Revista Veracidade - Ediçao 3 - 2015

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AGOSTO DE 2015 - EDIÇAO X

2º semestre/2015 Ano 1 - Número 3

ARTE EM MOVIMENTO Ensaio fotográfico com os Menestréis da Ilha

CASA DO POVO

Um dia na Câmara Municipal de São Paulo

Chamada

QUASE MORTE As experiências de quem chegou ao limite da vida

BATALHA DE RAPPERS MCs travam duelos nas calçadas paulistanas OS HAITIANOS ESTÃO CHEGANDO A vida de novos imigrantes no centro da capital

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Cultura e cotidiano

Humor: anistia geral

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Doenças sem consciência

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Morte: o ponto de encontro da vida

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Brasil: o país de todos? Um pedaço do Nordeste em São Paulo

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Casa do povo

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Os contrastes de SP

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Fila nossa de cada dia

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Ensaio fotográfico: Menestréis da Ilha Na batida do rap O desafio de transformar vidas

O que fazer? Cinema, museus e arte

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54 Crônicas REVISTA FECHADA 1.indd 3

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Editorial

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AO LEITOR

projeto experimental cujo resultado o leitor agora contempla tem o duplo propósito de ser um laboratório no qual nossos jovens estudantes aprendem o ofício do Jornalismo e de oferecer uma revista de qualidade. Resultado de diferentes referências editoriais, ela foi encontrando sua identidade semana a semana ao longo do primeiro semestre de 2015. Coletivamente, como pede o espírito democrático. Democracia que tem seus espaços típicos nos quais sobram histórias interessantes, como as registradas na reportagem assinada por Camila Vietri. Em seu perfil da Câmara Municipal de São Paulo, acompanha o entre-e-sai não só de políticos e assessores, mas também de cantadores e jornalistas, recepcionistas e anônimos. Democracia que acolhe, ou deveria acolher, novos personagens, como os imigrantes haitianos descritos por Bruna Pinheiro. Outro destaque é o ensaio fotográfico de Claudia Janine que ilustra a capa desta edição e lança um olhar diferenciado da arte contrastando luzes e sombras. O espírito que busca nuances nos espaços paulistanos se faz presente no texto de Mariana Souza, que explora o contraste entre o comércio de luxo e o popular; no de Danielle Fernandes, registrando como a música clássica pode mudar a vida de diferentes crianças; no de Daniele Rodrigues, que descreve cenas de uma batalha de rappers na calçada da estação Santa Cruz; no de Jéssica Moraes, que relata a experiência de quase morte de alguns personagens. Jovens jornalistas que em meio às influências da velocidade e superficialidade das informações digitais se voltam para o moribundo, mas resistente, meio impresso. Experimentaram outra temporalidade e uma renovada perspectiva da prática profissional que escolheram. Resultados desiguais eram, evidentemente, esperados e foram pedagogicamente discutidos. Mas o conjunto dos esforços é um produto que merece ser nomeado jornalístico e, como tal, só pode ter um juiz: você, caro leitor. Esta apresentação não poderia terminar sem uma menção especial a Débora Duarte, Aline Oliveira e Paula del Trejo, que com maturidade e empenho foram fundamentais para que esta revista estivesse aqui, em suas mãos. Criaram a comunicação visual e diagramaram todo material. Empenho e talento que também não faltaram a Rubia Chikos e Larissa Maida, cujas imagens ilustram as reportagens desta edição. A todos o meu muito obrigado. Carlos Sandano

Universidade Presbiteriana Mackenzie Reitor: Prof. Dr. Ing. Benedito Guimarães Aguiar Neto Vice-Reitor: Prof. Dr. Marcel Mendes Decano Acadêmico: Prof. Dr. Cleverson Pereira Decano de Extensão: Prof. Dr. Sérgio Lex Decano de Pesquisa e Pós-Graduação: Profa. Dra. Helena Bonito Diretor do Centro de Comunicação e Letras: Prof. Dr. Alexandre Huady Guimarães Coordenadora do Curso de Jornalismo: Profa. Dra. Denise Paieiro

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Publicação experimental do curso de Jornalismo Editor: Prof. Dr. Carlos Sandano Fotografia: Cláudia Janine, Larissa Maida e Rubia Chikos. Projeto Gráfico: Aline Oliveira, Débora Duarte e Paula Del Trejo. Redação: Bruna Pinheiro, Camila Vietri, Caio Siqueira, Danielle Fernandes, Daniele Rodrigues, Deborah Delaye, Jéssica Moraes, Juliana Fernandes, Larissa Maida, Mariana Souza, Marco Antônio Filho e Vivian Estrela. Capa: Paula Del Trejo. Foto de Capa: Cláudia Janine. Impressão: Gráfica Mackenzie

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Propaganda

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As cinzas do Teatro Cultura Artística No dia 17 de agosto de 2008, um dos principais pontos culturais da cidade de São Paulo foi destruído por um trágico incêndio. O Teatro Cultura Artística teve a missão de propagação da cultura e da arte interrompida. O fogo atingiu o terceiro andar da sala Esther Mesquita, mas não deixou vítimas. Ainda não se sabe a causa do incêndio. Em 2013, a Sociedade afirmou que o processo de reconstrução está em sua última fase de aprovação, com conclusão prevista para 2017. Hoje, o local abriga mendigos e recebe pichadores. Os concertos são realizados normalmente, mas na Sala São Paulo.

Cultura e arte na passagem subterrânea na Rua da Consolação

Textos por: por Camila Vietri e Daniele Rodrigues

Construída em 1970 com a finalidade de facilitar a travessia de pedestres na movimentada Rua da Consolação, na região central de São Paulo, a passagem subterrânea abriga um sebo – espaço para venda de livros usados. O ambiente ainda possui música ambiente e exposição de quadros de arte.

Rede noturna de ônibus Durante boa parte do dia na cidade de São Paulo, a terra da garoa é também a terra do trânsito, das buzinas e dos ônibus lotados. De madrugada, o barulho e o trânsito desaparecem, mas a cidade não para. E quem precisa de transporte público nesse período sofre. Batizada de Noturno, a rede de 151 linhas de ônibus inauguradas em fevereiro deste ano funciona da 00h00 às 4h da manhã, substituindo o trajeto das linhas do metrô. A SPTrans afirma que este é apenas o início de um projeto maior e mais eficiente para a população.

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Fotos: Larissa Maida

Lugares mal-assombrados de SP Acredita-se que o Edifício Joelma, no centro de São Paulo, abriga os espíritos das pessoas que morreram no incêndio que atingiu o prédio em 1973 e fez 188 vítimas fatais. Histórias como essa são comuns na cidade de São Paulo. A capital possui edifícios e casas antigas que guardam histórias de terror que despertam a curiosidade dos próprios paulistanos e, inclusive, dos turistas.

O casal caça-fantasmas de SP Rosa Maria Jaques e seu marido João Tocchetto ganham a vida como caça-fantasmas. Eles vendem serviços pela cidade de São Paulo para expulsar espíritos de edifícios e casas. Com quase 40 anos de trabalho, o casal se diz ser os primeiros caça-fantasmas do Brasil. Pistola, termômetro, almofada térmica, câmeras, gravador digital e um aparelho que mede a poluição elétrica dos vivos compõem o arsenal de Rosa e Tochhetto. O casal realiza trabalhos para empresas que pegam cerca de R$3 mil por consultoria, mas não cobra de pessoas físicas que pedem ajuda.

O estilo neorromântico da Paróquia Nossa Senhora da Consolação Em 1799, o pequeno santuário levantado por devotos de Nossa Senhora da Consolação foi transformado em uma das construções da bela e emblemática igreja de São Paulo. A restauração, realizada em 1909, e conhecida como a atual Paróquia Nossa Senhora da Consolação conta com um estilo revivalista neorromântico, projetado pelo arquiteto Maximilian Hehl. O clima barroco e gótico, todavia, ultrapassou as ideias para fixarse nas paredes, colunas e pinturas danificadas pelo tempo. Por esse motivo, a Paróquia vêm sendo recuperada, com o investimento de verbas públicas e doações a partir de leis de incentivo. Não há previsão para a finalização das obras.

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O futurismo também faz parte

Textos por: por Mariana Souza e Caio Siqueira

O Instituto Tomie Ohtake foi projetado em 2001, pelo arquiteto Ruy Ohtake, com uma arquitetura vanguardista e formas futuristas. O Instituto fica localizado na Avenida Faria Lima, entre dois edifícios de escritórios comerciais. Não contém um acervo permanente, mas recebe diversas exposições com tendências artísticas contemporâneas nacionais e internacionais, e que são referencias nos últimos 50 anos. Ele possui sete salas expositivas, setor educativo com quatro ateliês, a livraria Gaudí, loja de objetos, área de documentação, sala para seminários, restaurante e café, teatro e cinema.

Diversidade no Instituto Moreira Salles Uma instituição sem fins lucrativos, com um acervo de 800 mil fotos, 50 mil obras literárias e três unidades: esse é o Instituto Moreira Salles, em São Paulo; é localizado na Rua Piauí no bairro de Higienópolis, e conta com três salas de exposições, onde recebe obras de artes plásticas de diversos artistas. Além de proporcionar palestras, cursos, exibições de shows e filmes, seu Centro Cultural promove mostras fotográficas periódicas de profissionais renomados. O Instituto Moreira Salles ainda tem uma revista própria, chamada Zum, que retrata o universo fotográfico, a Rádio Batuta, um blog, e uma loja que pode ser acessada online.

Um clássico na modernidade Localizado na Praça Ramos de Azevedo, o Theatro Municipal foi inaugurado em

1911. A construção foi influenciada pela Ópera de Paris, e continha em seu interior cristais, colunas neoclássicas, vitrais, e mosaicos, seguindo o estilo renascentista barroco, que mantém até hoje. Após 3 grandes reformas, que restauraram o edifício, modernizaram o palco, e boa parte de seu interior se tornou no que é hoje, onde abriga a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, Orquestra Experimental de Repertório, Coral Lírico, o Coral Paulistano e o Ballet da cidade de São Paulo, e recebe diferentes manifestações artísticas, além de oferecer visitas guiadas.

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Inaugurado em 1954, o Parque do Ibirapuera é o mais frequentado parque de São Paulo e uma das mais importantes áreas de cultura e lazer da cidade. O Ibirapuera atrai desde os apaixonados por cultura até os mais esportistas. Nos seus 1,6 milhão de metros quadrados, abriga a Fundação Bienal, o Museu Afro Brasil, o Museu de Arte Moderna, a Oca e o educativo Planetário. Além disso, sua infraestrutura oferece aos visitantes: campo de futebol, pista de corrida, playgrounds, quadras poliesportivas e aluguel de bicicletas, além de lanchonete e restaurante. Para os skatistas e patinadores há a grande Marquise, ideal para a prática dos esportes.

Fotos : Larissa Maida

Cultura a céu aberto

Goleada de Interatividade Em 29 de setembro de 2008, foi inaugurado o Museu do Futebol. O projeto ocupa área de 6,9 mil metros quadrados embaixo das arquibancadas do Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, mais conhecido como Pacaembu. Sua arquitetura se destaca por integrar os espaços: o teto é a própria arquibancada e um dos espaços permite o acesso ao belíssimo gramado do estádio e imagens antigas contextualizam os primórdios do esporte no Brasil. O excesso de interatividade permite que todos vivenciem o esporte, podendo brincar de cobrar um pênalti, medir a velocidade do chute numa atração, ou jogar com uma bola virtual em outra.

Tempero turístico O Mercado Municipal de São Paulo, popularmente conhecido como Mercadão, é um dos mais importantes pontos turísticos da cidade. Repleto de opções de lazer e comércio, o edifício possui mais de oito décadas de história, vindo a substituir o antigo Mercado Central. Com uma ampla variedade de produtos, que vão desde hortifrutigranjeiros até refeições e lanches, como o tradicional sanduíche de mortadela, o local se tornou ao longo dos anos um característico espaço gastronômico paulistano. Além disso, sua notável arquitetura ajudou a fazer do Mercado Municipal parada obrigatória nos roteiros turísticos.

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Humor

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governo brasileiro resolveu perdoar todos aqueles que pediram desculpas pelo que fizeram de errado para com o país. Os maiores beneficiados foram aqueles que admitiram perante um tribunal a culpa ou foram pegos no flagra fazendo isso. Isso se deve a boa vontade da presidenta Dilma em perdoar todo mundo que falou ou fez besteira. O caso mais recente é o de Joaquim Levy (ou seria mais um caso dos recentes?). O primeiro caso a ser perdoado foi o de Pedro Álvares Cabral, que pediu desculpas em uma entrevista (feita por um médium) a todos os brasileiros. “Jurava que eram as índias! Me desculpem por tirar seu ouro e matar seu povo!’’ Além dele, obtivemos também o áudio de Ge-

tar e cantar Manoel sem a culpa de achar que o Brasil me odeia!”, falava ele, por telefone em Miami. “Se está escrito na lei, está escrito nas estrelas para sempre”, falou Paulo Coelho. “Apesar de que quase todos ai me odeiam pela imagem que faço aqui fora do país, agora posso escrever aquele livro que tanto quis sobre o alquimista da AMBEV!” Alguns famosos atores que um dia falaram do país estão também a salvo com isso, como é o caso do ator Robin Williams, que afirmou que só conseguimos a copa do mundo em nosso país porque tínhamos “prostitutas e cocaína”. – foi um erro. Eu sei que as mulheres andam peladas e vocês preferem funk a cocaína. Peço perdão pelo erro. Além dele, o ator Silvester Stalone falou que aqui não se explo-

túlio Vargas, que pede desculpas pelo “golpe’’. –Não era minha intenção dar um golpe e assumir a presidência. Na verdade, a culpa é dos paulistas e mineiros, que ficaram de gracinha de troca de poder e eu fiquei com ciúmes por não poder brincar junto! Junto com a declaração oficial do governo, foi emitida uma nota de desculpas de algumas celebridades, como é o caso de Carmem Miranda, que pediu desculpas por passar a imagem de brasileira apesar de ser portuguesa. Junto a ela, Tom Jobim também deixou uma carta, onde prometeu que da próxima vez, fará menos CDs com nomes em inglês. “É um orgulho de ter isso no país”, conta feliz o cantor Ed Mota, envolvido em uma polemica onde afirmou que seu público brasileiro era “pobre de espírito”. “Agora posso vol-

de as coisas e ganha um macaco. “Eles me davam tudo que eu pedia por ser um ator famoso. Então peço d e s c u lp a s antes que exploda mais alguma coisa.” Va nu s a ainda se recorda do dia que cantou o hino nacional errado. “Eram tempos difíceis, com uma letra complicada. Acho que o hino deveria ser águas de março, do Tom, para que alguém possa fazer um dueto comigo!”, conta ela, enquanto liga para Carlinhos Brown, que depois do Brazilian Day (quando errou o hino em NY), sempre carrega uma letra do seu país de cachirolas. Os únicos que ainda se mantêm na lista de renegados são os jogadores Davi Luiz e Felipe Mello. O ex-lateral da seleção Roberto Carlos foi excluído dos perdoados. No entanto, é ídolo na França desde o fim da Copa de 2006.

