Revista Narrativa - Edição 13

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Edição 13 | NOVEMBRO 2015

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Do pão de queijo à terra da garoa



O GIRASSOL FLORESCENTE NA SELVA DE PEDRA P.6

PARADA OBRIGATÓRIA P.12

UM GRANDE HOMEM POR TRÁS DAS CÂMERAS P.16

CRIANDO MEU ESPAÇO NO MUNDO .............................. 20 E MAIS: DENTRO DO VERDE, AZUL, AMARELO, O PAQUISTÃO ...............................................25 DO PÃO DE QUEIJO À TERRA DA GAROA .......................................................................34 CASA (IN)COMUM .................................30 UMA TRILHA NOTÁVEL ..........................50 NA CONTRAMÃO DA VIDA ..................40

Universidade Presbiteriana Mackenzie Reitor: Benedito Guimarães Aguiar Neto Vice-reitor: Marco Tulio de Castro Vasconcelos Pró-Reitoria de Graduação e Assuntos Acadêmicos: Cleverson Pereira de Almeida Pró-Reitoria de Extensão e Educação Continuada: Sergio Lex Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação: Helena Bonito Couto Pereira Diretor do Centro de Comunicação e Letras: Alexandre Huady Torres Guimarães Coordenadora do curso de Jornalismo: Denise Paiero Revista Narrativa Professor responsável e coordenador de fechamento: José Alves Trigo Projeto gráfico e diagramação: Gláucia Serinhano Repórteres: Bianca Araújo; Camila Oliveira; Gabriel Fidalgo; Lucas Saba; Marina Chiapetta; Marina Mattos; Monique Amorin; Nicole Dib; Roberta Queiroz.


O florescente na selva de Por: Bianca AraĂşjo Marina Chiapetta

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Em meio aos carros, ônibus e pessoas estressadas na Rua da Consolação um palacete amarelo se destaca em contraste com a cidade cinza. A jornada em direção ao girassol florescente na selva de pedra, abraça os curiosos levando-os a uma viagem no tempo. O destino: uma viela timidamente situada no centro da cidade de São Paulo. A Rua Visconde de Ouro Preto ostenta um portal de verdes folhas que se integram a arquitetura art nouveau típica dos anos 1920. Atravessando sua magnitude encontra-se um portão. Metal retorcido. Sentimentos. Mas, o sonho ganha cor: estamos, na verdade, em outra dimensão de nosso tempo. Ao entrar, não imaginávamos que o prédio estava abandonado há 13 anos e que pertencia ao Instituto Nacional de Seguridade Social. O órgão, que foi desenhado na década antes da virada do século, cuida de uma geração de aposentados que contribuíram para a formação da cidade. Com sorriso no rosto e voz de veludo, Ulunká nos recebe de forma acolhedora no espaço que hoje chama de lar. Sua introspecção mostra cicatrizes internas e externas. Um pouco receoso, ele não releva sua identidade humana imposta pelas convenções sociais. Não tem nome nem ao menos sobrenome, Ulunká é uma entidade que protege esse oásis urbano. Seu rosto delicadamente esculpido e as ondas intermináveis de seu cabelo castanho demonstravam sua pureza, mas não as experiências e dificuldades encontradas pelo artesão de 34 anos. Convidando-nos para entrar.

Não teme em dizer que aquele espaço foi

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ocupado por ele e cerca de cem artistas com um sonho em comum. Inspirados em Van Gogh, esse coletivo almejava transformar uma solitária casa amarela numa comunidade de artistas. O pintor pós-impressionista neerlandês revitalizou uma antiga casa, dando-lhe vida com sua cor favorita – o amarelo. Van Gogh tinha o projeto de transformar seu lar, situado na ensolarada comuna de Arles, no sul da França, em uma colônia de arte. “Somos parte de coletivos artísticos. Nosso foco é a ocupação espacial para a produção de arte”, explica, com o ar de quem já sofreu julgamentos preconceituosos. “Não é uma ocupação de moradia. Queremos prestar serviço para a comunidade”, afirma. O palácio pintado de amarelomanteiga, rodeado de sol sangra traços pretos e irregulares em seus pilares externos. No interior, o amarelo também toma conta do espaço, mas dessa vez como uma luz cor de limão empalidecido. Escadas de madeira, por aqui, são ferramentas usadas no improviso criativo. Latas de tinta espalhadas pelos cômodos deixam rastros no piso de tábuas sem brilho após todos esses anos de isolamento. O pé direito da edificação nos intimida com sua exuberante grandeza. Somos muito pequenos em relação ao universo que habita no paraíso dourado. Portas que mais parecem vitrais de uma catedral da arte abrigam seres que aparentam ter saído de uma peça teatral de Shakespeare. No entanto, essa trama envolve um novo dilema de amor. O


que antes era um espaço abandonado, sinônimo de medo e violência para os moradores de Higienópolis, tornou-se um Ateliê Compartilhado, que trouxe vida para a região. Tarefas árduas como limpar e organizar a casa fazem parte de seu cotidiano. Essas pessoas, movidas pelo amor à arte no seu sentido mais amplo, foram inspiradas pelos movimentos originários do Leste Europeu. Na morta Alemanha, após a queda do muro de Berlim, diversos espaços desabitados e esquecidos ganharam a atenção de artistas que os preencheram com as mais diferentes formas de arte. Assim como na Europa, Ulunká e seus parceiros retomam a proposta de trazer alegria, democratizando a cultura para a população. Com o espírito livre, meros mortais se integram com seres sobrenaturais no processo de gestão compartilhada. Tal como uma família, onde todos se ajudam, os ocupantes formam instalações que dialogam com a cidade em diversas linguagens. Enquanto a tarde esvaecia, o anjo Ulunká elucidava a importância desses movimentos de ocupação, pois trazem à tona críticas sociais. “A ocupação artística é uma ação de resistência porque redescobrimos edifícios inutilizados em lugares de fácil acesso à população, onde antes a arte não florescia”, ensina. Em uma cidade que atingiu o apogeu de sua urbanização e aos poucos perdeu sua alma, há a necessidade de resgatar sua essência. Os humanos que a habitam vivem em um mundo monocromático que remete a realidade criticada nos filmes de Charlie Chaplin. Entretanto, nem todos enxergam a vida numa escala de cinza: essas divindades trazem consigo a proposta de construir um mundo multifacetado. Cada um com seu matiz luminoso, mas todos com o objetivo de construir uma subjetividade urbana caleidoscópica. Esse mosaico expõe a preocupação existente no âmago de quem se dedica à arte em uma cidade que sofre com a especulação imobiliária. O caminho que percorremos por entre as salas, revela as memórias que construíram a história do edifício. As escadas de madeira que levavam ao piso superior rangiam a saudade cultivada dos pezinhos apressados que habitaram-na enquanto creche, em 1986. As reformas feitas com o intuito de acolher filhos de funcionários do Tribunal Regional do Trabalho ainda perpetuam na derme da casa amarela.

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Seus traços estão presentes tanto nos papéis de parede com desenhos infantis como nos chuveiros adaptados para os pequeninos. A luz que quebrava os anos de abandono e escuridão provinha do céu. Os raios de sol penetravam os vitrais coloridos que harmonizavam a capela. Fotos. Quadros. Anjos travestidos de alegria. Da varanda, os bonecos que mais pareciam gigantes vigiando o trânsito caótico de São Paulo nos trouxeram de volta ao século XXI. Embaixo da sombra das árvores, os leviatãs carnavalescos de papel machê protegiam o éden urbano com a imensidão de seus trapos floridos. Dividindo essa tarefa árdua, um corvo cubista limpa metafisicamente o recinto com seu poder de renovação cíclica. “Há 50 anos eu quis entrar nessa casa e nunca tive coragem”, confessa, com voz trêmula e esperançosa. A confissão surpreendente veio de Alcides Ricci, um carismático senhor de cabelos grisalhos como prata que carrega consigo sete décadas de experiência. Ele finalmente realizou seu sonho de transpor as grades que antes acorrentavam o antigo palacete. Investindo tempo, o pouco dinheiro que tem e todos os seus sonhos, os artistas que se dedicam ao Movimento de Ocupação dos Espaços Ociosos transformam em realidade a fantasia de Alcides e muitos outros moradores da região. Esse mesmo anseio é nítido no fundo do olhar de Ulunká enquanto nos conta sobre sua trajetória. Após 2.555 dias embaixo de sol e chuva, vendendo suas mandalas, o artesão pôde traçar um novo rumo em direção ao universo do teatro. “Hoje, é difícil para o artista manter um espaço para atuar ou trabalhar”, exprime com certa preocupação. O anjo urbano nos passa a importância da casa amarela para todos os artistas “Aqui é um espaço de divulgação de trabalho e, principalmente, de aprendizado com outros artistas, desenvolvendo nosso potencial”. A disseminação de conhecimentos metamorfoseada em linguagens poéticas é essencial, pois o alicerce da arte é o contato com o “outro”. Embate. Confronto. Estranhamento. Pertencimento. Por ser um anjo, Ulunká não dispõe de um gênero definido. A ideia de demarcação de sexos soa muito profana diante de sua complexidade. Em seu rosto carrega uma marca que o diferencia dos demais: sua alma atravessa carne e osso em forma de entalhes profundos


em sua testa ainda não cicatrizada. O sangue escuro ainda evidencia os cortes que um dia serão apenas memórias de um sacrifício em nome da experiência estética. Torso magro, veias salientes em suas mãos – devida aos anos de treino no violão -, pés praticamente descalços revelam a simplicidade de um ser que não sabe o significado de se apegar a bens materiais. O violão de madeira com cordas de náilon encontra amparo em seu colo. O instrumento é quase uma extensão de seu corpo franzino e a intimidade entre eles não pode ser nada além de natural. As pernas cobertas pela saia estampada com a magia das cartas, revelam em sua fenda uma calça azulada de tecido modesto que demonstra a ambiguidade de seu ser. Sentado em um pequeno sofá alaranjado logo na entrada da casa, Ulunká embala a cidade com as cantigas de seu coração, convidado os passantes a participarem de sua viagem multidimensional. Com mais de 11 milhões de habitantes, São Paulo necessita de ambientes culturais para o desenvolvimento da cidadania e é aí que Ulunká e seus parceiros entram em ação. Eis que outro personagem surge em nosso caminho, com sotaque chileno, o pianista clássico nascido em Santiago, Aldo Mata, se apresenta como um livro aberto, nos surpreendendo com sua história de vida. A pele queimada de sol e os olhos verdes reflete o estilo de vida nômade e desapegado do músico. Há vinte e nove anos no Brasil, dentre os quais dedicou uma década inteira a viver na Floresta Amazônica junto com os índios caxinauás, Aldo conta os valores que aprendeu com os nativos de nossa terra. “Eu aprendi muita coisa que a cultura da floresta traz”, explica transmitindo a sabedoria indígena. O homem de baixa estatura parecia carregar todo seu conhecimento de vida em sua barba frondosa como as árvores da selva tropical. Um de seus ensinamentos é a busca pela harmonia interna conseguida com melhor qualidade de vida. Nos grandes centros urbanos, essa filosofia parece inverossímil. Em meio a poluição sonora causada por carros e buzinas é muito difícil ao menos pensar em paz e equilíbrio espiritual. Mesmo com pouca idade, beirando seus quarenta anos, o pianista celestial já traz na bagagem rios de sabedoria. Apesar da vontade que tinha de nos contar suas histórias, não quis que seu discurso ficasse preso a imagens por transcender o limite entre a vida e um pedaço de papel.

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“COM ESSES CENTROS CULTURAIS TEMOS A OPORTUNIDADE DE NOS EXPANDIR”


O cotidiano da cidade nos força a priorizar a esfera produtiva em detrimento da social, artística e espiritual. Essa repressão faz com que “Muitos artistas talentosos se comprimam devido a vida em São Paulo. Com esses centros culturais temos a oportunidade de nos expandir”, fala o guru. Projetos como o de Aldo anseiam em trazer lucidez aos que se renderam às loucuras da modernidade, agindo como um despertador de consciência. O grupo que traz essa doutrina como o estandarte de suas ações chama-se “Movimento dos Espaços Ociosos”. Existente há 35.040 horas (e contando), o coletivo afluiu da Cooperativa Paulista de Teatro. Seus membros se movem pela necessidade de criar e desenvolver suas obras pela cidade. Mais de duas centenas de imóveis encontram-se em estado de abandono na capital paulista, como telas em branco esperando serem tocadas e vividas. Achamos seus instrumentos: o pincel de cachos acastanhados de Ulunká e o mar de tinta verde presente nos olhos do músico. Cada um com seu talento nato oferece as ferramentas necessárias para remendar o coração quebrado da cidade preta e branca. Integração. Aprendizagem. Compartilhamento. Mensagem. Esse é o conceito de arte e a alma da Casa Amarela (até então).

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Em uma quarta-feira com o céu carregado como chumbo, a casa que antes era um girassol reluzente agora encontra-se salpicada de enxofre. Seus guardiões de papel machê foram-se embora e levaram consigo a vivacidade do antigo oásis. Chegando mais perto, não encontramos mais o antigo portal. No lugar havia apenas um simples portão de ferro entrelaçado com duras correntes que ostentavam todo o peso do mundo em um só cadeado. A campainha tornou-se útil pela primeira vez desde que a casa ganhou cor. A desconfiança tomava conta das entranhas do imóvel. Uma jovem mulata se esgueirou para fora da porta de madeira que parecia mais uma barreira para a nossa entrada. A notícia. O anjo e seu pianista celestial foram embora e não deixaram nenhum rastro. Até onde sabem, podem estar mortos. A flor murchou e perdeu sua cor. Agora era apenas uma casa que definhava entre móveis quebrados e entulho acumulado pelos cantos. Quem anteriormente tirou a casa amarela das trevas e a nutriu com cultura, atualmente se encontra perdido nas imensas ruas da capital em busca de um novo lar para sua arte. O Movimento de Ocupação de Espaços Ociosos, que contava com a mão de obra espontânea para ensejar seu sonho, perdeu seu alicerce após a tomada do que deveria tornar-se um espaço cultural público. Meros mortais, munidos de individualidade e mesquinharia contaminaram o paraíso amarelo. Movidos por seus próprios interesses, destruíram o legado das mais de cinco mil horas de atividade cultural que haviam sido realizadas ali. Festas. Drogas. Invasão. Os novos ocupantes, armados com a falsa ideologia libertária, intitulam-se moradores do prédio, porém não contribuem com a organização da casa e tampouco realizam atividades artísticas para a sociedade. As sementes plantadas durante onze meses de dedicação a arte tiveram suas raízes arrancadas brutalmente. É o fim de um ciclo para todos os seres místicos que ali habitavam. Neste momento, boa parte daqueles que se apoderaram do antigo palacete defendem interesses próprios. Antes um éden urbano. Agora uma casa em ruínas que não possui nada além de um endereço.

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PARADA

Por: Bianca Araújo Marina Chiapetta

A

proximadamente às cinco horas da tarde o céu escurecia e pessoas se aglomeravam nos pontos de ônibus na congestionada Avenida da Consolação. Zumbificadas, esperam por alguma coisa que as leve para casa, mas cada minuto é uma eternidade que suga suas energias. De longe, avistamos a gaiola de lata azul por uma nova perspectiva: só dessa vez não encararíamos o trajeto como rotina. As portas abrem sincronicamente como um convite irrefutável. Subimos. A invisibilidade de seus condutores, hoje nos salta aos olhos. “Moço, você podia nos contar um pouco do seu dia a dia como cobrador?”, perguntamos com a curiosidade de uma criança de sete anos. Receoso, o homem grisalho reage com rispidez: “Não, não pode gravar não. Se os caras verem a gente pode pagar multa”. A catraca gira. Procuramos um assento que nos transformaria em apenas mais dois corpos que preenchem as entranhas da minhoca urbana. Não tivemos êxito. Espremidas junto aos bancos, ouvimos um burburinho. Uma mulher grávida embarca na viagem e, surpreendentemente, a massa se (co) move a ajudá-la a encontrar um descanso naquele caos enclausurante. O tempo parecia não passar e o sol já havia se escondido. Estávamos presenciando uma cena típica da cidade de São Paulo: a anarquia entre os 5,63 milhões de carros que procuram um fluxo nas veias de asfalto.

