores de cana, açúcar e álcool a aplicar recursos em serviços assistenciais em benefício de seus trabalhadores. Trazendo a norma abstrata para o caso concreto, verificamos que a relação obrigacional em comento estabelece uma obrigação para as Usinas e um direito para a coletividade dos seus trabalhadores, persistindo enquanto existir a relação de trabalho, justamente por decorrer da condição de que se revestem aqueles agentes. Ademais, salta aos olhos a pertinência entre os direitos fundamentais trabalhistas tutelados pelo Judiciário Trabalhista e os bens jurídicos visados pelo PAS. Sendo assim, não resta dúvida quanto à causa de pedir remota ser a própria relação de trabalho. No tocante ao pedido, este é de caráter estritamente trabalhista, pois consiste em uma prestação assistencial a ser implementada pelas Usinas em benefício dos seus trabalhadores. Tal obrigação poderia muito bem constar de um acordo ou convenção coletiva, conforme ocorre com diversas outras obrigações semelhantes. Mas decorre, no caso, de dispositivo legal (art. 36 da lei 4.870/65), o que só reforça o seu teor obrigacional. Diversos são os julgados do STJ e do STF, em conflitos de competência, evidenciando o entendimento de que a competência em razão da matéria é definida segundo o pedido e a causa de pedir. Transcrevo, neste sentido, a seguinte ementa, presente em diversos julgados de conflitos de competência do Superior Tribunal de Justiça, a quem compete julgar “os conflitos de competência... Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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entre juízes vinculados a tribunais diversos” (art. 105, I, “d”, da Constituição Federal): “CONFLITO DE (2006/0163183-0)

COMPETÊNCIA

67.139-SP

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR ACIDENTE DO TRABALHO MOVIDA POR VIÚVA DO EX-OBREIRO – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO – PRECEDENTES DO STF E DO STJ. 1. A competência da Justiça do Trabalho se dá em razão da matéria, vista pela causa de pedir e pedido. 2. Se a causa de pedir diz respeito a acidente de trabalho e o objeto guarda relação com indenização decorrente do acidente relatado, firmase a competência da Justiça Obreira, nos termos do art. 114, VI, da CF, com a redação dada pela EC n° 45/04. 3. Precedentes do STF e do STJ.”

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, também tem firme posição neste sentido, estabelecendo que a definição da competência ex ratione materiae se dá com base no pedido e na causa petendi. É o que se depreende da decisão proferida no CC 7.053 (Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 7.6.2002, pág. 105), verbis: “(...) Cumpre ressaltar, neste ponto, que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, na análise de causa essencialmente idêntica à que emerge dos presentes autos, veio a dirimir conflito de competência suscitado por magistrado de primeira instância em face do E. Tribunal Superior do Trabalho, reputando competente, para efeito de apreciação jurisdicional da ação reclamatória ajuizada, a Justiça do Trabalho (RTJ 135/520, Rel. Min. SYDNEY SANCHES), eis que o fundamento jurídico da pretensão deduzida pelo reclamante, no precedente referido, dizia respeito ao adimplemento de obrigação de natureza tipicamente trabalhista. Revela-se inquestionável, pois, a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar ações que, como ocorre na espécie, têm por objeto direitos e vantagens decorrentes de situação fundada, 284

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exclusivamente, em vínculo de natureza trabalhista. A causa petendi, na espécie em exame, evidencia-se pelo conjunto de fatos que, apoiandose em contrato individual de trabalho, revela-se suscetível de gerar os efeitos jurídicos postulados pelo interessado, inclusive o de estabelecer, para a resolução da controvérsia, a competência da Justiça do Trabalho (RTJ 134/96 – RTJ 175/908-909, v.g.). O contrato individual de trabalho – que constitui o fundamento jurídico deste pedido – qualificase, segundo o magistério de JOSÉ FREDERICO MARQUES (“Manual de Direito Processual Civil “, vol. 1/173, item n. 135, 13ª ed., 1990, Saraiva), como o “fato constitutivo da relação de direito de onde o autor deduz sua pretensão, juntamente com o fato que dá lugar ao interesse de agir”. O conteúdo da causa petendi induz, na hipótese, o reconhecimento da competência da Justiça do Trabalho, que emerge, com nitidez, da regra inscrita no art. 114 da Constituição da República (...)”. Na mesma linha, o entendimento esposado no CC 7.118 (Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, DJ de 4.10.2002), verbis: “Havendo liame jurídico regido pela CLT, a competência em razão da matéria é a da Justiça do Trabalho. (...) Como se sabe, a competência ex ratione materiae é definida a partir do pedido e causa de pedir deduzidos na ação. (...) Ora, se a relação existente entre as partes era de natureza trabalhista; a vantagem pleiteada decorre exatamente desse liame jurídico, e a causa de pedir é a correta aplicação das disposições legais, de incontroversa incidência a essa espécie de vínculo obrigacional, a solução da causa deve estar a cargo da Justiça do Trabalho.”

Nesse sentido o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Juiz Relator RENAN RAVEL RODRIGUES FAGUNDES, autos nº 01961-2006-058-15-00-0, verbis: “O debate envolvendo os preceitos da Lei 4.870/65, mormente aqueles atinentes às contribuições para custeio do plano de assistência social dos trabalhadores do segmento sucroalcooleiro, envolve temática que tangencia o universo do Direito do Trabalho, pois abrange determinada atuação patronal que visa à melhoria da condição social do trabalhador Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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daquela atividade econômica, nos exatos parâmetros do caput do art.7º da Constituição Federal. A contribuição em debate beneficia aos trabalhadores de todo o setor, envolvendo receita que decorre da produção da cana, do açúcar e do álcool. A aplicação dessa receita será efetuada pelos empregadores, ou por intermédio das respectivas associações de classe (art.36,§1o, da Lei 4.870/65), e tem por escopo aprimorar as condições de saúde de todos aqueles envolvidos na elaboração dos produtos que servem de objeto para a incidência da contribuição. A manutenção do programa assistencial possui inequívoca repercussão no meio ambiente do trabalho e, portanto, envolve matéria que está vocacionada a ser dirimida nesta Especializada. A apreciação da presente lide, portanto, está em consonância com o disposto no art.114, I e IX, da Carta Magna.”

Com efeito, considerando que na presente demanda a causa de pedir consiste na relação de trabalho existente entre os trabalhadores e a empresa CENTRAL ENERGÉTICA VICENTINA e o pedido deduzido na ação é justamente assegurar o cumprimento de obrigação de fazer (instituição e manutenção do PAS) destes empregadores em prol da coletividade dos seus trabalhadores na agroindústria canavieira, a competência para processar e julgar o presente feito é da Justiça do Trabalho.

4 FUNDAMENTOS JURÍDICOS DO PEDIDO 4.1 BREVE HISTÓRICO DO PLANO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (PAS) A Lei n.º 4.870, de 01 de dezembro de 1965, em seus artigos 35 e 36, alíneas e parágrafos, dispõe que: “Art 35. A parcela resultante do percentual estabelecido na alínea b do art. 23 será aplicada em programas de assistência social aos trabalhadores da agro-indústria canavieira, tendo por objeto: 286

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a) higiene e saúde, por meio de assistência médica, hospitalar e farmacêutica, bem como à maternidade e à infância, complementando a assistência prestada pelas usinas e fornecedores de cana; b) complementação dos programas de educação profissional e de tipo médio gratuitas; c) estímulo e financiamento a cooperativas de consumo; d) financiamento de culturas de subsistência, nas áreas de terras utilizadas pelos trabalhadores rurais, de acordo com o disposto no artigo 23, do Decreto-lei nº 6.969, de 19 de outubro de 1944; e) promoção e estímulo de programas educativos, culturais e de recreação. Art. 36. Ficam os produtores de cana, açúcar e álcool obrigados a aplicar, em benefício dos trabalhadores industriais e agrícolas das usinas, destilarias e fornecedores, em serviços de assistências médica, hospitalar, farmacêutica e social, importância correspondente no mínimo, às seguintes percentagens: a) de 1% (um por cento) sobre preço oficial de saco de açúcar de 60 (sessenta) quilos, de qualquer tipo, revogado o disposto no art. 8º do Decreto-lei nº 9.827, de 10 de setembro de 1946; b) de 1% (um por cento) sobre o valor oficial da tonelada de cana entregue, a qualquer título, às usinas, destilarias anexas ou autônomas, pelos fornecedores ou lavradores da referida matéria; c) de 2% (dois por cento) sobre o valor oficial do litro de álcool de qualquer tipo produzido nas destilarias. § 2º Ficam as usinas obrigadas a descontar a recolher, até o dia 15 do mês seguinte, a taxa de que trata a alínea “b” deste artigo, depositando seu produto em conta vinculada, em estabelecimento indicado pelo órgão específico da classe dos fornecedores e à ordem do mesmo. O descumprimento desta obrigação acarretará a multa de 50% (cinqüenta por cento) da importância retida, até o prazo de 30 (trinta) dias, e mais 20% (vinte por cento) sobre aquela importância, por mês excedente. §3º A falta de aplicação total ou parcial, dos recursos previstos neste Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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artigo, sujeita o infrator à multa equivalente ao dobro da importância que tiver deixado de aplicar”.

A regulamentação da matéria se deu através do Decreto_ lei nº 308, de 28 de fevereiro de 1967, seguido da Resolução 07/80, de 18 de julho de 1980, do Instituto do Açúcar e do Álcool – IAA. A legislação supra-mencionada obriga os produtores de cana de açúcar a aplicar em benefício dos trabalhadores industriais e agrícolas das usinas, destilarias e fornecedores, recursos destinados a serviços de assistência médica, hospitalar, farmacêutica e social. A referida aplicação dos recursos previstos nestes dispositivos, por parte das entidades de classe, deveria obedecer a um plano de sua iniciativa, submetido à aprovação e fiscalização do IAA. No ano de 1990 houve a extinção do Instituto do Açúcar e do Álcool, através da Lei Federal nº 8029, de 12 de abril de 1990, sendo que a fiscalização quanto ao recolhimento de tais contribuições deixou de ser realizada por parte dos fiscais do extinto IAA. Contudo, com a extinção do Instituto do Açúcar e do Álcool, por meio da Lei n.º 8.029/1990, a União apenas supriu a sua omissão fiscalizatória, em 15 de setembro de 1995, quando celebrou o Convênio MICT/SECOM n.º 01/95 através do então Ministério da Indústria, Comércio e Turismo com o Estado de São Paulo, delegando a atribuição fiscalizatória do plano de assistência social (fls. 91/94). Ocorre, todavia, que a vigência do referido Convênio expirou em 15 de setembro de 2000, ensejando a dissolução do Comitê estadual que exercia a fiscalização. Assim sendo, mais uma vez, a União deixa de cumprir a sua obrigação legal fiscalizatória, atualmente a cargo do Ministério da Agricultura5, deixando ao exclusivo alvitre dos empregadores do 5 Lei 10683/2003, art. 27, caput, inciso I e alínea ‘p’, dispõe: “Os assuntos que constituem as

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setor o eventual cumprimento da obrigação legal, os quais, por sua vez, negam validade ao aludido diploma legal, alegando que não teria sido recepcionado pela atual Constituição. De outra parte, desde logo, também é adequado o registro de que o Plano de Assistência Social – PAS não tem natureza tributária, evitando-se questionamentos desnecessários sobre a legitimação do Ministério Público Federal.

4.2 DA NATUREZA JURÍDICA DO PAS E DA RECEPÇÃO DA LEI Nº 4.870/65 PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 A Constituição Federal, no artigo 195, prevê que o financiamento da seguridade social é ônus de toda a sociedade, mediante contribuições sociais cobradas dos empregadores, dos trabalhadores e sobre a receita de concursos e prognósticos. Todo esse apanhado não se confunde com o PAS. Nas disposições gerais ao capítulo, a Carta Política define a seguridade como “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade”. E, no artigo 203, impõe o dever de solidariedade quando estabelece o direito à assistência social a quem dela necessitar e independentemente de contribuição à seguridade social. Esse dever de solidariedade completa, mas não se confunde com as ações governamentais na área, previstas e disciplinadas no artigo 204. Assim, a seguridade social compreende também a atuação direta dos agentes sociais, em complementação à atuação oficial, independentemente de contribuição. áreas de competência de cada Ministério são os seguintes:” inciso I - Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (...)”p)planejamento e exercício da ação governamental nas atividades do setor agroindustrial canavieiro”.