ANISTIA GERAL MARCO ANTÔNIO FILHO

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Cotidiano

DOENÇAS SEM CONSCIÊNCIA

Apesar das propagandas do governo para se prevenir, o número de pessoas com DST chega a mais de 10 milhões no país. Marco Antônio Filho

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hospital do Campo Limpo era igual a todos os outros hospitais: uma grande fila de pessoas agoniando e esperando para serem atendidas. Algumas reclamam de febre, enquanto estão recostadas no ombro da pessoa que a acompanha. Esta, por sua vez, também possui um olhar preocupado, como se o tempo do relógio estivesse

mental e motora. Ele pergunta qual o remédio que a criança deve tomar para que sare logo desses olhos puxados e essa tal de doença para que não fique parecendo que é filha de um japonês. Apesar de toda a tecnologia que permite maior informação para a população em caso de dúvida, ainda é para poucos. Nem todos podem ou tem acesso

“Outro dia uma moça bem jovem, pela casa dos 17 ou 18, apareceu e disse que o médico lhe receitou um exame para verificar se estava tudo bem com ela. Ele fez um exame com o estetoscópio e ela saiu de lá preocupada. Ela não acreditava que aquilo que ele fez faria bem para ela, já que não tinha remédio ou nenhuma injeção no local, que nem fazem nos

se movimentando cada vez mais devagar enquanto espera com aquele choro ao seu lado. Podem-se notar algumas pessoas esperando deitadas nos corredores em camas, esperando sua vez de entrar no quarto ou esperando uma resposta médica, que parece demorar devido ao grande número de pessoas que se encontram ali a espera de atendimento. Um senhor entra na sala onde a assistente social Leda Cristina, 46, estava terminando de escrever um relatório sobre os pais anteriores que passaram por ali. O homem se chama Ricardo Faria. Ele acabara de ter um filho. Ao entrar na sala, exige um teste de DNA com o filho que teve para a assistente social. Ao indagar o homem o porquê da paternidade duvidosa, o homem prontamente responde a ela que seu filho tem olho puxado, feito um japonês, o que ele não é. Leda tenta explicá-lo que ele é sim o pai da criança, e que ela possui os olhos puxados devido a uma anomalia com a qual a criança nasceu chamada de Síndrome de Down. Ela ainda o explica que a criança terá algumas dificuldades por conta da doença que afetará a criança de forma

à internet e de seus dados. O brasileiro continua cada vez mais parecer desin-

filmes!” A falta de informação não é somente na hora do diagnostico, mas também na prevenção de doenças. O número de doenças sexualmente transmissíveis, como a AIDS, cresceu 11% de 2003 pra 2013, segundo um relatório da ONU. E dentro disso, se tem que o número de jovens que contraem a doença cresceu mais de 50% de 2006 a 2014. “Os jovens parecem cada vez menos se preocupar com esse tipo de doença. Acreditam que ‘tudo tem cura”, explica um jovem que não quis se identificar que possui HIV. “A gente não se importa com isso até pegar. Tudo é curtição até pegar essa p....”. Indagado sobre como soube como contraiu, ele respondeu que não sabia que se poderia pegar AIDS com tatuagem. Ele estava com um grupo de amigos e resolveram todos fazer no mesmo local uma tatuagem igual. “Logo depois quando comecei a sentir os sintomas, fui ao médico. Ele perguntou se a tatuagem que fiz era recente e respondi que sim. Ai ele perguntou se o tatuador tinha trocado a tinta ou se tinha usado em todo mundo a mesma

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“Parece que cada vez mais as pessoas têm dúvidas ou medo de perguntar por se acharem ignorantes” formado com esse tipo de coisa, ainda mais pessoas que vem de áreas mais pobres que não possuem as informações de tão fácil modo. Casos como esse não são hoje mais tão estranhos ou inesperados, como conta Leda. “Parece que cada vez mais as pessoas têm dúvidas ou medo de perguntar por se acharem ignorantes. Aí chegam aqui e estranham tudo”, diz ela. Sobre histórias parecidas como essa, que parecem ser coisa de livro de ficção, ela conta da vez que uma mulher chegou toda envergonhada, mas com uma duvida que a deixava confusa quando ouvira do médico

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Foto: Lucas Valim

tinta, e eu respondi que era a mesma de todo mundo. Agora todo mundo que tava comigo que fez essa tatuagem tem essa doença de m....”, contou ele. “eu e meus amigos somos jovens. Não sei o que farei agora com a vida com essa coisa em mim”, explicava, aos prantos. “Um número que assusta”, segundo o médico infectologista Manoel Ferreira, 69, que é especialista em HIV. “É impressionante que um país como Brasil que possui alguns dos melhores médicos do mundo em tratamento contra doenças sexualmente transmissíveis ter números tão altos e que cada vez mais aumentam!”, diz, indignado. “Não se vê

por aí com freqüência propagandas do governo ou boletins dentro de hospitais com informações de que o ato sexual ou que a troca de materiais entre os dois pode trazer doenças caso um dos dois esteja infectado, como uma seringa que se usa para alguns tipos de droga, esteja contaminada. E algumas pessoas vêm até um pouco tarde para saber o porquê de elas estarem tão doentes assim. É uma pena vê-las assim” O governo traz algumas propagandas para evitar o sexo sem camisinha. Jovens são normalmente os alvos deles, pois se sabe que é maior a freqüência sexual entre os jovens do que qualquer

que tomam na medicina, como explica o promotor da área da saúde pública em São Paulo, doutor Artur Pinto. “A falta de médico não é somente por não haver médicos para atender. Isso acontece, pois não temos mais clínicos gerais. Os formados escolhem áreas que dão mais dinheiro, como a parte plástica, e não querem trabalhar como clínico. Isso causa uma grande fila com todos e a falta de médicos na área”, explica. “Além disso, muitos deles fogem dessa profissão por medo de como as pessoas podem tratá-las caso não façam tudo direito. Elas tentam de tudo para ajudar, mas mesmo assim a demanda é muito grande de pessoas” O número de pessoas com doenças não se deve somente ao fato delas não conhecerem, mas sim também de como podem se informar. Médicos ou propagandas que alertem cada vez mais sobre o assunto ajudam ao público a entender como se prevenir e evitar que estas doenças sejam passadas aos parceiros sexuais. O que melhor pode ser feito é o aviso a população de uma forma mais abrupta do que já é feito hoje. Caso contrário, o número só tende a aumentar.

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outra fase da vida. Cada vez mais as pessoas tendem a perguntar aos médicos sobre como podem se prevenir, apesar do medo de se exporem a pessoas desconhecidas a elas, como os médicos. Mas nem tudo é simples assim: muitos ainda reclamam da falta de médicos ou como não há médicos específicos para atendê-las. Com a defasagem, as pessoas optam por tentar tratar seu sintoma sozinho, o que piora cada vez mais o tratamento de pacientes com doenças infecciosas que não sabem de fato ter. E a falta de médico não é somente por não haver pessoas, mas sim da escolha

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Foto Rubia Chikos

MORTE: O PONTO DE ENCONTRO DA VIDA Jéssica Moraes

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Por volta do meio dia, retornou a casa e almoçou. A mãe, Maria do Carmo Machado, que planejava uma festa para a irmã do advogado, o convidou para acompanhá-la na busca das encomendas. Paulo rejeitou o convite com a justificativa de que permaneceria em casa para estudar. Assim, a mãe saiu de casa para cumprir com os afazeres. Iniciou os estudos quando o relógio marcava uma e meia e ao sentir forte sonolência, rumou para o segundo andar do sobrado, localizado na Vila Madalena, decidido a descansar. Deitado, virava-se de um lado para o outro e ao perceber que não iria conseguir dormir, levantou-se. Firmou os pés no chão e ensaiou os passos. Os olhos viam flashs, como se diversas máquinas fotográficas disparassem ao mesmo tempo, provocando repetidos clarões que turvavam a visão. Caminhou até a janela do quarto e observou que a vista apresentava-se de modo distorcido da realidade: o tempo corria de modo distinto e as pessoas deslocavam-se lentamente, de um modo não convencional, como num “slow motion”. Uma nova crise o atingia. Ele não a pôde identificar, pois perdeu os sintomas. A cada novo episódio, diferentes indícios surgem e a carência de sinais prévios e fixos, torna complicada a identificação de uma crise. Desceu as escadas e foi até a geladeira. - A última coisa da qual me lembro é de que a abri e percebi que não havia um doce! Pensei: putz! Ferrou, não tem um doce! A partir desse momento, passou três horas desfalecido. Em algum dia do remoto ano de 2012, Diego Aliaga participava de um churrasco na casa de amigos. Às nove horas da noite, já embriagado, decidiu que iria embora. Encaminhou-se para o carro. Ia para casa. Entre as Avenidas e ruas que atravessava, há uma em especial. Aquela em que tudo ocorreu. Próxima a Avenida do Estado, nessa rua, carretas e caminhões acumulam-se estacionados, característica que torna o espaço de circulação menor e exige maior cautela por parte do condutor. O estudante dirigia em direção à cidade de São Caetano do Sul, região do ABC paulista. Ao adentrar a rua preenchida de veículos, observou que um automóvel movimentava-se na direção oposta e uma motocicleta estava logo atrás. Inesperadamente, a moto realizou uma ultrapassagem, posicionandose em frente ao carro de Aliaga. Devido a situação de embriaguez, não foram possíveis reações ágeis, necessárias em circunstâncias como essas. Ele então

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rês horas desacordado. Paulo Machado debatia-se em fervoroso combate e uma força encarregava-se de fazê-lo imergir. Nas profundezas do tanque obscuro, nadava obstinadamente, empenhado na tarefa de atingir a superfície. É o que o advogado relata ter vivido no dia 21 de março de 2014. No ano de 1975, o psiquiatra norte-americano Raymond Moody Junior publicava o livro “Vida depois da vida”. O professor de Psiquiatria da UFJF e diretor do NUPES (Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde) Alexander Almeida conta que o lançamento tornou-se num best-seller e gerou o interesse da comunidade científica acerca das experiências interligadas a morte. Mais cedo, no ano de 1896, o termo EQM (Experiência de Quase Morte) era formulado pelo psicólogo francês Victor Egger. A expressão reporta-se às visões e sensações experimentadas pelos que já passaram por situações de morte iminente. Sentado nas escadas que dão acesso ás salas de aula da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, Diego Aliaga de 27 anos, tem uma história semelhante. No local em que cursa pós-graduação em MBA em Governança de TI, relata os acontecimentos que resultaram na postura atual. As falas são quase sempre mansas. Seriedade atrelada ao raciocínio são aspectos que se fazem nítidos nos olhos e na face. No ano de 2012, aos 24 anos, era outro, de todo. As histórias, do advogado e do estudante, em determinado ponto cruzam-se. A ciência não os classificaria como exemplos de EQM. Os casos estudados contêm pessoas que flutuam sobre os próprios corpos e pacientes que narram fatos que se sucederam nas salas dos hospitais nos segundos em que estiveram inconscientes. Mas em dado momento, Paulo e Diego passaram por um evento que os modificou. Ao menos, assim o dizem. Diabético, aos 11 anos, o advogado foi diagnosticado e assim, define-se. - Sou insulinodependente. Tenho 20 anos de diabetes! No dia em que tudo se sucedeu, acordou com algo que pode ser comum no cotidiano daqueles que tem a doença: uma crise de hipoglicemia, ou seja, a queda brusca da glicose no sangue. Essa ausência proporciona o declínio de energia no sistema e dessa maneira, o corpo não pode manter-se ativo e sustentar-se em pé. Para que a quantidade de açúcar se elevasse, tomou um café da manhã hipercalórico e foi à academia.

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desviou o automóvel e o lançou para o outro lado. Sentido contrário ao dos veículos que vinham em seu embate. Assim, perdeu o controle. O Astra embrenhou-se embaixo de uma carreta. A colisão deixou o carro em estado de perda total. Encalacrado, por mais de uma vez, girou a chave para dar a partida e esforçouse para sair pela porta do passageiro. Um pedestre passava e ao avistar o acidente, correu ao carro para acudir. O desconhecido, que surgiu no preciso momento, alertou para que o rapaz não insistisse em colocar o carro em funcionamento. Do modo que pôde, retirou o acidentado do veículo. Mirou-o da cabeça aos pés: - Cara! Se você não acredita em Deus, é melhor você acreditar agora, porque foi Ele que te salvou desse acidente! Na consciência inconsciente, o estudante ainda não captava tudo o que ocorria em volta. Os ferimentos foram leves, momentâneos. Hoje, não há uma marca, um prejuízo físico que comunique a história ou indique as equívocas escolhas feitas num passado próximo. Não há nada talhado no corpo, que tomado pela bebida na altura, mal se aguentava em pé. Diego lamenta ao recordar-se da fala do pai, Ezelino Aliaga, após o acidente, na cama do hospital. - Uma das coisas que mais me tocou, foi ver meu pai dizer que caso tivesse visto o carro antes de me ver ali, no hospital, teria sofrido um enfarte ou coisa pior. Contudo, talvez a tristeza do pai não o afligisse na época. Ou eventualmente, o impactasse de modo efêmero. Três horas passaram-se. Assim que colocou os pés em casa, apanhou o filho adormecido em pleno sossego. Permitiu que dormisse. Foi para cozinha, dar continuidade as tarefas domésticas e assim as fazia, até que ouviu um estrondo na sala. Teve a impressão de escutar algo ir de encontro ao solo, um objeto pesado, provavelmente. Na averiguação, soltou a pergunta: - Paulo, o que você derrubou aí? Não obteve resposta. Optou por insistir: - Paaaaaaaaaaaulo! O que é que você derrubou? Mas a resposta era também teimosa e persistia em não vir. Foi à sala para ver o que se passava e notou que a cena compunha-se de modo diferente: tudo em seu devido lugar, mas um açucareiro ao pé do sofá não integrava a decoração da sala. Aproximou-se do filho. Tocou-o. A pele estava gélida e o corpo inconsistente, estava mole e enfraquecido. Pôs-se a andar de um lado para o outro e em prantos,