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Descemos 11 quilômetros depois. Já eram quase sete horas da noite e desbaratinadas, buscávamos conquistar a simpatia de algum dos tantos trabalhadores que circulavam pelo terminal Santana. “Eu não sei se posso falar. Pergunta para os caras sentados ali na cabine de madeira”, responde apressadamente enquanto se dirige para o volante do ônibus. As pessoas que habitavam a guarita desbotada com o símbolo da Sambaíba, empresa mista que gerencia mais de 15 mil ônibus, nos deram uma resposta praticamente robotizada. “Não”, impõe o jovem supervisor que ostenta a tão temida camiseta azul marinho com o logo bordado. Temida, porque operários como Marcos e Tiago vivem na desconfiança de estarem sendo espionados por conta de potenciais greves. Tiago Silva tem 29 anos e nos acolhe com seu sorriso contagiante. “Sobe aí”, nos convida amigavelmente. Enquanto preparamos o gravador, o jovem cobrador já começa a nos contar as peripécias de seu dia a dia sentado no ônibus. Do alto de seu trono pouco confortável, Tiago supervisiona o embarque e desembarque de passageiros, avisando o companheiro a hora de fechar as portas. Em seu longo turno retido no busão, constrói uma vivência paralela com amigos passageiros e seu colega motorista. “Quanto eu e o motorista, eu sou casado com ele praticamente, né? Fico 14 horas com ele e durmo em casa”, diz, com jeito brincalhão e com risada solta. Nascido e criado em São Paulo, Tiago nos relatou sorridente: “vai fazer um ano que eu trabalho nesse ramo de cobrador e tenho muitas histórias pra contar”. Dos 17 milhões de pessoas que viajam de ônibus diariamente, em São Paulo, a maioria é jovem a caminho de seus trabalhos. “Tem alguns passageiros que sempre pega com a gente no mesmo horário que me cumprimenta. Sabe meu nome, já conversou comigo”, fala com sua voz cantada e doce. Desabafa, dizendo que muitas vezes tem de ser muito

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paciente, escutar problemas de trabalho e reclamações sobre cansaço alheio. “Tem hora que a gente tem que ser psicólogo. Tem hora que a gente tem que ser guia turístico e também tem que ajudar as pessoas preguiçosas que não querem lembrar onde tem que descer”, afirma. Como ex-vendedor de lojas de varejo, Tiago carrega uma grande desenvoltura ao lidar com pessoas, mantendo sempre a educação e a simpatia. Muitos de seus antigos clientes passam pelo ônibus e o cumprimentam. Enquanto conversávamos com ele, um homem o saúda enquanto passa pela catraca. “Viu? Conheci ele no meu antigo trabalho”, aponta rapidamente antes que o indivíduo desapareça no mar de gente. Com seu jeito acolhedor, Tiago edifica diferentes tipos de relacionamento com aqueles que rotineiramente frequentam aquele carro. “Tem um senhor que sempre pega com a gente a primeira viagem que deixa mentos, sonho de valsa, bala, pirulito. E sempre na última viagem, a Val, que é uma senhora, sempre deixa um salgadinho e um pão de mel”, ressalta, com brilho nos olhos. A gratidão demonstrada por ele se contrapõe ao ressentimento que guarda de pessoas com más intenções. “Um senhor que trabalha numa pizzaria aqui no final da Consolação começou a deixar pedaços de pizza pra gente”, censura fazendo uma pequena pausa. “Até que eu percebi que era restos pra não pagar a condução né?”, denuncia com mágoa e desgosto. Nossa jornada já fazia quase três horas e tínhamos retornado ao ponto onde começou: a Rua da Consolação. Faltavam 15 minutos para as oito horas da noite e a lata azul cheia de bancos ficou iluminada por lâmpadas amareladas. Perguntamos quais eram as histórias mais interessantes que ele já viveu enquanto caixa de ônibus. Dentre as muitas situações embaraçosas que presenciou, aponta para o Cemitério da Consolação e recorda de uma mulher que se aproximou chorando, dizendo que iria ali visitar o marido. “Só que quem falou pra ela que o marido dela tinha


falecido foi a amante dele”, relembra. Sem saber como agir, Tiago tenta consolar a mulher. “Eu falei: Não, meus sentimentos né. Porque na hora eu não sabia o que falar, entendeu?”, explica, acrescentando que a mulher não sabia se ficava com raiva ou triste pela morte do marido. Em pouco menos de um ano exercendo essa função, Tiago foi tocado profundamente ao perceber a falta de humanidade nas pessoas atualmente. “Uma das histórias que mais me surpreendeu foi no dia que uma senhora de 89 anos chorou falando que ficou apaixonada por mim”, exprime, emocionado. Isso aconteceu porque ele a ajudou ao subir e descer do ônibus. “Ela disse que um homem jamais ajudou ela”, fala. O gordinho mulato de cabeça raspada começa a exprimir sinais de vergonha. Ruborizado, prossegue justificando que, por isso, a situação estava começando a ficar um pouquinho chata. “Desse dia em diante, fiz de tudo pra mudar o horário pra mim não ver mais ela”, admite. A gaiola azul transforma-se em um navio negreiro, lotado e com pessoas lutando para manter-se penduradas durante curvas e breques. Nos dirigimos para a frente do ônibus, perto do cafofo do motorista. A capa de seu assento era similar a de muitos taxistas: encosto feito de bolinhas de madeira presas umas as outras por meio de um fio. Imediatamente, o motorista ganha identidade: Marcos Almeida começa a puxar assunto. “Em ônibus eu trabalho desde os meus 19 anos de idade, eu tô com 49”, comenta, com aparência cansada e olhos vidrados no trânsito. Durante esses 30 anos de profissão, Marcos não consegue se lembrar de tudo o que vivenciou no ramo. “Ah, mas é sempre a mesma coisa assim, a gente faz amizade com as pessoas. Troca ideia, conversa, de vez em quando conta uma piada”, confirma a fala de seu camarada. Ao relembrarmos dos passageiros que costumavam deixar pequenos agrados, o exausto homem com rugas fundas, brinca: “Tem algumas pessoas que pega todo o dia aqui que traz um doce pro motorista, vocês trouxeram?”. Olhando para Tiago no reflexo do retrovisor, Marcos nos revela que já ganhou até presente de admiradoras não tão secretas. “E que presente foi esse?”, perguntamos animadas. Com ar de Don Juan, o “motô” se gaba ao dizer que recebeu uma cueca vermelha. “Era daquelas de Sexy Shop, sabe?”.

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O “Seu Marcos”, também tem uma história que marcou suas três décadas de labuta. Um humilde menino que sempre esticava seu dedinho para chamar o ônibus que Marcos dirigia jamais será esquecido. “Um dia ele subiu e sentou aqui no motor”, acena com a cabeça. “Eu perguntei se ele tinha comido e ele falou que nem ontem e nem hoje. Eu perguntei por que e ele falou ‘não sei’”, pausa com o olhar distante. Marcos nos diz que o menino franzino mostrou seus cadernos da escola, ostentando sua letra bonita e as estrelinhas douradas que ganhou da professora. Impressionado, o motorista diz que os cadernos estavam muito bons e que não tinham nenhuma “orelha”. “ Perguntei se ele tinha ganhado uma mochila na escola e ele disse que não. Então eu falei que levava ele pra comer e dava uma mochila se ele continuasse estudando”, finaliza, com um suspiro. Sentamos para digerir todas as informações que conseguimos daqueles dois homens que mais pareciam um livro aberto. Pensando nisso, lembramos de uma notícia recente que ressaltava a possibilidade da extinção dos cobradores em muitas linhas de ônibus. Enquanto éramos chacoalhadas pelo busão, imaginamos quantos Tiagos, que trabalham nas 1.300 linhas; dez corredores e 28 terminais de ônibus da cidade, ficariam sem chão. Com a popularização do Bilhete Único, somente 8% das passagens são pagas em dinheiro. Essa função pode até parecer inútil agora, mas e todas as outras tarefas secundárias que os cobradores exercem? Os conselhos de psicólogo, as dicas de guia turístico e o sorriso que conforta a penúria do dia a dia, o que acontecerão com eles? O medo de não ter como sustentar suas famílias e as péssimas condições oferecidas alimentam as greves de cobradores e motoristas. Tiago, por exemplo, não pode levantar para comer ou usar o banheiro durante suas horas de trabalho e, para isso, recebe R$850 por mês. A suspeita dos patrões gera formas desleais de supervisão dos funcionários e é por isso que fomos afugentadas pelos outros trabalhadores. “Eles se disfarçam de passageiros comuns e filmam o que a gente faz e fala”, explica Tiago, quase como se nos contasse uma teoria da conspiração. A realidade era muito mais complexa do que imaginávamos, analisando de longe. O “casamento” entre motorista e cobrador nem sempre dá certo. A insegurança de que o outro pode querer prejudicálo está presente na maioria dos casos. Os desentendimentos internos também

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geram separações e mudanças de equipe. Por ser um trabalho árduo e ingrato, muitos acabam destratando os passageiros, agindo como se estivessem lhes fazendo algum favor. Mesmo assim, alguns resistem a essa esfera opressora com sua felicidade e bom humor, cumprimentando cada um que passa. A paisagem contrastava com a verdade de quem estava ali dentro há horas. Carros caros e avenidas largas dividiam espaço com o ônibus cheio de estudantes e trabalhadores. Estávamos chegando ao ponto final, o Terminal Butantã-USP rodeado por coqueiros e árvores bem cuidadas. A arquitetura das estruturas que protegem os pontos de cada ônibus remete a uma obra modernista, feita de ferro vermelho quase que lustrado. Diferentemente da aparência cinza, reta e cheia de concreto batido do Terminal Santana, nosso ponto final exibia vias largas que mais pareciam passarelas para os navios negreiros que agora pareciam Mercedes. Mas nem tudo é cinco estrelas nesse universo: desde janeiro de 2014 a frota de ônibus foi a menor dos últimos cinco anos na capital paulista. Um total de 208 veículos foram tirados de circulação junto com muitos outros motoristas e cobradores. São nove e treze da noite, o sorriso de Tiago foi se esvaindo com o passar do dia enquanto o tempo espancava seu corpo como forte que ruía. O vento frio castigava nosso amigo que não tinha nada para se proteger além de uma camisa azul com mangas curtas. A noite mais parecia um precipício frio e escuro onde tudo queimava, mas nada aquecia. De repente, a comitiva para as estrelas estaciona em seu ponto final e a multidão enfileirada corre para não desistir dos seus salários de fome. Apressados, porque já não sabem mais há quanto tempo não veem o sol com seus próprios olhos. Talvez por medo ou porque esqueceram de como olhar para além das barreiras de metal que as trancafiam. Enquanto isso, nossa cabeça foi invadida por questionamentos sobre a banalidade do dia a dia. Estamos engessados, acostumados a acordar de manhã sobressaltados porque está na hora; a tomar o café correndo, porque estamos atrasados; a ler o jornal no ônibus para não perder a viagem e, na volta, cochilar porque estamos cansados. Mas o pior de tudo é sobreviver a tudo isso e ainda sorrir para as pessoas mesmo sem receber um sorriso de volta. Esperamos que todos descessem para nos despedir e, com um suspiro, Tiago faz sua saída triunfal “Depois de tudo isso, o que me resta é que Oh céus, Oh vida e que dure até acabar”.


Um grande homem por trås das câmeras Por: Gabriel Fidalgo Lucas Saba

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láudio Tadeu é uma daquelas pessoas “boas de papo”. Cinco minutos frente à frente com este homem 51 anos são suficientes para com uma boa história, ele te prender. E Cláudio tem muitas. São quase 25 anos trabalhando no meio televisivo, o que este homem viu, pode-se dizer com certeza, poucas pessoas viram. Hoje cinegrafista da TV Cultura, Claudio já prestou serviços para a maior emissora deste país, a Rede Globo. Como ele próprio diz, já acordou muitas vezes e levantou ainda no escuro para sair e ver a história acontecer. Entre um cafezinho e outro nos corredores da Cultura, Cláudio se mostra agitado, preocupado com seu ofício. Para ele, nada pode sair errado, essa história de que cinegrafista só segura a câmera não passa de uma grande balela. Seu trabalho é muito maior que isso. Ele organiza todo um “cenário” especial para que as imagens cheguem agradáveis aos olhos dos telespectadores. Mais uma vez, são quase 25 anos filtrando o que as pessoas veem e o que elas não veem do outro lado da telinha. É assim hoje, Foi assim há aproximadamente 20 anos, quando Cláudio esteve presente em um dos mais tristes episódios da história recente do Brasil, o acidente que matou o piloto Ayrton Senna. Para o cinegrafista, essa história é sim triste, como para a grande maioria dos brasileiros, mas quando contava pelo homem, ela vem com uma pontinha de orgulho. Sim, porque naquele dia Cláudio viu o que poucos viram, ouviu o que quase ninguém ouviu e isso meus amigos, é para poucos. Poucos, primeiro em quantidade. Segundo Cláudio eram poucos profissionais que cobriam a Fórmula 1 em 1994, “era a Globo, e as rádios Jovem Pan e Bandeirantes, e só.” O trabalho de Cláudio nem era dos mais difíceis, pois as imagens da corrida eram fornecidas pela FIA. Sua missão de verdade era “caçar” Ayrton Senna por todos os cantos no Autódromo de Ímola. Mais uma vez, pouca mão na massa para Cláudio. Senna quase não deu as caras no trágico final de semana. O motivo? Os acidentes de Rubens Barrichello e Roland Ratzenberger. Restou a Cláudio capturar uma imagem ou outra do piloto. Esperava gravar uma boa entrevista depois da vitória. De novo, não deu. Nas palavras

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pouco contidas de Cláudio, o “Ayrton bateu forte pra cacete” e naquela hora ninguém queria ser o cinegrafista. Azar o do moço da FIA, que teve que mostrar o que ninguém queria ver. Um herói caindo ao vivo. Televisão é assim mesmo. Falando em cair, Cláudio também esteve presente em uma das mais importantes quedas do Brasil. E essa não pode ser considerada ruim não. Cláudio estava portando sua “levezinha” câmera da Rede Globo quando em meados de 1992, o povo saiu às ruas para exigir a queda do então presidente Fernando Collor de Mello. No relato do cinegrafista, estava todo mundo ensandecido e pronto para virar o país de cabeça pra baixo. Todos dentro da emissora tinham certeza do que estava por vir. Bastou o alagoano falar uma ou outra asneira para explodir o estopim para os protestos. Cláudio relata uma conversa pouco formal entre ele e seus antigos colegas nos dias que antecederam o impeachment. Estavam todos batendo papo, em um bar ou padaria, alguma coisa assim, quando começaram e especular o que viria pela frente. Ele vai pedir pra sair? Vão derrubá-lo? Quem vai assumir? Até que um dos colegas de Cláudio traz uma hipótese nunca antes pensada. Quer ver ele se matar e sair como herói? Assim como Getúlio fez, o Collor vai fazer igual. Sempre foi prazeroso bater papo sobre o trabalho. Pois o trabalho de Cláudio sempre acaba virando história. Muita coisa boa e muita coisa ruim, já foi presenciada por este homem. Ele não se esquece de nenhum detalhe de sua carreira. Este homem que na maioria das vezes fica por trás das câmeras, também já se “intrometeu” e fez parte da história. Quando ainda estava em uma das filiadas da Globo, foi escalada para cobrir um pequeno desabamento no Rio de Janeiro. Foram alguns dias na cidade maravilhosa, frequentando o centro da tragédia. Nesse vai e vem ficou impressionado, boa pessoa que é, com a situação de uma família. Eram 6 pessoas, que haviam perdido a casa, e que naquela semana estavam dormindo em um carro. E olha que o carro nem era lá essas coisas. Cláudio cruzou a serviço o caminho dessa família algumas vezes. Cada vez que passava pelo carro, ficava mais tocado com o caso. Uma, duas, três, vezes, na quarta ele se rendeu. Largou a câmera, pediu licença ao repórter e foi ao encontro


da família. Ofereceu ajuda, queria de alguma forma diminuir o conforto daquelas pessoas. Mas se você pensa que essa história tem tudo para terminar de uma forma linda e que no final todos ficaram felizes, errou. Ao se aproximar com um tom prestativo, o pai da família se revoltou mandou Cláudio ir para inferno. Afinal quem ele pensava que era para oferecer ajuda, um simples câmera, petulante. Cláudio aceitou o desaforo e se mandou. No dia seguinte, mais uma vez os caminhos deles se cruzaram e desta vez, o cinegrafista se surpreendeu. O homem que estava morando dentro do carro, dava entrevista aos prantos para um programa sensacionalista qualquer da época. Chorava, abria as portas do veículo, mostrava seus filhos sujos e com fome e pedia, não, implorava por ajuda na TV. Entre um choro e outro, os olhares se cruzaram. Que cara de pau. Ou não? É preciso ser frio para lidar com essas situações. Tragédias e desgraças são geralmente o combustível que

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move a televisão. Cláudio sempre soube que ao mesmo tempo que era um privilegiado, pois via coisas improváveis, era também azarado. Estava condenado a ver coisas tristes de segunda a quinta, talvez na sexta surgisse uma pauta legal. Mas na maioria das vezes era “pedreira” o que vinha pela frente. Seu sonho, sempre foi achar uma maneira de sair da área policial e de cidades. Queria era se envolver com esportes mesmo sabendo que o desgaste seria bem maior. Até hoje, nunca conseguiu. Cobriu sim, alguns jogos de futebol, tumultos em vendas de ingressa e a Fórmula 1, mas sempre de maneira esporádica. Lembra como se fosse ontem, o dia que trabalhou no Morumbi, em dia de Corinthians e Palmeiras. Quando recorda deste momento logo diz, “foi o melhor dia da minha vida”. A missão era capturar imagens da final do Paulistão de 1993. Seu filho mais novo havia acabado de nascer. E como de direito, Cláudia tinha direitos de não trabalhar, que nada. Segundo ele, “o Palmeiras seria campeão de qualquer


jeito.” Depois de dar um beijo em sua mulher e no seu filho, ele partiu em direção ao Morumbi. O clima era mesmo de coisa importante. Mais de 80 mil pessoas lotavas as arquibancadas. Quatro a zero para o Palmeiras e fim de fila alviverde. Com o colete da Federação Paulista ele testemunhou tudo. E após o jogo recebeu a missão de acompanhar a saída das torcidas. E no sorteio, ficou com a do Corinthians. Rindo como uma criança, ele se recorda da volta dos alvinegros para casa. “Alguns choravam, mas o melhor era ver eles reclamando da arbitragem.” Foram pouco mais de 15 minutos acompanhando os corintianos com a câmera, mas Cláudio confessa, ficou um pouquinho mais por prazer. Este homem simples, gente boa e simpático não tem cara mesmo de que já viu tanta coisa. Parece tão jovem e sua vida parece ter até mesmo chata quando olhada de longe. Legal

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mesmo é ser repórter, Âncora, viajar pelo mundo e cobrir grandes eventos como um Copa do Mundo. Será? Nas palavras de Cláudio, a vida não é o que aparenta na TV. A vida é o que está por trás das câmeras. Só quem vive ali tem a sensibilidade de enxergar o que ninguém vê, e isso é um belíssimo dom. 51 anos, isso não é nada. Ele quer trabalhar até uns 60 ou 70. Cláudio não se vê feliz sem ter uma boa história para contar.