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Essa é a parte do nicho constitucional em que se aninha o artigo 36 da Lei 4870/65, posto que contribuição não é, mas atuação direta, e tem por objetivo a prestação direta de assistência social a trabalhadores que dela necessitam. O PAS é, desta forma, uma obrigação de fazer consistente na elaboração e execução concretas de um plano de assistência médica, hospitalar, farmacêutica e social em benefício dos trabalhadores industriais e agrícolas das usinas, destilarias e fornecedores, e assim, na prestação direta de assistência social por parte dos empregadores do setor sucroalcooleiro a seus empregados. Diante da mencionada previsão legal, desponta nítida a recepção do PAS pela Constituição, em decorrência de sua natureza jurídica de direito social assistencial, previsto em lei, estabelecendo como sujeito ativo da relação jurídica os trabalhadores do setor e como sujeito passivo os respectivos tomadores de serviços, cabendo, ainda, à União o dever legal de fiscalizar o seu efetivo cumprimento, nos termos do art. 27, inciso I e alínea “p”, da Lei 10.683/2003. Então vejamos. Evidencia-se que o legislador constituinte autorizou ao legislador ordinário a imposição de ações não somente ao Poder Público, mas também diretamente à sociedade, a fim de assegurar direitos relativos à seguridade social, in casu, assistência social. Desse modo, a obrigação legal de aplicação dos recursos referentes ao PAS, diretamente pelos tomadores de serviços da agroindústria canavieira, está de acordo com a própria concepção de seguridade social, consagrada na Constituição de 1988. Posto isto, não há que se falar em não recepção do artigo 36, alíneas e parágrafos, da Lei 4.870/65, pois o invocado dispositivo legal vem ao encontro não só da concepção constitucional de seguridade social como dos próprios fundamentos e objetivos da 290

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República Federativa do Brasil, tais como a cidadania (art. 1º, inciso II, da CF), a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CF), os valores sociais do trabalho (art. 1º, inciso IV, da CF), a construção de uma sociedade livre justa e solidária (art. 3º, inciso I, da CF), a garantia do desenvolvimento nacional (art. 3º, inciso II, da CF), a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, inciso III, da CF), posicionamento ratificado pelos Tribunais pátrios: “AÇÃO CIVIL PÚBLICA - LEI Nº 4.870/65. - PLANO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL - PAS PEDIDO JURIDICAMENTE POSSÍVEL - NORMA RECEPCIONADA PELA CONSTITUIÇÃO FISCALIZAÇÃO PELA UNIÃO FEDERAL – CABIMENTO -HONORÁRIOS DE ADVOGADO. 1- O pedido formulado pelo autor, ora apelante, é juridicamente possível. Observa-se que o fato de ter sido extinto o IAA em nada impossibilita a pretensão do ora apelante, vez que a matéria discutida nos respectivos autos, não está afeta a regulamentação do preço da cana e do açúcar, mas sim a discussão no sentido de ser ou não aplicável o implemento do Plano de Assistência Social previsto pela Lei 4.870/65. 2- Foi recepcionado pela Constituição Federal o art. 36 da Lei 4.870/65, regulamentada pelo Decreto-lei 308/67, seguida da Resolução 07/89, do IAA, tendo como escopo atender, nos casos concretos, o princípio da dignidade humana e do direito à saúde, e à obrigação de prestar a assistência social a quem dela necessitar, princípios estes garantidos pela Constituição, independentemente da contribuição à seguridade social. 3- Cumpre às usinas a efetiva prestação assistencial a partir de recursos financeiros oriundos das contribuições criadas para tal mister, vez que a Seguridade Social, não está unicamente vinculada à atuação do Estado, mas a ações oriundas da sociedade, inclusive no que diz respeito a financiamento de programas, com fundamento no princípio constitucional da solidariedade que orienta o Sistema da Seguridade (art. 203 CF). 4- O fato de não ser estabelecido pelo Poder Público, preço para o açúcar, cana e álcool, não significa que o art. 36 da Lei 4.870/65 não possa ser aplicada. Na época da promulgação da mencionada lei somente existia o preço fixado, daí, denominado “preço oficial” (referido pelo citado dispositivo legal), contudo, atualmente, na ausência de intervenção Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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governamental sobre este item, a alíquota tratada legalmente, recairá sobre o preço praticado. 5- Tendo sido extinto o IAA, e vindo a União Federal sucedêlo, evidentemente que por via de conseqüência tomou para si as responsabilidades do mencionado Instituto. Assim passou a ser da responsabilidade da União Federal a fiscalização da implementação objeto de discussão no presente feito. Aliás, a União Federal, já coresponsável pela coordenação do Plano de Assistência Social, por força do art. 37 da Lei 2.870/65. 6- Deixo de condenar as rés em honorários advocatícios às rés, tendo em vista o fato de o autor não ter requerido na peça exordial. 7- Apelação do autor provida.” (TRF 3ª Região - AC – 1233671 - Processo: 200561020135475/ SP – Relator Des. Fed. Cecília Marcondes – j. 11/09/2008 – DJF3 07/10/2008).” (fl. 230).

Ademais, o direito ao PAS também encontra fundamento de validade nos princípios gerais da atividade econômica, em consonância com o art. 170 da CF, dispondo que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, tendo, ainda, como um dos seus princípios a redução das desigualdades sociais (art. 170, inciso VII, da CF). Mas não é só. A natureza de direito assistencial do PAS, devidamente recepcionada pela Constituição, também foi reconhecida, expressamente, pelo legislador ordinário no art. 28, da Lei 8.212/91, dispondo que não integra o salário de contribuição as parcelas destinadas à assistência ao trabalhador da agroindústria canavieira, de que trata o art. 36 da Lei n. 4.870/65, ou seja, a obrigação de fazer referente ao PAS não se considera remuneração para efeitos previdenciários, em razão de se tratar de direito assistencial do trabalhador da agroindústria canavieria. 292

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Trata-se, portanto, de direito social, de que são titulares os empregados das usinas, destilarias e fornecedores de cana. Ou seja, daqueles que trabalham com as empresas do setor sucroalcooleiro. O julgado a seguir transcrito bem ilustra o posicionamento da jurisprudência quanto à natureza jurídica da contribuição prevista no art.36 da Lei 4.870/65: “A sua natureza jurídica, tratando-se, em realidade, de contribuição especial, assemelha-se a de um tributo com finalidade parafiscal, não contido no conceito de tributo em sentido estrito, pois não enumerado junto ao artigo 145 da Constituição da República. De outra parte, as exações parafiscais não integram o orçamento fiscal, em si mesmo, mutatis mutandis, das contribuições para ocusteio da seguridade social. Como bem assinalado pelo Des. Silvério Ribeiro, Observe-se que o art. 8o do Decreto 308/67 manteve como ‘encargos da produção as contribuições a que se referem os artigos 36, alíneas “a” a “c”e 64 da Lei n° 4870, de 1 de dezembro de 1965” (grifo nosso) em expressa referência à contribuição em questão´ (Ap. Civ. n° 262.049.4/0-00, 5a Câmara de Direito Privado, voto n° 14.482). Certo também que a previsão da existência de contribuições em nosso ordenamento também encontra amparo no artigo 217, do Código Tributário, que enumerou as contribuições especiais, apontando no inciso V a existência de “outras de fins sociais, criadas por lei”. (TJ – Desembargador ELCIO TRUJILLO - Apelação n. 994.03.097373-1 - 7a Camara de Direito Privado – julgado em 10.03.2010 – g.n.).

Pelas razões expostas, é salutar concluir que a contribuição preconizada no art.36 da Lei 4.870/65 é constitucional, está em vigor e possui natureza jurídica parafiscal, não se sujeitando aos requisitos estritos de um tributo típico. Diga-se desde já: não se trata de um favor concedido aos funcionários, mas sim de verdadeiro direito social. Esses inúmeros trabalhadores estão excluídos de um acesso melhor a Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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saúde, educação e assistência social como um todo, em razão do não cumprimento do PAS e isto vem ocorrendo há vários anos, sem que até o momento tenha tomado alguma posição a União Federal. Os benefícios sociais do PAS são evidentes. O mercado de cana cresce cotidianamente, com aumento expressivo dos lucros das Usinas, sem que daí se extraia a necessária contraprestação prevista em lei. E na defesa deste importantíssimo direito social é que se ajuíza esta ação, visando que a questão seja enfrentada pelo Poder Judiciário, que deverá estabelecer a existência ou não das obrigações das partes demandadas. O PAS se constitui em direito coletivo. O Código de Defesa do Consumidor assim define essa categoria de direitos: Art. 81 - (...) ... II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;

Este é o caso dos autos, pois os benefícios oriundos da correta aplicação do PAS pertence a toda uma categoria de pessoas, precisamente dos trabalhadores do setor sucroalcooleiro. Ou seja, o hospital que se constrói, a escola que se utiliza, a assistência social e os demais benefícios pertencem aquele grupo trabalhador, não de forma individual, mas coletiva, lembrando-se sempre que o PAS não se trata de repasse de verba para o trabalhador, 294

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mas sim de aplicação de benefícios sociais a toda a categoria do setor. A relação jurídica existente decorre do trabalho pactuado entre as empresas e os trabalhadores. E o Ministério Público está legitimado a defender direitos coletivos, nos termos do artigo 129, III, da Constituição Federal. Muito mais ainda quando estes direitos dizem respeito a direitos sociais, como educação, saúde, assistência, de um grupo de trabalhadores que há anos vem sendo esquecido e prejudicado. Como diz o professor José Afonso da Silva: “Assim, podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade.6”

Esta é exatamente a questão. O PAS como direito social, materializa a igualdade, fornecendo ao grupo de trabalhadores do setor sucroalcooleiro a possibilidade de acesso a direitos essenciais como saúde, educação, assistência social, erradicação do trabalho infantil, dentre outros.

4.3 DA LIBERAÇÃO DO PREÇO DA CANA E DA EXTINÇÃO DO IAA (COMPETÊNCIA PARA FISCALIZAÇÃO DA APLICAÇÃO DO PAS) Duas outras questões objeto de controvérsia merecem destaque. A primeira, reside na liberação dos preços da cana, açúcar 6 Curso de direito constitucional positivo. 20ª edição. Malheiros. Pág. 285/286.

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e do álcool às condições de mercado. A segunda, na extinção do Instituto do Açúcar e do Álcool, o qual, atuava como fiscalizador do PAS até a sua extinção em 1990. As argumentações trazidas pelas ora demandadas de que não é mais possível o recolhimento das contribuições previstas no art. 36 da Lei nº 4.870/65, uma vez que não há preço oficial para os produtos do setor, são meramente retóricas. Isso porque, utilizam-se da expressão “preço oficial” como se fosse esse o ponto nodal da Lei sob comento. Querem fazer crer que, apos a liberação dos preços, não é mais possível o recolhimentos dos valores devidos, o que é uma falácia. Não há que se falar em revogação na obrigação espelhada no respectivo artigo 36 da Lei 4.870/65. A liberação de preços não fulminou a obrigação que têm os produtores de cana, açúcar e álcool de contribuírem para o PAS, vez que apenas e tão-somente ocorreu alteração na forma de cálculo da receita com destinação específica ao PAS, ou seja, a constatação da legalidade da exigência do PAS é fruto de mera interpretação sistemática e dinâmica da norma em decorrência do atual modo de fixação do preço da cana, do açucar e do álcool. Compulsando o “ANUÁRIO DA CANA – A BÍBLIA DO SETOR” – safra 2002/20037, constata-se que o setor é altamente organizado e preciso em seus números. Isto é, de posse de tais informações, não é difícil que cada empresa chegue ao preço de cada litro de álcool ou saca de açúcar comercializado ou produzido. Diante de estatísticas tão precisas, poder-se-ia, até mesmo, levantar-se o valor médio dado aos produtos por todas as empresas. De qualquer modo, frise-se que o Parecer 738/98 da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, que entendia não ter eficácia os artigos 36 e 64 da Lei 4.870/65 perdeu sua aplicação, 7 Anexo II

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tendo sido substituído pelo Parecer PGFN/CAF/Nº 1941/20018, aqui reproduzido parcialmente: “Observa-se que, não obstante a extinção do IAA pelo Decreto nº 99.240, de 1990, e a liberação de preços promovida pela Portaria nº 102, de 1998, a obrigação de os produtores do setor contribuírem para o PAS continua em vigor. A uma, porque as atribuições da extinta autarquia foram sendo transferidas a sucessivos órgãos, sendo que, atualmente, tais atribuições pertencem ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. A duas, porque a citada Portaria, autorizada pela Lei nº 8.178, de 1991, como não poderia deixar de ser, trata apenas e tão-somente da liberação de preços, não tendo o condão, portanto, de promover a revogação da Lei nº 4.870, de 1965, o que somente poderia ocorrer com o advento de uma nova lei. Assim, com o advento da Portaria nº 102, de 1998, promovendo a liberação dos preços dos referidos produtos, a única alteração promovida na Lei nº 4.870, de 1965, foi em relação aos preços que, de oficiais, passaram a ser liberados. É certo que o art. 36 da Lei nº 4870, de 1965, para efeito de constituir a receita do PAS, utiliza como base de cálculo os preços oficiais da cana, do açúcar e do álcool, atualmente não mais em vigor. No entanto, tal fato não tem o condão de por termo ou de suspender a obrigação que têm os produtores de cana, açúcar e álcool de contribuírem para o PAS. É que, como já visto, o MICT, bem antes da referida liberação de preços, baixou a Portaria nº 304, de 1995 – autorizado pelo art. 37 da Lei nº 4.870, de 1965, conforme explicitado nos considerandos da referida Portaria – dispondo em seu art. 2º sobre o que considera preço oficial para efeito dos cálculos das contribuições do PAS, o qual, pela importância no deslinde da questão, merece novamente ser transcrito: Art. 2º Para efeito dos cálculos das contribuições de que trata o artigo anterior, considera-se preços oficiais: 1) o saco de açúcar de qualquer tipo, de cinqüenta quilos, ainda que 8 Cópia às fls. 22/32 – Anexo I.