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gritava para que alguém a acudisse. Clamou pela já falecida mãe. Os gritos geraram a preocupação dos vizinhos que direcionaram-se à casa. Ao penetrar o ambiente, foram logo informados do que se passava. Uma das vizinhas dedicou-se a verificar a pulsação do rapaz e em seguida, anunciou: - Ele está vivo! A frase proporcionou alívio na mãe, que cuidou para que a ambulância se encaminhasse. Era uma sexta-feira chuvosa, os ponteiros do relógio marcavam cinco horas da tarde na cidade de São Paulo. Maria do Carmo realizou quatro chamadas. Telefonou a ambulância do SAMU, aos Bombeiros e ao convênio particular do filho. Na segunda ligação realizada ao SAMU, foi atendida.A cada segundo perdido, constatava-se a fragilidade da vida humana. Fragilidade, sobretudo, aos prazos que são d isp on ibi l izados a cada existência. Os paramédicos chegaram ao endereço em cerca de cinco minutos e foram logo realizando os procedimentos. Numa verificação, indagaram: - Como é o seu nome? – Paulo, já consciente, respondia sem nem titubear. Insistiam então: - Como é mesmo o seu nome? - E persistiam ainda: - Mas como você se chama? - E a resposta identicamente repetia-se. Onde é que está a carteirinha do convênio médico? - O feedback arrastava-se, mas logo surgia: - Na gave... - Oscilava. -Na gaveta da penteadeira! - Finalmente anunciava. Após o insistente teste de memória, ainda na ambulância,

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Foto Rubia Chikos

esquecer e curar-se. Para gozar da sensação de leveza e desprendimento obtidos nos momentos de perdão sincero. Não sabia, porém, como voltar. Tinha apenas o instinto, que gritava-lhe num possível apelo de preservação da vida: Naaaaaaaade! E apesar de enxergar-se como um desistente incurável, provou a si que não o era. Não desistiu. Nadou! Quanto a Diego, foi por meio de uma mensagem da tia que recobrou a grandeza da própria vida. Catherine, em meio a distância morava no exterior na altura pôs-se presente. Na mensagem, questionava as ações do sobrinho. Com a carta, a tia materializou-se e a personificação parecia, de fato, ocupar Como se algo o ambiente em carne e ossos para fazê-lo observar quais ruvital acabasse mos a vida, orientada pelas escolhas do rapaz, tomava. Antes eu vivia a minha vida só pra mim! Ela me fez ende lhe ser roubado e car- xergar a minha ausência. A falta que eu faria naquela casa. regado para Meu pai acorda todos os dias para fazer o café para mim. As minhas irmãs que contam sempre com o irmão mais velho. E a longe. Ao che- minha mãe, que vive pra que eu tenha comida na mesa e rougar, a mãe pas limpas. Quando eu realmente enxerguei isso, que a minha assustou-se e irresponsabilidade colocaria um sentimento de tristeza no coao sondar o ração da minha família... Nem as minhas pernas eu mantive que se pas- firmes. Eu desmaiei acordado! Não tinha mais chão pra mim! Diego acordou assim para um fato: a vida, que aparensava, obteve como retorno temente lhe pertencia, não se tratava de uma vida de única a consciência posse, de posse exclusiva. A vida do estudante subdividia-se, máxima do como as pecinhas de um quebra-cabeça. Quando unidas, as filho, já recu- peças completam-se, contam uma única história e assinalam um sentido maior. Aquela vida tinha posses diversas. Pertencia perada: - Mãe, eu ao pai, também a mãe e as irmãs, aos tios, tias, primos, amigos quase morri! e a todos aos que de algum modo, ou por algum tempo, depo- Balbuciava. sitassem algum tipo de apreço àquela existência. E era assim Na companhia materna, despacharam-no aos cuidados que a dor da partida tornava-se significante. Por isso, a dor de médicos. uma eventual perda era maior. Tratava-se de um mar de coneFoi assim que Paulo viu a necessidade de mudança. É ver- xões, um emaranhado de teias amorosas, que numa eventual dade que o bom humor, os dentes sempre ao alcance dos olhos perda, representariam as dores somadas. As dores de muitos e, alheios e os incessantes festivais de auto chacota são traços ao menos de alguma maneira, compartilhadas. característicos, quase que inerentes. Sim, há uma bifurcação. Ao retomar a percepção da dimensão da própria vida, o Um renascimento. Como ele mesmo diz: uma segunda chance. rapaz compreendeu que na experiência humana, nem mesmo Paulo antes, Paulo pós. a vida pode ser encarada como um bem exclusivo. Aderiu o A prática do perdão, a leveza do olhar e das palavras sim! hábito de pensar e repensar as ações que pretende tomar. O Esses são aspectos fomentados pelas três horas em que viu a processo foi árduo, é verdade! Mas agora sim! Hoje sim, compossibilidade de a vida diluir-se em águas obscuras, sem a preendido, entendido como necessário. oportunidade de retorno. E era o retorno uma ocasião propí-Hoje eu só tenho a agradecer por ter tido esse acidente e cia. Necessitava regressar para amar e declarar. Para perdoar, por ter sobrevivido.

Cotidiano

um dos paramédicos o interrogou: - Você acredita em Deus? -Acredito! - Foi o retorno imediato. -Olha menino, então reza! Reza porque foi Ele que te salvou hoje! Por mais algum tempinho sem atendimento médico, você não aguentaria! O seu cérebro já estava no processo de desligamento! E Paulo irrompeu num choro carregado. Choro de criança. Daqueles em que a molecada tem o doce ou o brinquedo favorito arrancado das mãos e abre o berreiro, como se acabasse de perder o bem mais precioso daquela pequenina existência.

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BRASIL: PAÍS DE TODOS? Imigrantes hatianos que chegam a São Paulo são deixados à própria sorte e não conseguem se estabilizar Bruna Pinheiro

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ito Pharius, 22, é um haitiano de cabelo raspado, escondido pelo boné, que sempre está sorrindo e veio para São Paulo depois do terremoto que abalou o Haiti, no dia 12 de Ja-

Brasil sempre recebeu muitos imigrantes, como japoneses, paraguaios e bolivianos. E a maioria vem com as mesmas ambições, as de estudar e trabalhar, como o angolano Dionísio Fama Nhoque

burocrática e só depois conseguiu pegar um avião com destino a São Paulo. Mas, ao chegar ao Brasil, já encontrou a sua primeira dificuldade. O haitiano com sotaque curioso, misturando

neiro de 2010, que matou cerca de 200 mil pessoas e ainda não conseguiu se recuperar. “Eu estava num momento muito difícil, perdi muitas pessoas da minha família, pessoas importantes”, lamenta ao lembrar do terremoto. Após o ocorrido, a Presidente Dilma Rousseff “abriu as portas” do Brasil para os haitianos. Em 2014, a prefeitura estimou que o país recebeu cerca de 30 mil de haitianos e cerca de 40 chegavam por dia. O

que veio ao Brasil em 2009 para estudar e está realizando seu mestrado em Telecomunicações na UNICAMP. E assim como Dionísio, Vito veio para estudar e trabalhar. Sua trajetória começou no dia 28 de setembro de 2013, quando pegou um ônibus até a República Dominicana, um avião para o Peru e depois uma lancha para Tabatinga. Quando chegou ao Brasil, foi de barco até Manaus para acertar toda a parte

português e francês na fala, encontrou muita dificuldade para se comunicar, pois ao contrário dos imigrantes latinos, o francês é totalmente diferente da língua local e isso tem sido um dos maiores problemas, principalmente na hora de arrumar emprego. Outro obstáculo é a desconfiança, talvez pelo medo de serem deportados, a maioria dos haitianos costumam ser reservados, ariscos e não gostam de se expor.

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2700 km

São Paulo Distancia total: 8730 km

O Refúgio Conhecido como Pipo, chegou em São Paulo e ficou na Igreja Missão Paz, na rua Glicério. Uma igreja que funciona também como abrigo, onde sempre havia comida e quartos com alojamentos para todos. Logo que chegou, arrumou um emprego e começou a estudar, mas hoje o quadro está mudando e ele está confuso por não saber se desiste e volta para casa, ou se continua em São Paulo. “Eu não vou mentir para você e falar que o Brasil é um super país. Depois de 2015, eu senti tudo mudar”, desempregado há cinco meses, o jogador de futebol não consegue arrumar emprego e não tem mais dinheiro para voltar. Atualmente morando na Zona Leste de São Paulo, a única pessoa que ele tem é

Centro de Referência e Acolhida para Imigrantes, conhecido como CRAI, mas nem ele e nem a Igreja tem dado conta de abrigar todos os imigrantes. No CRAI é diferente. Situada em uma casa amarela, numa rua deserta do centro, o abrigo tem logo na entrada uma recepção com alguns imigrantes homens, e mulheres com filhos pequenos no colo em busca da regularização dos seus documentos. Nos fundos funciona a casa. São três andares apertados, mas organizados. De um lado temos a parte dos homens, enquanto o outro aloja mulheres e crianças, ambos com quartos cheios de beliches. Na casa, eles ajudam com moradia, alimentação, assistência social, formação profissional, aulas de idiomas e orientações. Todas as crianças da casa já vão para a escola e falam em português. Todavia, a casa com capacidade para 110 imigrantes já esta lotada. Lina Mbomba é africana da região do Congo e veio para estudar Direito na PUC de São Paulo. Hoje formada e casada, se tornou atendente do CRAI e ajuda imigrantes que chegam à metrópole. Ela conta que a maioria chega pe-

dindo ajuda, principalmente à procura de moradia e regulamentação de documentos. Mas, como não há espaço, eles só realizam a parte burocrática e indicam outros albergues e abrigos para essas pessoas.

Desemprego e Preconceito Para aqueles que procuram emprego, o CRAI indica o Centro de Apoio ao trabalho (CAT). E a maioria dos imigrantes são contratados, ao menos que não saibam português, o que é um

“Eu não vou mentir para você e falar que o Brasil é um super país. Depois de 2015, eu senti tudo mudar”

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a sua mãe que está no Haiti, com quem encontra dificuldades para manter con250 Km tato. Além disso, o rapaz conta que até na igreja as coisas mudaram. Se antes República Haiti Dominicana tinha todas as refeições, hoje com muitas dificuldades, tem apenas jantar e não há lugares para todos, pois o abrigo já passou da sua capacidade máxima. E isso acontece porque a maior parte dos estrangeiros tem como destino São Tabatinga Paulo. Diante desse crescimento a Secre(AM) taria Municipal de Direitos Humanos e 1110 km 1170 km Manaus Cidadania (SMDHC), junto à Secretaria Peru Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), decidiu criar o

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O Caminho de Vito

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grande problema. “É muito bom poder estudar estudar de graça, mas não tenho nada aqui”, queixou Vito, que encontra muitas dificuldades para encontrar emprego. Infelizmente ele não é o unico que reclama disso. O emprego se tornou o principal transtorno. “O Brasil é bom para turismo e não para emprego”, conta aos risos irônicos o haitiano Miguel, que já está com as malas prontas para ir embora do Brasil. A dificuldade de encontrar emprego não se limita às poucas vagas, mas também ao preconceito. As pessoas dificilmente empregam imigrantes, além disso, por não conhecerem os direitos trabalhistas, muitos acabam sendo enganados. Vito conta que uma vez ele fez uma entrevista de emprego e não quiseram contratá-lo porque ele era imigrante. Mas, nem todos agem dessa maneira. Para o empreendedor Everton Passos de Jesus, 47, dono da Oficina Autobello, em Utinga, empregar um haitiano foi surpreendente. “Quando você emprega um brasileiro, ele ouve e muitas vezes te enrola, já com o haitiano

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Fotos: Aline Oliveira

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é diferente”, comenta com satisfação. Quando decidiu contratar o haitiano em sua oficina, eles tiveram muitos problemas para se comunicar no começo, mas ao longo do tempo, o haitiano mostrava que era profissional e sabia realizar todos os trabalhos. “Eu o mandava fazer de um jeito e ele me dizia que no Haiti eles faziam de outro jeito. No final, dava certo”, conta o proprietário.

E é na região do ABC que os imigrantes encontram mais oportunidades de emprego, principalmente no setor de construção civil. Dentre esses é possível encontrar médicos, jornalistas e gestores, que em sua maioria se concentram na favela dos Ciganos. “No começo vai ser sempre complicado mesmo. Porque eu não estava acostumado com muitas coisas, como pegar trem.” Conta o haitiano, de 24 anos, Carl Francois, que está no Brasil desde 2013 e sonha em ter o seu próprio negócio, mas tem encontrado adversidades, principalmente com a parte burocrática dos bancos. Entretanto, por mais que ele encontre inúmeras contrariedades, Carl não pretende sair do Brasil como outros haitianos que estão aqui há mais tempo. Ele pretende continuar em busca do seu sonho, estudando e trabalhando, “Com tudo o que esta acontecendo na minha vida, eu preciso de um pouco de paciência e sempre conversar com Deus de joelhos para pedir ajuda no caminho de ser feliz e realiza”.

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UM PEDAÇO DO NORDESTE EM SÃO PAULO

Foto Aline Oliveira

Cidade Com comidas típicas, artesanatos e muita música, o CTN se torna cada vez mais a casa dos nordestinos Danielle Fernandes

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esde a sua fundação, no mês de maio de 1991, o Centro de Tradições Nordestinas sempre foi um local bastante atrativo, que trouxe nos mínimos detalhes as particularidades que só o povo nordestino tem e conhece de pertinho, o CTN foi um espaço criado na capital mais movimentada e com a maior mistura dos estados lá de cima do mapa do Brasil, o Nordeste. O local tem um grande espaço, que é subdividido para que todos possam aproveitar contendo parque de diversão para a garotada, com uma variedade de restaurantes que fazem comidas tipicamente nordestinas como baião de dois, acarajé, vatapá, tapioca, buchada de bode, entre outras delícias. Conta também com lojinhas artesanato que vendem mais diversas coisas que se tem no nordeste, peças de crochê, placas feitas a mão com madeira, vaso esculpidos com o barro, como também a literatura de cordel, podem ser encontrar facilmente lá. O CTN tem seus grandes shows centralizados nos finais de semana, como grandes atrações do cenário da música brasileira, como Paula Fernandes, Aviões

do Forró, Zezé di Camargo e Luciano. Com isso, começa a grande mistura de diferentes raças, credos, sexos e sotaques no local. Para quem gosta de dança o velho e bom forró é uma excelente oportunidade ir ao CTN , ouvir e matar um pouco da saudade do original forró nordestino.

