9 minute read

MERCADO E FINANÇAS

“HÁ AVANÇOS NA GESTÃO DE FINANÇAS PÚBLICAS, MAS TÊM DE SE CONSOLIDAR”

Muito se ouve falar sobre reformas e assistência técnica na gestão das finanças públicas, mas quais são os resultados concretos dessas reformas na vida dos cidadãos e como funciona a contribuição dos parceiros neste propósito? Esther Palacio, do FMI, explica como isto funciona

Texto Celso Chambisso • Fotografia D.R

Aboa gestão das finanças públicas é um elemento essencial para garantir o uso eficiente e transparente dos recursos públicos e maximizar o impacto das políticas públicas. Numa tentativa de responder a estas questões, a E&M ouviu a coordenadora da Assistência Técnica do Fundo Monetário Internacional (FMI) em Moçambique, Esther Palacio, que tem acompanhado estas reformas nos últimos dez anos, aportando experiência internacional. Esther deu enfoque às áreas que apresentaram mudanças positivas e destacou avanços encorajadores, mas ressaltou a necessidade de consolidar e aprimorar as reformas num contexto marcado pela gradual transição da economia para a produção do gás natural liquefeito (GNL), o aumento dos riscos fiscais e a descentralização das províncias e dos distritos.

Numa perspectiva histórica, quais foram as reformas que mais ajudaram a estruturar a gestão das finanças públicas em Moçambique?

Após a independência, em 1975, os esforços concentraram-se na transformação da administração pública moçambicana, amplamente assente em normas e procedimentos de origem colonial, para adaptá-la ao novo sistema de planificação e gestão nacional, mais centralizada. Depois do conflito interno, em 1992, o País iniciou um processo gradual de reformas, com a ajuda substancial dos parceiros de desenvolvimento, para modernizar a sua gestão das finanças públicas e torná-la mais transparente e eficiente. Foi assim criado um Sistema Integrado de Administração Financeira (conhecido pelo nome de SISTAFE) para organizar e regular os processos de programação, gestão, execução, reporte e controlo do erário público que, com a implementação da Conta Única do Tesouro (CUT), permitiu processar com maior celeridade e transparência os pagamentos do Estado, directamente para as contas bancárias dos beneficiários. Cabe destacar também a criação da Autoridade Tributária, que resultou da fusão das áreas de impostos e das alfândegas a favor de uma gestão integrada para aumentar a colecta de receitas, e o registo dos contribuintes mediante um Número Único de Identificação Tributária (NUIT).

Focalizando nos últimos dez anos, quais seriam as principais reformas que tiveram maior impacto na gestão das finanças públicas e que contaram com apoio do FMI? A primeira reforma que gostaria de destacar tem que ver com a consolidação do SISTAFE e a mudança efectiva de práticas de gestão para a sua plena utilização. Este sistema

A identificação de possíveis riscos permite sair de um estado de emergência recorrente para desenhar um orçamento mais realista e capaz de reagir a incertezas

já abarca as principais áreas de gestão e está disponível até nas zonas mais remotas do País. Agora, além de utilizá-lo para processar pagamentos e produzir relatórios, o seu uso está a ser promovido para tratar cada fase da despesa no momento da sua realização, o que traz maior controlo e transparência, mas também mais previsibilidade por parte dos gestores para executar de forma eficiente. Vamos, agora, para um exemplo prático do impacto: os atrasados aos fornecedores têm sido um problema constante porque se assinavam contratos por fora do sistema sem uma consolidação dos compromissos assumidos, e não se tinha informação para antecipar as necessidades de caixa. Estes atrasados acabavam por ficar na na gaveta, sem a responsabilização dos gestores, e tinham de ser suportados com o orçamento do ano a seguir, inflacionando os preços. Com esta nova abordagem, os fornecedores recebem a prova da existência de recursos, o Tesouro tem visibilidade para preparar os fundos necessários, e qualquer atrasado fica registado nas contas. Trata-se de uma reforma complexa e gradual que envolve praticamente todas as áreas de gestão, mas a boa notícia é que, finalmente, está em andamento.

Consta que a assistência técnica estende-se, inclusive, para questões de planificação fiscal…

Essa é a segunda reforma a destacar, como resultado de um processo orçamental mais bem interligado com as políticas públicas e mais realista. Agora, o Orçamento do Estado assenta numa perspectiva plurianual e toma em consideração os diversos riscos fiscais do sector público. Foi criada uma Direcção de Riscos Fiscais, que prepara relatórios que alertam o Governo das implicações futuras de assumir determinados compromissos. Por exemplo, quando se aprova uma garantia para apoiar uma empresa pública, entra-se numa Parceria Público-Privada ou decide-se um investimento que precisará de elevadas despesas de manutenção. Anualmente publica-se uma declaração de riscos fiscais que antecipa os possíveis desvios nas projecções macro fiscais (por exemplo, por uma depreciação da taxa de câmbio ou um aumento da inflação), mas também dos riscos derivados das corporações públicas, do sector bancário e outros órgãos de gestão descentralizada. A identificação de possíveis riscos permite sair de um estado de emergência recorrente para desenhar um orçamento mais realista e capaz de reagir a situações de incerteza. Como nas nossas próprias vidas, isso ajuda a preparar e desenvolver planos contingenciais, onde antes simplesmente reagíamos sem orientação a situações adversas.

E o que esteve a fazer-se para fortalecer a capacidade de mobilizar receita doméstica?

A terceira reforma agruparia os esforços para a consolidação do sistema tributário e aduaneiro implementado pela Autoridade Tributária, a qual fortaleceu a sua capacidade de liderança, gestão e planificação estratégica com apoio do FMI. O que aqui se pretende é facilitar o cumprimento voluntário das obrigações fiscais pelos contribuintes.