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acondicionado em sacos de pesos diferentes: o seu preço de liquidação, excluídos os tributos e outros encargos sobre eles incidentes. 2) da tonelada de cana: o seu preço básico estadual, no campo: 3) do litro de álcool de qualquer tipo: o preço de venda, excluídos os tributos e outros encargos sobre eles incidentes. Depreende-se daí que a liberação dos preços dos multireferidos produtos em nada alterou o cálculo da contribuição, vez que a citada Portaria já tratava, como de fato trata, da interpretação da expressão ‘preço oficial’ para efeito dos cálculos das contribuições, o que torna perfeitamente compatíveis a contribuição e a liberação de preços do setor. De todo o exposto, em suma, conclui-se que a decisão de liberar preços, repita-se, em nada alterou a contribuição do PAS, sendo ambos perfeitamente compatíveis, devendo, pois, os produtores do setor continuar contribuindo para o referido plano nos moldes da Portaria nº 304, de 1995. Em vista disso, sugere-se a revogação do PARECER PGFN/CAF/ Nº738, de 1998, pelos motivos acima expendidos.” [grifei]

Tal Parecer foi aprovado pelo Procurador-Geral Adjunto da Fazenda Nacional em 05 de novembro de 2001. Bem por isso, nos parece inadequado argumentar pela impossibilidade de cumprimento do PAS, pela ausência de preço oficial ou mesmo diante de sua não recepção pela Constituição Federal. Ademais, como é sabido e ressabido, as leis, que não possuem caráter temporário ou especial9, apenas perdem a sua vigência quando revogadas, expressa ou tacitamente, sendo que, no caso em questão, não houve revogação expressa e tampouco tácita do art. 36 da Lei n.º 4.870/65, pois a liberação dos preços da cana, açúcar e álcool em nada incompatibiliza ou desobriga os tomadores de serviços da agroindústria canavieira quanto ao dever de elaborar e 9 Condicionadas a sua vigência a determinadas situações fáticas, tais como estado de calamidade pública, estado de sítio, guerra, etc.

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executar concretamente o plano de assitência social em prol dos seus trabalhadores. A extinção do Instituto do Açúcar e do Álcool também em nada alterou a relação jurídica de natureza assistencial em prol dos trabalhadores da agroindústria canavieira, pois o IAA figurava como mera autarquia fiscalizatória. Como dito anteriormente, a função fiscalizatória atualmente foi atribuída ao Ministério da Agricultura, sendo que a extinção do IAA, por meio da Lei n.º 8.029/1990, não atingiu os elementos essenciais da relação jurídica – sujeito passivo10, vínculo jurídico obrigacional de fazer coisa certa11 e o sujeito ativo12 instituídos pelo art. 36, alíneas e parágrafos, da Lei 4.870/65, cabendo pois, à União a obrigação de prover os meios adequados à fiscalização do cumprimento do dispositivo legal, conforme entendimento amplamente consolidado na jurisprudência, vejamos: “(...) Destarte, recepcionada a Lei 4.870/65, aí incluída a contribuição do PAS, resta saber se também foi recepcionado o poder de fiscalização da destinação de tais verbas. E a resposta só pode ser afirmativa, pois o poder de fiscalizar o cumprimento de norma impositiva é ínsito ao Poder de Polícia conferido ao Estado, como forma de compelir o contribuinte ao cumprimento de sua obrigação, podendo, inclusive, exercer atos coercitivos para tanto, como o é o auto de infração e imposição de sanções. A fiscalização do cumprimento de norma impositiva não se caracteriza como ato discricionário, ao contrário, trata-se de ato vinculado, cuja obrigação em cumprir decorre da própria lei, devendo ser realizado de ofício, sob pena de configurar omissão administrativa, apta à caracterização de prevaricação e improbidade administrativa. A atribuição conferida ao servidor público que realizará a fiscalização do PAS é atinente ao próprio cargo, que recebe parcela do Poder de 10 Tomadores de serviços para a produção de cana, açúcar e álcool da agroindústria canavieira. 11 Elaborar e executar concretamente o plano de assistência social em serviços de assistência médica, hospitalar, farmacêutica e social em benefício dos trabalhadores industriais e agrícolas das usinas, destilarias e fornecedores. 12 Trabalhadores da agroindústria canavieira.

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Polícia, podendo, daí, lavrar os autos necessários, inclusive de infração, se for o caso. Por conseguinte, parece-me evidente que o Poder Público é obrigado, constatada a deficiência de pessoal na área de fiscalização do PAS, a proceder à imediata organização, a fim de garantir o cumprimento da Lei 4.870/65. Por fim, diante de todas essas considerações, faço remissão a trecho de voto da lavra do Ministro Celso de Mello, que bem sintetiza a diretriz máxima da presente decisão: “...entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5º, caput e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humana” (Supremo Tribuma Federal, RE nº 271.286, Relator Ministro Celso de Mello).”. Processo Nº 2006.61.20.001500-2, TRF 3ª Região)

Diante de tais razões, é inegável a atual vigência da obrigação de fazer referente à implantação e manutenção do PAS, bem como de fiscalização, a cargo da União, do fiel cumprimento de tal ordem legal.

4.4 DA IMINENTE MECANIZAÇÃO DO CORTE DE CANADE-AÇÚCAR E DA NECESSIDADE DE QUALIFICAÇÃO DOS TRABALHADORES FRENTE À EXTINÇÃO DOS POSTOS DE TRABALHO COMO DIREITO SOCIAL A SER MATERIALMENTE ATENDIDO PELO PAS Conforme é cediço, a substituição do corte manual da cana-de-açúcar pela utilização de maquinário altamente desenvolvido faz parte de política empresarial já implantada na atualidade e em franca expansão, como forma de atendimento à própria finalidade lucrativa do setor, mas também em consonância com a legislação ambiental em vigor, através da qual preleciona-se a redução gradual 300

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da queima da palha da cana-de-açúcar, como forma de reduzir a poluição. No Estado de Mato Grosso do Sul a matéria é regulada pelas Leis n.s 3.357, de 09 Janeiro de 2007 e 3.404, de 30 de Julho de 2007 (DOC. 04), que dispõem, em síntese: Lei n. 3.357/07: Art. 1º Esta lei estabelece normas para a queima da palha para a colheita da cana-de-açúcar. Art. 2º Os produtores de cana-de-açúcar que queimam a palha de cana-de-açúcar para a colheita, ficam obrigados a obedecer os dispositivos desta lei, cumprindo o seguinte cronograma: § 1º Nas áreas cuja topografia favorece a colheita mecanizada, a queima da palha será totalmente eliminada no prazo máximo de 20 (vinte) anos, a contar do ano de 2006, à razão de 5% (cinco por cento) ao ano, pelo menos. § 2º Nas áreas não mecanizáveis, nas quais o corte de cana-de-açúcar só poderá ser feito manualmente, a eliminação da queima da palha dar-se-á a partir do ano de 2010, à razão de 5% (cinco por cento) ao ano, pelo menos, até que tais áreas possam ser dispensadas do cultivo de cana-de-açúcar ou que surjam novas tecnologias que permitam explorálas sem necessidade de queima. § 3º VETADO. § 4º Para os efeitos desta lei, considera-se área adequada para a mecanização agrícola aquela com declive inferior a 12% (doze por cento). Lei n. 3.404/07 Art. 3º Nas áreas em que a topografia permitir a colheita mecnizada, a queima da palha de cana-de-açúcar será totalmente eliminada no prazo máximo de 6 (seis) anos, a partir do ano de 2010, à razão de 16,75% (dezesseis vírgula setenta e cinco por cento) ao ano, pelo menos.

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Assim é, que em virtude do impacto ambiental incontestavelmente ofensivo causado pela queima da palha da cana-de-açúcar destinada ao corte manual, a completa mecanização da atividade é medida legalmente imposta e irrefreável, assim como seu impacto social e econômico, notadamente em razão dos postos de trabalho a serem extintos com a utilização das máquinas colhetadeiras. A tese exposta é expressão de estudos aprofundados sobre o tema, dentre os quais colaciona-se o excerto abaixo: “A cultura da cana-de-açúcar é bastante conhecida e de grande importância social e econômica no país e que tem registrado aumento expressivo na demanda do álcool combustível no mercado interno, em razão do sucesso de vendas dos carros flexfuel. Há boas perspectivas para a exportação de etanol e açúcar mas, esta atividade é normalmente associada à contaminação ambiental pela queima prévia da palha, para o corte manual e mecanizado, e ao grande número de emprego temporário gerado no período de colheita. A Lei nº 10.547, de 02 de maio de 2000, regulamenta os procedimentos da queimada da palhada da cana e a Lei nº 11.241, de 19 de setembro de 2002, dispõe sobre a eliminação gradativa da queima. Estas medidas irão provocar aumento dos índices de mecanização da colheita e resultará em impactos significativos sobre o emprego neste setor e sobre a economia regional. Os dados foram levantados na Usina da Barra S/A – Açúcar e Álcool, situada no município de Barra Bonita – SP, nos meses de setembro e outubro de 2001, e na Cosan S/A – Indústria e Comércio – Filial Usina Diamante, situada no município de Jaú – SP, no mês de novembro 2001. Foi determinada o número de trabalhadores a serem substituídos e os contratados pela mudança de colheita manual para a mecanizada. Pelos resultados obtidos, verificou-se que, na Usina da Barra, até o ano 2021, quando não poderá haver mais queima de cana, serão dispensados 2.117 trabalhadores e contratados 177 trabalhadores especializados. Na Usina Diamante, serão substituídos 411 trabalhadores e contratados cerca de 14 especializados.

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[...] A mecanização da colheita da cana-de-açúcar no Brasil ganhou impulso a partir da década passada. Os benefícios trazidos para a agroindústria açucareira, como a possibilidade de barateamento desta operação e maior produtividade do trabalho, são os principais fatores que estão contribuindo para a aceleração desse processo. A tecnologia das colhedoras empregada no setor ainda não permite a total mecanização da colheita, o que tem sido objeto de vários estudos e pesquisas. Isto se deve às características topográficas, variedades da cana-de-açúcar e excesso de mão de obra disponível. Entretanto, há grande margem para desenvolvimento, principalmente no que se refere ao aprimoramento de máquinas capazes de operar em terrenos com declividade desfavorável. Desemprego e poluição ambiental são dois problemas sociais graves que atingem a agroindústria canavieira, o primeiro em função do corte mecanizado, e o segundo, pela queima prévia dos canaviais. A Lei nº 10.547, de 02 de maio de 2000, de autoria do Deputado Arnaldo Jardim, regulamentada pelo Decreto nº 45.869 de 22 de junho de 2001, define procedimentos e proibições e estabelece regras e medidas de precaução quanto ao emprego do fogo em atividades agrícolas. A Lei nº 11.241, de 19 de setembro de 2002, dispõe sobre a eliminação gradativa da queima da palha da cana-de-açúcar e estabelece, no artigo 2, a tabela sobre a porcentagem gradual de eliminação para áreas acima de 150ha, que vai até 2021. A substituição da despalha manual pela queima da cana aumentou consideravelmente a produtividade do trabalho, ou seja, sem queima, o cortador que cortava de 1 a 2 toneladas/dia, passou a cortar entre 4 a 6 toneladas/dia, e, por conseqüência, houve um aumento da renda do trabalhador. A partir da década de 70, tem aumentado a preocupação no período de corte da cana-de-açúcar , pois, em conseqüência da queimada, ocorre o indesejável “carvãozinho” sobre o setor urbano. Em razão disto, as autoridades ambientais passaram a identificar os responsáveis e a exigir técnicas alternativas nas tarefas de colheita, que amenizem a precipitação de fuligem da palha. Kirchhoff (s.d.) relata que os primeiros experimentos do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) nos campos de cana, durante a época de queimada, no início dos anos 80, identificaram Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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níveis alarmantes de poluição, medida através da concentração dos gases monóxido de carbono e ozônio. [...] Na determinação do emprego, trabalho, custos e mecanização da colheita da cana-de-açúcar em uma usina considerada avançada tecnologicamente neste sistema e ligada à Copersucar, Romanach & Caron (1999 p. 54) citam que do total de trabalhadores, 40,6% trabalham na colheita da cana. Estimando-se que 85% da área cultivada venha a ser mecanizável e, considerando o atual perfil de rendimento dos trabalhadores, haverá uma redução de 44,57% no número de funcionários envolvidos na colheita. Com a adoção do corte mecanizado em cana crua, haverá uma diminuição de demanda quantitativa de mão de obra, porém por trabalhadores melhor qualificados. É importante ainda salientar que os efeitos sobre o emprego decorrem da necessidade de mecanização no corte, em razão da eliminação gradativa do uso do fogo como método despalhador no corte de cana-de-açúcar, em cumprimento à legislação. Foi levantado em cada usina o total colhido em toneladas na safra, separando por corte manual e mecânico, com e sem queima prévia. Com isso, pode-se saber quanto cada sistema está sendo utilizado por cada agroindústria. Para cada unidade produtora, foi estimado o total de toneladas/homem/ ano de cana colhida manualmente no processo com queima prévia e o total em toneladas/máquina/ano de cana colhida sem queima. Também o equivalente de fiscais, medidores, mecânicos, técnico de produção, operadores e outros em cada sistema de corte. De posse desta informação e da quantidade necessária a ser colhida sem queima por cada período, foi calculada a quantidade de trabalhadores substituídos e contratados pela aquisição de novas colhedoras.