“Foi um espaço criado na capital mais movimentada e com a maior mistura dos estados lá de cima do mapa do Brasil” Como o estudante de engenharia, Danilo Santos, a estudante de educação física, Jéssica Gomes de 23 anos, filha de baiana, adora frequentar ao CTN, para dançar e comer as comidas que os fazem matar um pouco da saudade, “Sempre que consigo adoro vir ao CTN

aos domingos para dançar um bom forró coladinho”, exclamou Jéssica. Não só preocupado em trazer diversão e alegria para os seus frequentadores, o CTN também se preocupa com sua responsabilidade social e oferece cursos gratuitos de alfabetização para adultos e aulas de reforço de matemática e inglês para crianças no período de férias. Visando-a quebra de paradigmas e sempre ajudando público de baixa renda que frequenta o CTN em parceria com o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Percebe-se que o local representa um ponto de encontro para a população nordestina que reside na capital paulista. A grande diferença de sotaques de diversas regiões do Nordeste e os trejeitos encontrados no local caracteriza e demonstra o verdadeiro objetivo do ambiente. Mesmo sendo um local onde é tratado coisas sérias em prol das pessoas que frequentam o CTN, o ambiente familiar está sempre presente, sendo facilmente visível aos que visitam o local o grande número de famílias tendo um momento de diversão e ao mesmo tempo relembrando e matando a saudade da sua terra.

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Casa do Povo por Camila Vietri

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do povo nem sempre fora a casa do povo. Isso porque o poder não concentrado e controlado, como numa ditadura, assusta os governantes. Custou décadas até que os cidadãos fossem membros relevantes para a política brasileira. Introduzida em 1560 pelo terceiro governador-geral Mem de Sá, a Câmara Municipal de São Paulo também demorou a fixar-se. Já esteve presente na Rua do Carmo, no Pátio de São Gonçalo – hoje Praça João Mendes, no Palácio do Trocadero – atrás do Theatro Municipal, no Palacete Prates – rua Líbero Badaró

está mais para uma praça do que para uma calçada. Seja de manhã, a tarde ou a noite, parece ser o lugar certo para encontrar alguém, conversar ou ficar sozinho olhando carros e fumando um cigarro. Ao atravessar o portão, que toma conta de quase todo o quarteirão, há um espaço até a entrada da casa. É o lugar perfeito para estacionar viaturas, ambulâncias e carros de bombeiros, por exemplo. É o lugar perfeito para encon-

Foto Rubia Chikos

a Câmara abriga dúvidas e respostas de qualquer paulista interessado em sua cidade. Há 456 anos, sua história é construída a partir de perdas e conquistas, desde o surgimento de São Paulo. A democracia, como uma dessas vitórias, demorou a ser conquistada. Dessa maneira, a casa

e democrático liberal. Desde então, sua consolidação ainda está sendo colocada em prática, já que a Câmara foi fechada 3 vezes durante o Governo Provisório, a Revolução de 1930 e no Estado Novo, além de sofrer grandes mudanças e cortes com o Golpe Militar de 1964. Nos dias de hoje, regida pela Lei Orgânica, que normatiza a estrutura dos poderes Executivo e Legislativo Municipais, a casa rege as atividades administrativas da cidade de São Paulo, de acordo com os interesses de seus cidadãos. O lado de fora do portão da Câmara

e, finalmente, no Palácio Anchieta, respectivamente. Essa inconstância é diretamente proporcional à divergência política de cada época referente. O termo democracia, “governo do povo”, surgiu em 1891 com a primeira Constituição que adotou o regime republicano, presidencialista, federativo

trar a guarda civil Lígia Caldas Santos, de batom laranja, bem-humorada e extremamente simpática. A guarda, preocupada, alerta sobre o risco de assalto no lado de fora do portão e conta: “Por aqui, passam de 4000 a 45000 pessoas. Tirando os funcionários que contabilizam de 2000 a 2500”.

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a “casa do povo” não é falta de educação entrar sem bater na porta, sentar no sofá por conta própria e se aproveitar do Wi-Fi para navegar na internet. Todo paulistano tem um convite exclusivo para conversar, conhecer, descobrir, pedir, reclamar, exigir ou simplesmente passear na Câmara Municipal de São Paulo. Localizada no Palácio Anchieta, Viaduto Jacareí, é o abrigo de debates intensos marcados por audiências públicas, onde discutem-se leis e projetos. Palco da democracia e da participação cidadã,

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Como quem deixa o rótulo de autoridade de lado, ela conversa também sobre os momentos em que os fluxos são intensos: “De manhã o movimento maior é o de funcionários, mas a partir das 9h começa a circulação do povo”. A casa normalmente fecha as 18h, mas quando são realizados eventos no período da noite, o horário é estendido para as 22h: “Sem contar que quando tem evento, a casa lota! São umas 400 frequentando”. Observando por apenas cinco minutos, nota-se que o movimento de pessoas entrando pela entrada, saindo pela saída, entrando pela saída e saindo pela

aconchego nos fazem duvidar das campanhas eleitorais exibidas na televisão. De fato, os 55 gabinetes dos vereadores da Câmara diminuem as contradições. Cada parede de mármore do térreo é marcada pela luta a favor do “governo do povo”. No hall de entrada, todas elas descrevem as Legislaturas com

No meio do térreo, há uma bancada de madeira com capacidade para duas ou três pessoas sentarem esclarecerem dúvidas comuns e como “qual o gabinete do vereador tal?” ou simplesmente “aonde fica o banheiro?”. Atrás dessa bancada, eram 5 moças maquiadas, animadas e tagarelas. Cada uma com uma cor de batom, mas todas com os mesmos olhares dispostos e receptivos. A boca cor-de-rosa vibrante sorri com um “bom dia!” caloroso. Stephanie Teixeira, 17 anos, recebe os cidadãos na Câmara há 1 ano e 3 meses. A timidez da garota é oposta à cor

entrada é tão intenso quanto seus contrastes. Desde terno Ricardo Almeida até pedaços de uma camisa xadrez. Desde sapatos italianos engraxados até... nada nos pés. A escada helicoidal e os seis elevadores públicos distribuídos pelos 12 andares e 3 subsolos são utilizados pelas 4000 pessoas - e diferenças - por dia. O que sustenta o prédio é o leque de informações facilmente disponibilizado. Seus moradores trabalham para manter, construir e complementar o estoque de conteúdo. É, provavelmente, o lugar mais rico de histórias e pessoas de toda a cidade. Todavia, a única iniciativa para ter acesso à toda essa riqueza parte do próprio público. Entrar significa deixar as etiquetas - ou a falta delas - na porta de entrada que, não por acaso, é a mesma de saída. Lá, os espaços entre as diferenças são abismos esquecidos e preenchidos pelos direitos de todo cidadão. Assim como a arquitetura da maioria das casas, os cômodos são divididos entre salas de TV e jantar, cozinha e banheiros. Na do povo, a semelhança não está na arquitetura, mas no clima que paira em cada ambiente. A recepção, as conversas seguidas de “cafézinhos” e o

frases que inspiram a importância do lugar a partir da Constituição, da independência, da liberdade e das aspirações cristalizadas pelo povo. Cada auditório é uma homenagem à nomes políticos relevantes para São Paulo. O Auditório Freitas Nobre, por exemplo, é semelhante a um Teatro de Arena e tem capacidade para 500 pessoas. Reverencia o advogado, jornalista, vice-prefeito e deputado federal, lutador das liberdades demo crát ic a s nas décadas de 70 e 80. Se existe um lema c o mp a r t ilhado pelos que lá moram, ele parece ser “receba e responda” ou “jamais expulse um cidadão”. Nossos conhecimentos sobre política são revolucionados quando entramos na casa. Em meio ao distanciamento, o local é repleto de empatia e apertos de mão. Forçados ou não, a campanha é bem feita.

de seus lábios pintados. Acanhada, ela começa a falar sobre suas experiências ali, quando a do batom vermelho interrompe entusiasmada: “Uma vez chegaram aqui e perguntaram como fazer pra receber uma casa do vereador”. Atrás da bancada elas se olham e riem entre si, recordando fatos inusitados que ocorreram por lá. Uma delas diminui o tom da voz para fofocar: “Se a gente não responde, eles saem bravos e falam que não servimos pra nada!”. Os lábios cor vinho relembram do álcool em gel, que alguns usavam para se banhar ali mesmo. Stephanie deixa a timidez de lado e entra na conversa das colegas de trabalho: “Sabe o que é? Aqui não pode barrar ninguém. É a casa do povo.” Voltando à Lígia, do batom laranja, as expulsões não são nada frequentes.

Se existe um lema compartilhado pelos que lá moram, ele parece ser “receba e responda” ou “jamais expulse um cidadão”.

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Câmara: explorar e ser notado. Senão todos, quase todos os olhares o fitavam espantados. Os convidados e moradores, todavia, instruídos a seguir o lema e recebê-lo sem diferenças e preconceitos. Em tom de deboche com uma pitada de seriedade escondida, Guilherme sorri dizendo: “Quero ir até o último andar desta luxuosa casa”. No quinto andar, o corredor dos gabinetes tem um ar de estranhamento para os visitantes de primeira viagem.

A surpresa se instala quando ao encontrar em cada porta o aviso “Entre sem bater”. Numa das primeiras portas dos lados direito do corredor e da parede, há um cheiro de comida sendo esquentada. Existe uma copa localizada em praticamente todos os andares do prédio, na qual encontramos funcionários terceirizados e curiosos, mas proibidos de conversar com os cidadãos e principalmente com jornalistas. Ainda neste andar, o gabinete do ve-

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que entravam e saíam da Câmara, um rapaz as surpreende com traje diferente e um tom de voz forte, de como quem está encenando. Ele usava camisa xadrez entreaberta, bermuda, chinelos e uma luva preta na mão esquerda. Em seu rosto, restos de tinta vermelha e amarela se misturavam com o suor do dia seco e quente. Além de surpresas, ele carregava uma mala nos ombros e um instrumento musical semelhante a um teclado de brinquedo. Artista de rua, poeta cantador ou simplesmente alguém que veio de Mogi das Cruzes passar o dia casa do povo. Feito um guia turístico, Guilherme Pinhal de 24 anos, era tão íntimo da casa quanto qualquer morador da capital. “Vamos começar por aqui”, iniciou seu tour apontando para as paredes históricas de mármore no térreo. Enquanto isso, as moças animadas de batons coloridos olhavam como quem diz: “Nós avisamos...” O rapaz, que se diz ser um pouco de tudo, era desprovido de qualquer timidez. Suas falas extremamente confusas, poéticas e por vezes cantadas não escondiam os motivos de sua presença na

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A casa, sempre protegida pela Guarda Civil, Polícia Militar (PM) e pelo corpo de bombeiros, dificilmente chega a esse ponto. “Quando algum cidadão causa transtorno ou está embriagado, somos orientados a convidá-lo a se retirar”. No entanto, a justificativa “é a casa do povo” é muito utilizada: “Na maioria das vezes ele começa a fazer um banzé dizendo que não pode ser expulso. Nesse caso, chamamos mais 2 para amedrontá-lo e fazer nosso trabalho, sempre com educação”. Enquanto as jovens maquiadas conversavam sobre as diferentes pessoas

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reador José Police Neto é semelhante a uma redação. Mais ou menos 10 funcionários trabalhando, sendo cada um com sua própria mesa e seu conjunto de post-its coloridos. O balcão que separa os funcionários das pessoas que chegam é repleto de panfletos, jornais e revistas sobre o vereador, seus projetos, seus objetivos, e suas mudanças na cidade. O assessor parlamentar Lucas Santos Sorrelo, 23 anos, foi o primeiro a se levantar. De voz grave e bem rouca, ele compartilha suas experiências em 8 meses na Câmara. Ele orienta o vereador nos diálogos com a base, no recebimento de demandas da sociedade, na aproximação do político com o público e na elaboração de projetos. “São pelo menos 4 pessoas que passam por aqui todos os dias”, ele conta; e apesar de existirem assessores especializados nos diálogos com o público, no final das contas todos acabam trabalhando com isso. Além de pedir emprego, auxílio, fazer reclamações e propor novas demandas, a maioria dos cidadãos pedem para usar a máquina de xérox e pedir a senha do Wi-Fi: “Por incrível que pareça, nós não podemos recusar”. O cargo de Lucas é o mesmo de José Paulo, 38 anos, assessor do vereador Wadih Mutran há 19 anos. Separados por um andar, José Paulo pede desculpas pela bagunça do gabinete e explica a recente mudança de cômodo. Sua camisa cor vinho, levemente cintilante, combina com seu sorriso amarelado e exposto – talvez por ser o dia de seu aniversário. “Bom, meu vereador tem um escritório político, e o que ele não resolve lá, ele manda para cá”, ele fala intercalando seriedade com sorrisos. José Paulo explica que os temas abordados por Wadih são muito sociais, e por isso a procura é

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grande: “São mais ou menos 80 pessoas por dia aqui no gabinete”. Com um discurso um tanto automatizado pelos 19 anos de carreira, o assessor é firme ao dizer que grande parte das visitas buscam um emprego: “Isso acontece porque as pessoas acham que o vereador tem como quebrar o gelo na

lidam diariamente com o povo. Ambos ouvem reclamações e pedidos diversos, e nem sempre podem ajudar. “A carência das pessoas marca muito”, lamenta Lucas com a voz ainda mais rouca. “Nós temos que conversar e tentar amenizar a situação para que a pessoa saia satisfeita”, conta José com mais seriedade e

hora da entrevista”. Como solução, os assessores do gabinete acolhem o cidadão, cadastrando os dados do currículo; depois de avaliar seu perfil, o vereador assina uma indicação para a empresa selecionada: O resultado é tanto que, de acordo com José Paulo, 80% das pessoas são aprovadas para o cargo. O fato é que tanto Lucas quanto José

menos sorrisos amarelados. Talvez esse seja um dos motivos que impulsionou o projeto “Câmara no seu bairro”, com o objetivo de ouvir as reivindicações de moradores de diversas regiões da cidade. São sessões públicas fora da casa, que dão espaços para expressar-se, aproximando o público da política.

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a Câmara, a Câmara vai até você”. Continuando o tour pela casa, a curiosidade sobre o fim da famosa escada helicoidal precisa ser revelado. Os elevadores, incapazes de acompanha-la, sobem até o 12º andar. O terraço da Câmara fica no 14º e conta com a presença de um funcionário da CET para vigilância. O rapaz, que não quis ser

alguém para ficar no terraço vigiando o movimento das ruas, se há riscos de alagamento em dias de chuva, quando o tráfego é maior ou quais as faixas fechadas por conta de manifestações? O funcionário de óculos escuros espelhados: “Ninguém sabe, mas existe uma pessoa que fica vigiando isso”. Uma parte é coberta e a outra não.