Criando meu espaço no mundo Por: Marina Mattos

A

pós aceitar meu convite, duas semanas se passaram até conseguirmos conciliar as agendas de uma estudante de jornalismo e uma ativista inspirada. No dia do grande encontro fiquei tão nervosa que acabei levando na mochila o telefone fixo lá de casa. Caderno, caneta, câmera e um gravador. Rebeca me recebeu em seu apartamento em Campo Belo, na zona sul no fim de uma segunda-feira modorrenta. A chuva lá fora era fina e dentro do aconchego de seu lar, chinelos, jeans e uma camiseta confortável. O quarto serve de escritório, e a parede, um grande mural. Este, revestido entre adesivos, bandeiras e desenhos de sua filha Serena. Um clima tranquilo se instala. Toda minha tensão fica lá fora com a chuva. Ligo o gravador e começo nossa conversa. Com espontaneidade, uma confissão: eu sou só um meio. Acho estranho falar de mim. Em tempos de ativismo em alta, Rebeca Lerer, de 38 anos, já tem muita história para contar. De cara limpa e dreads que tocam sua cintura ela ascende um beck. Arruma-se confortavelmente na cadeira e entre uma tragada e outra, começa a narrar suas aventuras. “Eu sempre quis ser jornalista, mas eu queria mesmo é estar onde as coisas estavam acontecendo. Não tinha essa coisa do glamour”. A curiosidade vem de pequenina. As festas foram substituídas por viagens. Os humanistas apareceram na sua vida antes mesmo antes de saber o que aquilo significava. “Eu nem sabia

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que eles eram humanistas, mas já me interessavam”. Com dezessete anos a faculdade de jornalismo foi um de seus primeiros choques de realidade. Primeiro de muitos. O jornalismo comercial e seus modelos quebraram a imagem fresca e ingênua de uma adolescente que queria mudar o mundo. O primeiro estágio a ensinou como a indústria funciona. A competição, posse sobre a noticia, o ego. Nada daquilo a representava. “Eu levei muito na cabeça como estagiária e eu senti que não era o que eu tinha idealizado na profissão. Achei que aquilo era pequeno, um mundinho”. Mas esse é apenas o começo de sua história. No ano seguinte, com a faculdade trancada, embarcou em uma viagem de descoberta. Espiritual, intelectual, individual e ao mesmo tempo coletiva. Sobre suas origens, sobre si, e que no futuro faria parte de sua personalidade de forma decisiva. Foram 15 meses fora de casa. Solta pelo mundo analógico dos anos 90 em busca do âmago. “Não tinha grana, e como minha família é judaica, consegui um apoio para ir para Israel”. Em uma comunidade agrícola, Rebeca acordava às 5 da manhã todos os dias. Trabalhava na colheita de laranja. O trabalho pesado a fez sentir na pele o que é ficar 8 horas por dia carregando peso, no sol. Rebeca coloca-se no lugar do outro e passa a entender que todas as funções tem seu valor. “Me mostrou que todo mundo tem um papel importante. Não é porque você tem um trabalho intelectual, que você é mais importante que ninguém, sacou? Isso me salvou de ser uma pessoa medíocre”. O resto da viagem seguiu-se pela Inglaterra, Europa Oriental e arredores. Depois dessa experiência, Rebeca voltou com mais de 80kg, cabelo vermelho, diversos piercings, tatuagens e acima das aparências, voltou uma pessoa que entende a complexidade do mundo, do racismo, do machismo, “Uma brasileira, sozinha viajando pela Europa, os caras chegavam: E, ai? Samba? Que Samba, velho?! Olha pra mim! Samba? Você vai entendendo as várias percepções de um problema. Tudo isso ficou muito claro para mim”. Na volta, a futura ativista começou a se envolver com temas que lhe interessavam de verdade. O estágio na SOS. Mata Atlântica deu a partida no seu constante envolvimento com a área ambiental. A Ilha do Superagui fez parte de seis meses de sua vida, onde morou e concluiu seu trabalho final para a faculdade de Jornalismo. “Essa

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foi a primeira experiência que eu tive de viver numa comunidade tradicional, na natureza selvagem, não tinha nem telefone, só radio. Não tinha luz, não tinha geladeira! Hoje eu penso: Como, Rebeca, você fez isso? Mas eu fiz. E foi muito doido”. No fim de sua pesquisa na Ilha; Rebeca contava com uma experiência com expansão de consciência fundamental. Chegou um momento em que a estudante tinha que escolher: ficar na ilha e fazer sua vida por lá, ou escutar o chamado e voltar para a civilização como ela conhecia. Seu livro-reportagem “Superagui: a terra do nunca” marcou o fim de mais um ciclo resoluto. Greenpeace, Matilha Cultural, Comitê de Drogas. Muitas instituições fizeram parte de sua vida. Sempre envolvida de forma plena, criando um apego forte que em seu fim deixa a ativista enredada de ressaca. Como um feitiço que foi quebrado, depois de um longo tempo seduzida. “Eu estou sempre tentando superar aquela adrenalina que eu vivi”. A Rebeca de hoje é autoral. “Eu me desapeguei da Rebeca da Matilha, da comissão das drogas.... eu sou a Rebeca. Que trabalha com isso ou com aquilo, não para alguém, eu trabalho para mim mesmo”. O que a guia para estar em um projeto ou outro, é a relevância. Com suas habilidades, sua inteligência, contatos, onde puder ser mais relevante para a sociedade naquele momento, ela estará. “Talvez esta seja uma nova forma, mais livre de ser ativista, mas mais solitária também”. O histórico de Rebeca a delega a uma função continua na sociedade. Sem causa maior, a ativista acaba por funcionar como um elo entre várias lutas. Todos os assuntos que a interessam interligados. Conectando pessoas especiais com temas interessantes e resultando em narrativas mais complexas, abrangentes e extraordinárias sobre os temas. A sua sensibilidade ampara a imensidão do mundo. Qualquer que seja o projeto em que está envolvida, Rebeca se conecta por inteira. O intelectual e o espiritual entram em comunhão. A cada trabalho, um novo olhar para dentro de sua alma. No cinza do centro de São Paulo, com maior liberdade, seu ativismo encontra novas formas naquele olhar downtown com morador de rua, prostituição, a vida noturna, tudo concentrado num lugar só. Foram anos de muita experimentação. “Antes eu achava que o ativismo era uma ação indireta não violenta. Onde tem que ir, tem que invadir, tem que


escrachar, tem que denunciar, tem que dar os nomes aos bois. Mas na Matilha (Cultural) eu aprendi: Vamos plantar árvores no centro? Vamos. Nós mesmos. E foi uma coisa muito linda, uma visão diferente que eu não tinha antes. Eu fui aprendendo que o ativismo não esta necessariamente vinculado a uma única pauta, necessariamente numa só maneira de agir. Em cada momento da sua vida, você pode fazer a diferença naquilo que você está fazendo”.

“SÃO PAULO É A VANGUARDA DO ATRASO” É difícil dizer para onde o ativismo está indo. Ainda vivemos o fim de um ciclo que começou com a internet e mudou a cara da comunicação digital. O ativismo em sua escola clássica, estar onde a notícia ia acontecer e tornar isso relevante em debates com o governo, acentua sua forma como guerrilha de mídia. Uma crise de representatividade assombra tanto as ONGs, os movimentos, quanto os partidos. “Vestir a camisa” ficou fora de moda e ninguém mais confia tão plenamente. O modelo de sindicato ficou muito parecido com o de partido político e as pessoas não se sentem mais representadas por inteiro. “Hoje com as redes sociais e um pouco de inteligência, você consegue fazer ativismo sozinho. Pô, eu sou de uma época em que produzia evento sem celular, entendeu?” Naquela época, os convites vinham em forma de panfleto. A estratégia girava em torno dos melhores lugares para a distribuição destes. Um cronograma da madrugada para colar pôsteres era recorrente. A equipe de 300 voluntários necessitava contato presencial constante e realizavam o trabalho que hoje, uma só pessoa faz com um evento no Facebook. “Eu peguei muito dessa transição, mas eu gosto mesmo é de ir pra rua. É nela que a gente se define como sociedade. Você pode fazer quantas reuniões de gabinetes você quiser, quantos estudos quiser, mas a vida mesmo e as respostas, elas estão na rua. Eu faço tudo isso pra poder ter a liberdade de ir lá e me manifestar. E de pagar minhas contas, né? Porque não tem jeito, a gente vai gerenciando a Babilônia”. Apesar de sua convicção parecer não ter fim, Rebeca não é ingênua,

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nem levada por utopias. É ultrarrealista, na verdade. Diariamente, ela vive a contradição de saber o quão difícil é, e que 500 anos de colônia não vão mudar de uma década para a outra. “Porque quando eu ouço que houve uma chacina aqui no Campo Limpo. Isso é uma derrota. Eu sei que a gente está fracassando como sociedade. Eu sou lembrada disso o tempo inteiro, mas se eu não fizer o que eu faço eu morro de angustia. Eu sou muito ansiosa. Eu preciso me sentir útil. Eu vivo num estado de consciência absoluta permanentemente. Eu tenho muita insônia. Eu não paro de pensar”.

“EU NEM SABIA QUE EU ERA FEMINISTA” Seu cabelo, costurado em dreads finos e grossos, é um escudo de proteção que a rodeia e grita: Não mexe comigo! Eu domino meu próprio corpo. Depois de mais de uma hora de conversa, o relógio marca a hora de buscar sua filha, Serena, na aula de taekwondo. Dois quarteirões abaixo, assistimos aos últimos minutos de aula protegidas da chuva, que caia mais forte, por um toldo azul. Há 12 anos atrás, Rebeca engravidou de sua primeira e única filha. Confortável com seu mundo masculino isento de salto alto ou sobrancelha feita, a sua experiência mais alienígena, como descreve a gravidez, a fez abrir-se para um mundo cujo qual ela ainda não compreendia. “A Serena me ensina todos os dias a ser uma mulher melhor. De não recriminar as mulheres, mas empoderá-las. Ela me ensinou a ser mais adulta, mais mulher. Eu também choro mais do que eu chorava, às vezes fico tipo: Porra, Rebeca. Filho é o maior enquadro que a vida te dá”. Serena é uma menina que observa. Completamente comunicativa, ela começa narrando a aula. 25 abdominais, seguidas de mais 5 flexões e mais 10 vezes correndo de um lado para o outro no tatame. A mãe determina a necessidade de uma ducha antes de dormir. “Mas, mãe! A água tá acabando! Eu não posso desperdiçar!” Filha de ativista, não poderia ser diferente. “Mas é a ai que está a disciplina filha, tem que aprender a ser rápida. Usar pouca água”. Aos poucos as bochechas rosadas da pequena vão voltando ao seu tom e a nossa conversa continua.


“O BRASILEIRO ESTÁ SE PREPARANDO” Como ativista, tudo que Rebeca sempre quis foi ver a Avenida Paulista tomada de gente. No dia 15 de março de 2015, um grande protesto tomou o Brasil inteiro. Dentro dele as pessoas pediam desde a saída da presidenta Dilma, passando pelo impeachment, até a volta da ditadura militar. Rebeca não consegue se lembrar de momento tão confuso como esse em seu tempo de militância. Ela já não se sente representada por ninguém, perfeitamente incompreendida. Independente de quem esteja no poder, suas pautas são sempre de oposição. “Eu nunca fui petista, mas também não estou ai pedindo impeachment. Então, se você foi lá (no Domingo) porque está bem intencionado, porque está preocupado com o país, no final você virou um número naquela multidão em que a liderança é representada pelo o que tem de pior na nossa política hoje. Estamos no fundo do poço, Agora é ver para onde levanta”. Cuidadosa, ela reflete: O pior legado do PT, é esse esvaziamento da esquerda e consequentemente, o fortalecimento da direita. Ela (a direita) encontra a classe média brasileira, porque mesmo quem não é classe média, quer ser, então se identifica. Já é uma sociedade conservadora, aí juntou a fome com a vontade de comer. Frustrada, a ativista tenta organizar o forte sentimento de sufoco e colocar os pensamentos em ordem. Houve um processo muito forte, 20 milhões de pessoas saíram da pobreza e foram incluídas principalmente pelo mercado consumidor. Isso massifica e “emburrece”. Houve investimentos que foram importante, um começo, mas esses frutos ainda vão demorar para amadurecer. Com a intenção de padronizar o consumismo e não de direcionar uma entrada genuína no mercado de trabalho pelo viés do talento e da identidade, criou uma geração que não existia há 20 anos. São os filhos do bolsa família. Eles estão se formando, e essa molecada não quer trabalhar em telemarketing, em caixa de mercado, como motorista de ônibus. Eles querem ser empreendedores, artistas, web designer, tem sonhos, querem ir para fora, querem falar inglês. Viver a vida de

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forma plena. Porém, a distância entre essa vida e a realidade ainda é grande. Essas famílias não têm esgoto em casa, pegam 3 ou 4 horas de transporte por dia, gastam 30% do salário no transporte público e ainda chegam em casa a tempo levar uma geral da polícia. Essas pessoas estão na margem da sociedade e querem mais. Conseguiram se organizar, se politizar e formar movimentos como o MPL (Movimento Passe Livre). Do outro lado, você encontra uma elite com sem empatia, que é ignorante e sabe pouco sobre o que acontece. Durante um pronunciamento da presidenta Dilma, na televisão, um panelaço tomou conta das varandas de São Paulo. “Fiquei muito deprimida. Todo mundo na janela, mas você não vê essa galera na rua. Eles andam só de carro. Eles não pegam o metro para o centrão e vem a decadência mesmo, como ela é”. Afinal, o brasileiro está preparado para o que virá? Bom, ele está se preparando.


O meu tempo estava acabando, assim como meu número de linhas. Decidi jogar a pergunta final: O que você espera para o futuro? Silêncio. Alguns segundos de reflexão que a levam a expressão: Uau. Rebeca respirou fundo, mediu seus movimentos e soltou a resposta em um só suspiro: Vamos viver momentos muito difíceis pela frente. Porém, o revés disso tudo é, finalmente, a criação de uma consciência coletiva. Na marra, vamos aprender. Não sei se isso vai acontecer no meu tempo de vida, mas a minha filha, eu preparo pro que der e vier. Seus desejos se amarram todos em um futuro que ela pôde criar, o de sua filha. “Eu preparo ela para pensar e resolver problemas. Autonomia. Que ela saiba se defender, como mulher principalmente. Não quero que nunca ela tenha essa dúvida: Por ser menina, será que eu posso? Que ela não tenha preconceitos, seja autentica. Saber valorizar a história de cada um, a luta de cada um. Clareza. Eu quero um mundo menos hipócrita. Se a gente conseguir isso já vais ser um avanço. A gente precisa de uma sociedade menos mentirosa. Eu banco! Mas as vezes cansa, sabe?”. Extasiada, para o gravador. No mesmo momento, Serena aparece na porta: Mãe, o

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que a gente vai jantar? Não sei filha, precisa ver o que tem na nossa geladeira santa de todos os dias. As duas caminham para a cozinha enquanto guardo as minhas coisas. Encontro o telefone fixo dentro da mochila. Dou uma última olhada para o quarto, na janela apenas alguns pontos de luz dos apartamentos vizinhos. Visto meu casaco, pego as minhas coisas e me despeço. Antes de sair, Receba me pergunta: E aí? Era o que você estava esperando? Foi minha vez de refletir antes de soltar uma resposta. Não precisei, ela completa:

“OLHA, EU NÃO

PRETENDO TER TODAS AS RESPOSTAS, MAS EU SIGO MEU INSTINTO”.


Dentro do verde, azul e amarelo, o Paquistão Por: Monique Amorin Nicole Dib

C

arlos Eduardo Mustafah Talifa, 46 anos, saiu da cidade dos cristais, da maior produção de cristais. De algodão e chá, também. Islamabad, capital do Paquistão. De serventia a um sheik foram 25 anos, pousando em terra brasileira no ano de 2000. “Eu trabalhei durante 25 anos pra um sheik. Eu era motorista caminhão da empresa dele, aí ele veio pro Brasil montar a empresa de carne e frango pra exportação pra nosso país, porque país que mais carne e frango tem é o Brasil. Vinha carne da Austrália, mas carne da Austrália é doce demais, muito ruim, não é carne boa. Então, ele montou uma empresa aqui no Morumbi e, como eu já trabalhava pra ele há muitos anos, ele me ofereceu emprego pra vir pra cá trabalhar de motorista pra ele. Aí eu fiquei até agosto de 2013. Foram 25 anos com ele”. A mudança na cultura foi inevitável. “A gente fica assustado com tudo isso. Toda essa gente, esse costume”. Mergulhar na língua portuguesa. Conta que são difíceis os tropeços e tombos nessa submersão lexical. “Foi difícil pra caramba!”. E na criação, no envolvimento com as poesias da vida cotidiana, a dificuldade de grafar. De sair do abstrato e poder materializar a escrita no papel. “ Fiz caligrafia. E aprendi com escola mesmo, né. Escola particular

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de português. Aí tinha um livrinho pra escrever né, a caligrafia... O difícil é escrever da esquerda pra direita, porque nós escrevemos da direita pra esquerda. Isso foi o pior. Não é falar português, é isso!” Três meses para desenvolver oralmente o português. Seis a sete, para dar forma ao abecedário. Difícil, mas muito difícil. “Mais difícil”, porque as consoantes e as vogais não estão presentes na cultura árabe. “Nós não temos isso, nenhum país tem isso, nem o inglês. Não existe isso, o inglês é mais fácil que o português, não tem nem comparação!”. Entre o biquíni e o corpo velado, o estranhamento. As mulheres paquistanesas usam a burca ou o basta, um vestido comprido. Corpo nu somente quando o amor der o tom à noite do casal. “Elas tomam banho no mar com isso. Só tira a roupa para o marido”. Mesmo com toda exposição das mulheres brasileiras, Carlos ainda se saiu bem em comparação com um de seus irmãos. “O estranhamento foi tanto que ele chegou na praia e agarrou os seios de uma mulher”, conta num misto de vergonha e risos. A estação fresca e seca dura de outubro a fevereiro. As temperaturas são mais suaves no sul do Paquistão. As noites chegam até 0°. E no despertar do sol até seu pino, a neve se vai – voltando o cenário árido do Paquistão. “Só que lá nós usa roupa comprida, sentimos só frio. Aqui você transpira porque é o seguinte: vento úmido é igual radiador de carro, ele fica mantendo, se refrigera, esfria e se esfria, esquenta que nem aqui, Ontem, frio. Hoje, calor. Aí você transpira. Lá, nós não transpiramos. E usamos roupa coberta, bem coberta mesmo, por que se não dá queimadura. Calor nosso não igual aqui no Brasil, que você transpira e cheira mal. Aqui é esquisito demais! Tá 8° e depois 30°”. A estação cálida, que dura de março a junho, apresenta temperaturas quentes