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Quadro 03 – Quantidade de cana a ser cortada sem queima prévia por período, conforme exigência da Lei nº 11.241, na Usina I. Variáveis Ton. Programadas – conf. a lei Toneladas a cortar Corte mecânico S/Q – atual A cortar mecan. S/Q atual A cortar mecan. S/Q área mecan. t/maquina/ano Máquinas necessárias Total novas máquinas t/homem/ano –c/queima Equivalente/homens Fiscal (1/85) Medidores (1/43) Operadores (3,75/maq.) Líder Colmec (1/5) Mecânicos (3,34/maq) Abastecedor/lubrificador Técnico – Colmec (1/5 maq) Emprego líquido Emprego líquido acumulado

Fonte: Levantamento feito na usina

2002 A 2006 30%

2007 A 2011 50%

2012 A 2016 80%

2017 A 2021 100%

1.199.612,70 1.199.612,70 507.914,00 691.698,70

1.999.354,40 799.741,70 339.421,30

3.198.967,00 1.199.612,60 -

3.998.708,80 799.741,80 -

100.000,00 -

460.320,40 100.000,00 05 05 1.203,50 383 -5 -9 + 19 +1 + 17 +1 +1 - 358 - 358

1.199.612,60 100.000,00 12 17 1.203,50 997 - 12 - 23 + 45 +2 + 34 +2 +2 - 947 - 1.305

799.741,80 100.000,00 8 25 1.203,50 665 -8 - 15 + 30 +2 + 17 +2 +2 - 635 - 1.940

O impacto econômico e social já poderá ser sentido no primeiro período, pois será necessário até 2006 a substituição de 138 trabalhadores. E, se se levar em conta que normalmente trabalham no corte o casal de uma mesma família, os fatores negativos são ainda maiores. As projeções para análise estão detalhadas no Quadro 04. Pode-se inferir sobre os resultados apresentados para as duas agroindústrias, que são preocupantes as conseqüências econômicas e sociais negativas a partir de 2006, principalmente em 2011. O impacto dependerá da tomada de decisão por parte dos empresários do setor, ou seja, se farão as mudanças no processo de corte da cana gradativamente ou de uma só vez. A mecanização na colheita da cana-de-açúcar pode ser considerada um caminho sem volta. Este sistema deverá ter cada vez mais participação na cultura canavieira, em grande parte para atender exigências da Lei nº 11.241 de 19 de setembro de 2002, que regulamenta os procedimentos da queimada da palhada da cana. Essa lei já está em vigor e exige a redução da área queimada a cada 5 anos. Portanto, a saída deverá ser o corte mecanizado em cana sem queima prévia. Considerando a utilização das colhedoras no processo de corte em cana sem queima prévia, há de se pensar no destino dos cortadores. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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Na cultura da cana, ainda que em processo inicial e experimental, já estão sendo utilizadas as plantadoras de cana na renovação de áreas. Segundo seus fabricantes, uma plantadora equivale ao trabalho de 10 homens. Outras culturas também estão utilizando cada vez mais a mecanização na colheita e buscando o 8 desenvolvimento de colhedoras mais eficientes como no algodão, café, laranja e outros. Mas, no cultivo da cana-de-açúcar, o impacto do desemprego aparece mais, devido à quantidade de trabalhadores envolvidos no processo de colheita. É uma mão de obra desqualificada para a maioria das outras atividades agrícolas e urbanas.” 13

Como dito, o impacto social causado pelo desemprego em massa que se avizinha será largamente experimentado por toda a sociedade, mas principalmente pelos trabalhadores rurais, na maioria das vezes, sem instrução e qualificação para ocuparem melhores postos de trabalho, impondo-se às empresas exploradoras de tal mão de obra o cumprimento dos preceitos legais destinados à proteção dos trabalhadores. Conforme já asseverado, prescreve o Art. 35 da Lei n.º 4.870, de 01 de dezembro de 1965: “Art 35. A parcela resultante do percentual estabelecido na alínea b do art. 23 será aplicada em programas de assistência social aos trabalhadores da agro-indústria canavieira, tendo por objeto: a) higiene e saúde, por meio de assistência médica, hospitalar e farmacêutica, bem como à maternidade e à infância, complementando a assistência prestada pelas usinas e fornecedores de cana; b) complementação dos programas de educação profissional e de tipo médio gratuitas; c) estímulo e financiamento a cooperativas de consumo; 13 VIEIRA, Gilberto e SIMON, Elias José. POSSÍVEIS IMPACTOS DA MECANIZAÇÃO NO CORTE DA CANA-DE-AÇÚCAR, EM CONSEQÜÊNCIA DA ELIMINAÇÃO GRADATIVA DA QUEIMA DA PALHA.. Disponível em 14/10/2010 no endereço eletrônico: http://www.sober.org.br/palestra/2/932.pdf.

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d) financiamento de culturas de subsistência, nas áreas de terras utilizadas pelos trabalhadores rurais, de acordo com o disposto no artigo 23, do Decreto-lei nº 6.969, de 19 de outubro de 1944; e) promoção e estímulo de programas educativos, culturais e de recreação.”

É evidente, que tal dispositivo coaduna-se com os preceitos erigidos ao plano constitucional, referentes à livre iniciativa e à função social da propriedade, conforme colacionado a seguir: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituise em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; [...]” “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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II - propriedade privada; III - função social da propriedade; [...] VIII - busca do pleno emprego; [...]” “Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.”

Não há dúvidas quanto ao destaque conferido pela sociedade contemporânea aos valores representados pelas normas acima reproduzidas, quais sejam, meio ambiente equilibrado, dignidade da pessoa humana, função social da propriedade etc. Assim, destaca-se que no caso em análise, não há sequer a necessidade do implemento de um juízo de ponderação entre os valores comentados, bastando apenas a imposição à ré do cumprimento da legislação em vigor desde a década de 60, como alternativa para a proteção do meio ambiente, representada pela mecanização do corte da cana-de-açúcar, paralelamente com a proteção da dignidade dos indivíduos que verão serem extintos seus postos de trabalho, através da aplicação dos recursos do Programa de Assistência Social, possibilitando sua qualificação e reinserção no mercado de trabalho em atividades menos penosas. 308

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Como visto, o Programa de Assistência Social é a alternativa para que se verifique a redução do impacto social a ser causado pela iminente mecanização do corte da cana-de-açúcar, pelo que, a obrigatoriedade do pagamento das parcelas devidas até o presente momento, bem como a aplicação da obrigação voltada para o futuro, são medidas que se impõem.

5 DA TUTELA ANTECIPADA COM A CONCESSÃO DE MEDIDA LIMINAR O artigo 12 da Lei de Ação Civil Pública (Lei n.º 7.347/85) estabelece, de forma taxativa, a possibilidade de concessão de medida liminar em feitos desse jaez, bem como o artigo 19 do referido diploma legal determina que o Código de Processo Civil é aplicável à ação civil pública “naquilo em que não contrarie suas disposições”. Como se sabe, os clássicos pressupostos do poder geral de cautela do magistrado norteiam-se pelo juízo preponderante de plausibilidade jurídica do pedido (fumus bonus iuris) e pelo perigo na demora inerente ao transcurso temporal que leva ao conhecimento exauriente judicial do conflito de interesses (periculum in mora). Quanto à plausibilidade jurídica do pedido de tutela jurisdicional reportamo-nos aos tópicos anteriores, especialmente, itens 3 e 4, onde apontamos a recepção pelo atual texto constitucional e a legalidade, ou melhor, o compromisso ético do direito ao programa de assistência social do trabalhador da agroindústria canavieira. No que pertine ao perigo na demora inerente à prestação jurisdicional de conhecimento exauriente são necessários outros esclarecimentos complementares. Como vimos, após a extinção do Instituto do Açúcar e do Álcool em 1990, tão-somente em 1995, por meio de um Convênio Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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com o Estado de São Paulo, que foi restaurada a fiscalização efetiva da elaboração e execução do plano de assistência social (PAS). Mas não é tudo. Não bastassem os cinco anos de limbo fiscalizatório protagonizado pela União de 1990 a 1995, o aludido Convênio expirou em setembro de 2000, perpetuando-se a ilegal omissão fiscalizatória da União até os dias de hoje. Assim, resta clara a ilegal omissão da União em decorrência do dever legal fiscalizatório atribuído atualmente ao Ministério da Agricultura, nos termos do art. 36 da Lei 4.870/65 c.c. o art. 27, inciso I e alínea ‘p’, da Lei 10.683/2003. Por essas razões, que o pleito de natureza antecipatória torna-se ainda mais indispensável para o efetivo exercício da função jurisdicional, vez que já vivemos mais de dez anos de limbo fiscalizatório da União, recaindo o cumprimento do direito dos trabalhadores da agroindústria canavieira ao exclusivo alvitre dos tomadores de serviços do setor e às inerentes oscilações do mercado. Assim sendo, caso não haja decisão judicial antecipatória e o trâmite processual venha a se arrastar, como decerto se arrastará, a situação degradante e insalubre de boa parte dos trabalhadores da agroindústria se perpetuará por outros anos a fio. Ressalte-se, por fim, que os recursos que formam a receita do PAS são fruto da própria atividade econômica da agroindústria canavieira, ou seja, originam-se da aplicação de 1% do açúcar, 2% do álcool e 1% da cana-de-açúcar produzidos, sendo que, a inexistência de recolhimento concomitante à comercialização destes produtos, praticamente e por razões óbvias, inviabilizaria a sua aplicação posteriormente a título de PAS, em virtude dos montantes da receita

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da empresa que podem atingir os valores devidos14, prejudicando a eficácia material que deve nortear a função jurisdicional. Neste sentido, como bem colocou Carnelutti15, “o tempo é inimigo do direito, contra o qual o juiz deve travar uma guerra sem tréguas”, razões pelas quais pleiteamos a tutela acautelatória.

6 DA TUTELA INIBITÓRIA COM A FIXAÇÃO DE MULTA COMINATÓRIA A presente demanda apresenta pedidos de condenações em obrigações de fazer que, classicamente, resolviam-se em perdas e danos. Ocorre que há muito já se entende que o processo deve visar a execução específica de tais obrigações. O próprio legislador vem dando mostras da prevalência dos princípios da efetividade, adequação e tempestividade do processo, propiciando à prestação jurisdicional maior utilidade prática. Parte-se da premissa de que o direito de acesso ao Judiciário apresenta inegável conteúdo material, sendo direito ao processo justo, cujas formalidades possuem a finalidade de que as decisões judiciais possam ser percebidas no meio social, de maneira a recuperar a credibilidade do Poder Judiciário enquanto instituição propulsora de justiça.

14 Como exemplo, na hipótese da não concessão de medida cautelar, imaginemos que o trânsito em julgado venha ocorrer após 48 meses após a propositura da inicial. Neste caso, a dívida social da empresa a título de PAS alcançará por volta de 48% da produção total de açúcar, 96% da produção de álcool e 48% da produção de cana-de-açúcar. 15 Francesco Carnelutti apud Candido Rangel Dinamarco. A Reforma do Código de Processo Civil. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 138.

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E tanto maior será a justiça e a efetividade da função jurisdicional quanto maior for a aproximação entre a pretensão ética e lícita e a decisão judicial. Por outras palavras, deve-se buscar a correspondência integral entre o direito violado e o objeto da decisão judicial. Posto isto, anotamos que ambas as obrigações de fazer tratadas nesta ação são infungíveis, ou seja, não podem ser prestadas por terceiros. Desse modo, mostra-se patente, no caso em apreço, a necessidade da fixação de multa cominatória, como instrumento coercitivo complementar, a fim de viabilizar o efetivo cumprimento da prestação jurisdicional antecipatória e de mérito. Quanto à possibilidade de multa cominatória em ação civil pública, apontamos que o art. 11 da Lei da Ação Civil Pública, expressamente, a prevê. Diante do exposto, é inafastável a conclusão de que, em homenagem aos princípios do acesso ao Judiciário em seu sentido material, bem como da efetividade, adequação e tempestividade do processo, com fundamento no art. 11 da Lei 7.347/85 e no art. 461, §§ 3º e 4º do CPC, a execução das obrigações de fazer objeto desta ação devem ser cumpridas pelos réus de maneira específica, sob pena de multa diária.

7 DOS PEDIDOS ANTECIPATÓRIOS Uma vez demonstrada a verossimilhança dos pedidos e a urgência da tutela, o MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO e o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL vindicam a concessão antecipada dos efeitos da tutela, em sede liminar e sem justificação prévia, a determinação para que: 312

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a) a ré CENTRAL ENERGÉTICA VICENTINA LTDA, sob pena de multa diária na importância mínima de R$ 100.000,00 (cem mil reais), seja compelida a: a.1) a partir das notificações, deposite em conta judicial específica, mensalmente, os valores referentes a 1% do total do açúcar produzido e comercializado, 2% do total do álcool produzido e comercializado e 1% do total de cana-de-açúcar produzida e comercializada, a fim de garantir o efetivo adimplemento do plano de assistência social em prol trabalhadores da agroindústria canavieira quando da tutela de conhecimento exauriente, nos termos do art. 12 da Lei Lei 7.347/85; a.2) a elaborar e demonstrar a execução do plano de assistência social preconizado legalmente, de modo a prestar serviços de assistência médica, hospitalar, farmacêutica e social aos trabalhadores industriais e agrícolas da agroindústria canavieira, aplicando, mensalmente, 1% do total do açúcar produzido e comercializado, 2% do total do álcool produzido e comercializado e 1% do total de cana-de-açúcar produzida e comercializada, nos termos do art. 36, alíneas e parágrafos, da Lei 4.870/65; b) a UNIÃO, por meio da atuação conjunta do Ministério da Agricultura e Pecuária e do Ministério do Trabalho e Emprego, fiscalize a ré CENTRAL ENERGÉTICA VICENTINA LTDA, quanto à elaboração e execução concreta do plano de assistência social (PAS) em prol dos trabalhadores da agroindústria canavieira, nos termos do 36, alíneas e parágrafos, da Lei 4.870/65 c.c. o art. 27, alíena ‘p’, da Lei 10.683/2003;