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identificado, de mais ou menos 30 anos, usava uma camiseta azul vivo, um boné laranja e óculos escuros espelhados que escondiam totalmente seus olhos. Não havia ninguém naquele andar a não ser ele. Sua função, no entanto, nos dá respostas que nunca nos fizeram pensar de onde vieram. Por exemplo, existe

Neste andar, só é possível respirar ar “puro” e olhar a cidade de cima com a presença de um bombeiro. Isso deve ocorrer com frequência, já que de acordo com o rapaz vigilante, o local é frequentemente visitado: “Ontem mesmo veio um grupo de jornalistas tirar fotos daqui de cima”. A casa também conta com uma área de comunicação, aonde jornalistas produzem as noticias disponibilizadas no site (www.camara.sp.gov.br). É uma empresa jornalística reduzida, abastecida por fotógrafos, repórteres e webdesigners, responsáveis pelas redes sociais – facebook, twitter e o próprio site. Além disso, estão embutidas a TV Câmara e a WebRádio, que tem como locutor e editor Carlos Maglio, 57 anos. O senhor de cabelos brancos e voz marcante implantou o projeto da rádio precisamente no dia 23 de maio de 2011. “Sou jornalista há mais de 30 anos, e já trabalhei na Rádio Globo, na Rádio CBN, na SBT... Tenho um nome conceituado, digamos assim. Por isso, fui chamado para montar a WebRádio”. Pelo site, o internauta pode acompanhar as notícias e ouvir os podcasts em qualquer lugar do mundo. Os 2500 funcionários tornam a Câmara extremamente completa. Não é somente a casa do povo, mas a representação do cidadão. Ela é personificada e possui órgãos funcionando em cada andar. O sangue que circula e a faz viver são todas as pessoas que entram sem bater na porta, sentam no sofá por conta própria e se aproveitam do Wi-Fi para navegar na internet. São aquelas que conversam, conhecem, descobrem, pedem, reclamam, exigem ou simplesmente passeiam na Câmara Municipal de São Paulo.

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Política

Este ano, a primeira sessão ocorreu no dia 7 de março em Campo Limpo, Zona Sul, em uma unidade do Centro Educacional Unificado (CEU). O evento atendeu moradores de três distritos que, juntos, têm 607 mil habitantes e fazem parte da Subprefeitura de Campo Limpo. É mais ou menos um “se você não vai até

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De um lado, o popular. Do outro, o luxo. Assim é São Paulo, dividida pelos padrões estabelecidos por seus lugares Mariana Souza

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ão Paulo tem dois extremos, os lugares caros e exclusivos, onde só a alta sociedade frequenta, e as ruas populares que recebem qualquer tipo de pessoas, e contam com mercadorias baratas. O Shopping Cidade Jardim é um grande exemplo das exclusividades. Escondido em um conglomerado de imponentes prédios, só tem acesso quem sabe o que é e onde é, não há placas informativas. Para não haver discriminação, o shopping conta com um ponto de ônibus bem à sua frente, mas das pessoas que ali desembarcam, poucas adentram o estabelecimento nada convidativo, sua entrada para pedestres é quase imperceptível, e raramente usada. Por dentro do Cidade Jardim, são nulas as opções para os menos favorecidos, não há um loja de departamentos, nem uma rede de fast food onde possa-se comer por uma pequena quantia. Todas as 180 lojas são de grifes, em sua maioria importadas, com vitrines pouco convencionais, iluminadas e encantadoras. É como uma viagem à terra dos sonhos. Para Alessandra, moradora da zona sul, onde o shopping é localizado, não há nada que a impeça de entrar, e passear tranquilamente, mas também não há um motivo muito convincente que a faça visitar o local constantemente: “Eu gosto de ir e olhar as

vitrines, ver as coleções e as novidades, mas os preços não me fazem uma consumidora de todas as lojas”, conta ela. A segurança é inquestionável, em frente à algumas lojas, seguranças estão a postos, acompanhando todo o pequeno fluxo de pessoas que passa por ali. Dentro das lojas, é difícil se sentir a vontade para olhar, as vendedoras fazem papel de seguidoras fieis e não permitem um passeio despreocupado. “O que a senhora procura ? É algo específico ? É presente ?”, são algumas das perguntas feitas por elas na tentativa de ajudar. Os visitantes não passam despercebidos, poucas são as pessoas presentes, e é praticamente impossível esbarrar em alguém. Os passos são tranquilos, e os olhares analíticos. As roupas e sacolas frequentemente carregam nomes internacionais, e preços não muito comuns. No terraço do shopping, temos uma vista de brilhar os olhos, cheio de prédios, e carros que se tornam pequeninos, a Ponte Octavio Frias de Oliveira e o Rio Pinheiros. Mas ao seu redor, não há nada para ser visitado, aquele é um ponto único, apenas com um complexo de prédios residenciais, nos quais somente seus moradores tem acesso. Igual ao Shopping Cidade Jardim, existem apenas outros dois shoppings de luxo em São Paulo, o Shopping Iguatemi, que também tem suas grifes internacionais, porém que recebe uma loja de departamentos popular, e um fast food, além de uma fácil localização, e tem como público-alvo todas as pessoas interessadas em novidades, e o Shopping JK Iguatemi, o mais novo da cidade, e considerado o mais caro, o qual de suas 189 lojas, também não possui nenhuma de departamento, mas que o acesso é fácil, ao lado de um parque, e é pronto para receber até ciclistas. Foto Rubia Chikos

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OS CONTRASTES DE SÃO PAULO

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Em seu extremo oposto, São Paulo tem sua famosa Rua 25 de março. Com 350 lojas, e mais de três mil stands, aqui, tranquilidade é inexistente. Os passos dos visitantes são apressados, os olhares são frenéticos, e andar é uma tarefa árdua, tendo em vista a quantidade de pessoas presentes, sempre à procura de alguma coisa. Esbarrar, empurrar, driblar, esse é o labirinto da 25. E não é por menos, a rua tem diversas lojas, e camelôs, onde qualquer um encontra o que precisar, com preços agradáveis. Não há vitrines charmosas, iluminadas e brilhantes, mas há quem chame e grite promovendo suas ofertas, comovendo o consumidor e o levando até as lojas. E há ainda, quem demonstre seus produtos nas ruas mesmo, aparadores de pêlos para cá, massageadores para lá, quadrinhos pintados à mão, óculos de sol e DVDs, não tem como sair de mãos vazias. A segurança não é a maior qualidade da 25, apesar de ter alguns postos de polícias espalhados por ela, as lojas não tem seguranças, e as pessoas estão sempre atentas com seus pertences, pois infelizmente, o número de furtos e roubos é grande. A Rua que é o maior shopping a céu aberto da América Latina, é sempre cheia, e recebe diariamente em torno de 400 mil visitantes, e em datas festivas, como o natal, o número de visitantes diários sobe para um milhão, e seus trabalhadores contabilizam um número acima de 60 mil pessoas. Além dos próprios paulistanos, há quem venha de diferentes cidades, estados, e até países só para visitar a rua mais movimentada de São Paulo, além de fazer compras. Quem quer chegar à 25, conta com diversas opções de meios de transporte. Há muitos pontos de ônibus espalhados por suas redondezas, metrôs, e até mesmo acesso para carros. Ao redor da rua principal, diversas ruas têm uma interminável variedade de mercadorias, desde artigos de informática como a Rua Santa Ifigênia, artigos para festas na Rua Barão de Duprat, fantasias, bijuterias e acessórios na Ladeira

Porto Geral, e utensílios para cozinha na Rua Paula Souza. A 25 de março recebe todos os tipos de pessoas, desde as mais endinheiradas, passando pela classe média, até às que não tem nada. Alessandra, admite que prefere passear por lá, ao shopping Cidade Jardim: “Sempre encontro o que preciso, e sempre tem coisas baratinhas. Acabo levando sempre mais do que fui procurar”, conta ela. Para Maria de São Pedro, que é faxineira, a 25 é um paraíso das compras, mas lugares como o Cidade Jardim não são muito receptivos com pessoas que não estão ali para gastar, e há muito preconceito: “As pessoas julgam muito o que vestimos, elas reparam em tudo e olham feio, e não preciso estar em um lugar chique para isso acontecer. Imagino que nesses lugares deve ser bem pior”, observa Maria, que admite nunca ter ido à um centro de luxo, mas que também não tem vontade, pois não há nada que faça ou compre por lá. O contraste é claro e pode facilmente ser observado por qualquer pessoa que vá aos dois extremos. Mas talvez seja esse o charme de São Paulo, a capacidade de abrigar lugares para todos os tipos de pessoas, desde as que querem gastar mais e carregar grifes, até pessoas que não querem gastar tanto, e não se importam se algo for autêntico ou réplica. Além de importante para a economia do país, é importante para cada pessoa ter o que deseja. Só nos basta respeitar e saber conviver com as diferenças. VERaCIDADE | 2º semestre de 2015

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FILA NOSSA DE CADA DIA Vivian Estrela

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m 2014 atrações como: Castelo-Rá-Tim-Bum, Obsessão Infinita e Ron Mueck movimentaram as bilheterias paulistanas. As exposições não são as únicas atrações que provocam filas nessa cidade, restaurantes e shows são páreo duro no quesito de espera. Uma pesquisa realizada pelo Datafolha no mês de julho de 2014 afirmou que 62% das pessoas que frequentam exposições pegam filas. O percentual é ainda maior em outras atividades de lazer, 83% das pessoas encontram filas em shows, mas nem tudo são flores; 76% dos entrevistados pelo Datafolha costumam desistir de filas muito grandes. Gabrielle de Abreu Araujo, curadora-assistente da exposição do Castelo Rá-Tim-Bum explicou em entrevista que em julho de 2014 até janeiro de 2015 o Museu da Imagem e do Som (MIS)bateu o recorde em filas, tendo 410 mil pessoas o período das exposições. “Os visitantes mais preparados traziam lanches para realizar piqueniques em torno do MIS enquanto esperavam para ver a exposição – isso criava grande interação entre o público e ajudava a amenizar as horas de espera. Além disso, recebemos centenas de caravanas organizadas por cidades do interior do estado de São Paulo e até mesmo de outros estados do Brasil.” Relembrou Gabrielle. O sucesso das exposições do MIS se dá pela qualidade do trabalho realizado, que tem como característica expor todos os detalhes possíveis e maioria de suas exposições tratam-se de temas que remetem o passado, que fazem com que o público retome algum momento marcante da vida. O Instituto Tomie Ohtake por outro lado também serve de palco para as filas em São Paulo; diferente do MIS o Instituto tem como peculiaridade fazer exposições que envolvem mais o lado cognitivo dos visitantes, mexer com o sensorial e tratar de assuntos que não são muito vistos em museus de São Paulo. A mostra Obsessão Infinita explorava as obras da artista plástica Yayoi Kusama através de releituras da trajetória de sua vida pósguerra. A interatividade com a exposição chamou a atenção do público, fazendo com que as filas se formassem logo cedo para obter os ingressos. Uma sala com espelhos, luzes e água, era o lugar mais esperado do público após passar um ambiente cheio de quadros e de bolas de borracha espalhada pelo local. Vitória Arruda, diretora de produção do instituto explicou que por um momento a direção do evento tinha uma certeza que a repercussão seria grande pelo fato que meses antes, a exposição foi um sucesso no Rio de Janeiro e assim o instituto já vinha se preparando para a grande demanda de pessoas visitantes. “Foi uma experiência incrível, pois pessoas vinham de vários lugares do Brasil para viver um pouco da vida da

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Yayoi e muitas dessas pessoas não costumavam ir em museus, mas pela repercussão na mídia e rede sociais da mostra fizeram com que elas se animassem para prestigiar esse evento.” Admirou-se. As filas em geral costumam ter personagens inusitados e pessoas que acabam construindo histórias muito interessantes, umas delas foi repercutida nas redes sociais no final do ano passado onde um casal em Osasco se conheceu na fila do show da banda Teatro Mágico, namoraram por três anos e chegaram a se casar no mesmo dia em que se viram pela

primeira vez e o mais impressionante é que o casal trocou a lua de mel pelo show da banda, logo após de seu casamento. Outra história interessante foi na fila da Apple para a venda do Iphone 6, um homem ficou 44 horas na fila para comprar o aparelho, o curioso é que o aparelho não era para ele, era para sua esposa e mesmo depois de esperar horas e horas sua esposa pediu a separação dias depois do ocorrido. Seja exposição, restaurante, shows ou outros eventos as filas de espera acabam sendo sempre um motivo de estresse ou um ponta pé inicial para uma história marcante.

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Menestréis do Ilha por Cláudia Janine

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Respiração, movimento, comprometimento e confiança. Através da dança, da música e da arte, o grupo Menestréis do Ilha, há 10 anos, desenvolve nas pessoas a paixão pelos palcos.

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No teatro, todo detalhe importa. A concentração do ator envolve a plateia. Ele vende a sua própria verdade e seduz, entre seu expirar e respirar, as pessoas ali presentes. Um simples descompasso pode quebrar o encanto.

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O improviso, o próximo passo, a sintonia com o companheiro de palco. A autoconfiança de se apresentar sob os holofotes para uma plateia cheia ultrapassa as barreiras artísticas. Se torna um exercício para a vida.

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O ator de teatro brinca na vida como se vivesse em um imenso palco. Se faz grande, pequeno, intenso e sutil... Faz da fantasia a realidade e da realidade, apenas mais uma trama. Ele ĂŠ livre para ser o que quiser.

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“Eu vim do Maranhão e represento sim minha região. Você só veio de Osasco pra cá e ai, o que você tem pra me falar?

NA BATIDA DO RAP Batalha de MCs transforma calçada da estação Santa Cruz em palco

Daniele Rodrigues

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Foto Rubia Chikos

30 segundos Dreck Jota”, grita Gah MC, organizador da Batalha do Santa Cruz há sete anos, para anunciar o próximo a batalhar. Tênis Adidas Star, calça larga, camisa comprida e folgada no corpo e boné compõem a vestimenta de todos que participam ou assistem aos duelos na estação de metrô Santa Cruz, na zona sul de São Paulo. Os olhos se voltam para o centro da roda, para acompanhar a atuação de seus colegas, e, com muita euforia, os MCs aguardam ansiosos pela sua vez. “O rap é como uma válvula de escape e aqui acontece a busca por uma voz ativa na sociedade. Eles expressam sua raiva, sua indignação e sentimentos bons de esperança”, explica Richard Pereira, de 28 anos. Ele acompanha o grupo há seis anos. Já batalhou, mas hoje ajuda na organização e compõe suas próprias músicas.