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no sul e no oeste do Paquistão, sendo mais suaves nas montanhas do norte. A estação das chuvas começa em junho e termina em setembro: o clima é particularmente chuvoso no sul com fortes chuvas – menos intensas ao norte. O feijão paquistanês é enlatado, o pastel cozido. A churrascaria é diferente, outros condimentos. “Não comemos porco”. A carne é mais cara lá, o famoso kebab. “Carne lá é tipo hambúrguer, carne moída de carneiro. Lá nada é frito, tudo no azeite. Você só vê magro lá, não vê gordo. Lá diferente, por que não tem fast food, agora que ta chegando Mc Donalds lá, KFC, mas em cidade grande, no meu não tem isso”. Além de trocar a mão pelo garfo e faca, o clássico da refeição brasileira Carlos Eduardo aprendeu: arroz, bife, feijão, ovo e batata. Devido ao clima, o verde das folhas não resiste. Pepino, tomate – “bem diferente daqui, bem grande e sem suco” – dão a cara para a refeição muçulmana. “Lá vem tudo do Japão, não dá para plantar nada, nós só tem romã, pistache, muito pistache. É barato demais, você enche sacos, época do verão que dá mesmo. E o resto, de comida assim, a única coisa gostosa é comida japonesa, que aqui tem e lá não. Aqui é gostoso”. O brasileiro, para muitos, é lembrado por sua cordialidade. Tudo é visto como festa: Copa, carnaval, caipirinha e mulher vistosa. Mas, ao mesmo tempo, brasileiro tem a mania do pouco diálogo. É do confronto radical. Muitas vezes em que a tentativa de um discurso amistoso, harmonioso, esvai-se. “Brasil é difícil a amizade. É um povo meio gelado pra isso. o que eu sinto mais falta é diálogo aqui. As pessoas são muito fechadas entre elas. Por exemplo, você tá na rua e fala bom dia pra pessoa e ela atravessa pro outro lado. Eu não vou matar ninguém não, não vou fazer nada de mal. Então, eu acho que o mais importante que falta em vocês é o diálogo entre as pessoas”. Ou é a mentalidade arcaica e preconceituosa que

O ESTRANHAMENTO FOI TANTO QUE ELE CHEGOU NA PRAIA E AGARROU OS SEIOS DE UMA MULHER


BRASIL É DIFÍCIL A AMIZADE.

dá boas-vindas? O paquistanês diz nunca ter sofrido preconceito ou discriminação, mas a empresa em que trabalhou fez suas exigências. “Quando cheguei aqui tive trauma, 25 anos de barba e empresa mandou tirar. Chorava, por que barba tradição, tudo, cabelo grande”. Mas, ainda assim, sempre pode fazer suas orações e tinha a possibilidade de usar sua touca religiosa, ainda que não a usasse. “Aqui, dirigente interno falou que se quisesse usar touca no cabelo, tudo bem, mas eu não misturo minhas coisas particulares, minha religião com meu trabalho. Eu to aqui pra trabalhar, não para ficar enfeitado”. Carlos Eduardo reconhece muito bem um mal construído pela internet nessa sociedade contemporânea marcada pela liquidez dos relacionamentos afetivos. Aproxima, mas não aperta os laços. Inúmeras chances de conhecer diversos povos e culturas, mas também se vive em nichos. Perde-se a oportunidade de entrar no desconhecido e conhecê-lo, cuspindo o tom discriminatório. “O mundo fechou muito, por causa do computador, as pessoas estão mais trancadas dentro de casa e isso não dá para entender. Medo nenhum vocês podem ter. Vocês tem que ter vida, saúde, felicidade, sair e encontrar, por que, hoje, o diamante mais rico do mundo é a amizade, que aqui falta”. Islamabad, uma cidade governada pelo Talibã. Uma cidade que não funciona 24 horas. “Dez horas da noite já acabou”. Carlos Eduardo conta que nos anos de 98, 99, os paquistaneses sofriam muitos embargos. “Cortava luz, você tinha que ir dormir cedo. Porque é assim, quando tem muito conflito, eles aproveita do civil, né. Carro bomba, homem-bomba e aí vai. Então tem essa diferença do Brasil, que aqui 24hs livre. Aqui você tem mil opções na sua vida: ou ser feliz, te dão toda essa oportunidade, ou ser bandido, ou ser honesto. Lá no nosso país não tem bandido. Lá bandido diferente, nós pega e senta a mão neles. Lá você pode ficar sossegado, andar com joia, ouro, carro, chave, com uma pilha de dinheiro e, no outro dia, o carro ta lá com uma pilha de dinheiro. Aqui é diferente. Todo mundo quer aproveitar do sua vida. Lá não tem esse negócio, lá não”. Outro grande abismo existe entre os

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bancos brasileiros e os paquistaneses. No Brasil, como em muitos outros lugares, só há desconfiança e impunidade. “Vou explicar como funciona banco, não tem guarda, não tem nada, não tem cancela de vidro, de nada. Lá você tem um só gerente no banco, que governa e um assistente, que se quebra máquina, arruma, mais nada. Lá você saca o que você quiser. Dinheiro, no bolso, assim cheio, você sai na rua e ninguém pega nada”. É difícil acreditar que ocorram poucos roubos com um banco como o paquistanês, mas Carlos surpreende ainda mais ao contar sobre outro costume de troca de dinheiro. “No Paquistão é comum a troca de dinheiro na rua e então tem tábua comprida, grande, as notas tudo empilhadinha com tijolo em cima pro vento não levar, amarradas no plástico. Você vai pra casa almoçar, volta e tá lá pilha de dinheiro direitinho, do jeito que tava. O dinheiro fica lá, ninguém pega, mas também se rouba, você sabe o que acontece”. Com tudo isso, o paquistanês reforçou uma decepção, tristeza brasileira: segurança pública falha e a desavença. Solução: às vezes pelas próprias mãos. “Aqui parece uma plateia e o coitado que é assaltado, todo mundo não faz nada. Roubam celular e todo mundo ‘Oh, pega ladrão, pega ladrão!’. Lá não, por isso que te falei da amizade lá. Todos


se conhecem entre nós. Se rouba você, junta cem em cima, senta a mão, devolve negócio e deixa moço quase paralisado no chão, depois chama polícia que senta mais a mão”. O tempo da entrevista vai passando e as camadas de Carlos vão se abrindo, o paquistanês fala mais sobre o terrorismo. Algo tão natural e presente em sua vida. Desde a tenra idade, bateu de frente com o radicalismo pelo direito de estudar. “A educação lá é um problema sério. Agora melhorou um pouco. Nossa época quando ia estudar, nós tinha que se esconder, então tinha que sair 1h da manha, correndo, cobre janela com papel e professor voa pra te dar aula de madrugada, porque lá mata”. Carlos diz que agora as coisas são melhores, mas é difícil aprender algo que não é de lá do próprio país. “Nós não tinha direito de estudar, só coisa deles, política deles, governo, mais nada. Agora, o resto, aprendi estudando aqui no Brasil, me formei aqui em jornalismo, fiz federação do comercio de cenografia e fotografia, mas não segui, só fiz pra ter profissão e diploma”, conta um Carlos orgulhoso, mas contido. Com um semblante sereno e um olhar melancólico, Carlos revela algo que não é esperado nesse homem alegre e pouco rancoroso. Alguns encontros com a morte, inclusive a de sua primeira mulher, um irmão e quase a sua também. Mortes sem honra. Pela sua descrição, na rua onde estourou a bomba, surgiu um abate e não um lugar onde poderia haver pessoas. Delas só sobraram os dentes e as carnes, como o próprio Carlos descreve. “Só sei que foi uma tristeza, você pegar sua mulher igual carne. Aí você tinha que separar as pedras assim, tirar o corpo, juntando num saco, mulher me deu um saco assim, um saquinho e só”, conta mostrando com a mão o tamanho do que restou de sua mulher, talvez um saco de mercado. Um de seus irmãos também não sobreviveu. Eram atentados recorrentes praticados pelo Talibã, todas as ruas têm nome de mártir. Essa é a vida. Carlos, apontando e olhando para o teto, credita ao Alá sua vida ter sido salva, mas não podemos esquecer o sal grosso. A única coisa ao alcance das pessoas e que estanca o sangue. Seu corpo, além de muitas cicatrizes, beneficiou-se de estruturas da medicina cirúrgica: “Eu tenho placa na cabeça, 45 parafusos na bacia, um fêmur de titânio, 36 parafusos no pé”, conta. Mesmo assim, inacreditavelmente, Carlos ainda consegue fazer piada. “Tudo daqui pra cá é da Siemens”, brinca

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AQUI PARECE UMA PLATEIA E O COITADO QUE É ASSALTADO, TODO MUNDO NÃO FAZ NADA

apontando de sua bacia ao pé. Com uma placa de aço na cabeça, ele revela ter voado 7 metros. “O que me salvou foi o pneu de um caminhão”. E como se já não tivesse muito em que pensar, ele percebe uma pequena ironia disso tudo: “Engraçado, mas não comemos porco e é a pele do porco que salva nós, enxerto de carne, tudo, é a única carne que o organismo humano, a pele, aceita”. A morte rondava a vida de Carlos e o que ele mais queria era tirar seus dois filhos de Islamabad, O Talibã não levaria mais essas duas vidas. Não foi fácil, mas hoje, graças à persistência, eles moram na Inglaterra. Mesmo sendo pai e mãe, o paquistanês dedicou um ano direto, sem parar, ao trabalho para, assim, poder pagar passagens de avião que o levariam ao parlamento da Inglaterra. “Aí eu fiquei um ano no meu vida trabalhando dia e noite caminhão, direto. Nossa, dia e noite caminhão, juntando dinheiro pra pegar avião pra ir parlamento pra pedir pelo amor de Deus pra tirar meus filhos do terrorismo, por que as crianças lá, eles pegam pelo pescoço, não tem conversa, leva e você não vê mais eles”, conta exaltado. “Aí eu pegava avião todo dia, sábado e chegava a trabalhar direto. Todo sábado e domingo direto, dormindo no chão do lado do parlamento”. Depois de muitas noites dormindo na rua, de muita chuva, neve e frio, o paquistanês cumpriu sua missão e chamou a atenção do parlamento. “Aí conversaram comigo, foram no meu cidade pra ver se estavam mal tratados. Meus meninos tratava maravilhoso, aí consegui construir casa lá pra eles, tudo. Eles estão lá quase 12 anos já”. Com os filhos salvos, Carlos pode se


dedicar a ele mesmo. Trabalhou muito e colecionou muitas outras histórias. A cada nova encomenda, um novo trajeto, uma nova viagem. Como caminhoneiro viajou muito, principalmente pela estrada mais comprida do mundo, a Transasia. “Essa estrada começa no nosso país e termina lá na Rússia, Ásia, corta tudinho e vai embora, então esse trajeto eu fiz 18 anos do meu vida”. Mostrando uma foto cheia de caminhões, Carlos diz ser lá o último posto de gasolina em mais de 1000 km. “Esse monte de caminhão aqui é que é o ultimo posto de gasolina, depois tem 1200 km e reza pra chegar (risos). Aqui você fica mais ou menos dois dias pra chegar seu vez de tomar banho, comer, abastecer caminhão. Cabe 5 mil caminhões só no pátio do posto. Tudo deserto, não tem acostamento. E você tem que esperar. Não pode passar vez, se não dá confusão”. Lá, na maior estrada, segundo o Guiness, o paquistanês transportou muito motor de caminhão, chá e fumo. Muito chá e fumo. “Chá é sagrado. Chá e narguiles”. Mas deixa claro não gostar nada de cigarro, bebida, nada. O puritanismo não o abandonou. Um homem como Carlos deveria ter mais na vida do que somente um trabalho. E assim foi. No Brasil, uma mulher brasileira conquistou seu coração. Desde 2003 é casado com a paraibana Márcia. Da relação, um fruto: Felipe de 7 anos. Nenhum dos dois é da religião de Carlos, nem frequentam a mesquita. O paquistanês não se importa, embora seja muito comum em sua cultura o homem mandar e obrigar a família em diversos assuntos, principalmente no religioso. “Eu acho assim, religião no seu vida, você não obriga ninguém a seguir. Tem muitos radicais que obriga mulher a seguir, usar burca, manipular...Mulher você não pode manipular, mulher é o fruto do nascimento, que dá teus filhos, que dá teu felicidade, que dá tua alegria. E, no islamismo, tem muitos radicais desses que obriga mulher, só manda, coitadas, as mulheres tem que mudar. Só que são uns doentes né, aqueles que não tem amor, paixão, nada. Eu fui diferente com mulher. Agora, aqui não, aqui eu não vou obrigar, não vou ficar mandando neles, não vejo graça. Só que lá não, lá quem manda é homem. Vou mudar o perfil moça que é do Brasil?” A luz do sol que ainda atravessa o anoitecer às 22 horas. De seu bairro, as montanhas que iniciam o Himalaia. As piscinas de água quente natural, gigantes, fundas. As tempestades de areia. Embora o cenário afrodisíaco de seu país, Carlos Eduardo Mustafah Talifa sabe que sua paz está no acalento do colo brasileiro.

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EU TENHO PLACA NA CABEÇA, 45 PARAFUSOS NA BACIA, UM FÊMUR DE TITÂNIO, 36 PARAFUSOS NO PÉ


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CASA (IN)COMUM

Por: Marina Mattos

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relógio marcou duas da tarde de uma terça-feira ensolarada, iniciando mais um almoço na casa coletiva Fora do Eixo de São Paulo. O sol batia forte na varanda de trás onde os moradores se reuniam em cadeiras de praia para a principal refeição do dia. “Come aí! Acabou de sair”, oferece um simpático morador de cabelos rastafári com chinelos nos pés e bermuda que lhe tocavam o joelho. O rapaz não aparentava ter mais do que 20 anos. Arroz, feijão, frango xadrez, salada verde, grãos e batata frita. O cardápio era completo . Minha conversa foi com Louise Sandoval, de 24 anos, moradora de coletivos desde 2010. A paulista tem os cabelos curtos e bagunçados, olhos amendoados por um castanho profundo e roupas coloridas de número maior do que seu corpo. Entre uma garfada e outra, a moradora tira um tempo de seu expediente e explica o exato momento em que decidiu seguir uma vida incomum Sua história começa no interior de São Paulo, em Bauru, onde cursava jornalismo na universidade estadual UNESP. Em uma idade de incertezas afloradas e escolhas decisivas a todo vapor, muitos jovens sentem a necessidade de fugir do padrão ou de pelo menos seguir um caminho distinto do que seus pais trilharam. Essa foi a escolha de Louise, que optou uma vida diferente do que estamos acostumados. Para muitos o normal é terminar a faculdade, conseguir o tão desejado diploma e seguir em busca de uma carreira estável. Porém, a geração Y insiste em ser diferente. Muitos jovens desta geração estão voltando a investir na ideia comunitária e global ao prezar a vida em grupo, deixada de lado cada vez mais a partir da prezada individualidade da era tecnóliga. É assim que funciona uma das maiores redes de coletivo do país, a Fora do Eixo, com casas em nas mais diversas capitais brasileiras como Manaus, Curitiba, São Paulo e Recife. Uma casa coletiva Um coletivo se resume no uso da inteligência coletiva, no compartilhamento e no código aberto, resumindo um trabalho entrelaçado. Louise conhece a rede há 5 anos. No interior de São Paulo, ela participou do seu primeiro coletivo, o Enxame Coletivo, e em 2012 voltou para a capital. Antes de se mudar para a casa coletiva em que vive hoje, no bairro da Liberdade, ela não conhecia nenhuma das pessoas com quem viria a morar,

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mas já sabia o que esperar do ambiente vivo que lhe cercaria e a faria respirar uma nova cultura social. A paulista de pele queimada do sol descreve o coletivo como “um lugar em que estamos abertos a dar um passo à frente em relação ao compartilhamento”. A casa tem praticamente vida própria e torna-se por si só um personagem interessante. Os quartos de seus hóspedes e moradores ficam no andar de cima, um lugar barrado para estranhos e intrusos. O escritório é colorido e grafitado. Uma exposição fotográfica de moradores que já passaram pela casa se alonga pelo corredor e mescla com o espaço da cozinha, onde se encontra provavelmente o espaço mais coletivo da casa. Lá, diariamente as refeições de seus 26 moradores são realizadas e as tarefas distribuídas por igual. O cheiro é contagiante e faria o estômago de qualquer um suspirar de prazer, murmurando queixas por um prato cheio. “Come, vai!”, volta a oferecer o menino. Os móveis são todos doados e a decoração fica por conta da criatividade incessante destes jovens. Neste espaço simples, porém rico, tudo corresponde à lógica colaborativa. “Nós entendemos este trabalho como um investimento sobre uma nova ótica”, pensa Louise. Em um coletivo, é compartilhado não apenas o material, mas também o sentimental. A casa se infiltra como mãe nas veias de seus moradores, tornando-os irmãos. “Aqui não existe o “meu” ou o “seu”. Aqui tudo é nosso”, explica Louise. “Somos criados com uma série de vícios, ditando como devemos agir e como devemos nos comportar. Nós vamos desconstruindo essas ideias a partir da vivência coletiva”. Uma doença normal A palavra “normal” vem de norma, que significa regra. A partir deste conceito, entendemos normal como estar na média e fazer parte do que a maioria da sociedade dita como certo. Esta incessante necessidade de se encaixar tornou-se doentia. Esse mal leva o nome de normose. Por enquanto, essa doença não tem cura, pois, infelizmente, não existe fórmula secreta para a felicidade nem para a auto aceitação. Para pessoas como Louise, que acreditam em uma nova forma de sociedade, a cura dessa doença só vai ser possível quando houver no mundo gente o suficiente a questionar tudo que achamos normal. Por enquanto, estes personagens chamam a atenção de quem sonha em escapar do costumeiro.