8 DOS PEDIDOS DEFINITIVOS Em face do exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO e o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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vindicam a confirmação da tutela por ventura antecipada ou, em caso de indeferimento da liminar, sua apreciação e concessão em definitivo. Os Órgãos Ministeriais autores requerem ainda: a) A condenação da ré ao pagamento das parcelas vencidas referentes ao Programa de Assistência Social, desde o mês de outubro de 2000 (data em que deixou de ocorrer a fiscalização), até os dias atuais, atendendo-se aos percentuais previstos no Art. 36 da Lei n.º 4.870, de 01 de dezembro de 1965. prazo legal;

b) a citação da ré para apresentar resposta, querendo, no

c) a produção de todos os meios de prova admitidos em direito, especialmente audiência de testemunhas, pericial e juntada de novos documentos; d) a condenação da ré ao ônus da sucumbência e demais despesas processuais;. Dá-se à presente para os efeitos legais o valor estimado de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais). Dourados/MS, 20 de outubro de 2010. PAULO DOUGLAS ALMEIDA DE MORAES Procurador do Trabalho MARCO ANTONIO DELFINO DE ALMEIDA Procurador da República

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PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA DO TRABALHO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 24ª REGIÃO PROC. N. 0000233-30.2010.5.24.0106-RO.1

ACÓRDÃO Tribunal Pleno Relator: Revisor: Recorrente: Recorrida: Advogados: Recorrida: Procurador: Origem:

Des. ANDRÉ LUÍS MORAES DE OLIVEIRA Juiz ADEMAR DE SOUZA FREITAS (GDAJ) MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO CENTRAL ENERGÉTICA VICENTINA LTDA. Renato César Bezerra Alves e outro UNIÃO (PROCURADORIA-GERAL DA UNIÃO) Arlindo Icassati Almirão Vara do Trabalho de Fátima do Sul/MS IMPLEMENTAÇÃO DO PROGRAMA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (PAS) - LEI N. 4.870/1965 - COMPETÊNCIA MATERIAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO. A Lei n.4.870/1965, ao impor a obrigação de fazer aos produtores de cana, açúcar e álcool para com os trabalhadores e, em especial, no âmbito da higiene, saúde e educação profissional, criou verdadeira obrigação de natureza trabalhista, própria do direito coletivo do trabalho. Recurso provido para reconhecer a competência desta Justiça Especializada.

Vistos, relatados e discutidos estes autos (PROC. N. 0000233-30.2010.5.24.0106-RO.1) nos quais figuram como partes as epigrafadas. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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Inconformado com a r. decisão de f. 294-296, proferida pelo Exmo. Juiz do Trabalho Noedi Francisco Arosi, que reconheceu a incompetência absoluta em razão da matéria da Justiça do Trabalho para o processamento e julgamento da ação civil pública, recorre ordinariamente o Ministério Público do Trabalho a este Egrégio Tribunal, pelo arrazoado de f. 305320, pretendendo reforma. Contrarrazões apresentadas às f. 321-332, pela primeira recorrida, e às f. 333-345, pela segunda. Em razão do que prescreve o artigo 80 do Regimento Interno, os autos não foram encaminhados ao d. Ministério Público do Trabalho. É o relatório.

VOTO

1 – CONHECIMENTO Presentes os pressupostos processuais de admissibilidade, conheço do recurso e de ambas as contrarrazões.

2 – MÉRITO 2.1 ABSOLUTA

EXCEÇÃO

DE

INCOMPETÊNCIA

Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo d. parquet em face da Central Energética Vicentina e da União, objetivando a imposição da obrigação de implementação e fiscalização do PAS - Plano de Assistência Social – prevista na Lei n. 4.780/1965, nos 316

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programas assistenciais destinados aos trabalhadores da agroindústria canavieira. O juízo, acolhendo a exceção de incompetência em razão da matéria, erigida pela primeira ré, determinou a remessa dos presentes autos à Justiça Federal da 3ª Região, Circunscrição Dourados; assentou sua decisão no fato de o pedido desta demanda reflexamente relacionar-se a uma relação de trabalho, à medida que o favorecido pela implementação do plano supra é uma categoria específica; ou seja, não se discutia nenhuma relação de trabalho em particular, mas apenas a instituição de benefícios assistenciais dirigidos à categoria profissional dos trabalhadores em empresas sucroalcooleiras. Irresignado, sustenta o autor que por se ar de obrigação de fazer oriunda e decorrente da relação de trabalho, a matéria encontra-se incluída na competência desta Justiça Especializada, com espeque no artigo 114, I e IX, da Constituição Federal. Razão lhe assiste. Em sua peça de ingresso, o d. parquet expendeu as seguintes considerações: A finalidade da norma sob comento, assim como de uma vasta gama de dispositivos infralegais que se sucederam quanto à exigibilidade de elaboração de um plano de assistência social voltado à melhoria das condições sociais e de saúde dos trabalhadores em empresas sucroalcooleiras, consiste exatamente no incremento das ações sociais pelo setor privado da economia, tal como permite a Lei nº 8.742, de 07-12-1993 (LOAS). (...) A obrigação para com o PAS apresenta cunho essencialmente assistencial, e natureza jurídica social, porquanto voltada às necessidades básicas dos trabalhadores ligados à indústria e agricultura canavieira, traduzindo-se mais como uma Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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obrigação de fazer dos usineiros e afins, frente à Seguridade Social, do que como uma obrigação de dar coisa certa (f.4).

Sustentou, ainda, que a causa de pedir remota é a própria relação de trabalho e o pedido é de caráter estritamente trabalhista, pois consiste em uma prestação assistencial a ser implementada pelas Usinas em benefício dos seus trabalhadores. Tal obrigação poderia muito bem constar de um acordo ou convenção coletiva, conforme com diversas outras obrigações semelhantes. Mas decorre, no caso, de dispositivo legal (art. 36 da Lei 4.870/65), o que só reforça o seu teor obrigacional (f. 7-8). De fato, o PAS – Plano de Assistência Social aos Trabalhadores da agroindústria canavieira – foi instituído pela Lei n. 4.870, de 1º.12.1965, cujo artigo 36 dispõe, litteris: Art. 36. Ficam os produtores de cana, açúcar e álcool obrigados a aplicar, em benefício dos trabalhadores industriais e agrícolas das usinas, destilarias e fornecedores, em serviços de assistência médica, hospitalar, farmacêutica e social, importância correspondente no mínimo, às seguintes percentagens: a) de 1% (um por cento) sobre preço oficial de saco de açúcar de 60 (sessenta) quilos, de qualquer tipo, revogado o disposto no artigo 8º do Decreto-Lei nº 9.827, de 10 de setembro de 1946; b) de 1% (um por cento) sobre o valor oficial da tonelada de cana entregue, a qualquer título, às usinas, destilarias anexas ou autônomas, pelos fornecedores ou lavradores da referida matéria; c) de 2% (dois por cento) sobre o valor oficial do litro de álcool de qualquer tipo produzido nas destilarias. § 1º Os recursos previstos neste artigo serão aplicados diretamente pelas usinas, destilarias e fornecedores de cana, individualmente ou através das respectivas associações 318

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de classe, mediante plano de sua iniciativa, submetido à aprovação e fiscalização do I.A.A. § 2º Ficam as usinas obrigadas a descontar e recolher, até o dia 15 do mês seguinte, a taxa de que trata a alínea b deste artigo, depositando seu produto em conta vinculada, em estabelecimento indicado pelo órgão específico da classe dos fornecedores e à ordem do mesmo. O descumprimento desta obrigação acarretará a multa de 50% (cinqüenta por cento) da importância retida, até o prazo de 30 (trinta) dias, e mais 20% (vinte por cento) sobre aquela importância, por mês excedente. § 3º A falta de aplicação total ou parcial, dos recursos previstos neste artigo, sujeita o infrator à multa equivalente ao dobro da importância que tiver deixado de aplicar.

Outrossim, o objeto do plano de assistência social foi estabelecido pelo artigo 35 da referida lei: Art. 35. A parcela resultante do percentual estabelecido na alínea “b” do art. 23 será aplicada em programas de assistência social aos trabalhadores da agro-indústria canavieira, tendo por objeto: a) higiene e saúde, por meio da assistência médica, hospitalar e farmacêutica, bem como à maternidade e à infância, complementando a assistência prestada pela usina e fornecedores de cana; b) complementação dos programas de educação profissional e de tipo médio gratuitas; c) estímulo e financiamento a cooperativas de consumo; d) financiamento de culturas de subsistência, nas áreas de terras utilizadas pelos trabalhadores rurais, de acordo com o disposto no art. 23, do Decreto-Lei nº 6.969, de 19 de outubro de 1944; Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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e) promoção e estímulo de programas educativos, culturais e de recreação.

Exsurge dos dispositivos citado a instituição de obrigação de fazer materializada na implementação de um conjunto de benefícios e serviços de assistência médica, hospitalar, farmacêutica e social aos trabalhadores das usinas, destilarias e fornecedores, a ser realizada pelos produtores de cana, açúcar e álcool – aplicando-se uma porcentagem da receita em benefício dos trabalhadores -, com a efetiva obrigação de fiscalizar a elaboração e execução desse plano pela União. Sobressai dos termos da norma a ausência de natureza tributária por não albergar os pressupostos insertos no artigo 3º do CTN, realçando-se desse contexto duas situações: Primo, considerando as características peculiares dos serviços prestados no setor canavieiro – os quais podem gerar efeitos nocivos aos trabalhadores –, interveio o Estado no domínio econômico e impeliu os empresários desse setor a custear e prestar assistência social aos seus trabalhadores, em manifesto compasso com o princípio da solidariedade social insculpido nos artigos 194 e 195 da Constituição Federal. Outrossim, a Lei n. 8.742, de 7.12.1993, que dispõe acerca da organização da assistência social, preconiza em seu artigo 1º, in verbis: A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas (grifo nosso).

Segundo, infere-se que o referido artigo 36, ao corporificar um conjunto de benefícios e serviços assistenciais aos trabalhadores da agroindústria canavieira, visando à melhoria da 320

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condição social desses, assinalou verdadeira obrigação de fazer, com o escopo de resguardar e assistir esses trabalhadores, não podendo ser caracterizada como obrigação tributária. De fato, o tributo significa prestação pecuniária com a entrega de dinheiro ao Estado, cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada, e a presente temática aborda obrigação de fazer consistente em elaborar um plano de assistência para aplicação direta dos recursos monetários, imposta àqueles que explorem usinas e destilarias de cana, sendo beneficiária a classe dos trabalhadores integrantes da agroindústria canavieira. Registre-se, ainda, que a elaboração do plano de assistência social prescinde de base de cálculo. A Lei n. 4.870/1965, ao impor a obrigação de fazer aos produtores de cana, açúcar e álcool para com os trabalhadores e, em especial, no âmbito da higiene, saúde e educação profissional, criou verdadeira obrigação de natureza trabalhista, própria do direito coletivo do trabalho. Se é verdade que as fontes autônomas do direito laboral, mediante a participação dos destinatários principais, criam obrigações no âmbito das relações de trabalho, é certo que o Estado - na condição de agente externo - como no presente caso, estabeleceu, sponte sua, normas autônomas na seara do direito coletivo do trabalho, normas estas que necessitam apenas ser executadas. Nesse passo, é translúcido que o presente debate está no âmago do direito laboral, pois se consubstancia na tutela coletiva do direito dos trabalhadores para implementar referido programa social, razão pela qual dou provimento ao recurso para reconhecer a competência desta Justiça Especializada para apreciar o pleito lançado na inicial e determinar, por corolário, o retorno dos autos à vara de origem a fim de julgar o mérito, como entender de direito. POSTO ISSO Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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ACORDAM os Desembargadores do Egrégio Tribunal Regional do Trabalho da Vigésima Quarta Região, por unanimidade, em aprovar o relatório e conhecer do recurso e de ambas as contrarrazões; no mérito, por maioria, dar-lhe provimento para reconhecer a competência desta Justiça Especializada para apreciar o pleito lançado na inicial e determinar, por corolário, o retorno dos autos à vara de origem a fim de julgar o mérito, como entender de direito, nos termos do voto do Desembargador André Luís Moraes de Oliveira (relator), vencidos o Juiz Convocado Ademar de Souza Freitas (revisor) e os Desembargadores João de Deus Gomes de Souza e Ricardo Geraldo Monteiro Zandona. Juntará voto vencido o Juiz revisor e voto convergente o Desembargador Francisco das C. Lima Filho. O Desembargador Amaury Rodrigues Pinto Junior, ausente por motivo justificado, havia proferido seu voto na sessão do dia 8.8.2011. OBSERVAÇÃO: O Dr. Jéferson Pereira, representando o Ministério Público do Trabalho, havia feito sustentação oral na sessão realizada na data acima. Campo Grande, 29 de setembro de 2011.

ANDRÉ LUÍS MORAES DE OLIVEIRA Desembargador Federal do Trabalho Relator

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VOTO CONVERGENTE1

2 – MÉRITO 2.1 ABSOLUTA

EXCEÇÃO

DE

INCOMPETÊNCIA

Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO em face da empresa CENTRAL ENERGÉTICA VICENTINA e da UNIÃO, tendo por objeto a implantação do Plano de Assistência Social previsto na Lei n.º 4.870, de 1º.12.1965, que dispôs sobre a produção açucareira, a receita do Instituto do Açúcar e do Álcool e sua aplicação e outras providências. Pretende a “condenação da ré ao pagamento das parcelas vencidas referentes ao Programa de Assistência Social, desde o mês de outubro de 2000 (data em que deixou de ocorrer a fiscalização), até os dias atuais, atendendo-se aos percentuais previstos no Art. 36 da Lei nº 4.870, de 01 de dezembro de 1965” (f. 38). Pugna, ainda, para que a UNIÃO seja compelida a fiscalizar a execução do aludido plano. A primeira demandada arguiu a incompetência da Justiça do Trabalho, ao argumento de se tratar de obrigação tributária, o que atrairia a competência da Justiça Federal Comum para o processo e julgamento do pedido. Data venia, não colhe a tese sustentada pela demandada. Com efeito. 1 Voto de desempate que definiu o julgamento do recurso ordinário.