“Barulho pra Lincon...Barulho pra Dreck Jota”. O público, formado por ao menos 20 pessoas, decide quem passa para o próximo round. O estudante Edson Dias, de 21 anos, maravilha-se com a criatividade e rapidez dos MCs, mas lamenta o preconceito e a falta de espaço para grupos como a Batalha do Santa Cruz. O movimento proporciona tanto a quem assiste quanto a quem participa a chance de vivenciar a arte do rap improvisada e a cultura nela contida. “A

princípio, a Santa Cruz já era um point, onde as pessoas se encontravam para conversar, quando Hadee, antigo membro da Afrika Kids Crew (Organizadora da Batalha do Santa Cruz), nos trouxe a ideia de fazermos uma batalha de MCs periódica igual a Batalha do Real, no Rio de Janeiro.” Assim, surgiu a Batalha do Santa Cruz, em 18 de fevereiro de 2006, conta Júlio César Eugênio, popularmente conhecido como MC Flow, um dos fundadores do movimento. O rapper comenta sobre a impor-

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tância de um ponto de encontro, onde é possível conhecer pessoas com diferentes ideologias e obter diversos aprendizados para a vida. “É como se fosse nosso templo. Algo que era apenas por diversão e se tornou um marco do rap nacional”, se alegra MC Flow. Inspirado em fatos cotidianos e momentos que marcam a vida de uma pessoa, o rap é um estilo de vida e a Batalha do Santa Cruz tem como intenção rea-

nhecidos. Naquela época, não sabia direito que aquilo era rap. Depois de um tempo, fui descobrindo quem eram os caras e os que eles cantavam. Rap. A identificação foi natural, pois eles e outros grupos que eu ouvia cantavam o que eu via, vivia e eles eram o que eu queria ser, vestiam o que eu queria vestir”. O jovem de 27 anos lembra que, no começo, a influência do rap foi direto na raiz, no seu caráter e comportamento.

Santa Cruz e a de Rashid, como ele mesmo conta, o gênero também tem papel importante na vida de uma pessoa comum. “Já cheguei a ouvir relatos de pessoas que largaram as drogas ou o mundo do crime depois que se inspiraram em letras de incentivo do rap. Ouvi pessoas dizendo isso sobre a minha música. É como se meu som tivesse abrido uma porta nova na mente e na vida da pessoa”, exalta Rashid.

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Truta, nóis é Nordeste, nóis é Zona Leste. Meu sangue é sim dos homens cabra da peste. Nunca ninguém vai me humilhar falando da minha terra, porque se falar serei obrigado a partir pra guerra”

"violência doméstica é a mulher quem sofre. violência estética é a mulher quem sofre. é a mulher quem sofre a violência do dia a dia. você é branco e hétero. não sabe qual que é a da minoria" vivar a essência desse gênero na sociedade. Para MC Flow, o rap desperta um dom escondido, incentiva o jovem a ler e a estudar para ter um vocabulário vasto para as rimas, além de servir também como vitrine para os novos MCs. “Emicida, Projota e Rashid foram os primeiros a passarem por aqui e hoje ganharam o Brasil”, gaba-se. Michel Dias Costa, mais conhecido pelo seu nome artístico Rashid, passou pela Batalha do Santa Cruz. Hoje tem mais de um milhão de seguidores nas redes sociais e trabalha com a agenda lotada. “Eu era muito novo e ouvia rap sempre na casa dos meus primos e co-

“Ouvia muito os caras falando de respeito, disciplina, lealdade e isso foi me afetando diretamente. Com 13 anos eu sentava na frente da minha casa para ler um livro e desenhar. Lembro que queria ser artista de grafite, ninguém fazia isso. Só eu”. Rashid acreditava que seus ídolos estariam em algum lugar fazendo o mesmo. “Comecei a olhar pra tudo com outros olhos. O olhar daquele que enxerga o problema e quer uma solução. Pelo menos na teoria, porque eu só tinha de 12 para 13 anos”, ironiza. Assim como mudou a vida de MC Flow, que hoje vive para a Batalha do

O rap fala da vida, da cor, do Brasil, do amor, da felicidade, da tristeza, enfim, fala de tudo com um toque particular, que varia de rapper para rapper. É um estilo que faz um trabalho que nem o governo, nem a religião o fazem. Porque ele está onde nenhum desses dois estão. “Por isso a Batalha do Santa Cruz está ai. São nove anos de história. Já vi artistas nascerem e desaparecerem. Batalhas engraçadas, outras nem tanto. Uma história que marcou nove anos da minha vida e ainda continua marcando. Não só a minha, mas de todos que com ela se envolvem”, se emociona MC Flow.

“Quem quer batalha boa grita sangue!” VERaCIDADE | 2º semestre de 2015

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música consegue atingir nosso sistema de luta e fuga de diferentes modos em diferentes pessoas; quando se estimula os hormônios como a adrenalina, noradrenalina e dopamina, as nossas emoções são afloradas a ponto de nos encorajar há algo que não aconteceria se não ouvíssemos tal música. Muito cedo começa a ser desenvolvido o nível Neuropsicomotor (refere-se ao desenvolvimento do sistema nervoso, sob aspecto psicológico, desenvolvimento e coordenação motora), que ajuda no desenvolvimento e na capacidade de equilíbrio para quem está envolvido diretamente no processo de aprendizagem musical. Em uma criança, a música está ligada a relação materna – da voz da mãe escutada ainda no útero, e com as canções de ninar cantadas nos primeiros meses de vida. A audição, usada como referencial desde a gestação, é considerada como uma janela de integração com o mundo. Ainda na infância, a música está ligada aos desenhos educativos e lúdi-

O DESAFIO DE TRANSFO R

O erudito consegue romper as barreiras do preconceito e leva u ma crianças, jovens e adultos, mostrando que música clássica não te m c

cos e às canções de roda aprendidas na época do jardim de infância. Por isso a importância, já na primeira infância, de “experimentar” os mais variados estilos musicais, para que seu gosto musical, quando adulto, possa ser o mais fiel e sincero possível. Luiza, uma pequena musicista de dez anos, começou a aprender a tocar violino aos nove anos. Com pouco tempo de estudo de violino, sua mãe Mariza

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já consegue enxergar as primeiras mudanças que influenciaram no dia a dia da pequena musicista. Com duas aulas particulares todas as semanas com a duração de 1h30, a cada dia mais a menina “Lúh”, se empenha em tocar melhor. “As aulas de violino, é a melhor parte da minha semana, gosto de tocar e ouvir músicas no computador e ficar tentando imitar. A música me deixa mais leve”, falou Luiza com muito entusiasmo.

A transformação que diversos estudos constatam na vida de crianças, adolescentes e jovens é observada por meio de vários métodos de ensino, como os projetos musicais que ensinam música a essas crianças e ajuda a transformar uma realidade preexistente de tristeza e pobreza em uma vida mais equilibrada. O Instituto Baccarelli nasceu a partir do desejo do maestro Sílvio Baccarelli em ajudar a comunidade de Heliópolis,

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Foto Rubia Chikos

O RMAR VIDAS

a u ma nova forma de viver para muitas o te m censura de raças ou classe social

após assistir na televisão um incêndio que havia ocorrido no local. Ele começou com 36 crianças de uma escola da comunidade no ano de 1996 e deu início ao projeto de ensinar música para crianças, e com isso, a mudança aconteceu não apenas na vida delas, mas também em seus familiares e na comunidade. Desse modo, o projeto ganhou mais forças com a ajuda das pessoas que acreditam no poder transformador da música também. Com a capacidade para receber até 2.000 alunos, hoje o instituto tem 1.400 alunos matriculados.

“Sim. Tocar um instrumento envolve praticamente todas as áreas do cérebro de uma só vez, principalmente as áreas visual, auditiva e motora. A diferença mais óbvia entre ouvir e tocar música é que tocar envolve habilidades de movimento muito delicadas e essas habilidades são controladas pelos dois lados do cérebro. Essa atividade também combina a área da linguagem e cálculos matemáticos. Por isso, descobriu-se que tocar música aumenta o tamanho e a atividade do corpo caloso no cérebro - a ponte que liga os dois hemisférios e permite as informações circularem mais rapidamente e em rotas mais diversificadas e pode ajudar os músicos a solucionarem problemas de forma mais efetiva e criativa, tanto na área acadêmica quanto social, porque fazer música exige criar e entender seu conteúdo emocional e a mensagem codificada em forma de notas, valores rítmicos, tons e acidentes. Os músicos também têm níveis mais altos de ‘função executiva’, uma categoria de tarefas interligadas que envolvem planejamento, estratégia e atenção a detalhes e que requerem análise simultânea dos aspectos cognitivos e emocionais. Neurocientistas exploraram essas questões e até agora perceberam que os aspectos artísticos e estéticos envolvidos em aprender e tocar um instrumento musical são diferentes de todas outras atividades de estudo, mesmo em relação às outras artes. Em diversos estudos aleatórios com pessoas que tinham o mesmo nível de cognição e processamento neural, as pessoas que foram expostas a um período de aprendizado de música mostraram melhoras em várias áreas do cérebro quando comparadas com outras. Essa pesquisa recente sobre os benefícios mentais de se tocar música melhorou nosso entendimento sobre as funções mentais, revelando os ritmos internos e as complexas interações que fazem ‘a incrível orquestra do nosso cérebro.” Wassi Carneiro musicoterapeuta

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Danielle Fernandes

Há diferenças nas atividades cerebrais quando se ouve música ou quando se faz música?

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O arranjo da vida

Fotos Rubia Chikos

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A jovem Natália Sena, cearense, hoje com 28 anos de idade, pode olhar para o seu passado e se alegrar por ter feito parte do Instituto Baccarelli, e ver que viveu os melhores anos da sua vida. Ela só saiu do projeto para tocar na Banda Sinfônica do Exército Brasileiro. Em uma conversa com a jovem musicista, ela fala como foi crescer fazendo parte de toda a estrutura que o Baccarelli oferece. “Comecei estudar violoncelo aos 17 anos na orquestra da escola e aos 18 me mudei pra Tatuí”, onde morou por dois anos. Por quatro anos teve a oportunidade de fazer aulas com os melhores professores de São Paulo, tocar na Sinfônica Heliópolis com grandes maestros e solistas e ainda dar aulas para as crianças. Então, o dia de Nathalia era todo no instituto. Às sete horas da manhã começava com uma turma coletiva de “cellos” com crianças de sete a dez anos, depois às nove horas tinha ensaio da Sinfônica, à tarde ela estudava e às vezes a noite ajudava com a orquestra infantil. “Não tenho como descrever o que vivi no Baccarelli, em termos musicais, ganhei uma experiência que jamais poderei esquecer. Só saí do instituto porque meu trabalho atual fica em outra cidade”, relembrou. Ela ainda disse que a música tem um poder transformador por sua capacidade de nos levar a outros campos, a outros mundos que antes eram desconhecidos. A música, para ela, é desafiadora nesse sentido, pois diante do novo, somos desafiados e crescer e a nos desa-

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fiar pessoalmente. Com isso, novos objetivos são conhecidos e traçados, o que nos leva sempre além. Como o Instituto Baccarelli, ainda existe vários projetos espalhados pela cidade de São Paulo, que usam a música para ajudar a transformar e trazer uma nova expectativa para a vida de crianças, adolescentes e jovens. Um desses projetos é a Orquestra Experimental de Repertório que nasceu na Escola Municipal de Música, e que prepara seus músicos para concorrerem às vagas que surgem em grandes orquestras profissionais, como a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo. Rodolfo Hatakeyama toca na Orquestra Experimental de Repertório com 28 anos, também já foi aluno da Academia de Música da Orquestra do Estado de São Paulo (OSESP) e estudou um pequeno período na Alemanha, ele acredita que a música tem o poder de transformar-nos intelectualmente, socialmente e, até mesmo, espiritualmente. Isso porque ela traz novas informações e novas percepções de vida.

Quebrando os paradigmas Para tentar diminuir o tabu que existe sobre a música clássica, Matheus Bellini, começou a tocar com mais dois amigos (o violista Caio Forster e o violinista Leonardo Mallet), em locais em que a música erudita tinha pouco acesso ou até mesmo era algo desconhecido. Começando a juntar mais amigos para a realização desses “concertos”, eles criaram um projeto ino-

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“É preciso que a música chegue ao repertório das pessoas para que elas se familiarizem com o repertório erudito” Usar o espaço urbano para isto é, no meu ponto de vista, o modo mais inteligente de promover esta interação com o público”, exclama Bellini. Esses projetos estão aparecendo aqui e ali com alguma frequência e consistência. O boca a boca tem ajudado a disseminá -los e todos os envolvidos têm notado os

benefícios que o conhecimento e a prática musicais apresentam no contato com uma audição, com um ensaio, com o comportamento e a transformação do mundo nele envolvido. Notamos nisso convergência entre o pensamento acadêmico, científico, com o senso comum. Enquanto um é estruturado, metódico, cartesiano, o outro segue o faro, a atração natural e o bem estar experimentado que, ainda sem saber como ocorre e sem poder explicar suas razões, percebe, sente, se modifica. O elo é a cultura, que por toda a história da humanidade organizou o caos, desde as sociedades mais rústicas até guiar o homem a ideais mais nobres, como na Renascença. E admiramo-nos de que a música clássica, que tem suas raízes mais profundas nas catedrais europeias, beneficiou-se da nobreza naquele continente e hoje, quase mil anos após os primeiros cantochões, atraia plebeus com a mesma intensidade, dando a todos a possibilidade de desenvolver-se, de falarem a mesma língua e ter esperanças de que a diferença seja se não apagadas.

Foto Rubia Chikos

tra de rua vai até as comunidades mais pobres e também a espaços com bastante movimentação, como a Avenida Paulista, mostrar à misteriosa e apaixonante música clássica. O projeto já conseguiu levar cerca de 470 instrumentos de arco para as ruas no Estado de São Paulo. “Se as orquestras ficarem sentadas em suas cadeiras esperando que o público chegue até elas, o risco de se tornarem peças de museu será grande. É preciso

que este tipo de música invada o cotidiano das pessoas para que elas se familiarizem com o repertório erudito e, consequentemente, invadam as salas de concerto.

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vador na forma de apresentar a música clássica, que provocou uma mistura de objetivos que parece ter dado certo, e começou o projeto Maratona CulturalOrquestra de Rua. A Maratona Cultural atua com um modo diferente de mostrar a música clássica, sempre levando a música de “difícil” acesso para aqueles que nunca viram um violino ou um violoncelo de perto. É necessário que o primeiro contato seja de forma impactante e inusitada, que estimule estas pessoas a escutar música clássica e desperte o interesse em assistir concertos ao vivo. Assim, a orques-

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Luz,Câmera,Ação!