Tendo em vista todo o processo das dívidas ocultas, como é que essas reformas ajudam o País a evitar a repetição dos mesmos erros?

Todas as reformas evocadas são de suma importância aqui. A primeira diminui imensamente os riscos de que despesas aconteçam fora de um processo orçamental bem estruturado e transparente. Com o registo electrónico e em tempo real, o Governo tem o controlo dos compromissos assumidos e pode restringi-los para evitar a acumulação de atrasados e os auditores têm maior facilidade para detectar possíveis casos de corrupção, o que desincentiva a execução de qualquer despesa que não tenha sido adequadamente orçamentada. A segunda ajuda a detectar riscos sistémicos e a fortalecer os sistemas, regras e instituições envolvidas na gestão das finanças públicas, indo além do Governo central. Foram revistas as regras para a emissão de dívida pública e garantida, com limites e níveis de autorização claramente definidos, e também as regras para a constituição e gestão das corporações públicas. A terceira ajuda a reduzir possíveis casos de corrupção na arrecadação da receita. E quero adicionar, também, uma reforma importante que aconteceu na parte da avaliação de projectos de investimento que está ancorada pelo Sistema Nacional de Investimento

MERCADO E FINANÇAS

Público (SNIP). Agora a carteira de projectos resulta de processos de selecção transparentes baseados em análises de sustentabilidade e do interesse público e só os projectos aceites nesta carteira são elegíveis para serem integrados no Orçamento do Estado. A simples disponibilidade de um financiamento já não permite ao gestor avançar de forma isolada.

Qual tem sido o papel do FMI no apoio a essas reformas e como colabora com os outros parceiros?

A assistência técnica é um dos três pilares principais do apoio que damos aos nossos países membros e Moçambique tem sido um dos principais beneficiários ao nível mundial. O FMI oferece um reservatório de conhecimento internacional e de boas práticas na gestão da coisa pública, que permite aprender de outros países, mas também partilhar a experiência própria. O nosso papel é essencialmente estratégico e tem ajudado o Governo a identificar e catalisar importantes reformas que apoiamos com missões técnicas pontuais, treinamentos e até especialistas residentes. Temos especial atenção em seleccionar reformas que sejam críticas, mas, ao mesmo tempo, viáveis. Olhamos, por exemplo, se contribuem para a estabilidade macro fiscal, se contam com o apoio interno do Governo, se a sequência de implementação se adequa às capacidades internas e se estão bem coordenadas com os outros parceiros. Na maioria das vezes a nossa contribuição não é suficiente e desenvolvemos parcerias para ajudar o Governo a realizar estas reformas. Este mês, por exemplo, estamos a assinar um memorando com o State Secretariat for Economic Affairs (SECO), da Suíça, para implementar um projecto de Aceleraram-se as reformas nas áreas ligadas à gestão da dívida e do investimento público, a governação e a transparência fiscal, orçamentação por resultados...

assistência técnica de três anos, que mobiliza cerca de três milhões de dólares, representando o segundo maior projecto de assistência técnica do nosso departamento fiscal na sede, o qual permite dar continuidade às reformas macro fiscais iniciadas com apoio dos governos da Dinamarca e da Bélgica.

Como tem sido a dinâmica dessas reformas ao longo dos anos?

Quando a minha posição foi criada, há uns dez anos, havia uma grande motivação pelas reformas e uma forte vontade de receber assistência técnica. Mas com a consolidação das reformas, as missões foram tornando-se cada vez mais específicas e intermitentes, trazendo resultados menos visíveis. Questionou-se então a capacidade de absorção do Governo e parecia surgir um certo nível de fatiga em relação às reformas. Talvez houvesse ali um pouco de uma confiança exacerbada de que o futuro próximo e próspero não necessitaria de um esforço de reformas tão acentuadas. Com o aparecimento das dívidas ocultas, em 2016, e a consequente redução do financiamento externo do orçamento, os gestores públicos viram na gestão das finanças públicas uma ferramenta fundamental para maximizar o uso dos limitados recursos disponíveis. Aceleraram-se as reformas nas áreas ligadas à gestão da dívida e do investimento público, a governação e a transparência fiscal, a

programação e orçamentação por resultados e a gestão dos riscos fiscais. O foco das reformas, inicialmente posto na gestão dos recursos do Governo central, foi progressivamente abarcando outras áreas da gestão financeira do sector público, incluindo também as empresas públicas e maioritariamente participadas.

Quais os principais desafios da reforma da gestão das finanças daqui para a frente?

Moçambique está prestes a tornar-se um dos maiores produtores de GNL. Com as políticas apropriadas, este recurso pode gerar ganhos duradouros e ajudar a reduzir a pobreza de forma substancial. O País está comprometido com a gestão transparente dos fluxos futuros de receitas decorrentes das actividades extractivas e já estabeleceu uma base sólida para a transparência do seu quadro jurídico, do regime fiscal das empresas de recursos naturais e da integração das receitas dos recursos naturais no orçamento. No entanto, o País ainda precisa de fortalecer, o quanto antes, as instituições públicas envolvidas na gestão transparente dos recursos do gás, incluindo a definição de uma estratégia de responsabilidade fiscal com regras claras que protejam o orçamento da forte volatilidade nessas receitas, e que permita gerir as poupanças em benefício das gerações futuras. Por outro lado, Moçambique está a avançar gradualmente com a descentralização fiscal das províncias e dos distritos. Estes novos desafios requerem a realização de importantes ajustes no actual sistema, pelo que devem ser incluídos na estratégia nacional de gestão das finanças públicas, que está a ser revista, e que guiará as próximas etapas da reforma.