A jovem faz uma provocação: Trabalhar 40 horas por semana em algo que não lhe é satisfatório é uma realidade para grande parte do nosso corpo social. O maluco, o doido, o estranho é aquele que sonha em uma vida voltada ao que lhe traz prazer independente do que vão pensar. São nômades , malucos de estrada, viajantes e profissionais independentes que ilustram as brechas da normalidade enraizadas em nossos primeiros passos vitais. São maneiras de viver e conviver diferentes do que estamos acostumados que podam nossa percepção para novas formas de lucidez florescerem. Estes frutos podem intimidar à primeira instância, mas também encantar quem acredita, um pouco que seja, na possibilidade de uma vida incomum. A vida em coletivo proposta pelo Fora do Eixo pode parecer radical e faz muitos torcerem o nariz para uma ideia tão utópica a uma sociedade acostumada com o sistema que lhe foi firmado. Afinal, uma comunidade coletiva como esta cria uma brecha no que estamos acostumados a ver e apesar de parecer tão revolucionária e inovadora, nos leva ao passado, no início das nossas construções sociais. A lógica coletiva Neste espaço compartilhado, seus inquilinos não só vivem, como também exercem seu trabalho. O espaço abriga moradores e funcionários em um mesmo ambiente. Segundo Louise, o horário do expediente de cada um vai de acordo com seu organismo. Em seu aglomerado, a casa funciona de forma orgânica e seu sistema é fluído. A morada fica em atividade das 9 às 5 da manhã, segundo as necessidades de cada um de seus residentes. A explicação é simples, “ninguém vai te dizer faz isso ou faz aquilo agora. Nós nos organizamos coletivamente mesmo. O café, por exemplo, fica das 9 às 11 porque teve gente que acordou mais cedo e tem aquele que trabalhou até às 3 da manhã e vai levantar mais tarde. Isso é importante porque para as pessoas estarem bem elas têm que estar alimentadas, assim serão mais produtivas e consequentemente, mais felizes”. Transbordando qualquer limite do âmbito pessoal, no Fora do Eixo, o armário não escapa da coletividade. Meias antiderrapantes, chinelos sem dono, casacos fofos e camisas amassadas. Lá, em um grande aglomerado, as roupas são divididas entre todos e nada é de

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ninguém. “Você tem que desapegar da necessidade de ter algo que é só seu e que ninguém pode usar. Quando você está compartilhando, não é que você perdeu, pois você ganhou mais de outros, entendeu? É uma chavinha que vira”, explica a moradora com brilho nos olhos Neste universo novo, a moeda também é social. E se chama Card e funciona por meio de um sistema de troca de serviços e de produtos, permitindo que os moradores façam negociações de forma não monetária. Isto dá uma nova definição sobre o trabalho e também sobre o consumo da comunidade, desafiando as preocupações e problemas que estamos acostumados a vivenciar. Louise explica que é tudo uma questão de desapego da lógica tradicional, dos nossos costumes e manias arraigados. Segundo ela, no coletivo, eles se desapegam destas tradições e as transformam em outras prioridades. Prioridades mais coletivas, como o bem -estar em sua plenitude. A casa mãe tem adotou muitos filhos a partir dos mesmos ideiais de seus herdeiros, porém, está árvore também já floresceu com frutos de sua própria essência. Existe um bebê nascido dentro desta lógica coletiva, Amélia. A criança de um ano foi derivada dentro do âmago coletivo para o mundo à fora. Não é possível prever quais serão as escolhas dessa criança no futuro, mas este progênito firma a ideia de que isso é mais do que uma experiência. É uma escolha de vida, íntima e profunda. Louise declara que este estilo de vida da um novo significado a tudo que já teve ou tudo que já soube até agora. Viver em coletivo é uma mensagem de que as ideias coletivas estão mais possíveis e mais necessárias do que jamais estiveram. Ela e outras inúmeras pessoas pelo mundo, conseguiram construir diversas cenas inusitadas de forma espontânea. Segundo ela, a fissura apenas foi aberta, não há pretensão nenhuma de descontruir o sistema estabelecido. A abertura apenas permite que mais pessoas possam participar desta forma alternativa de ver a vida. Depois do segundo prato, a residente declara que cultivando valores e prioridades diferentes, respirando tolerância e mastigando coletividade: É possível.


Do pão de queijo à terra da garoa Por: Monique Amorim Nicole Dib

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a maior região produtora de café no Brasil, bem lá do Sul de Minas, perto da capital Belo Horizonte, em um pequeno município cercado de montanhas, vivia uma mulher cheia de curiosidade e com um sonho, parecido com o de muitos outros desbravadores, ainda não despertado. Aparecida Conceição, ou Dona Cida, nossa Macabéa, nasceu em Pedralva, numa fazenda grande, com inúmeros contornos verdes delineando a paisagem. Cavalos, porcos, galinhas e bois. E muita fruta. Laranja, mamão, manga, pêssego, ameixa, banana, goiaba. “Tudo plantado lá”. Milho, arroz, feijão, batata. Cavalgar tornou-se um trauma. “Um dia eu estava sobre meu cavalo Dourado e de repente ele disparou por causa de um bando de gaviões. Eu me desequilibrei. Cai no chão e torci o pulso! Depois disso,

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nunca mais”. A mineirinha, precipitada, apressada, ô, ligeirinha!, quis dar início contando sobre sua vida a partir de quando tinha 17 anos, momento no qual vinha a São Paulo. A curiosidade sobre seu passado, portanto, apitou. Talvez ela não se lembrasse de sua vida anterior muito bem. A memória é finita, simples assim. Ou talvez porque sua vida tivesse realmente começado ali, nas 17 primaveras. Mas antes, a infância. Atualmente com 77 anos, Cida teve muito de sua memória instigada por cores, cheiros e sabores. Ah, quanto sabor! Com um forno a lenha construído pelo pai, a mãe de Dona Aparecida, Benedita Conceição de Jesus cozinhava muito. “Ela fazia de tudo pra nós lá: biscoito, bolacha, pão de queijo, broa de fubá, sabe? Que é gostoso com erva doce? Nossa, era uma delicia!”, contou-


nos passando a língua pelos lábios secos e rachados. Porque falar sobre comida sempre despertarão lembranças gustativas. “Minha mãe fazia doce de banana, doce de laranja, doce cidra. Fazia de tudo. Doce de leite cortado em pedacinho, doce de amendoim. Tudo que você pensava, lá tinha. Era muito gostoso!” José Domingo da Silva, pai de Dona Cida, vivia realizando seus bailes à sua moda: o forró. Notas de sanfona e violão, dedilhadas por José, animavam os salões. “No fim do mês, quando meu pai realizava leilão, ele fazia aquele forró danado! Mas eu não gostava muito. Eles ficavam dançando no curral”. Dona Benedita, com suas mãos doces, sovava as massas dos biscoitos e das broas. “O povo ficava comendo, tocando. Enchiam o latão, caipirinha, tudo.” Mas a mineirinha não gostava desse trem, não, sô. “Eles não faziam o meu tipo. Eu não me misturava”. A vida na fazenda parecia o sonho de muitos urbanos que querem sossego e um maior contato com a natureza. Mas essa natureza exuberante também teve seu lado cruel. Quando criança, Dona Cida teve de lidar com a morte de um de seus 13 irmãos: José, que picado por uma cobra, chegou a falecer. Esse fato mudaria sua vida. “Você vê como que é a vida? Eu morava lá na fazenda, mas eu tinha medo. Não pensa você que eu gostava de ficar lá. Ah, é gostoso, mas eu morria de medo. Quando eram seis horas da tarde, eu já estava escondida lá dentro do quarto”. Enquanto seus irmãos brincavam, ela se escondia. Quando pensamos que somente sua vida na fazenda tinha sido afetada, Cida revelou mais: “Ah, eu tinha medo de cobra, de sapo, de tudo quanto é bicho! Até hoje eu ainda sou medrosa. Eu saio à noite, mas eu ainda tenho medo, sabe? Mas a vida era gostosa! Não vou falar pra você que não era bom, porque era gostoso. A gente tinha tudo o que queria lá. Tinha tudo”. Aparecida nunca fala mal de seus pais, ou caracteriza-os como bravos. Ao invés disso, “enérgicos”. Uma mulher de outro tempo, com o respeito acima de tudo e uma lealdade para com os pais. “Meu pai foi um pai legal. Muito bom. Ele nos aconselhava muito. Conversava mais com a gente que minha mãe. Minha mãe descia o chinelo. Ela pegava e lascava na gente. Também você vê? Um monte de filho, né? Então ela era enérgica mesmo, mas era legal, coitada.”

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“EU MORAVA LÁ NA FAZENDA, MAS EU TINHA MEDO. NÃO PENSA VOCÊ QUE EU GOSTAVA DE FICAR LÁ”.


Como em muitas regiões rurais, a educação em Pedralva não era um ponto forte. Aparecida só frequentou até o quarto ano do ensino fundamental, mas o que ela não teve em estudos, compensou futuramente a mais ou menos 400 quilômetros de distância com muita determinação. Por um breve período, frequentando o colégio de freiras, Dona Cida decidiu ser uma. Mesmo com o nome dado em homenagem à Nossa Senhora de Aparecida, os pais de nossa Aparecida não concordavam com essa escolha. O pai deixava bem claro. “Ele me dizia: ‘Não. Mulher cresceu, tem que casar e ter sua família. Você não vai pra lá’.

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Tentei perguntar o porquê, mas ele foi resoluto”. E de onde surgiu essa ideia de ser freira, uai? Nem ela sabe dizer. Mas a ideia foi esquecida. A vida seguiu seu rumo e as paqueras surgiram. “Eu tinha três colegas lá em Pedralva que moravam na cidade. Eu ficava lá na roça. Quando eu ia pra casa da minha vó, eu saía com elas e ficava passeando de noite, até às sete horas da noite, fazendo aquele vai e vem, sabe? Lá falava ‘vai e vem’. Então, a gente arrumava paquera. Ficava olhando eu, a Denise, a Vanda e a Terezinha, nós três, cujos pais eram cheios da grana também. Eram


fazendeiros. Só que elas moravam na cidade e eu ficava lá na fazenda”. Nesse vai e vem, ficou a maior saudade de Aparecida. Desses passeios, uma de suas maiores aventuras, uma transgressão. As amigas Vanda e Denise tinham um plano: pegar a caminhonete do pai, um empregado para dirigi-la e ir até São Lourenço passear e conhecer. Cida ficou com medo. “Pensei: ‘ai meu Deus! Vou passar em frente à fazenda e meu pai vai me dar uma surra em mim!’, mas ele não batia, meu pai era de conversar”, contou. “Aí na hora que passamos em frente à casa do meu pai, eu me abaixei pra ninguém ver, né. E fomos embora”, narrou abaixada revivendo nas memórias o momento da escapada. As mineirinhas passaram a tarde inteira fora. Só foram voltar depois das 17h. Passaram pela fazenda e tudo estava tranquilo. Amém! Mas algo está faltando. E a paquera? “Peraí! Deixa eu voltar e contar onde eu conheci o português. Conheci um português lá em São Lourenço. Moço bonito, sabe? Me paquerava. A Denise também arrumou uma paquera lá. Assim, todas nós. Cada uma arrumou alguém. O meu chamava Antônio”. Esse Antônio ainda daria muito trabalho. Era um homem apaixonado. Um Don Juan aportuguesado. Aos finais de semana, saía de São Lourenço para Pedralva ver a amada. Encontravam-se na casa da avó de Dona Cida. Escondido, claro. “Ai, ele era louco pra falar com meu pai! Eu dizia: ‘Nem nos conhecemos e você já quer namorar comigo? Quer falar com meu pai, pedir em casamento? Que isso! Não é assim, não’ Aí nós ficávamos namorando, na paquera, vai pra lá, vem pra cá, aquele vai e vem na rua, sabe?” Passeio vai, passeio vem. Uma oportunidade surgiu. A sobrinha de Dona Cida seria batizada na cidade grande. O pai e a tia iriam a São Paulo. Aparecida, sem pestanejar, embarcou nessa. A novidade foi contada ao Antônio, mas o português não recebeu tão bem a notícia. “Ele falou: ‘Não, você não vai! Eu vou te pedir em casamento e nós vamos casar’. E eu: ‘Que negócio é esse? Fazer o quê? Quatro meses que nós estamos namorando?’ E ele não vinha todo sábado e domingo. Vinha só fim de mês. Falei: ‘Não, não vou casar! Que isso! Nos conhecemos há pouco tempo e já ta falando em casamento?’ E ele:

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“Eu gostei de você. Você é linda e nós vamos casar!’ Ele queria mesmo falar com meu pai”. No dia 20 de janeiro, de 1957, Dona Cida chegou ao bairro da Penha por volta das oito horas da noite. [Eita, memória boa, mineirinha. Ainda disse que sempre foi boa com números] Tudo era mato. A cada esquina, mato. Relembrou-se da igreja onde havia se casado: “igreja de São Benedito”. E quando pisou em terra paulista, a certeza de não querer mais voltar a Minas Gerais. E fazer sua felicidade em São Paulo. “Eu não queria mais voltar. Conversei muito com meu pai pra ele ficar sossegado, pois iria arrumar um emprego, ter meu dinheiro e me casar”. E depois de quatro dias, o pai de dona Cida voltou para seu recanto mineiro. Seu primeiro emprego: contadora de parafusos em uma empresa. Contava, embalava, lacrava. Contava, embalava, lacrava. Ficou quase um ano. Mas o dom de costureira chegou depois, numa fábrica muito antiga de roupa chamada Berisa, localizada no Brás. Saiu cinco horas da manhã da casa de sua irmã, para chegar às sete horas e, assim, realizar o teste para essa nova oportunidade. “Naquela época os ônibus eram horríveis. Tão antigos. Eu pegava seis e meia da manhã e era tão perigoso! Tinha bastante malandro sem vergonha”. Dois italianos eram os donos da loja. “Se ela passar, já começa amanhã mesmo”, relembrou. “Ai eu falei: Como é isso? Aí, a moça que era diretora lá colocava um monte de blusa com as partes pra fazer. Quando ela sentou na maquina, viu que tudo era elétrico. Você pisava no motorzinho e ‘ziiiiiiiiiii’ e eu falei: Meu Deus, e agora? Nunca tinha visto uma máquina elétrica na minha frente! Aí eu falei pra ela: Menina do céu, como é que vou fazer? Nunca vi uma máquina! E ela: Presta atenção. Eu vou sentar aqui. Aqui tá a parte da frente e aqui tá a de trás. Então, você costura aqui do outro lado, aí depois você vem aqui com a manga e costura’. Mas eu era inteligente sabe?” [Hum, mineirinha ligeira] Duas vezes foram suficientes para Dona Cida mostrar que era capaz de surpreender. “Dá licença? Pode deixar que eu vou sentar aí e vou fazer”. Num instante, ela fez uma blusa. A partir daí, a nova costureira da loja Berisa. Do susto pelo estranhamento na nova aparelhagem, ao nascer do talento. “Fiquei trabalhando por quatro anos”.


Calcinha, camisa, calça, meia fina feminina. Tudo isso as mãos de dona Cida já moldavam perfeitamente. “Foi um emprego ótimo! Era tão gostoso!” Olha que glória, que beleza de destino! Pra esse menino, Deus reservou, ô, ô! O dono do Baú, Silvio Santos veio do Rio, junto de sua irmã. Morou na rua José Maria, “a três casas da minha”. Ele ia às ruas da Penha com uma sacola pra fazer propaganda de cera de chão. Ficava na rua desde cedo. “Olha a cera! Quem quer comprar cera?”, relembrou Aparecida. “Você como a vida é engraçada? Hoje ele é milionário. Milionário! Ele era feio que dói!” Dona Cida não era de tricotar com o dono do Baú. Afinal, ele era meio “secão”. Ela saía cedo para trabalhar e lá estava o Silvio vendendo a cera. Voltava por volta das sete horas da noite e ele continuava. “Depois, novinho, foi pra televisão. E aí começou”. O aviãozinho vai subir A fé da mãe de Aparecida Conceição era grande. Talvez por isso que Dona Cida carrega brilho na alma, sorriso para quem cruza contigo, inundando coração de otimismo e gratidão pela santa Nossa Sra. Aparecida. “Na primeira vez que vim à igreja Aparecida, nós viemos em um caminhão que meu pai tinha. Esses caminhões leiteiros. E pra nós dormir lá? Um hotel mixuruca. Eu tinha sete anos. Veio eu, minha mãe e meu pai, meu irmão e quem? Ah, nem lembro. Meu padrinho, minha madrinha. Eu sei que veio uma turma no caminhão. Tudo em cima. Nós viemos e passamos o dia inteiro. Dormimos e no dia seguinte fomos embora. Naquela época era mais mato ainda. Puro mato. A igrejinha era numa estrada alta e muito pequenininha”. Uai, e o fim do português? Depois de mais ou menos seis meses após ter chegado ao bairro da Penha, Dona Cida não enviou carta alguma. Um colega dela até havia dito que o português a procurava: “Olha, o Antônio quer seu endereço de qualquer jeito! Ele quer ver você! Casar com você!”, recordou-se. E a mineirinha, sô? “Você não fala nada de mim que tô aqui em São Paulo! Fala que você não sabe mais nada de mim”.

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“HOJE ELE É MILIONÁRIO. MILIONÁRIO! ELE ERA FEIO QUE DÓI!”