Larissa Maida

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LUZ, CÂMERA E A SÃO PAULO

cidade de São Paulo é retratada no cinema desde o início da indústria cinematográfica no Brasil. A cidade passou por diversas mudanças, entre elas: políticas, culturais e revolucionárias, e em cada década há um filme que relate uma São Paulo diferente. Uma das obras consideradas precursoras do Cinema Novo é o filme, de 1958, chamado “O grande momento”, dirigido por Roberto Santos. O filme mostra a cidade no início do processo de indus-

vas. É a época dos grandes fluxos migratórios, a pobreza aumenta drasticamente, e consequentemente as periferias e a violência. Você tem um caos instaurado em uma metrópole”, explica Cardenuto. E é exatamente esse caos que é vivido por Carlos (Walmor Chagas) em “São Paulo, Sociedade Anônima”, de 1965, dirigido por Luís Sérgio Person. “É um filme muito importante na questão da representação de São Paulo. Há uma série de novidades. Antes do filme, havia

ma que o derrubou, e após perder tudo Fausto passa a ser apenas mais um na São Paulo evoluída comercialmente. “A madrugada que a principio é dinâmica, repleta de atrativos e diversões, no fundo comporta um grande tédio existencial, que é uma crise existencial. Parece que a cidade tem uma aparência de ser acolhedora, mas na verdade o que ela oferece não consegue preencher esse vazio existencial”, explica Cardenuto. Os locais da cidade retratados no ci-

trialização, onde a maioria da população sofria com a economia brasileira e com ruas ainda não asfaltadas. Filmado nos bairros do Brás e do Glicério, “O grande momento” conta com Paulo Goulart, Gianfrancesco Guarnieri e Lima Duarte no elenco, e relata o dia do casamento de Zeca (Gianfrancesco Guarnieri), que faz de tudo para conseguir o dinheiro para pagar o terno da cerimônia. A história é leve e divertida, os enquadramentos são extremamente inovadores para a década de 50, o filme narra experiências totalmente comuns , mas de maneira em que São Paulo parecesse acolhedora e um lugar em que os conflitos terminam com um final feliz. Mas nem sempre o cinema retratou a cidade com essa mesma visão. A partir dos anos 60 a visão crítica de São Paulo se aflorou no cinema nacional. Para Reinaldo Cardenuto, professor de cinema da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), o cinema acompanha as transformações da cidade, que é repleta de grandes contradições. “A partir dessa década, não tem mais como você voltar às representações extremamente positi-

um predomínio no cinema brasileiro de construir uma representação positiva da cidade que comporta uma utopia de um projeto capitalista. Em São Paulo, Sociedade Anônima, Person cria uma visão mais exaustiva de uma cidade que esgota o indivíduo”, comenta Cardenuto. O filme completa 50 anos neste ano, e muitas das características apresentadas em 1965 estão presentes em 2015. São Paulo é uma utopia para muitos, mas não é bem assim. A cidade possui seus encantos e grandezas, mas também tem o poder de fazer qualquer um se perder no meio do caminho com inúmeras tentações. O filme “Demência”, de 1986, dirigido por Carlos Reichenbach, vale a pena ser assistido para ver claramente o contraste entre a beleza da cidade e o seu lado mais sombrio. Fausto (Ênio Gonçalves) após passar por problemas financeiros e matrimoniais, sai na madrugada da cidade e procura por refúgio, em suas fantasias. O homem bem sucedido que aparentemente tinha tudo, passa por conflitos emocionais e existenciais e a cidade que o fez crescer profissionalmente foi a mes-

nema são desde os mais turísticos, como a Av. Paulista, Bairro da Liberdade, Praça da Sé, até as belezas abstratas que a cidade dispõe, como concretos e grafite. Em meio a São Paulo agitada e corrida, parar para observar e apreciar as coisas boas da cidade não parece ser uma opção. Tomada pelo trabalho e pela rotina a sociedade só percebe o que é de alcance aos olhos, deixando o olhar mais crítico das coisas para um momento de calmaria, que pode nunca chegar. Esse cenário mais “abstrato” e moderno pode ser observado em “Super Nada”, de 2012, dirigido por Rubens Rewald, o grafite é engrandecido nas imagens e ganha um extenso espaço no filme. Tendo representações cinematográficas positivas e negativas, a cidade de São Paulo sempre será uma junção delas em diferentes pontos de vista. São Paulo é ambígua. É tudo ou nada. É luxo ou lixo. É inspiração ou desilusão. Relatando situações banais ou críticas, o cinema que retrata a região paulista se tornou parte da cidade e ainda continuará acompanhando seu desenvolvimento através da arte. Luzes, câmeras e muita ação em São Paulo.

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Foto Divulgação

Pequeno Dicionário Amoroso 2 (20/08/2015) A continuação se passa dezesseis anos após Luiza (Andréia Beltrão) e Gabriel (Daniel Dantas) seguiram seus caminhos separadamente. Ela se casou novamente e teve o filho que tanto sonhava, ele está namorando uma mulher mais nova. Após um reencontro entre os dois, o interesse renasce e eles acabam virando amantes.

O que fazer?

AS ESTREIAS NO CINEMA

A Esperança é a última que morre (10/09/2015)

Zoom (1/10/2015) Coprodução entre Brasil e Canadá, o filme retrata a história de três personagens : Emma, Edward e Michelle. Emma investe suas economias em um implante de silicone que dá errado, Edward é um cineasta, e precisa refilmar o final de seu filme de arte, e Michelle é uma modelo brasileira que vive no Canadá, e volta ao Brasil para escrever um livro.

Foto Divulgação

Para os fãs de comédia, “A Esperança é a última que morre“ conta a história de Hortência (Dani Calabresa) uma repórter que sonha em ser âncora de um telejornal. Mas Vanessa (Katiuscia Canoro), também jornalista, será um obstáculo para a concorrente. Hortência para se destacar começa a forjar assassinatos que lhe de preferência na cobertura dos casos.

Minha fama de mau (15/10/2015) Um dos maiores nomes da música brasileira ganha um espaço nas telas nacionais. “Minha fama de mau” narra a história de Erasmo Carlos desde o início da carreira quando ainda estudava música, sua amizade com Roberto Carlos e Wanderléa, até o ápice do sucesso explosivo.

Até que a Sorte nos Separe 3 (31/12/2015) Continuação da franquia de sucesso que já levou mais de 7 milhões de pessoas aos cinemas. “Até que a Sorte nos Separe 3” é uma nova aventura de Tino (Leandro Hassum), que nos filmes anteriores enriqueceu e gastou todo o dinheiro. Será que isso acontecerá pela terceira vez ?

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O que fazer?

ENTRE MUITA CULTURA E POUCO CONHECIMENTO

Apesar dos grandes acervos, museus paulistanos sofrem com pouca verba e alguns são desconhecidos do público Juliana Fernandes

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ão Paulo tem 55 museus, sendo alguns menores e afastados do grande centro, outros bem conhecidos e atraindo bastante público. E todos têm suas particularidades em informação e entretenimento. O menor deles, o Museu da TV que fica na região do Sumaré, foi idealizado por Vida Alves, atriz que encenou o primeiro beijo em uma novela brasileira. Fundado em 1995 contou com doações e apoio de seus amigos artistas, como Chacrinha. Mas hoje a manutenção é feita somente por ela. Diz que “empobreceu” ao sustentar o museu que conta com uma equipe de sete pessoas, sendo D.Vida, a única que não recebe salário, pois tira do próprio bolso o da equipe. Para ela, “o que importa é o reconhecimento”. Promove almoços com amigos artistas e cobra R$20,00 para ajudar na manutenção. Com visitas de 5 a 6 pessoas por dia, o museu agrada de idosos que recordam os atores e programas de TV de suas épocas, até crianças com a grande linha do tempo de programas infantis.

“Falta de interesse da prefeitura divulgar que em São Paulo existe um único museu ligado a mente criativa dos brasileiros. Isso é lamentável”

O acervo conta com a primeira televisão fabricada no país, assim como a primeira máquina de escrever de Benedito Ruy Barbosa, usada para redigir novelas como “Cabocla” e “Pantanal”, e uma das três únicas câmeras que Assis Chateaubriand comprou para o estado. Já a grande Casa das Rosas que recebe em média 10 mil visitas mensais, fica no coração da Avenida Paulista, em um casarão de chamar a atenção de todos que passam por ali, com um grande pátio envolto de plantas e árvores. O museu possui todo o acervo do poeta Haroldo de Campos que foi doado pela família e hoje, também é um centro cultural de poesia e literatura em que são realizados eventos, musicais, teatros e oficinas. Um destaque desses cursos, o Centro de Apoio ao

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Escritor, apoia autores anônimos no desenvolvimento e publicação de seus primeiros livros. Todas as atividades são gratuitas e a verba dada pelo Estado é pouca. Por isso, conta com a contribuição dos próprios visitantes, que doam livros e da família de alguns artistas. Com tantas atividades e muitas barulhentas, o museu já recebeu uma carta dos moradores do prédio ao lado que reclamaram do barulho, alegando achar que a Casa das Rosas seria um lugar silencioso. Frederico Barbosa, diretor do museu e poeta, tem a carta como troféu, explicando que a intenção era exatamente aquela, “a poesia e a literatura não podem ser de gabinete, se não, elas morrem”. Acrescenta que a poesia, “tem que ser algo vivo, que as pessoas venham comungar, que seja pra cima”. E para o sucesso dos pequenos museus sem terem que se entregar às temáticas populares, Carolina Campos assessora de comunicação do Museu da Energia, sugere o investimento na democratização do ingresso que permite a gratuidade na entrada de todos os museus, acessibilidade para que diversos tipos de pú-

blico possam aproveitar os museus com autonomia e parcerias com ONGs e escolas para a organização de projetos. Para Carlos Mazzei, fundador do Museu das Invenções, seria primordial a realização de grandes reformas tecnológicas, mas não há apoio. O motivo é a “falta de interesse da prefeitura, divulgar que em São Paulo, existe um único museu ligado a mente criativa dos brasileiros. Isso é lamentável”, critica. E não é para menos, já que o MIS, apoiado pela Secretaria da Cultura, teve recorde de visitação em 2014 com as exposições do “Castelo Rá-Tim-Bum” que reproduziu fielmente o cenário nostálgico da série e “David Bowie” com diversas fotos e figurinos que enlouqueceram o público, somando 603 mil visitas.

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ONDE VISITAR?

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CASA DAS ROSAS Sempre contando com eventos, cursos, teatro e o acervo de Haroldo de Campos, a Casa das Rosas também tem um café bastante frequentado. A entrada é gratuita e funciona de terça-feira a sábado, das 10 às 22h. Domingos e feriados, das 10 às 18h. Av. Paulista, 37 – Bela Vista (Próximo a estação Brigadeiro do metrô)

Foto Divulgação

Foto Divulgação

MUSEU DAS INVENÇÕES A “Inventolândia” como também é conhecida, possui 500 invenções, como o Driver Alert aparelho para manter o circuito cerebral dos motoristas, não desviando sua atenção. O Valor da entrada é R$15,00 e o horário de visitação é de segunda a sexta-feira, das 10h às 17h. Rua Dr. Homem de Mello, 1109 – Perdizes

CASA GUILHERME DE ALMEIDA O lugar mais popular do museu é o escritório do poeta modernista contendo seus objetos de decoração, máquinas de escrever e até o fuzil e capacete usado durante a Revolução de 1932. Também conta com um Centro de Estudos de Tradução Literária. Visitação: de terçafeira a domingo, das 10h às 18h. Entrada gratuita. Rua Macapá, 187 - Perdizes

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MUSEU DA ENERGIA Com a história do crescimento industrial do estado nos últimos 150 anos, o Museu da Energia também é interativo com a participação de seus visitantes em experiências científicas e jogos que estimulam o visitante a refletir sobre a energia do passado, de agora e do futuro. A visitação é de Terça a sábado, inclusive feriados: das 10h às 17h. Com entrada gratuita. Rua Alameda Cleveland, 601 - Campos Elíseos

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O que fazer?

MUSEU DA TV Com objetos, figurinos e fotos sobre a TV brasileira, em setembro o museu fará vinte anos e contará com uma programação especial. A visitação é mediante ao agendamento pelo telefone: (11) 3872-7743. A entrada custa R$5,00, mas aceita quantias maiores para a manutenção do museu. Rua Vargem do Cedro, 140 – Sumaré

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Prédios abandonados na capital são ocupados por artistas e transformados em produções artísticas Bruna Pinheiro

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prefeitura de São Paulo estima que cerca de 400 mil imóveis estejam abandonados. E essas propriedades não têm só chamado a atenção de pessoas sem moradias, mas também de movimentos artísticos que ocupam esses espaços para transformá-los em ocupações culturais. No ano de 2014, cerca de quatro estabelecimentos foram ocupados em São Paulo.

lizaram as obras no local, que hoje oferecem oficinas, show, performances e festas distribuídos em cada andar da antiga sede da Secretaria da Cultura. Squatting, como é conhecido em várias cidades do mundo, é um tipo de ativismo que visa à ocupação de lugares abandonados, seja para fins culturais ou moradia. A primeira ocupação foi a da Casa Amarela, no dia 20 de fevereiro. Na rua da

Muitos movimentos nascem e ganham força com as jornadas de junho de 2013. Após os protestos que chegou a reunir 1,28 milhões de pessoas nas ruas, essas pessoas se viram como indivíduos sociais e não conseguiram mais se desligar, continuando assim a busca pelos seus direitos na cidade, de expressão e de luta contra a hegemonia do mercado, seja de arte ou de música, e essa é uma função social que é possível encontrar dentro das ocupações. Cada um tem uma visão, mas com uma missão em comum, a resistência. Ao som de flauta, violão, palmas e gritos, os artistas fizeram um paredão em volta da entrada, enquanto alguns homens arrombavam o portão do prédio do Ouvidor. Ao conseguirem entrar no prédio de 13 andares da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional), no dia 01 de maio de 2014, músicos, fotógrafos, cineastas e atores de diversos estados rea-

Consolação, o casarão amarelo e marrom do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), foi ocupada pelo grupo Ateliê Compartilhado TM13. A artista do Ateliê Compartilhado, Vanessa Sabbath, realiza laboratórios e oficinas incentivando a cultura jamaicana e explica que eles buscam incentivar os jovens, principalmente das periferias, visando reintegrá-los, estimulando o lado artístico e tirando-os das ruas. Por isso, esses movimentos não acabaram e sim estimularam outros. Depois da Casa Amarela, foi a vez da Casa Azul, conhecida como Centro Cultural da Zona Norte, o prédio era do patrimônio histórico de São Paulo. Todas as formas de arte realizadas nesses locais são formas de resistência. Seja no Centro Cultural da Zona Norte ou as viradas e sounds realizados embaixo do Viaduto do Chá em São Paulo. Compartilhado e auto-gestão é o que define esses movimentos que disseminam arte e som pela cidade. A artista da Casa Amarela, Ayelen Cerda, acredita que há potencial revolucionário e que ele tem poder de ser unificado e politizado. No Brasil, a arte é bem elitizada e mercantilizada pelas galerias, criando dois extremos. Quando o artista não consegue se inserir nesse mercado, ele acaba se tornando um artista de rua. E quando a arte passa a ser uma forma de luta política, como laboratório social, começando a mudar os esquemas da população, você começa a estabelecer uma nova forma de sociedade. Pois, esses locais com função de inserção do artista e da luta através da arte em espaços que não são legítimos, ganham força política, e se transformam numa forma sadia de impactar a cidade e os preconceitos que há nela.

Foto Giorge de Santi

O que fazer?