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O Plano de Assistência Social foi instituído por força da Lei n.º 4.870, de 1º de dezembro de 1965. Prevê esse Diploma normativo: Art. 35. A parcela resultante do percentual estabelecido na alínea b do art. 23 será aplicada em programas de assistência social aos trabalhadores da agroindústria canavieira, tendo por objeto: a) higiene e saúde, por meio de assistência médica, hospitalar e farmacêutica, bem como à maternidade e à infância, complementando a assistência prestada pela usinas e fornecedores de cana; b) complementação dos programas de educação profissional e de tipo médio gratuitas; c) estímulo e financiamento a cooperativas de consumo; d) financiamento de culturas de subsistência, nas áreas de terras utilizadas pelos trabalhadores rurais, de acordo com o disposto no art. 23, do Decreto-lei nº 6.969, de 19 de outubro de 1944; e) promoção e estímulo de programas educativos, culturais e de recreação. Art. 36. Ficam os produtores de cana, açúcar e álcool obrigados a aplicar, em benefício dos trabalhadores industriais e agrícolas das usinas, destilarias e fornecedores, em serviços de assistências médica, hospitalar, farmacêutica e social, importância correspondente no mínimo, às seguintes percentagens: a) de 1% (um por cento) sobre preço oficial de saco de açúcar de 60 (sessenta) quilos, de qualquer tipo, revogado o disposto no art. 8º do Decreto-lei nº 9.827, de 10 de setembro de 1946;

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b) de 1% (um por cento) sobre o valor oficial da tonelada de cana entregue, a qualquer título, às usinas, destilarias anexas ou autônomas, pelos fornecedores ou lavradores da referida matéria; c) de 2% (dois por cento) sobre o valor oficial do litro de álcool de qualquer tipo produzido nas destilarias. § 1º Os recursos previstos neste artigo serão aplicados diretamente pelas usinas, destilarias e fornecedores de cana, individualmente ou através das respectivas associações de classe, mediante plano de sua iniciativa, submetido à aprovação e fiscalização do I.A.A. § 2º Ficam as usinas obrigadas a descontar e recolher, até o dia 15 do mês seguinte, a taxa de que trata a alínea “b” deste artigo, depositando seu produto em conta vinculada, em estabelecimento indicado pelo órgão específico da classe dos fornecedores e à ordem do mesmo. O descumprimento desta obrigação acarretará a multa de 50% (cinqüenta por cento) da importância retida, até o prazo de 30 (trinta) dias, e mais 20% (vinte por cento) sobre aquela importância, por mês excedente. § 3º A falta de aplicação total ou parcial, dos recursos previstos neste artigo, sujeita o infrator à multa equivalente ao dobro da importância que tiver deixado de aplicar. Art. 37. Na execução do programa de assistência social, o I.A.A. coordenará, sempre que possível, sua atividade com os órgãos da União, dos Estados e dos Municípios e de entidades privadas que sirvam aos mesmos objetivos e procurará conjugá-la com os planos de assistência de que trata o artigo anterior.

Sem adentrar ao mérito da questão, porém não ignorando as alterações imprimidas na aludida Lei por força do Decreto - Lei n.º 308, de 28.2.1967, vê-se facilmente que as normas acima citadas atribuíram aos produtores de cana, açúcar e álcool a obrigação de oferecer e custear serviços de assistência médica, hospitalar, Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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farmacêutica e social em benefício dos trabalhadores industriais e agrícolas das usinas, destilarias e fornecedores. Como se percebe, ao contrário do sustentado pela demandada e acolhido pela decisão recorrida, não se trata de norma de natureza tributária. Deveras, de acordo com o disposto no Código Tributário Nacional - Lei n.º 5.172/66: Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

De pronto se percebe que a obrigação criada pela Lei n. 4.870/65 não se amolda ao que previsto no art. 3º do Código Tributário Nacional. De acordo com o magistério de Geraldo Ataliba2 Juridicamente define-se tributo como obrigação jurídica pecuniária, ex lege, que não se constitui em sanção de ato ilícito, cujo sujeito ativo é uma pessoa pública (ou delegado por lei desta), e cujo sujeito passivo é alguém nessa situação posto pela vontade da lei, obedecidos os desígnios constitucionais (explícitos ou implícitos).

Para o aludido jurista, o elemento legal da prestação pecuniária se traduz no “comportamento do sujeito passivo consistente em levar dinheiro ao sujeito ativo”3. Não discrepa desse entendimento Aliomar Baleeiro4 ao lembrar que a “base de cálculo de um tributo é a ordem de grandeza que, posta 2 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 34. 3 ATALIBA, Geraldo. Ob. cit. p. 35. 4 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008

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na conseqüência da norma criadora do tributo, presta-se a mensurar o fato descrito na hipótese, possibilitando a quantificação do dever tributário, sua graduação proporcional à capacidade contributiva do sujeito passivo e a definição da espécie tributária”. Com o devido respeito ao que entendido na origem e no Conflito de Competência n.º 107.638 (2009/0161275-8) perante o Colendo STJ5, a Lei n. 4.870/65 não criou qualquer obrigação de natureza tributária ao atribuir aos produtores de cana, açúcar e álcool a obrigação de entregar dinheiro ao Estado ou a quem por este delegado, pressuposto para que pudesse ser considerada como tributária. Em uma primeira leitura aquela norma poderia levar o aplicador a tê-la como contribuição social na forma prevista no art. 149 do Texto Maior. Entretanto, criterioso labor hermenêutico leva a conclusão de que também não poderia ser assim considerada, na medida em que na verdade o devedor da obrigação não recolhe nenhum valor a qualquer entidade estatal. De fato, o valor previsto na norma instituidora daquela obrigação deve ser aplicado “diretamente pelas usinas, destilarias e fornecedores de cana, individualmente ou através das respectivas associações de classe”, tendo a União apenas a obrigação de fiscalizar o exato cumprimento da determinação legal, evidenciando, sob a perspectiva jurídica, que ela não tem a natureza de contribuição social, na forma do que exigido pelo citado art. 149 do Texto Maior. Averba Luciano Amaro6 que as contribuições sociais para intervenção no domínio econômico somente podem destinar-se a p.65. 5 DJE de 2.2.2011. 6 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. São Paulo; Saraiva, 2009, p. 54-55. No mesmo sentido vide ainda BRITO MACHADO, Hugo de. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 73.

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instrumentar a atuação da União no domínio econômico, financiando os custos e encargos pertinentes. Vale dizer: devem ser recolhidas ao Poder Público para financiar os custos e encargos dessa intervenção, o que não se dá no caso da obrigação prevista na Lei n. 4.870/65, pois a União tem apenas o dever de fiscalizar a aplicação dos recursos, a ser levada a efeito pelas próprias empresas produtoras de cana, açúcar e álcool, descaracterizando a pretensa natureza tributária daquela obrigação. Aliás, a natureza não tributária da obrigação está expressa no art. 28, § 9º, “o”, da Lei n. 8.212/91, data venia. Feitas essas considerações, cumpre precisar a natureza jurídica da obrigação contida na norma do art. 36 da citada Lei n. 4.870/65 a fim de se saber se a pretensão deduzida pelo autor encontra-se ou não enquadrada na norma do art. 114 da Carta da República. Com o devido respeito ao que entendido na origem, parece possível entender que a norma do art. 36 da aludida Lei 4.870/65 criou uma obrigação de fazer, na medida em que incumbiu aos empresários do setor da produção de cana, açúcar e álcool, a tarefa de aplicar certos valores ou percentuais em programas de incentivo à qualificação e habilitação profissional dos trabalhadores nesse setor e ainda na educação e proteção da saúde no ambiente laboral. Portanto, criou não uma obrigação tributária, pois os empresários nada recolhem aos cofres da União, porque são eles próprios os responsáveis pela elaboração e execução dos programas previstos na norma, tendo o Poder Público apenas o dever de fiscalizar a aplicação dos recursos que também serão administrados pelos próprios empresários, embora depositados “em conta vinculada, em estabelecimento indicado pelo órgão específico da classe dos fornecedores e à ordem do mesmo”. Trata-se, pois, de típica obrigação de fazer, no sentido do escólio doutrinário de Caio Mário da Silva Pereira7, para quem 7 SILVA PEREIRA, Caio Mário da. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense,

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essa espécie de obrigação consiste em espécie de ato positivo “que se concretiza genericamente em um ato do devedor”. De outro lado, a obrigação de fazer imposta pela mencionada norma tem como causa remota o trabalho e o ambiente em que este deve ser executado, tendo como objetivo qualificar e profissionalizar os trabalhadores para serem inseridos nas próprias empresas do setor de produção de cana, açúcar e álcool, com implementação de programas de saúde ligados à assistência médica e hospitalar, farmacêutica e social. Encontra, pois, fundamento no que previsto no art. 7º, inciso XXII, do Texto Supremo, prevendo a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”, direito esse que guarda íntima relação com o meio ambiente do trabalho, garantido a todos os trabalhadores. Nessa linha de pensar, a obrigação de fazer prevista na Lei no art. 36 da Lei n. 4.870/1965 atende ao aludido mandamento constitucional por ela recepcionada, que garante um meio ambiente saudável e seguro, aí incluído o ambiente laboral, pois objetiva ofertar condições de assistência social médico-hospitalar, ou seja, tem por escopo preservar a qualidade de vida e saúde dos trabalhadores industriais e agrícolas das usinas, destilarias e fornecedores, revelando assim, uma dimensão do princípio da dignidade da pessoa humana. Trata-se de norma tutelar de direitos sociais ligados ao trabalho e ao meio ambiente laboral, devendo ainda ser interpretada em harmonia com o disposto no art. 225 da Lei Maior. Lembra Gomes Canotilho8, que as consequências de uma proteção integrada ao meio ambiente e a todos seus integrantes, 2003, v. II, 2003, p. 58. 8 GOMES CANOTILHO, José Joaquim. Estado Constitucional Ecológico e Democracia Sustentada. In: Estudos de Direito Constitucional em homenagem a José Afonso da Silva. Eros Roberto Grau et al (Coord). São Paulo: Malheiros, 2003, p. 102-110.

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são relevantes sob vários aspectos, pois o bem protegido – “bem ambiente” – tem subjacente uma concepção ampla de ambiente que engloba não apenas o conceito de ambiente naturalista, mas o ambiente como conjunto de sistemas físicos, químicos, biológicos e as suas relações, e dos fatores econômicos, sociais e culturais com efeito direto ou indireto, mediato ou imediato, sobre os seres vivos e a qualidade de vida do Homem. Esse entendimento é compartilhado entre, outros, por Norma Sueli Padilha9, para quem “o conceito de meio ambiente é amplíssimo, na exata medida em que se associa à expressão “sadia qualidade de vida”. Trata-se, pois, de um conceito jurídico indeterminado, que, propositadamente colocado pelo legislador, visa criar um espaço positivo de incidência da norma, ou seja, ao revés, se houvesse uma definição precisa do que seja meio ambiente, numerosas situações, que normalmente seriam inseridas na órbita do conceito atual de meio ambiente, poderiam deixar de sê-lo, pela eventual criação de um espaço negativo inerente a qualquer definição”. Também comunga desse entendimento Paulo Afonso Leme Machado10 ao afirmar que: Na medida em que o ambiente é a expressão de uma visão global das intenções e das relações dos seres vivos entre eles e com seu meio, não é surpreendente que o Direito do Ambiente seja um direito de caráter horizontal, que recubra os diferentes ramos clássicos do Direito (Direito Civil, Direito Administrativo, Direito Penal, Direito Internacional), e um Direito de interações, que se encontra disperso nas várias regulamentações. Mais do que um novo ramo do Direito com seu próprio corpo de regras, o Direito do Ambiente tende a penetrar todos os sistemas jurídicos existentes para os orientar num sentido ambientalista11. 9 PADILHA, Norma Sueli. Do meio ambiente do trabalho equilibrado. São Paulo: LTr, 2002, p. 21. 10 LEME MACHADO, Paulo Afonso. Direito ambiental brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 139. 11 Também é esse o pensamento de José Afonso da Silva ao dizer que “o conceito de meio ambiente há de ser globalizante, abrangente de toda a Natureza original e artificial, bem

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Pode-se, nessa perspectiva e, tendo em conta uma visão holística do fenômeno, afirmar que o meio ambiente é constituído pela interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que proporcionem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas suas e variadas formas, ou nas oportunas palavras de Gomes Canotilho12, a noção de meio ambiente deve ser traduzida como “ambience”, vale dizer: como um “mundo humanamente construído e conformado” consistente em tudo aquilo que esteja presente na natureza, seja ou não produto da ação humana. Partindo-se dessa visão global parece correto afirmar que a norma do art. 36 da Lei n. 4.870/65 tem natureza social com forte viés no campo da profissionalização e proteção da saúde e do meio ambiente laboral, na medida em que tem por escopo, em última análise, a preservação da vida humana, atendendo à concepção holística de meio ambiente laboral, local no qual o ser humano labora, e mais que isso, a tutela nela prevista se projeta não campo coletivo, como os bens culturais correlatos, compreendendo, portanto, o solo, a água, o ar, a flora, as belezas naturais, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e arqueológico”. Para ele, o meio ambiente é compreendido pelo: ”I – meio ambiente artificial, constituído pelo espaço urbano construído, consubstanciado no conjunto de edificações (espaço urbano fechado) e dos equipamentos públicos (ruas, praças, áreas verdes, espaços livres em geral: espaço urbano aberto: II – meio ambiente cultural, integrado pelo patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico, turístico, que, embora artificial, em regra, como obra do homem, difere do anterior (que também é cultural) pelo sentido de valor especial que adquiriu ou se impregnou; III – meio ambiente natural, ou físico, constituído pelo solo, a água, o ar atmosférico, a flora, enfim, pela interação dos seres vivos e seu meio, onde se dá a correção recíproca entre as espécies destas com o meio ambiente físico que ocupam”. E como afirma o citado autor, se o meio ambiente laboral integra o meio ambiente, naquele também é indispensável preservar a qualidade de vida, o entorno laboral, por constituir uma dimensão do ambiente geral, “merece referência em separado”. SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 3, 4 e 20. Até porque, como lembra a abalizada doutrina, “se o meio ambiente que a Constituição que ver preservado é aquele ecologicamente equilibrado, bem como de uso comum do provo e essencial à sadia qualidade de vida (art. 225, caput), então o homem, a natureza que o cerca, a localidade em que vive, o local onde trabalha, não podem ser considerados como compartimentos fechados, senão como “átomos de vida”, integrados na grande molécula que se pode denominar de “existência digna”. MELO, Sandro Nahmias. Meio ambiente do trabalho: direito fundamental. São Paulo: LTr, 2001, p. 20. 12 GOMES CANOTILHO, José Joaquim. Procedimento administrativo e defesa do ambiente. RLJ, 1991, ano 123, n. 3799, p. 290.