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Na CONTRAMÃO da vida Por: Camila Oliveira Roberta Queiroz

A morte pode fazer um indivíduo experimentar os mais diversos sentimentos: revolta, negação, angústia, resignação. Cada ser humano reage de uma forma, levando experiências distintas para o mesmo fato. A morte de um filho é um acontecimento inesperado na linha do tempo da vida, já que o mais comum é que os pais pereçam antes. Clarice e Fausta, duas mães que foram pegas de surpresa pelo destino, abrem seus corações e contam suas experiências. Clarice perdeu o filho vítima de um acidente. O de Fausta faleceu devido a uma grave doença. Ambas foram atingidas pela quebra da linearidade humana, que culminou em um verdadeiro divisor de águas em suas vidas. 38 | Narrativa


o ADEUS da ovelha NEGRA

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ora do almoço. 29 de Janeiro de 2011. Clarice e o marido Francisco almoçavam em casa na companhia do pedreiro que cuidava da construção de um escritório no subsolo da propriedade. Moradores da cidade de Arujá, cidade pequena e tranquila a 40 km de São Paulo, o casal usufruía um dia típico de sábado. Quase no fim da refeição, o telefone toca e Clarice vai atender a chamada no quarto, para não atrapalhar o almoço do marido e do pedreiro. O que ela não esperava é que o simples telefonema mudaria não só a rotina do almoço, mas toda a sua vida. Clarice Fiori Diogo, 56, é mãe de cinco filhos, todos homens, três do primeiro casamento e dois da união com o atual marido, Francisco. A vida de mãe sempre foi puxada e cuidar dos cinco filhos foi uma constante em sua vida. Mário, Márcio, Leonardo, Francisco e Fabrício. Os mais velhos Mário e Márcio possuem apenas um ano de diferença, assim como os dois mais novos Francisco e Fabrício. Os dois mais velhos carregam a inicial com letra M, em homenagem ao pai Mário, primeiro marido de Clarice; os mais novos, a inicial F devido ao nome do pai, Francisco. Leonardo parece ter nascido pra ser mesmo a ovelha negra da família. Filho do meio, único com a inicial diferente, único que não fazia parte da escadinha de um ano de diferença, “o único que se parecia comigo”, ela diz. Agitado, eufórico, brincalhão, não parava um minuto, ao contrário dos quatro irmãos, todos mais pacatos. Leonardo sempre foi o “diferente” entre os cinco rebentos. Infelizmente a diferença entre eles foi longe demais: Leonardo faleceu aos 22 anos de idade. Recostada no sofá de sua sala, Clarice toma fôlego antes de começar a falar do filho. Nervosa, ofegante, como se estivesse revivendo todo o sofrimento naquele exato momento. É nítido em seu semblante que uma enxurrada de emoções toma conta de sua mente e de seu coração. O olhar vagueia pela sala buscando algum conforto. Por coincidência - ou talvez uma escolha inconsciente do destino - ela está vestida de preto. Em suas mãos Clarice

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segura uma almofada vermelha, rente ao peito, como se fosse um escudo. Mexe freneticamente na ponta da almofada, aperta, puxa... O gesto nada mais era do que suas mãos refletindo a emoção que o restante do corpo tentava conter. Voltando quatro anos no tempo, até aquele fatídico telefonema de 2011, Clarice repassa na memória toda a corrente de acontecimentos. Um dia antes, na sexta-feira dia 28 de Janeiro, seu filho Leonardo da Silva Vinhas viajou com um grupo de amigos e a namorada, Isabela, para a pousada de uma amiga da família, na cidade de Socorro, no interior de São Paulo. A 132 km da capital

Coincidentemente, Clarice estava vestida toda de preto para falar sobre o filho Leonardo


“SIMPLESMENTE TIRANDO FOTOS E ESCORREGOU. UMA FATALIDADE”. paulista, Socorro é bastante conhecida por seus parques de aventura e de ecoturismo. A pousada rodeada pela natureza tinha várias atividades ao ar livre, como rafting e tirolesa, um prato cheio para o grupo. Clarice não queria que o filho viajasse. Mãe e filho estavam abrindo uma empresa juntos, no ramo de equipamentos de segurança e proteção, área em que Leonardo mesmo muito jovem já era experiente. Agora ele buscava alçar voos mais altos com seu próprio empreendimento. Com isso, tinham muitas coisas para organizar, inclusive com relação a obra do escritório que estava em andamento. Mesmo em discordância com a mãe, ele viajou. O grupo chegou em Socorro na sexta à noite, como contou Isabela depois em detalhes para a sogra. No sábado pela manhã acordaram dispostos a procurar uma cachoeira local. “Sendo que onde eles estavam já era um lugar maravilhoso, não havia necessidade de procurarem coisas mais bonitas. Lá tem tudo que uma pessoa pode querer”, exclama Clarice, um questionamento que certamente ela já se fez várias outras vezes. Mas conhecendo a personalidade do filho, ela mesma tem a resposta: “Ele queria sempre mais aventura”. O grupo terminou sua busca ao chegar no leito do Rio do Peixe, numa cachoeira próxima à ponte na estrada do Monjolinho, na divisa com a cidade de Munhoz – MG. Para ter uma vista melhor, Leonardo subiu em algumas pedras do local junto com um dos amigos. Sua namorada tirava fotos. Ele fez um coração com as mãos em direção a moça e ela o fotografava. Todos admiravam a vista quando numa fração de segundo, Leonardo se desequilibrou da pedra em que estava. Caiu numa pedra com muito limo e escorregou. Foi automaticamente puxado para o fundo da água. “Simplesmente tirando fotos e escorregou. Uma fatalidade”. Clarice recebeu o telefonema de um dos amigos que estavam com Leonardo. Ela recorda cada palavra. “’Dona Clarice? É a mãe do Leonardo? Ele sofreu um acidente aqui na estrada do Monjolinho, a senhora precisa vir correndo pra cá!’”. Na mesma hora, Clarice e o marido, padrasto de Leonardo, se

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colocaram na estrada rumo a Socorro, há 170 km de sua cidade. “Comecei a gritar, chorar, perguntando onde era e até então fiquei sabendo que era só um acidente. Meu vizinho levou a gente. O Márcio (um dos filhos mais velhos) também estava aqui, fomos na hora. No caminho eu pensava ‘é só um acidente, acho que ele bateu o carro’. Eu imaginava ele no meio das ferragens e que precisava de alguma autorização para amputar um membro. Olha o que passa na cabeça né, o médico não ia esperar eu chegar para iniciar qualquer procedimento numa pessoa acidentada”, ela reflete, demonstrando o fio de esperança que carregava naquele momento. “Pensamento besta de mãe. Fui rezando o caminho inteiro”. Antes de ir para o local do acidente, Clarice conta que a levaram para o pronto socorro da cidade. Lá um médico disse que a daria um calmante antes dela ver o filho. “Me internaram por duas horas para receber os calmantes, com soro na veia. Meu marido estava junto comigo, só que ele já sabia do que se tratava, eu não”. A atitude da família - que pediu aos médicos que a internassem antes de revelarem o que realmente estava acontecendo – é algo que Clarice acredita ter sido pior. Por mais que a família tenha agido na melhor das intenções, o resultado foi traumático. “Foi horrível, eles não tinham o direito de fazer isso. A hora que passou o efeito do calmante não foi pior? Eu tô chocada até hoje!”. Clarice acredita que a espera em ter as reais notícias contribuíram para a dor que veio depois. “Porque não foi aquele impacto de chegar lá e ver e pronto. Eu passei por um monte de fantasias, de ilusão. Eu acho que foi falho, muito errado isso, fiquei muito triste com a minha família e até com o meu marido de ter autorizado isso.”. Clarice havia sido atropelada havia 6 meses, tinha acabado de sair de uma cadeira de rodas. “Pra mim foi pior, ficou um trauma que não passa. É uma mágoa que eu tenho”. Depois de muito custo o médico a deu alta. Ela foi recebendo as informações aos poucos, primeiro falaram que era um acidente, que ele estava desaparecido, sem falar que tinha sido na cachoeira. Ela ainda achava que tinha sido com o carro. Quando chegaram ao local sua primeira reação foi procurar o carro. E foi aí que o seu marido começou a falar o que aconteceu. “Eu chorava muito, ele me falou que o Leonardo caiu, mas que devia ter seguido rio abaixo”. O marido tentava tranquilizá-la. Ela ficou um pouco mais calma pois Leonardo sabia nadar. “Eu estava na maior esperança. Os 10 dias que eu fiquei lá eu nunca desisti. Achava que ia encontrá-lo com vida”. Dez dias. Foram dez dias de luta, sofrimento, esperança, fé e muitas vezes de desespero. Uma incrível mescla de sentimentos, que tomou conta não só de Clarice e sua família, mas de todos os envolvidos. Houve uma grande comoção na cidade de Socorro e região. Bombeiros de Bragança Paulista, Amparo, Serra Negra, Atibaia e de Pouso Alegre (MG), além de voluntários, entre


eles praticantes de rafting, estiveram mobilizados na busca. “Todos foram muito solidários, vizinhos, bombeiros, amigos, ajudaram demais”. A prefeitura de Socorro levava lanche para os familiares e para os bombeiros. Clarice quase não saía do local do acidente e tinha ido pra lá somente com a roupa do corpo. Depois a família fez uma mala com suas coisas e levou para ela, que fazia o que podia para ajudar. “Eu cavei terra, pegávamos baldinho pra ir jogando terra pra parar de entrar água no buraco onde os amigos falaram que ele tinha caído”. Ao longo dos dias, Clarice permanecia com fé no resgate com vida. “Eu só saia de lá pra ir atrás de benzedeira, igreja ou qualquer outro tipo de coisa”. Ela é católica, mas no momento de desespero buscou esperança onde fosse possível. Um dia antes de encontrarem o corpo, Clarice visitou Dalila, uma ministra de uma igreja católica. No local da visita havia um quadro de Nossa Senhora com o menino Jesus no colo. Ao olhar a imagem, Clarice viu o próprio filho no colo da santa, acenando. “Naquele dia eu soube que não tinha mais esperança. Essa cena não sai da minha mente nunca”. Esse fato ocorreu às 18 horas. No outro dia, o corpo foi encontrado. Para Clarice, a imagem a preparou para o que viria no dia seguinte. Muitos disseram que foi apenas imaginação sua, mas ela encara como uma despedida do filho e um rito de passagem. “Deus me levou lá (até a ministra) para que eu tirasse aquilo da cabeça, de que realmente era uma ilusão, que ele já tinha ido embora”. No décimo dia, 7 de Fevereiro, quando as buscas estavam próximas de serem interrompidas, a família estava no local descansando em um carro quando foram surpreendidos por gritos de “encontraram, encontraram”. No mesmo momento, ela saiu do carro e ajoelhou na lama agradecendo aos céus. “Eu não fui lá pra ver nada, só agradeci. Meu marido me colocou no carro, fomos embora e não voltamos mais”. Com a confirmação da morte, o único consolo imediato foi ter encontrado o corpo. Um tio seu lhe falava: “Deus fez você encontrar teu filho, você vai leva-lo e vai poder ter um lugar pra acender umas velas pra ele. E as mães que não tem essa oportunidade?” Após o resgate a conclusão foi que na queda Leonardo bateu a cabeça e ficou inconsciente. Foi sugado pela água instantaneamente e foi parar num buraco, a 7 metros de profundidade, bem próximo do local que escorregou. A água entrou nos pulmões, não dando chance ao jovem de acordar e esboçar qualquer reação.

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O buraco até possuía uma saída, mas como na queda ele perdeu os sentidos, não houve como escapar. Do contrário, poderia ter tentado nadar para a saída. O local em que o corpo estava era de difícil acesso e os bombeiros só conseguiram alcançá-lo após removerem uma pedra de uma tonelada. Ao regressar de Socorro e encarar a morte, o apoio de amigos e familiares foi o alicerce para suportar a dor da despedida. A família chegou de viagem de madrugada e no dia seguinte trouxeram o corpo. Foram buscar o pai de Leonardo, Mário, para o velório. O pai tinha uma doença cerebral que muitas vezes lhe confundia a mente, mas naquele momento ele estava muito lúcido e entendeu o que se passava. “E eu tentava acalmá-lo dizendo que nosso filho agora estava com Deus”. Clarice diz que durante o velório ainda não tinha realmente caído a ficha e que até mesmo tranquilizar as outras pessoas. Ela descreve o momento como se estivesse anestesiada, em transe. “Eu não sabia se chorava, se agradecia a Deus por tê-lo encontrado... Só caí na real mesmo quando fui pra casa”. Os piores momentos ainda estavam por vir. Pois para ela, a maior dor não é o velório ou o enterro, mas sim quando se chega em casa e se dá conta de que “agora não tem mais ele”. O carro, o quarto, os pertences... Tudo parecia chamar por seu dono. É na volta a rotina que a ausência se enche de presença e vira companhia permanente. Tarefas simples do cotidiano eram um desafio diário. “Como levantar, fazer um café, fazer uma comida, fazer qualquer coisa? Você só tem vontade de chorar”. A amarga volta a realidade é o momento

Clarice organiza diriamente as fotos do filho em um mural que permanece no quarto dele


Clarice com a foto da neta Gabriela, a criança responsável por reanimála para a vida

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mais crítico e ao mesmo tempo é aquele em que as pessoas acreditam que as cicatrizes estão se fechando. Mas é aí que elas se mostram mais abertas e que o vazio da morte faz novas marcas. “E aí eu senti na pele. Todos os meus amigos, meus familiares, na hora de maior apoio todo mundo se mandou. Só sobrou uma ex-namorada do meu filho Márcio, a Luciana, e a Cristine, uma amiga minha. O restante, todo mundo abandonou. Não apareceu ninguém, nenhum telefonema”. Nos momentos de dor, como católica, ela questionou inúmeras vezes os caminhos de Deus. Não conseguia rezar. “Você se revolta com todo mundo, com os santos, com a vida, com as pessoas”. Hoje ela fez as pazes com a fé, mas por mais de um ano questionou Deus e seus desígnios. O primeiro ano após a morte de Leonardo foi o período mais crítico. Porém o destino lhe reservava uma surpresa. Sua nora Fernanda, esposa de Márcio, anunciou que estava grávida. “A gravidez me curou. Senão acho que eu estaria numa cama até hoje”. A nora tinha apenas 30% de chances de engravidar e para Clarice a gravidez foi um milagre. “Me levantou, me renovou. Voltei a viver”. Se com a notícia da gravidez ela já sentia suas energias renovadas, o nascimento marcou uma nova fase. “Foi o dia mais feliz da minha vida, como se tivesse nascido uma filha, o sonho que eu sempre

tive”. Foi o nascimento da neta Gabriela, hoje com 3 anos, que a trouxe de volta à vida. “Eu posso ter dez netos, mas significar o que ela significa... é claro que vou amá-los todos iguais, mas ela tem um lugar muito mais especial no meu coração. Pode doer para os meus filhos, mas a verdade é essa”. A família fala do tio Leonardo para Gabriela, que inclusive já o reconhece nas fotos. “Ela vem aqui, pega a foto deles e fala ‘Papai, padrinho, tio Fa, tio Fran e tio Léo, que tá lá com o papai do céu’”. Quatro anos depois da morte, o dia a dia em si traz lembranças do filho e a saudade é frequente. Mas o aniversário dele é certamente a ocasião mais difícil. “É triste demais saber que é mais um ano que ele não tá aqui, que poderia estar comemorando”. E no Natal. “Nunca mais fiz um Natal aqui em casa. Não vou conseguir mais”. Além da neta, o que também a ajudou foi o trabalho na feira de artesanato de sua cidade. Clarice faz crochê e começou a trabalhar na feira, conhecer o trabalho de outras pessoas e fazer novas amizades. Saía de casa, ao invés de ficar vendo fotos do filho. “Me ajudou demais, foi para fechar com chave de ouro”. Atualmente ela não participa mais da feira, mas as amizades permaneceram. “As portas estão sempre abertas”. Ao recordar aqueles primeiros meses


de dor, ela reconhece que os filhos e marido compreendiam o sofrimento. Nunca falaram para ela parar de chorar. Respeitaram sua dor e a prostração que muitas vezes a tomava. “Fiquei um tempo sem fazer arroz ao forno, puré de batata e salsicha, que eram as comidas prediletas dele”. Até as compras do cotidiano eram uma peleja. Aveia, cereal que Leonardo adorava fazer mingau, ela só está comprando agora depois de quatro anos. “Que direito que eu tenho de tirar isso da alimentação dos meus filhos? Mas eu pegava aveia e dentro do mercado mesmo eu chorava. Quem passava ficava sem entender. E hoje eu lembro disso e dou risada e penso ‘como eu pude sofrer por causa de um alimento’”. A mãe guardou todos os objetos do filho. O quarto foi transferido de cômodo, mas permanece igual. E para ela faz bem possuir tudo ao seu alcance. “Quando estou com vontade, vou lá, fico vendo o terno dele, passando a mão nas coisas”. No começo não queria ver nada, nem objetos, nem fotos. Mas hoje ela encara de forma diferente. “Ali ficou um lugar dele. Eu vou lá, fico pegando nas coisas e pensando ‘onde será que ele comprou isso? Por que será que ele comprou?’. Acho