ARTE TRANSFORMANDO SÃO PAULO

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MOVIMENTOS ARTÍSTICOS PARA VISITAR

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Foto Giorge de Santi

doações de livros, alimentos e produtos de limpezas. Para saber mais, entre na página do facebook da Casa Amarela: espacocomumcasaamarela. Rua da Consolação, 1705.

O que fazer?

Casa Amarela Com exposições novas todos os dias, a Casa Amarela oferece uma gama de laboratórios e oficinas, desde oficina de hip-hop até salas sensoriais, biblioteca, performances e sarau, com artistas que renovam e expõem suas artes diariamente. Além disso, a casa deixa as portas abertas para você que quer participar, expor suas obras ou ensaiar. A casa funciona das 10h às 22h e a entrada é totalmente gratuita, mas eles aceitam

Foto Divulgação

Ouvidor 63 – Porão das Artes Com 13 andares cheios de arte, música, cor e performances o Ouvidor além de oferecer oficinas, sempre está realizando eventos multi artísticos que reúne muitas pessoas e residentes. O prédio funciona das 14h às 22h e a entrada é gratuita, mas isso varia de acordo com o evento realizado na casa, em alguns é pedido alguma doação, mas essa e outras informações são divulgadas na página no facebook do Porão das Artes: poraodasartessp. Rua do Ouvidor, 63 – Sé. Centro Cultural Zona Norte Com uma equipe de professores e artistas voluntários, o centro oferece diversas atividades e funciona como uma escola livre, desde aulas de artes marciais, como muay thai, boxe, Jíu Jistu até aulas de português, matemática, Artes Cênicas, Marketing, culinária e meio ambiente. Além disso, todo mês um artista diferente realiza eventos. O centro funciona das 12 às 22h e a entrada é totalmente gratuita. Para saber mais entre na página do facebook do Centro Cultural da Zona Norte: /centroculturalzn?fref=ts . Praça Oscar da Silva, 111- Vila Guilherme.

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Crônica

UM CASTELO DE SONHOS Déborah Delaye

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nquanto muitos a enxergam como um reduto de criminosos, de pessoas ligadas ao tráfico e/ou a outras atividades que não sejam bem vistas com bons olhos pela sociedade, para mim, aquele espaço ganha sentido diferente. Paraisópolis é sim uma favela como outra qualquer, tem seus aspectos negativos mas também, abriga muitas pessoas batalhadoras, que apesar de estarem morando naquela região, ainda estão em busca de uma vida melhor. Isso muita gente não enxerga. Naquela favela existem inúmeras histórias bacanas que daria para escrever milhares e milhares de crônicas como essa, mas hora quero contar-lhe apenas uma delas. O fato ocorreu dentro da famosa “Casa de Pedra” de Paraisópolis, uma casa que se parece mais com um castelo, com suas paredes decoradas com os mais diversos aparelhos e objetos – desde pratos até ferro de passar roupa. Em uma de minhas visitas, enquanto andava em um dos salões da casa, meus olhos encontram uma menininha de cabelos pretos cacheados até a altura dos ombros, com os olhos cor de mel, rosto franzino e pele morena. Só de olhar, calculo que deva ter lá os seus sete anos de idade. Sentada em cima de um banquinho de madeira azul, vislumbrando toda aquela imensidão do castelo a menina olhava com uma curiosidade enorme para um objeto pendurado bem em cima de sua cabeça – uma máquina de escrever daquelas bem antigas, na cor preta, os botões em alto relevo e deveras empoeirado. Fui me aproximando devagarinho. Primeiro, pergunto seu nome. Ela me diz que se chama Beatriz, e um sorriso já aparece em seu rosto. Aproveitando sua abertura, pergunto-lhe se ela por acaso tinha alguma noção do que era aquele objeto e sobre o seu funcionamento. Sua resposta veio acompanhada de um olhar curioso e ao mesmo tempo tímido. “Não”, Beatriz disse baixinho, mas o suficiente para que só eu e mais nenhuma das outras pessoas que estivessem na sala pudessem ouvir. Notando a sua reação, agachei-me para ficar na mesma altura dela e, no mesmo baixinho que ela tinha me confessado não saber do tal objeto que estava acima de sua cabeça, começo a contar-lhe um pouco sobre o que era aquele objeto que,

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ao mesmo tempo, era tão desconhecido para ela e tão familiar para nós – a máquina de escrever. Rapidamente, os olhos verdes da garota se mostraram vivos, sedentos por mais informação. “Ah. Então essa é a mãe do computador?”, ela me pergunta. Achando graça em sua pergunta, lhe respondo “Sim! É ela mesma. Da mesma forma que você tem a sua história, cada coisa aqui também tem. O chapéu, o telefone, o espelho ali na porta. A menina logo deu um salto, deu-me um beijo no rosto e saiu como um foguetinho e saltitante a procura da mãe. “Mamãe! Mamãe!”, dizia ela enquanto corria saltitante por entre os arcos da Casa de Pedra. Ah... Como é bom ser criança. Ao contrário da maioria dos adultos elas tem uma perspicácia única. Entendem tudo de uma vez só, e se logo de primeira não conseguem, tentam fazer alguma correlação com o seu mundo de fantasias e brincadeiras, para que tudo faça sentido. Como eu queria ter de volta os meus sete anos de idade... Cinco minutos mais tarde, Beatriz chega de mãos dadas com a mãe D. Cida. Antes mesmo de ser apresentada, não teria como negar que não eram mãe e filha – os mesmos cabelos pretos cacheados, os mesmos olhos cor de mel. Iguaizinhas. D. Cida vestia uma camiseta regata laranja um pouco surrada pelo tempo, um shorts de malha fina e um chinelo de dedos, que aos meus olhos, parecia menor do que o próprio pé de sua dona. Beatriz sentou-se de volta ao seu banquinho azul, apontou a máquina de escrever e começou a contar para a mãe a mesa história que eu havia lhe contado minutos antes. A mãe surpresa, logo perguntou: “Nossa filha, que legal! Mas aonde você aprendeu tudo isso.”. Virando-se para mim, a menina deu uma piscada rapidamente, e respondeu para a mãe: “Ah mãe... Foi um amigo que me ensinou.” Pode ter sido algo simples, mas com certeza aquele simples sorriso valeu a minha tarde toda, e deixou-me uma lição: o que importa não é o que você tem na vida, mas quem você tem na vida.

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AMOR PELA PROFISSÃO

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que você faz da meia noite às seis? Dorme? Pois é, muitas vezes pensamos que a cidade inteira adormece de madrugada e volta a funcionar pela manhã, mas não necessariamente isso acontece, a cidade trabalha tão bem a noite quanto durante o dia; muitas das coisas que temos e usamos pela manhã estão prontas porque pessoas ficam a madrugada inteira trabalhando para que nada pare; São Paulo é conhecida por sua movimentação intensa durante 24 horas e pessoas ajudam para que isso se realize. Analisando a vida de uma enfermeira que entra de plantão às 18h da noite e sai às 6 da manhã, pude perceber que trabalhar de madrugada requer uma certa disposição a mais do trabalhador, pois o sono é maior; a fome; o cansaço toma conta da pessoa, pelo fato de que a noite foi feita pra dormir de uma certa forma. Porém, há pessoas que amam a profissão e independente de qualquer coisa, exerce com maior zelo e cuidado. Gisleine Costa Carreira, enfermeira há 21 anos trabalhando na UTI neonatal vivenciou essa rotina noturna durante 3 anos e para ela foi o pior momento da vida dela relacionado a saúde e vida pessoal, pois nada se compara ao descanso e a vida que se leva de um trabalhador matutino. “A noite o tempo não passa, você tem fome, sono, engorda e não se tem a mesma qualidade de vida, a tensão toma conta da sua vida durante todo o período o qual você está trabalhando” relembrou Gisleine. Se adaptar há uma nova rotina durante dia é muito difícil a partir do momento em que a maioria das pessoas na cidade, começam a trabalhar e fazer seus afazeres no amanhecer. O apoio da família também é algo que fortalece a vida de qualquer pessoa, a compreensão e o apoio é essencial para que a pessoa não desanime, pois trabalhar durante a madrugada requer muito alto controle. “Minha família demorou um pouco a se adaptar junto comigo aos horários de madrugada, pois muitas vezes meus filhos queriam que eu fizesse algo e eu precisava dormir durante o dia e quando meu marido chegava do trabalho já era para eu ir para o meu. Então assim, no começo foi difícil, mas aos poucos eles entenderam que isso fazia parte da minha vida e da minha profissão” desabafou Gisleine. Trabalhar durante a madrugada é delicado quando se trata

da disposição e qualidade de vida do profissional pois, não há a mesma concentração de madrugada como de dia. Por isso são vistos muitos erros e reclamações sobre os profissionais desse turno. ‘’Um dia uma criança estava chorando a madrugada inteira quando chego para ver o que estava acontecendo, era medicação que estava extravasando do braço, chamei a médica plantonista e graças a Deus deu para reverter e não necrosou o braço. A funcionaria foi desligada do cargo.” A segurança na cidade durante a noite é totalmente diferente do que o dia, durante a madrugada o número de policiais é diminuído e as pessoas acabam sentindo-se desprotegidas. O policial Leandro Gabriel, 35 anos também vivencia essa rotina noturna em seu trabalho e o fato de ser policial militar, o faz se sentir cobrado em situações complicadas em que a sociedade o coloca. ‘’No começo tudo é novidade, depois vira rotina. E aquela pessoa que era sensível, passa a ser menos sensível as situações vividas. Exemplo: Suicídio. No início você se assusta com as cenas, porém com o passar dos anos vai virando rotina e acaba se tornando apenas mais um caso” declarou Leandro. Após o turno noturno, o policial explicou que não conseguia dormir durante o dia, conseqüentemente isso o tornou uma pessoa irritada e violenta verbalmente. Leandro explicou que o período de trabalho da policia na cidade de São Paulo geralmente é 12x36. Trabalha um dia e folga o outro, isso para quem trabalha em uma viatura e atende as ocorrências que são despachadas pelo Centro de Operações da Polícia Militar. Exemplo: As ocorrências geradas pelo cidadão que liga para o 190. O serviço administrativo perfaz 40 horas semanais geralmente horário das 9h00min às 17h00min de segunda a sexta - feiras. “Estamos constantemente entre a vida e a morte. E sabemos que a qualquer momento podemos vir a sofrer um acidente. Já estamos prontos e sabendo que precisamos guerrear para sobreviver.” esclareceu. Independente da profissão e do horário a qual você trabalha uma lição de vida e experiência as pessoas ganham, o amor pela profissão é honrado e todos os esforços são medidos para que possam dar o melhor e completá-lo com zelo.

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Crônica

Vivian Estrela

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Crônica

DIÁRIO DO METRO DE SÃO PAULO Jéssica Moraes

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mbiente de diversidade, nada pode exemplificar mais e melhor os moradores das grandes cidades que o espaço dos metrôs. Pessoas diversas ocupam as extensões das plataformas de cada nova estação: são trabalhadores, estudantes e turistas, que mesclados estruturam uma parede de retratos heterogêneos, atributo comum a população de São Paulo devido ao processo histórico de formação da cidade. São traços largos, finos, grandes e pequenos, fios de cabelo que fluem em cascatas aloiradas, acastanhadas e espessas, por vezes lisas, encaracoladas ou crespas. Olhos castanhos, verdes, azuis, fatigados, alguns mortos pela rotina e outros faiscantes. Moças altas, feito modelos de passarela e pequeninas, como bonecas de enfeite que se debruçam sobre as barras de ferro numa brusca freada. Mulheres de seios fartos, comprimidos pelas roupas que se agarram aos corpos mulatos, absortas nas telas dos celulares. Na ala masculina, rapazes musculados que se assemelham a cavalos troncudos. Bocas variadas: das mais nutridas ás pequeninas e quase extintas, que se movimentam silenciosamente na leitura de grossos livros. Tatuados que trazem consigo o frescor da juventude e respeitáveis senhores, que conservam certo tipo de charme e segurança, adquiridos somente por meio das várias experiências ultrapassadas ao longo da vida. Os estilos são identicamente os mais dissemelhantes: dos atuais hipsters até os antigos góticos. Descontraídos, como surfistas, skatistas e adoráveis velhinhos, com cabelos esbranquiçados e roupas clássicas em tons pastéis. Foi num desses dias. Num em que a realidade dos centros urbanos se soma aos excessivos compromissos e provoca o abatimento de espírito do habitante das metrópoles. Foi ás três e meia da tarde, numa segunda ou terça-feira modorrenta. Nessa ocasião, um garotinho de nove ou dez anos cruzou o vão que o separava da locomotiva da modernidade. De narinas abertas e um tanto quanto largas, o mestiço tinha fios de cabelo curtos e eriçados. Trajava uma camiseta polo laranja, que se demonstrava irregular: escondendo o tronco fino, tapava parte das coxas. Uma bermuda preta evi-

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denciava as pernas, que eram também magras e alongadas. Os chinelos pretos emborrachados não escondiam os encardidos pés, que caminhavam agilmente por todo o ambiente. Como num plano acordado pelos olhos dos passageiros daquele vagão, o silêncio instalou-se por toda parte. Os olhos, os do menino e dos viajantes, não foram capazes, por distintas razões provenientes de ambas as partes, de se erguerem da linha do chão. As diferentes realidades que ali se defrontavam não se permitiam e talvez não desejassem observar-se. O rapazote então aguardou que o trem se locomovesse e em seguida, dedicou-se a distribuir o maço de tiras de papel que carregava. Alguns miraram o conteúdo repleto de erros ortográficos e tateavam os bolsos, a procura de moedas, que quem sabe, pudessem amenizar a onda de silêncio que ainda pairava. Outros apenas mantiveram o olhar no chão, modo de operar exercitado diariamente no cotidiano de São Paulo. Ao final, o menino recolheu os papéis, que em alguns poucos casos, vinham acompanhados por uma quantia de dinheiro. O transporte já se aproximava da estação seguinte e o garoto estagnado, concedeu-se a oportunidade de elevar a cabeça, colocando-a um nível acima dos que ali estavam. Vale constatar: um feito raramente possível, em vista dos choques desproporcionais das existências e subsistências humanas. Como se tentasse guardar cada uma das fisionomias que compunham a cena, ou cada uma das realidades, tornando -as parte da vida dele, analisou um a um. Foi quando um número reduzido de pessoas igualou o olhar ao da criança e o encontro das verdades que ali se deu, eventualmente, era demasiado. O pequeno não sustentou a olhadela por muito tempo. Encarou por mais um bocado de segundos a pouca atenção que lhe era direcionada e ao som do abrir de portas, foi lançado de volta ao cumprimento dos trabalhos. Partiu. E partindo, deixou para trás, ao pequeno número de pessoas que se permitiram observá-lo, a consciência de que o abismo produzido entre os viventes e os sobreviventes da cidade paulistana é tão profundo quanto suas subterrâneas estações de metrô.

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