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embora não se trate de norma de Direito Coletivo do Trabalho, pois não é fruto de vontade ou do poder normativo de qualquer categoria, data venia. De fato, o direito à integridade do meio ambiente, nele incluído o ambiente laboral, vale repetir, constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos a expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas num sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social e principalmente albergada na função social da empresa (arts. 170, III e 186, II, III e IV do Texto Constitucional). Tem, pois, natureza trabalhista porque seu principal objetivo é a qualificação profissional e a preservação da saúde do trabalhador, repercutindo no entorno laboral com o fim de preservar o prestador de serviços para as empresas do ramo da produção de cana, açúcar e álcool, revelando-se nisso o seu cariz laboral. Como lembra Celso Antonio Pacheco Firillo13, (...) nas hipóteses em que se busca o cumprimento da legislação trabalhista, em decorrência de situações que estejam a caracterizar lesão ou mesmo ameaça ao ambiente do trabalho oferecidas principalmente por empregadores, compete à Justiça do Trabalho julgar eventual conflito de interesses vinculados à defesa da saúde dentro de uma concepção que indica a tutela dos direitos materiais constitucionais metaindividuais (direitos difusos, direitos coletivos e direitos individuais homogêneos, conforme reza o art. 81, parágrafo único, I, II, e III, da Lei n. 8.078/90).

Malgrado não ter sido julgada questão similar, a Suprema Corte já decidiu que compete à Justiça do Trabalho julgar ação proposta com a pretensão de preservação do meio ambiente do 13 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. CURSO DE DIREITO AMBIENTAL BRASILEIRO, 10ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 397/399.

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trabalho, ao afirmar: Tendo a ação civil pública como causas de pedir disposições trabalhistas e pedidos voltados à preservação do meio ambiente do trabalho e, portanto, aos interesses dos empregados, a competência para julgá-la é da Justiça do Trabalho. (RE 206.220, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 16-3-1999, Segunda Turma, DJ de 17-9-1999).

Dessa forma, o litígio sobre o cumprimento da obrigação de fazer instituída pela Lei n. 4.870/1965 é oriundo da relação do trabalho, situação jurídica que se desenvolve no meio ambiente laboral, atraindo a competência da Justiça do Trabalho determinada pelo art. 114, inciso I, da Lei Maior. De outro ângulo, a atividade econômica não pode ser exercida em desarmonia com os princípios destinados a tornar efetiva a proteção ao meio ambiente, notadamente o laboral, imprescindível a tutela da vida e da integridade do prestador de serviço. Nesse quadro, e apesar de entender que a lide encontra-se madura para julgamento do mérito e com ressalva de fundamentação, acompanho o Exm.º Des. Relator para prover o recurso e reconhecer a competência material desta Justiça Especializada para processar e julgar o pedido, na forma do que previsto no art. 114, I, da Carta de 1988. Campo Grande, 29 de setembro de 2011.

FRANCISCO DAS C. LIMA FILHO Desembargador Federal do Trabalho

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Poder Judiciário Federal – Justiça do Trabalho Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região Vara do Trabalho de Mundo Novo-MS Autos do Processo 272-2010

I - RELATÓRIO1: O Ministério Público do Trabalho e o Ministério Público Federal ajuizaram a presente ação civil pública em face de Destilaria Centro Oeste Iguatemi Ltda, Usina Rio Paraná e a União, todas qualificadas nos autos, pelos fatos e fundamentos expostos na peça de ingresso, requerendo as verbas discriminadas às fls. 38/40. As requeridas comparecerem em Juízo e, não havendo acordo, apresentaram defesas escritas, acompanhadas de diversos documentos, argüindo preliminar de incompetência da justiça do trabalho, falta de interesse processual e ilegitimidade de parte, sendo que, no mérito, pugnaram pela improcedência dos pedidos. Foram produzidas apenas provas documentais. 362/382.

Sobre a defesa e documentos, manifestou o MPT às fls. Encerrada a instrução processual (ata de fls. 391). É, em apertadíssima síntese, o relatório.

1 Sentença proferida em ação movida em face da Destilaria Centro Oeste Iguatemi, da Usina Paraná e da União, nos moldes da ação proposta em face da Central Energética Vicentina, para implementação do PAS.

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II - FUNDAMENTAÇÃO: II – 1 – Incompetência da Justiça do Trabalho A União e a Destilaria Centro Oeste Iguatemi Ltda apresentaram preliminar de incompetência da Justiça do Trabalho para apreciar a presente lide. A Destilaria Centro Oeste Iguatemi sustenta que o PAS (Plano de Assistência Social), previsto na Lei 4870/65, possui “natureza tributária”, além do que estando presente a União no polo passivo, deverá ser observado o disposto no art. 109, I, da Constituição. A União alega que a controvérsia que a envolve (fiscalizar o cumprimento do PAS) teria cunho administrativo, não guardando relação com lides de natureza trabalhista. Com o devido respeito às manifestações dos requeridos e não obstante as decisões em sentido contrário colacionadas aos autos, entendo que é ululante a competência da Justiça do Trabalho. Primeiro porque o PAS não é um tributo. Pela definição legal do art. 3º do Código Tributário Nacional: “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção ao ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”. Desse conceito se extrai que se a obrigação tributária é uma obrigação pecuniária e é cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada, temos que esta é uma obrigação de dar. No caso, é inquestionável, dar dinheiro. E a obrigação para o PAS é uma obrigação de fazer. O comando legal refere-se à aplicação de recursos diretamente pelo sujeito passivo. 336

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Ademais, note-se que a lei não define a alíquota da exação, na medida em que estabelece percentual mínimo de aplicação no referido plano de iniciativas sociais. Ou seja, a estipulação do quanto aplicar cabe ao próprio devedor. Por fim, numa típica obrigação tributária o sujeito ativo é o Poder Público, que exige a prestação em dinheiro, enquanto que no caso ora discutido, a relação jurídica tem como sujeitos ativos os trabalhadores industriais e agrícolas do setor sucroalcooleiro. Segundo porque me parece inquestionável que a obrigação de implantação do PAS tem estreita ligação com as relações de trabalho existentes entre a indústria e seus empregados, pois a intenção do legislador é indubitavelmente a proteção e assistência a esses trabalhadores. Aqui peço venia para citar fragmento de decisão da juíza titular da Vara do Trabalho de Ponto Porã, Kelly Cristina Monteiro Dias Estadulho, nos autos 682/2011: Veja-se que, embora não se trate de obrigação ínsita de um dos contratos de trabalho em especial, essa recai sobre a empresa (empregadora) e tem como beneficiário o conjunto dos trabalhadores, ficando patente sua relação estreitíssima com os contratos de trabalho, dos quais, assim, decorre. Verifica-se, ainda, tendo-se em conta a classificação da lei 8.078/90, que se trata de direito/interesse coletivo, vez que se mostra indivisível, tendo como titular um grupo de pessoas determinadas (trabalhadores da usina) ligadas com a parte contrária (a própria usina) por uma relação jurídica base (contratos de trabalho). E o art. 83, III, da Lei Complementar 75/1993 dispõe que compete ao Ministério Público do Trabalho promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para a defesa de interesses coletivos dos trabalhadores. Parece-me, portanto, que há expressa previsão normativa para que a presente ação civil seja apreciada pela Justiça do Trabalho, Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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até mesmo pela vocação natural da Justiça do Trabalho para o julgamento de questões que envolvam direitos sociais. O fato de a União compor o pólo passivo não é capaz de deslocar a competência para a Justiça Federal, já que, a competência constitucional conferida à Justiça Obreira, diante da sua especialidade, prevalece sobre a competência da Justiça Federal, ditada pelo art. 109, da CF/88, como está expresso no inciso I, do referido dispositivo constitucional, verbis: “art. 109 – Aos juízes federais compete processar e julgar: I – as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal foram interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto (...) as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho”. Esclareça-se, por fim, que a relação jurídica principal, que atraiu a competência da Justiça do Trabalho, está na aplicabilidade ou não do PAS, sendo que a possível obrigação da União (em fiscalizar) é acessória e secundária, também não afastando a competência da Justiça Laboral. Por todo o exposto, afasto a preliminar de incompetência da Justiça do Trabalho. II – 2 – Desistência em face de Usina Rio Paraná S/A Na sua defesa, a Usina Rio Paraná já levantava a tese de falta de interesse processual. Em sua manifestação, o Ministério Público requereu expressamente a desistência da ação em face de Usina Rio Paraná S/A. Em razão do exposto, decido extinguir o feito sem resolução de mérito, no particular.

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II – 3 – Ilegitimidade – Ministério Público Federal A União requereu o reconhecimento da ilegitimidade do Ministério Público Federal para o ajuizamento da lide. Afasto a argüição, porquanto o art. 5º da Lei 7347/85, instituidora da lei da ação civil pública, em seu §º 5º expressamente admite o litisconsórcio, certamente tendo como norte o princípio da indivisibilidade do Ministério Público, previsto na Constituição Federal. II – 4 – Plano de Assistência Social O PAS – Plano de Assistência Social – aos Trabalhadores da Agroindústria Canavieira - está previsto nos artigos 35 e 36, da Lei nº 4.870, de 1º de dezembro de 1965, que dispõem sobre a receita do Instituto do Açúcar e do Álcool e sua aplicação e dá outras providências: “Art.35 A parcela resultante do percentual estabelecido na alínea b do art. 23 será aplicada em programas de assistência social aos trabalhadores da agroindústria canavieira, tendo por objeto: a) higiene e saúde, por meio de assistência médica, hospitalar e farmacêutica, bem como á maternidade e a infância, complementando5 a assistência prestada pelas usinas e fornecedores de cana; b) complementação dos programas de educação profissional e de tipo médio gratuitas; c) estímulo e financiamento a cooperativas de consumo; d) financiamento de culturas de subsistência, nas áreas de terras utilizadas pelos trabalhadores rurais, de acordo com o disposto no artigo 23, do Decreto-Lei nº. 6.969 de 19 de outubro de 1944; Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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e) promoção e estímulo de programas educativos, culturais e de recreação. Art.36: Ficam os produtores de cana, açúcar e álcool obrigados a aplicar, em beneficio dos trabalhadores industriais e agrícolas das usinas, destilarias e fornecedores, em serviços de assistência médica, hospitalar farmacêutica e social, importância corresponde no mínimo, as seguintes percentagens: a) de 1% (um por cento) sobre o preço oficial de saco açúcar de 60 (sessenta) quilos, de qualquer tipo, revogado o disposto no art.8º do Decreto - lei n º 9.827, de 10 de setembro de 1946; b) de 1% (um por cento) sobre o valor oficial a tonelada de cana entregue, a qualquer título, às usinas, destilarias anexas ou autônomas, pelos fornecedores ou lavradores da referia matéria; c) de 2% (dois por cento) sobre o valor oficial do litro de álcool de qualquer tipo produzido nas destilarias”. Quanto ao fato da contribuição ao PAS prevista no art. 36 da Lei nº. 4.870/65 ter natureza tributária e, como tal, deixado de ter fundamento de validade frente à nova ordem constitucional, pela adoção do regime da livre iniciativa, tal tese não deve prosperar, porquanto já decidido anteriormente que aquele não é um tributo. Não tenho dúvida, conforme muito bem sustentado na de ingresso que, realmente, o PAS previsto na Lei 4870/65 não foi revogado nem expressa nem tacitamente pela Constituição Federal, sendo plenamente recepcionado. Trata-se, em verdade, de típico direito social assistencial, cujo cunho obrigacional recai sobre as indústrias do setor sucroalcooleiro.