“FIQUEI UM TEMPO SEM FAZER ARROZ AO FORNO, PURÉ DE BATATA E SALSICHA, QUE ERAM AS COMIDAS PREDILETAS DELE” 43 | Narrativa

que vou deixar (o quarto) pro resto da vida. Por que eu não tô sofrendo mais de ver aquelas coisas, eu fico feliz”. O quarto de Leonardo a acalma, enquanto o carro causa repulsa. “Porque ele podia ter quebrado e ele não teria ido até lá”. Clarice fala do último dia que passou com o filho. Tinham ido ao cartório preencher uma papelada, devido a firma que estavam abrindo. Os dois estavam muito contentes com o negócio que ele ia tocar sozinho, ser o próprio chefe. Estava um dia ensolarado e muito bonito. Ele cantava no carro um pagode famoso. “Tá vendo aquela lua que brilha lá no céu”... Foram almoçar depois da ida ao cartório. Ele pegou o rodízio de carnes e ela uma feijoada. Na hora de pagar a conta, Leonardo viu que cobraram só a feijoada e alertou a funcionária. “Moça, faltou vocês cobrarem o meu rodízio. E coloca mais dois sorvetes na conta também, por favor”. “Agora eu dou valor pra você, filho”, Clarice brincou. “Por que, antes não dava, mãe?” Os dois riram. Clarice guarda na memória a lembrança do caráter do filho, que sempre se mostrou correto. “Um filho exemplar, maravilhoso, claro que tinha seus defeitos, namorador, paquerador, mas super honesto. Uma pessoa alegre, extrovertido, cheio de amigos, bastante querido por todos. Deixava sua marca por onde passava. Muito palhaço, brincalhão. Fazia de tudo para tirar um sorriso das pessoas”. Após quatro anos, Clarice não tem dúvidas do que dizer para outras mães que estão passando pelo que ela passou. E depois de ter contido a emoção por todo o tempo em que recordava sua história, é nesse momento que as lágrimas começam a rolar por seu rosto. “Peçam proteção pra Deus, para que amenize um pouco a dor e pra não se deixarem cair na tentação de ficar contra Ele”. Ao falar da família, as lágrimas se mostram ainda mais insistentes, sem freio. “Que elas não cometam o erro que cometi: ignorar o resto da minha família como se eles não existissem. Como se só existisse o Leonardo, sendo que eu tinha mais quatro filhos, eu tinha que continuar. Simplesmente eu me trancava no quarto e que se dane o resto, nunca parei para perguntar o sentimento deles, só queria que eles viessem até mim”. Mas antes de dizer as últimas palavras, ela respira fundo. O choro parece dar uma trégua. Como um raio do sol que surge após a tormenta, um sorriso tímido ganha vida em seu rosto, ao dar seu último conselho: “Tenham muita fé em Deus, muita força. E acreditem: um dia a gente vai encontrar com eles novamente”.


outono ÀS AVESSAS

D

epois dos simpáticos raios de sol, o outono chega às pressas. Escolhe o marrom, prepara o pincel e colore folhas sem pedir licença. Seja por ciúme ou necessidade, carência ou vaidade, ele acena para o verão. O outono invade com a intenção de anunciar um novo ciclo cheio de promessas. Nas boas-vindas, já avisa aos navegantes que o inverno será rigoroso. Alerta sobre a nudez das árvores, a chuva insistente e os sintomas de solidão. Mas ganha sorrisos voluntários ao garantir flores na primavera. No outono de 2008, faltou um sorriso. Fausta não encontrou razões, aliás, perdeu-se ao procurá-las. Mãe de três homens, Fausta Souza Moura, 47, mantém há algum tempo os cabelos loiros na altura dos ombros. Ajeitados e com as pontas para dentro, eles chamam à atenção para os miúdos olhos pretos. Olhos saudosos, viajantes no tempo. Olhos de coragem superior a sua estatura. Olhos de mãe. Gabriel, Rafael e Humberto foram os nomes escolhidos para os filhos. A sequência de idades está invertida, assim como a história e o coração de Fausta. Como de costume, a segunda-feira foi o prenúncio da jornada. Humberto, na época com 14 outonos, despertou e reclamou de formigação. Era a boca que formigava. A presença assídua de espinhas na região das maçãs motivava um tratamento dermatológico há algum tempo. Portanto, Fausta não duvidou. “Deve ser da medicação”, disse ao filho despreocupada. Menos de 60 segundos de relato foi o suficiente para embargar a voz da mãe. Fausta, ironicamente encostada num sofá florido, entrelaçava e separava as mãos sem trégua ou compasso. Nem mesmo para a respiração. Nostálgica, ela ofegava. O timbre se recompôs e ela continuou numa vasta sequência da frase “lembro-me como se fosse hoje”. A sensação de dormência não se despediu e, no dia seguinte, os dois visitaram o médico, que não hesitou ao reforçar: “mãe, uma vez alérgico, sempre

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alérgico”. Humberto tinha um histórico de doenças respiratórias como bronquite e asma. Após tomar injeção, voltaram para casa na certeza de que tudo estava solucionado. Dormiram em paz. Cada um em seu quarto. A esperança de um amanhã tranquilo ainda existia. Intacta. “Ele acordou na quarta-feira, passou por mim sonolento e foi em direção ao banheiro. Quando olhou no espelho me chamou aos gritos. Estava totalmente estrábico, com os olhinhos vesgos”, contou de forma rápida, mas não tão rápida como as primeiras lágrimas. Humberto era vaidoso. Desde as peças de roupa, até o estilo do cabelo, sempre espetado, com luzes e prontos para uma fotografia. Ver outro reflexo foi o estopim do desespero. “Liguei para o pai dele na hora e disse que não sabia o que fazer”. Fausta e Carlos, o pai do trio, já seguiam caminhos diferentes, sonhos idem. Humberto era o principal elo entre o antigo casal. Ele cultivava o “dom da união”. O hospital era o destino. Tornou-se a casa de mãe, filho e inúmeras aflições durante 12 dias. Chegando lá, outro doutor atestou sem delongas: “mãe, nós vamos internar para descobrir o que é”. Em questão de horas, Humberto não conseguia mais se alimentar ou beber água. A boca permanecia dormente, a visão permanecia dupla, e Fausta, ainda serena – diferente daquela que contava os detalhes e rumos dessa história. Bastaram 48 horas para o destino mudar de sala. Ela passou a se chamar Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Pernas não conversavam mais com o restante do corpo e a progressão dos sintomas diagnosticou uma rara bactéria. De pronuncia complicada, assim como as consequências, a bactéria estava instalada na medula óssea. “Foi o senhor que dividia o quarto com o meu filho que me amparou. Coitado, ele lá doente e me amparando”, lembrou chamando-o de anjo. Os microrganismos costumam agir após uma gripe mal curada. Sem piedade, manifestam-se quando a nova doença


já está em um estágio avançado – o que ocasiona uma violenta e intensa crise de sequelas, como a vivida pelo filho de Fausta. Imediatamente, a serenidade deu lugar a noites em claro. A troca de folhas secas por novas flores parecia cada vez mais distante. Então, a burocracia tratou de marcar presença. “Tivemos problemas com o hospital e resolvemos trocar. Foi uma luta para transferir. Conheci um pouco do lado desumano do convênio. Meu filho tinha que usar vários remédios que custavam mais de R$ 5 mil para conter a bactéria. Eles não liberaram e ainda quiseram prender o meu filho nesse hospital”, exclamou eufórica, levando as palmas das mãos ao peito e oscilando o volume da voz. Com a ajuda de um médico amigo da família, a troca foi realizada. “Vamos brigar com o convenio depois, agora o principal é a vida do seu filho”, definiu o doutor da segunda clínica. Enquanto isso, as preces continuavam na fila de espera. Pressentimentos vieram à tona no décimo dia. Era a persistente segundafeira quem batia à porta. “Eu sentia que ia perdê-lo ...”. A estada na UTI proibia Fausta de dormir ao lado de Humberto. Ele repousava na entrada principal da cidade de Guarulhos, na Grande São Paulo. Ela, num bairro afastado da mesma região. A distância angustiava. “Acordei durante a madrugada com uma mulher chorando e gritando ‘Deus, cuida do meu filho!’. Eu levantei e fui até a janela dos fundos do meu quarto. O choro continuava e eu não conseguia descobrir de onde vinha. Fui até a cozinha, corredor, quarto dos meus filhos e nada. Eu só não abri a porta da sala porque fiquei com medo. No outro dia eu perguntei para várias pessoas se alguém tinha orado pelo meu filho e nenhuma delas disse que sim”, relatou, a princípio, sem compreender. Fausta seguiu para o hospital ansiosa pela visita. O décimo primeiro dia começou e seguiu cercado de interrogações. Após uma breve conversa com o filho, o toque do telefone soou comunicando que Humberto iria para o quarto assim que o sol nascesse. A notícia espantou os ouvidos de Fausta. Os olhos do menino haviam voltado ao centro, mas os membros inferiores confirmavam paralisia. Humberto já não era mais o rapaz enérgico de antes. A saída da UTI foi antônima. Perturbou a mulher. “Tinha alguma coisa errada. Os pés estavam gelados, a pressão baixa. Aquilo não era normal”, desconfiou gesticulando as, incansáveis, mãos. Se um papel estivesse

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à vista, seria só retalhos. A mudança de cenário guardava segredo. Mas, por ora, arrancou sorrisos do paciente. “Mãe, você vem dormir comigo amanhã?”, disse Humberto com entusiasmo capaz de afastar qualquer palpite materno. Lábios, cabeça e coração responderam sim. Passar dia e noite juntos foi o combinado antes do beijo. Beijo de cuidado. Beijo de amor. Beijos de até logo. Somente até logo. Fausta voltou para casa e o calendário marcou o décimo segundo dia do circuito: quarta-feira, 21 de abril de 2008. O outono completava um mês. Na manhã do dia 21, o segundo filho, Rafael, insistiu para ir à escola. Dedicada, a mãe atendeu. “Essa decisão causou remorso”, explicou ao passo em que gotas voltavam a deslizar em seu rosto. A escola frequentada pelos três era distante. Então, Fausta contava com a ajuda de um perueiro para levar o filho do meio aos estudos. Rafael estava matriculado no período vespertino, e o relógio, sem medir esforços, seguiu seu injusto trabalho. Fausta chegou ao

Fausta com um dos porta-retratos que decoram a sala de estar


hospital entre meio-dia e uma hora. Antes de entrar, ela direcionou os olhos, novamente os olhos, para o último andar do prédio. “Filho, estou chegando. Filho, estou chegando”, disse como quem pede desculpa depois de um atraso. Entrou. Ao solicitar o crachá de visitante, a enfermeira adiantou que a UTI passava por intercorrência. Alguém estava prestes a se despedir. Fausta subiu no elevador despreocupada. A única preocupação que chegou a pairar naqueles segundos era o grau de pontualidade do filho. Bíblia em mãos. A saída do elevador convida para a terra firme. Quimera. Uma médica que estava de plantão naquele dia aproximou-se assim que as portas de ferro se fecharam e disse sem titubear: “Mãe, é o Humberto. Ele está tendo uma parada respiratória agora. Você precisa aguardar”. A abertura do livro sagrado foi imediata. Antes, Fausta pediu apenas que Deus mandasse uma mensagem. “Caiu na passagem de Jó. Quando ele perde tudo. Filho, família, tudo. E eu questionei: ‘Senhor, olha a palavra que você está me dando. Vou perder meu filho?!’”, recordou emocionada. Emoção ímpar, calejada, capaz de contagiar. Desolada, telefonou para o ex-marido. A cunhada, Cida, chegou primeiro, praticamente no momento em que a médica retornou. Cida correu na frente a fim de impedir que qualquer espécie de sofrimento chegasse àquela deixada para trás. Fausta não aceitou o segundo lugar. “Doutora, pode falar, estou preparada. Não quero que mintam para mim”, vociferou. Corpo trêmulo e voz arranhada mostravam quão difícil seria pronunciar os próximos nuances. Com dificuldade, Fausta recuperou o fôlego e prosseguiu a contagem. Cumprindo a vontade requisitada, a mulher de branco disse com pesar:

“Mãe... infelizmente... o Humberto se foi...”. Um estrondoso “não” ecoou por todos os corredores. Por todos os cantos, salas e esquinas. Andares e compartimentos. Um não, muitos. A escuridão que assolava Fausta revelou o motivo de vozes desconhecidas e da saída repentina da UTI. Só esqueceu de revelar o porquê dos motivos. Um coração sem batimento. Uma família a palpitar. “Meu mundo caiu”, arrematou. “Meu marido chegou. Eu tinha que esperá-lo para entrar no quarto. Nós começamos juntos e eu decidi esperar. Quando entramos, eu fiquei lá, agarrada com o meu filho. Abraçada com o rostinho dele geladinho, bem assim, fiquei junto dele o tempo todo, o tempo que pude”. Nesse instante, as palmas de Fausta formaram uma concha e tocaram seu próprio rosto, era um gesto de carícia. Uma carícia que ela havia planejado para muitas manhãs, tardes e natais. Carícia de mãe. Carícia para o Humberto. Carícia sem vez. A reunião de forças permitiu que Fausta voltasse para casa e trouxesse roupas para o filho. Foi a última troca. “Cuidei de você desde o momento em que você nasceu, e vou cuidar de você até o fim”, suspirou em frenesi. A partir desse ápice, Fausta sofreu um lapso. A memória foi bloqueada e insights visitam seus pensamentos até hoje, quase 8 anos depois do infortúnio. “Não lembro como meus outros dois filhos chegaram até mim, não lembro das pessoas que eu avisei, e se eu avisei. Eu vivi aquilo. Não sei dizer, mas fiquei tão passada, que meu dia ficou totalmente cinza. Não consigo descrever dor, sensação, perda, nada. Nenhum dia fica igual aos outros, não fica. Não sei, mas acho que Deus preparou esse apagão para que eu não ficasse remoendo. Eu apaguei”. No entanto, duas situações

“CUIDEI DE VOCÊ DESDE O MOMENTO EM QUE VOCÊ NASCEU, E VOU CUIDAR DE VOCÊ ATÉ O FIM” 46 | Narrativa


Assim como Clarice, Fausta também mantém pertences e lembranças de Humberto intactos

marcaram a mãe. O apoio da amiga Roberta e um abraço coletivo dado pelos colegas de classe de Humberto dentro da capela onde o corpo foi velado. “Isso me marcou”. De tão profundas, as marcas – lembradas e bloqueadas – embaralharam a rotina de Fausta. “Eu tive que matar um leão a cada dia para sobreviver. Não podia me entregar porque ainda tinha, tenho filhos. Mas a minha vontade era só de ficar deitada, de não fazer nada”, descreveu entrelaçando os dedos e apoiando as mãos atrás da cabeça. “Eu só ficava assim”, completou com olhar vago. O desalento impediu a auxiliar de escritório a voltar ao trabalho. Sensibilidade aos sons, perfumes e ventos prolongaram crise de choro e desespero por muitas estações. A insistência do luto ao longo de dois anos fez com que Fausta frequentasse a psicóloga durante outros dois. O tratamento baseado em conversas reanimou com a ajuda de um segundo elemento, o espiritual. A presença da palavra “Deus” no relato de Fausta testemunhou sua fé. Porém, o sentimento foi deveras questionado. Houveram dias descrentes. Dias sem norte. Divórcio de religião e aproximação de outra. Tal aproximação revigorou a crença pouco a pouco. “Hoje estou forte igual uma gelatina”, afirmou entre risos até então acanhados. A combinação entre ajuda espiritual e terapêutica manteve Fausta de pé, mas são Rafael e Gabriel os

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responsáveis pelo alicerce. “Ainda tenho meus traumas. Se eles se atrasam 5 ou 10 minutos, eu já entro em parafuso e penso ‘já está acontecendo de novo’”. Ao mexer em fotos de Humberto, a mãe não esconde a dimensão da saudade. A Fausta revelada nos papéis causa estranheza. Mas a conexão com o seu “Beto” prossegue. Prossegue além das determinações da vida. O choro bate à porta vez em quando. Bate com mais força quando os filhos que dividem a casa passam por festas, formaturas e aprovações. “Na verdade, a lembrança vem a qualquer hora”, assumiu acalmando as mãos. A rotina também está se acalmando, Fausta se sente preparada, despachou currículos, retocou os fios. A vontade de sorrir já entrou na briga pela disputa de espaço. Fausta sorri. O outono, corresponde.

“NA VERDADE, A LEMBRANÇA VEM A QUALQUER HORA”


Uma trilha notável Mergulhe na história de um menino que aos 14 anos decidiu seguir uma doutrina repleta de estigmas e mistério

A

lguns usam batina, outros terno e gravata. Alguns usam a primeira peça vista ao abrir o guarda-roupa. Alguns usam tecidos cor de algodão, largos, daqueles que não condizem com o tamanho de quem veste, outras são mulheres. Entre cortes e recortes da fé, há quem use túnica. Túnica do profeta. Rodrigo Rodrigues, 37, trilhou um caminho ímpar. Escolheu o Islã. Sua túnica marrom estava acompanhada de calça, meia fina e sapatos de mesma cor. Sem luxo. Mostra apenas rosto, mãos e barba crespa, com pelos de três centímetros que preenchiam a região do queixo de orelha a orelha. Cabelos castanhos e curtos também davam o ar da graça quando, no recreio das falas, o tarbush branco era tirado ou ajeitado. Tarbush é um pequenino e delicado chapéu de feltro, comum aos seguidores da religião islâmica.

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Por Camila Oliveira e Roberta Queiroz

No coração do Brás, mais precisamente a mesquita da Liga da Juventude Islâmica Beneficente do Brasil, esse conjunto de apetrechos revelou traços capazes de anteceder qualquer título. As roupas pregaram peça. Surpreenderam. Conhecidas por categorizar grupos, elas embaralharam as cartas e inverteram o jogo. Determinaram uma nova sequência de apresentações: apresentaram o homem, depois o líder. Elas foram o primeiro sinal da simplicidade, modéstia e devoção de Rodrigo – coincidentemente, o primeiro sheik brasileiro. O sheik é a mais alta autoridade religiosa islâmica em uma comunidade. Essas três qualidades foram confirmadas nos sorrisos de bom dia, boas-vindas e adeus de Rodrigo. Confirmadas por Samar Yaksan, uma das secretárias do templo. “O carisma dele chama a atenção de muitas pessoas. Antes o centro não era assim, tão cheio.