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É lição da escola que o rol do art. 7° da Constituição de 1988, não é taxativo, mas meramente exemplificativo, admitindo outros direitos sociais em favor dos trabalhadores rurais. Como bem lembrou Edilton Meireles, no livro Direitos Sociais na Constituição de 1988 – Uma Análise Crítica Vinte Anos Depois – Editora LTr – “ uma terceira característica da constituição laboral é o estabelecimento de regras que tornam irreversíveis os direitos dos trabalhadores (...) como estabelecer o princípio do não-retrocesso social ao dispor que, aos trabalhadores, resta assegurado o elenco de direitos sociais previstos nos diversos incisos do art. 7º, além de outros que visem à melhoria de sua condição social.” A propósito, aqui muito bem se encaixa a seguinte afirmação: “(...) deve-se mencionar que o rol de garantias do art. 7º da Constituição não exaure a proteção aos direitos sociais.” (ADI 639, voto do Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 2-6-2005, Plenário, DJ de 21-10-2005.) Conforme ensina Alexandre Moraes – Direito Constitucional, Editora Atlas, página 203: “Direito Sociais são direitos fundamentais do homem caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um estado social de direito, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do estado democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal.” Parece-me, pois, que reconhecida essa natureza ao PAS, caem por terra todos os supostos empecilhos de natureza constitucional levantado pela defesa da destilaria. E como já decidiu o Juiz Federal Substituto José Maurício Lourenço da 1ª Vara Federal de Araraquara: “(...) bem sopesados os princípios constitucionais em aparente conflito, tenho por mim que a garantia dos direitos sociais e da assistência social a quem ela necessitar deve se sobrepor à aventada liberdade econômica dos usineiros e produtores do álcool. Ademais, Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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não se trata aqui de inviabilizar ou impedir a prática econômica, mas apenas de adaptá-la aos ditames constitucionais no que tange à garantia dos direitos sociais dos trabalhadores que a ela se dedicam. Isto é, busca-se a coexistência do desenvolvimento econômico com a proteção aos trabalhadores da indústria canavieira, historicamente desvalidos e espoliados, de sorte que um não acarrete a anulação do outro.” Esclareça-se, ainda, que os direitos sociais, em especial os dos trabalhadores, vêm a traduzir é a imprescindibilidade de, além de ampliar o conceito de liberdade, promover condições de vida dignas como proposta e objetivos aceitos em determinada sociedade. Como proposta e objetivo escolhidos por uma sociedade, os direitos sociais passam a ser um compromisso assumido por todos grupos e atores sociais. A dignidade do trabalhador – decorrência lógica dos direitos fundamentais sociais – é o ponto de partida do diálogo em torno da disciplina e aplicação de normas constitucionais – Beatriz Montanhana in A Constitucionalização dos Direitos Sociais – Direito do Trabalho / Direitos Humanos – Editora BH. Ainda que tenha reservas quanto à competência funcional, a decisão abaixo transcrita apreciou plenamente a questão sub judice: DIÁRIO ELETRÔNICO DA JUSTIÇA FEDERAL DA 3ª REGIÃO Data de Divulgação: 12/05/2011 272/1925 - Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia TURMA E do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, conhecer e negar provimento ao recurso ordinário interposto pelo reclamante, nos termos do relatório e do voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. São Paulo, 11 de abril de 2011. Marco Aurelio Castrianni – Juiz Federal Convocado - APELAÇÃO CÍVEL Nº 001354912.2005.4.03.6102/SP - 2005.61.02.013549-9/SP - RELATOR : Juiz Federal Convocado Marco Aurelio Castrianni - APELANTE : Ministerio Publico Federal - AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEI Nº 4.870/65. PLANO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL - PAS. PEDIDO JURIDICAMENTE POSSÍVEL. NORMA RECEPCIONADA PELA CONSTITUIÇÃO. FISCALIZAÇÃO PELA UNIÃO FEDERAL. CABIMENTO. HONORÁRIOS DE ADVOGADO. 342

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1. O pedido formulado pelo autor, ora apelante, é juridicamente possível. O fato de ter sido extinto o IAA em nada impossibilita a pretensão do ora apelante, uma vez que a matéria discutida não está afeta à regulamentação do preço da cana e do açúcar, mas sim à discussão no sentido de ser ou não aplicável o implemento do Plano de Assistência Social - PAS, previsto pela Lei 4.870/65. 2. Foi recepcionado pela Constituição Federal o art. 36 da Lei 4.870/65, regulamentada pelo Decreto-Lei 308/67, seguida da Resolução 07/89, do IAA, tendo como escopo atender, nos casos concretos, o princípio da dignidade humana e do direito à saúde, e à obrigação de prestar a assistência social a quem dela necessitar, princípios estes garantidos pela Constituição, independentemente da contribuição à seguridade social. 3. Cumpre às usinas a efetiva prestação assistencial a partir de recursos financeiros oriundos das contribuições criadas para tal mister, vez que a Seguridade Social, não está unicamente vinculada à ação do Estado, mas a ações oriundas da sociedade, inclusive no que diz respeito a financiamento de programas, com fundamento no princípio constitucional da solidariedade que orienta o Sistema da Seguridade (art. 203 CF). 4. O fato de não ser estabelecido pelo Poder Público, preço para o açúcar, cana e álcool, não significa que o art. 36 da Lei 4.870/65 não possa ser aplicada. Na época da promulgação da mencionada lei, somente existia o preço fixado, daí, denominado “preço oficial” (referido pelo citado dispositivo legal), contudo, atualmente, na ausência de intervenção governamental sobre este item, a alíquota tratada legalmente, recairá sobre o preço praticado. 5. Tendo sido extinto o IAA, e tendo vindo a União Federal a sucedê-lo, evidentemente que, por via de conseqüência, tomou para si as responsabilidades do mencionado instituto. Assim, passou a ser da responsabilidade da União Federal a fiscalização da implementação objeto de discussão no presente feito. Aliás, a União Federal, já é co-responsável pela coordenação do Plano de Assistência Social - PAS, por força do art. 37, da Lei 2.870/65. 6. Sem condenação das rés em honorários advocatícios, tendo em Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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vista o fato de o autor não ter requerido na peça inicial. 7. Apelação do autor provida.” Região:

Outra decisão semelhante foi tomada pelo TRT da 15ª

9ª CÂMARA - Recurso Ordinário da VARA DO TRABALHO DE BEBEDOURO (196100/2006), Acórdão nº 52928/2010-PATR Processo Nº RO-196100-96.2006.5.15.0058 Relator: RENAN RAVEL RODRIGUES FAGUNDES - Recorrente: Ministério Público do Trabalho - Recorrido: Andrade Açúcar e Álcool S.A. - Recorrido: União - Conhecer o recurso e, no mérito, DAR-LHE PARCIAL PROVIMENTO para, nos termos da fundamentação, julgar PROCEDENTE EM PARTE o pedido para condenar a ré Andrade Açúcar e Álcool S.A. a dar integral cumprimento à obrigação de fazer insculpida no art.36 da Lei 4.870/65, efetuando, a partir da publicação desta decisão, a aplicação das receitas previstas nas alíneas “a”, “b” e “c” desse dispositivo legal no Programa de Assistência Social dos trabalhadores (PAS) do respectivo segmento (...). Outro argumento utilizado é que não mais existe o “preço oficial” citado no art. 36 da Lei 4870/65, de modo que seria indevida a criação do PAS, por falta de base de cálculo. Realmente em uma interpretação pobre, meramente literal do texto, essa conclusão até seria possível. Mas, em uma interpretação histórico-sistemática Jam aríamos a essa conclusão. Quando da edição da citada lei, vigia o controle de preço pelo governo. O “preço oficial” era o preço do produto. Hoje, o preço do produto é aquele praticado no mercado, já que a ninguém é desconhecido que o açúcar é uma commodity, com preço no mercado futuro, assim como o álcool. Esse preço também consta das notasfiscais das empresas envolvidas em compra e venda. Lembre-se, ainda, que a legislação ordinária atual faz 344

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expressa referência ao PAS, conforme consta do art. 28 da Lei 8212/91 §9º. Por tudo o que acima foi exposto, decido condenar a Destilaria Centro Oeste Iguatemi a elaborar e demonstrar a execução do plano de assistência social preconizado na lei 4870/75, de modo a prestar serviços de assistência médica, hospitalar, farmacêutica e social aos seus trabalhadores industriais e agrícolas, aplicando, mensalmente, 1% do valor total do açúcar produzido e comercializado, 2% do total do álcool produzido e comercializado e 1% do total de cana-de-açúcar produzida e comercializada. Fica também condenada ao pagamento das parcelas vencidas, nos termos e limites do pedido. O PAS deve ser realizado e executado, no prazo de 120 dias após o trânsito em julgado, sob pena de multa diária de R$ 2.000,00 (Dois mil Reais). Também entendo que deva a União iniciar a fiscalização da elaboração e execução do PAS, já que é inquestionável que, atualmente, é sua função, através do Ministério da Agricultura (Lei 10.683/2003). Devem ser afastados todos os argumentos colocados pela União para não exercer seu poder fiscalizatório. Quanto ao fim do controle de preço, tal impedimento já restou superado. Eventual inexistência de quadro próprio de servidores para a fiscalização da cobrança do PAS, também não deve ser motivo a justificar sua inércia. A União pode utilizar-se de servidores do próprio Ministério da Agricultura e Pecuária ou mesmo do Ministério do Trabalho e Emprego. Isso sem contar a possibilidade de realização de convênios com outros órgãos federais ou mesmo estaduais para essa fiscalização. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 05

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Como escreveu Beatriz Montanhana in A Constitucionalização dos Direitos Sociais – Direito do Trabalho / Direitos Humanos – Editora BH: “Não se desconsideram os obstáculos impostos pela ordem econômica mundial para a adoção de medidas públicas que promovam a eficácia dos direitos sociais. Mas o que se espera é que a postura passiva seja convertida em ação humana, fundamentada pelos valores abarcados nos princípios e regras constitucionais. A reformulação da postura do Estado é inevitável. Esclareça-se que não está havendo qualquer ofensa ao princípio da separação dos poderes, conforme ventilado na defesa, já que é poder-idade fiscalizatória. Assim, havendo violação de um direito de natureza coletiva a convocar a atuação do Parquet em Juízo, é possível pedido para que se restaure a atividade da Administração Pública. Não me comoveram os alegados “efeitos colaterais” do eventual acolhimento do pedido. Que toda decisão tem um “efeito colateral” é inquestionável. Mas, no caso presente, o grande efeito colateral é a melhoria da condição de vida desses trabalhadores da indústria sucroalcooleira. Não é desconhecido por ninguém que estes vivem e trabalham em condições miseráveis, longe do direito à educação, lazer e saúde. Não podemos esquecer que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”(art. 170 da CF/88). E como muito bem lembrou Jorge Luiz Souto Maior in Direitos Humanos: Essência do Direito do Trabalho, Editora LTr, uma sociedade que se pauta pelo pressuposto da eficácia dos direitos sociais é, certamente, 346

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uma sociedade muito melhor que outra que não se paute pelo mesmo padrão de conduta. Afinal, como não há milagres em economia, certamente, à riqueza de uns corresponde a miséria de muitos... Prossegue o festejado jurista o problema é que no Brasil, oligárquico por natureza, está impregnada uma inversão de valores que nos assola, que nos impulsiona a pensar apenas de forma imediatista (...) e que não nos permite ver o quanto é pernicioso abandonar, sem mais nem menos, a rede de proteção social e até considerar antidemocrática a defesa veemente dos direitos sociais. Peço vênia para citar trecho de notícia retirada da rede mundial de computadores – internet - http://www.jallesmachado. com.br/saladeimprensa/2010/04/ja lles-machado-elabora-pas-edestina-r-5-milhoes-aprojetos-sociais/– sobre indústria que instituiu o PAS, demonstrando que é possível sua constituição sem determinar o caos completo, conforme parece crer a União: “O PAS foi criado pela Lei 4.870/65, cujo artigo 36 determina que os produtores de cana, açúcar e álcool são obrigados a aplicar uma porcentagem de sua produção em serviços de assistência médica, hospitalar, farmacêutica e social em benefício dos trabalhadores industriais e agrícolas das usinas, destilarias e fornecedores. Entretanto, desde a extinção do Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), em 1990, o governo não fiscaliza mais a aplicação desses recursos, por isso, são poucas as empresas que cumprem a Lei. “A Jalles Machado tem consciência de sua responsabilidade social e respeita os seus colaboradores. A empresa possui vários programas que auxiliam os funcionários na área da Saúde, Educação e Lazer. Apesar de não existir fiscalização na entrega do PAS, sempre fizemos questão de apresentar o documento ao e cumprir a Lei”.

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III – CONCLUSÃO: Ante ao exposto (art. 93, IX, da CF/88), decido julgar PROCEDENTES os pedidos formulados pelo Ministério Público do Trabalho e Ministério Público Federal para o fim de condenar Destilaria Centro Oeste Iguatemi Ltda a prestar serviços de assistência médica, hospitalar, farmacêutica e social aos seus trabalhadores industriais e agrícolas, aplicando, mensalmente, 1% do valor total do açúcar produzido e comercializado, 2% do total do álcool produzido e comercializado e 1% do total de cana-deaçúcar produzida e comercializada, nos termos da fundamentação, assim como condenar a União a iniciar a fiscalização da elaboração e execução do PAS, tudo nos termos da fundamentação. Extingo o feito sem resolução de mérito em face de Usina Rio Paraná S/A. Custas processuais no importe de R$ 4.000,00, calculadas sobre o valor provisoriamente arbitrado à condenação (R$ 200.000,00), cujo pagamento é de responsabilidade da primeira requerida. Sentença sujeita ao reexame necessário. Intimem-se as partes, observadas as formalidades legais. Mundo Novo, 09 de Junho de 2011.

CHRISTIAN GONÇALVES MENDONÇA ESTADULHO Juiz do Trabalho

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