Até os presidiários estão mandando cartas. Eles pedem livros, palavras de conforto”, contou Samar, espontaneamente, sem a presença de Rodrigo. De família muçulmana, Samar explica que ainda não segue todos os preceitos da doutrina. O véu só guarda os fios de cabelo no horário do expediente ou dos rituais. “Estou tentando melhorar. O sheik inspira a todos nós. Fico arrepiada”, encantou-se. A Guerra do Golfo de 1991 abriu as portas para a saga de Rodrigo. Ofensivas do Iraque contra o Kuwait, apoio da comunidade internacional ao país invadido e a figura do presidente iraquiano Saddan Hussein despertaram a curiosidade do menino, na época com 14 anos. A vontade de aprender colocou o adolescente diante do islamismo, o pano de fundo do impasse pérsico. “Descobri que o Islã era a religião daquele povo. Encontrei no sebo uma versão do alcorão traduzida. Gostei e disse: ‘essa aqui é a minha religião, quero ser muçulmano, quero ser muçulmano’”, repetiu com sotaque inconfundível. Gaúcho, Rodrigo nasceu e viveu muitas fases de sua vida em Porto Alegre. Os pais do garoto eram, e continuam a ser, católicos. O interesse em outros dogmas não foi capaz de impor represálias, mas arregalou muitos olhares. “Minha mãe não disse nada. Meu pai sentiu mais. Já meus tios e avós diziam que nessa religião os caras eram todos loucos, se explodiam, se matavam. Eles me perguntaram várias vezes: `Tu queres isso?’”, relatou sem travas nas línguas e com gírias nas palavras. Rodrigo respondeu com mais idas as bibliotecas. “Se eu dissesse que ia para o seminário, eles também iam estranhar”, argumentou, convicto. Ali não havia marcas de arrependimento. A busca pelo conhecimento formava um labirinto. Mesquitas e centros de reuniões não faziam parte da paisagem de Porto Alegre. Correr atrás de árabes tornou-se a agenda principal do jovem. “Doze meses depois descobri que tinham alguns estudantes na Universidade Federal do Rio Grande do Sul que eram do Senegal. Busquei o encontro, disse que era muçulmano e pedi ajuda”, explicou com entusiasmo. Os universitários aceitaram a súplica. Rodrigo foi purificado, aprendeu a orar e a ler alguns trechos do Alcorão. “Mas em pouco tempo eles foram embora”, continuou, arqueando as sobrancelhas. Em 1993, a informação sobre islâmicos que viviam em Florianópolis chegou aos ouvidos do jovem. Um final de semana na capital catarinense foi o bastante para arrecadar mais livros e formar laços de amizade. Laços responsáveis pelo destino do sonho: aprender cada linha e

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entrelinha da doutrina em países árabes. “Minha tia me acompanhou. Esse foi o meu primeiro contato com escritos de autoria muçulmana. A partir dessa viagem, comecei a crescer e evoluir”. Rodrigo não imaginava que 48 horas em Santa Catarina abririam tantas portas. Uma carta chegou. Um convite para um congresso islâmico em São Bernardo do Campo. O remetente? Amigos de Floripa. “Foi ali que visitei a primeira mesquita da minha vida, conheci sheiks e mais pessoas”, contou sorridente. “Muçulmanos do Brasil inteiro me ajudaram com livros”. A estrada foi seguida. Ao soprar as velas de 18 anos, Rodrigo viu sua agenda dividida. O rapaz foi convocado a prestar serviços para o exército, pegou gosto pela obrigação e teve que aprender a conciliar os anseios. “Fiquei preso no quartel, já não conseguia fazer minhas viagens como antes. Mas quando congressos ou encontros eram marcados eu me desdobrava, conseguia dispensa e ia. Eu pegava um ônibus que levava quase 18 horas de viagem até São Paulo e depois de lá desembarcava em São Bernardo”, disse numa frequência parecida com a antiga rotina. Libaneses, sauditas, egípcios e kuaitianos apresentaram Rodrigo uns aos outros. O soldado cirandou no saguão de São Bernardo de 1995 a 2000. A dedicação no quartel não diminui a gana pelo islã. Tanto que oportunidades surgiram: ganhou uma bolsa de estudos em uma das escolas islâmicas do Líbano. “Só iam me dar lugar para dormir e almoçar. Eu teria que me virar com o resto. Porém, o estudo era garantido”, explicou dando vazão ao primeiro tom de dúvida.

“ESSA AQUI É A MINHA RELIGIÃO, QUERO SER MUÇULMANO”


Sheik Rodrigo orando em årabe no templo da Mesquita da Liga Islâmica

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Ao mesmo tempo em que o sonho se aproximava da realização, os cinco anos de exército pesaram. “Não queria sair de lá. Fiquei dividido. Que jovem não quer ser militar?”, indagou. “Só sei que quis ir. Foi um chamado. Até um dia antes de comprar a passagem eu estava indeciso. Mas não podia desistir. Olhei para trás, dei tchau para minha vó e para os meus pais. Comecei a minha vida”, suspirou aliviado. A diferença de costumes não ocupou o primeiro lugar na lista dos desafios de Rodrigo no Líbano. Lá, ele aprendeu a língua árabe, conheceu o país e continuou a amarrar laços. A mesma curiosidade que fez Rodrigo procurar o islã no Brasil, o moveu naquele novo ambiente. Passou seis meses no Qatar, retornou para o Líbano, alguns meses no Iêmen, novo retorno para o Líbano. Entre essas idas e vindas, o rapaz amadureceu e tornou-se um verdadeiro estudante. 2002 foi o ano da volta para o Brasil. Chegou em Porto Alegre como líder da comunidade local. “Não cheguei como sheik oficialmente falando. Colocaram-me para ensinar por causa da bagagem de estudo”, explicou. O reencontro com a cidade levou Rodrigo a firmar uma nova aliança. Uma conterrânea despertou um sentimento diferente daqueles que conhecia. Despertou amor. Planos a dois estavam marcados para acontecer na terra natal. No entanto, por coincidência, eles se encontraram em um congresso paulista e casaram-se por ali mesmo. Patrícia também é muçulmana convertida. Além de guiar comunidades, Rodrigo passou a traduzir algumas conferências em São Bernardo. Entre elas, uma com a alta cúpula de uma universidade islâmica localizada na Arábia Saudita. Instituto famoso e clássico. “Os caras mais caxias são de lá. Eram como professores de teologia do Vaticano, imagina!”, exclamou. Eis que surge outro convite: “por que você não me dá seus documentos para estudar na Arábia? Eu consigo para você”, disse um dos mestres. Rodrigo retribuiu a proposta com parcimônia. A quantidade de respostas negativas dessa universidade já não dava trégua para o cultivo de esperanças. “Eu consigo”, reafirmou aquele que, para o rapaz, era um funcionário comum. “Só depois eu fui descobrir que ele era o pró-reitor da universidade que eu tanto queria. Ele era o pró-reitor... O que é isso?”, reforçou surpreso e com certa nostalgia. Rodrigo perdeu o endereço que o homem havia lhe confiado. Junto ao endereço, foi-se o restante da fé.

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“Acabou”, disse em tom de sentença. Patrícia reacendeu a crença no sonho do companheiro. “Em 2003, fui fazer uma peregrinação em Meca. Minha esposa insistiu para que eu levasse os documentos, ela falou: ‘vai que tu encontras ele lá no meio de três milhões de pessoas, quem sabe?’”. Cheio de dúvidas, Rodrigo seguiu para o destino ao lado de Patrícia. “Nosso voo atrasou em São Paulo. Perdemos o voo de Paris para Meca. Ficamos 24 horas no aeroporto de Paris para só depois desembarcarmos no aeroporto de Meca. Quando cheguei a primeira pessoa que avistei recebendo o corpo docente de outras universidades foi ele: o pró-reitor”, contou na Arábia Saudita, Rodrigo ingressou em um curso semelhante ao que chamam de pedagogia no Brasil. Patrícia chegou à nova terra do casal pouco depois. A nacionalidade foi decisiva nessa nova fase. Ser brasileiro encantou a cada esquina. “Conheci desde teólogos até o presidente do Supremo Tribunal. Todos ficavam curiosos e me perguntavam: ‘um brasileiro aqui? Seu pai é árabe? Sua mãe? Mas como? Por que esse interesse?’”. A simpatia de Rodrigo facilitou ainda mais o seu aprendizado. Ele conseguiu autorização para assistir aulas de mestrado e entrar em bibliotecas particulares – verdadeiros mundos paralelos. “Me achei a última Coca-Cola do deserto”, descontraiu repleto de alegria. A Arábia era a casa de Rodrigo. Tanto que matérias foram trancadas para que o tempo de estudo ultrapassasse os quatro anos de bacharel. “Me encontrei”, confessou. Em 2011, Rodrigo terminou o curso universitário e passou no vestibular do mestrado. Nesse mesmo período, ele já era pai de um garoto e Patrícia estava grávida pela segunda vez.

“TODOS FICAVAM CURIOSOS E ME PERGUNTAVAM: ‘UM BRASILEIRO AQUI?’”


“NÃO É PERSEGUIÇÃO RELIGIOSA. VOCÊ QUER ANDAR COMO NA ARÁBIA SAUDITA? DECOLAR.COM E VAI!” Um outro impasse se formou. “Eu queria ficar e continuar a minha vida na Arábia. Me aconselhei com vários sheiks. Alguns disseram que o objetivo havia sido alcançado e que estava na hora de ensinar o que eu havia aprendido, outros incentivaram a minha permanência”, explicou. Quanto mais Rodrigo refletia, mais nuvens apareciam. Foi como a decisão entre o quartel e a sua primeira viagem internacional. “Eu morava em um bairro bom, tinha muitos amigos sauditas e estava integrado à sociedade. Eu estava bem de vida em todos os sentidos. Cheguei até a comprar um carro”. O avião decolou. Rodrigo pisou novamente em solo brasileiro. como se o episódio fosse inacreditável. Após berrar seu próprio nome, o nome do professor, o nome do Brasil e acenar centenas de vezes, Rodrigo foi reconhecido. “Eu anotei o telefone e o e-mail na roupa, nas mãos, no papel, no passaporte, em todos os lugares”, narrou entre risos. “Fui para a peregrinação com confiança em Deus”, prosseguiu. A fé retornou para o seu devido lugar e um ano depois Rodrigo estava lendo a carta de aceitação. Era o embarque de mais um sonho. Talvez o maior deles. Um outro impasse se formou. “Eu queria ficar e continuar a minha vida na Arábia. Me aconselhei com vários sheiks. Alguns disseram que o objetivo havia sido alcançado e que estava na hora de ensinar o que eu havia aprendido, outros incentivaram a minha permanência”, explicou. Quanto mais Rodrigo refletia, mais nuvens apareciam. Foi como a decisão entre o quartel e a sua primeira viagem internacional. “Eu morava em um bairro bom. Tinha muitos amigos sauditas e estava integrado à sociedade. Eu estava bem de vida em todos os sentidos. Cheguei até a comprar um carro”. O avião decolou. Rodrigo pisou novamente em solo brasileiro. Mais tarde, vieram os livros, 1,180 kg de livros. “Paguei R$ 18 mil para trazêlos. Ninguém acredita, mas eu trouxe.

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São a minha relíquia, os meus livros”, orgulhou-se, levando as duas mãos ao coração. Dessa vez, Rodrigo assumiu a mesquita porto alegrense como sheik. Título conquistado sem planos ou estratégias. Rodrigo se tornou sheik por consequência. Outros sheiks brasileiros vieram depois de Rodrigo, mas a maioria levou o dobro de estrada para alcançar a posição. Para ele, ser militar abreviou a jornada. “Se eu fosse um moleque nos países em que estudei, não sei o que poderia acontecer. Poderia dizer que estava muito calor, que estava com muita saudade da mãe ou reclamar da falta de comida... A disciplina militar me ajudou a realizar sonhos”, assegurou, com gratidão. Nesse instante, Rodrigo confessa ter voltado para o Brasil contra a sua vontade. Mas, aos poucos, um novo horizonte apaziguou as incertezas. “Em 2011 decidi escrever outra página da minha história”, reconheceu. A agenda mudou. O verbo? Ensinar. Quando voltou para o Brasil após a vivência em países em que o islã é extremamente conservador - sheik Rodrigo passou a percorrer o país ministrando palestras. “Aqui os muçulmanos sabem poucas coisas sobre a religião”. Ainda vivia em Porto Alegre quando a comunidade muçulmana da região criou o Islamboy HD, canal do Youtube que projetou o sheik para todo o Brasil. Com orientações, palestras e tirando dúvidas de muçulmanos e não muçulmanos, os vídeos ampliaram seu alcance pelo país. “Eu tive uma dificuldade tremenda, há 20 anos atrás, de ter acesso ao islã e aos muçulmanos. E eu quero quebrar isso”. Foi em suas andanças que ele recebeu em 2013 o convite para trabalhar na mesquita do Brás. Assim, ele e a família embarcaram numa nova vida mais uma vez. A família e os livros. “E eu trouxe toda a minha biblioteca”. Depois que chegou, a mesquita do Brás ganhou uma outra cara. “Ser brasileiro e falar


português juntou o útil ao agradável”. Isto porque os sheiks anteriores eram árabes e a língua dificultava o entendimento. Além disso, o calor humano brasileiro também é determinante. O número de convertidos não para de aumentar. Foi em suas andanças que ele recebeu em 2013 o convite para trabalhar na mesquita do Brás. Assim, ele e a família embarcaram numa nova vida mais uma vez. A família e os livros. “E eu trouxe toda a minha biblioteca”. Depois que chegou, a mesquita do Brás ganhou uma outra cara. “Ser brasileiro e falar português juntou o útil ao agradável”. Isto porque os sheiks anteriores eram árabes e a língua dificultava o entendimento. Além disso, o calor humano brasileiro também é determinante. O número de convertidos não para de aumentar. Mesmo com o aumento de seguidores, no Brasil a religião ainda é minoria. “Minoria, da minoria, da minoria”, reforça. Como então seguir à risca a rigidez da doutrina? “Seguir o islã é fácil. Seguir a vida que os muçulmanos vivem lá no Paquistão, Arábia Saudita, Egito - aqui no Brasil - é que é difícil”. Segundo ele, o muçulmano no Brasil deve seguir os dogmas do islã, mas viver a realidade social daqui. “Essa vestimenta eu uso porque eu sou um sheik. Eu não a uso todo dia. Quando eu vou no shopping com os meus filhos eu não ando assim”. Basta não tentar criar aqui uma realidade que não existe. O sheik diz que isso acontece porque as pessoas fazem uma grande confusão entre cultura e religião. Alguns muçulmanos queixam-se de perseguição religiosa, sem se atentar que o choque na verdade é cultural. Vale destacar que os véus como o nikab ou a famigerada burca são usados mesmo antes do surgimento do islã. “Não é perseguição religiosa. Você quer andar como na Arábia Saudita? decolar.com e vai!”, brinca. E arranca risos. Rodrigo tem três filhos. O mais velho tem sete anos, nasceu na Arábia Saudita e veio para o Brasil com quase quatro anos. Ele tem também uma filha de quatro e outro de dois. “Deixamos claro para nossos filhos que nós somos muçulmanos”. O filho mais velho já estuda, na Escola Islâmica. Ele diz que 80% dos colegas do filho são muçulmanos, mas que isso não implica no convívio com crianças não muçulmanas. “A gente procura orientar que ele é muçulmano e os outros não são, mas que essa é a única diferença. Mais nada”. Assim, o sheik diz que é mais ou menos como acontece com os times de futebol. “Cada um escolhe o que gosta. E acabou. Se não se troca de time, imagina de religião!”, afirma, com convicção.

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Não há como fugir do tema preconceito quando falamos de grupos, que como o próprio sheik diz, estão entre a minoria. “Não sei se isso é coisa de paulista, ou o gaúcho é mais chucro, mas as pessoas reclamam de muita coisa”. Ele cita um exemplo, de uma frequentadora da mesquita que um dia foi queixar-se com ele que estava chegando ao ponto de ônibus e o motorista não a esperou. Ela atribuiu a atitude ao fato de estar usando o véu. “É algo que acontece com todo mundo”, diz o sheik, com olhar fatigado, como só já tivesse repetido aquelas palavras muitas vezes. “Em São Paulo, as pessoas são muito auto preconceituosas. Qualquer coisa é preconceito. Eu e minha esposa não passamos por isso. E se passar a gente sabe como agir”. Ele fala de uma situação em um supermercado do Brás. Uma mulher o viu com a roupa de sheik e soltou um sonoro “Ochiii”. “Eu olhei pra ela e disse: ‘Ochi o que?’”. Ele conta que não é de seu feitio agir dessa forma, mas que quando nota a maldade e o escárnio, às vezes precisa se impor. “Uma outra vez em Porto Alegre, eu passei na frente de um bar e os caras gritaram ‘oh o Bin Laden aí’. Eu voltei e falei ‘quer falar comigo?’” Os clientes do bar ficaram quietos e ele seguiu seu caminho. Alguns brasileiros depois que se convertem reclamam de que sofrem preconceito devido sua escolha. Ele aconselha. “Nós temos que parar de mimimi”. Repete os esclarecimentos que tenta incutir aos seguidores: “Você está vivendo num padrão em que eles não estão acostumados. Nós temos que entender isso. Todo mundo está sujeito, não só os muçulmanos. É a sociedade em que nós vivemos”. Da mesma forma que o preconceito surge ao tratarmos do islã, outro assunto pontual é o radicalismo corriqueiramente estampado nas manchetes dos jornais. “O radicalismo islâmico no meu vocabulário não existe. O que existe é o radicalismo de alguns muçulmanos”. Segundo ele, a denominação radicalismo islâmico dá a entender que é o islã que torna as pessoas radicais. “São pessoas que já tem uma natureza radical que procuram algo dentro do islã para justificar e santificar o seu radicalismo”, alega, dando ênfase à palavra santificar. A trajetória de Rodrigo é capaz de ocupar inúmeras linhas. A quantidade de linhas só não é capaz de superar a polêmica em torno do islã, dos atos


O líder religioso entre a divisão do templo feminino e o masculino. Para entrar, é preciso descalçar os pés

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radicais e da cobertura jornalística. O sheik encara o ringue e se despede da conversa do mesmo jeito que começou: com sorrisos e segurança de quem vive uma missão. Missão que não a reduz a jovialidade, muito o olhar crítico. “O radicalismo de alguns muçulmanos está ligado a fatores sociais, políticos, econômicos. Isso tem que ser tratado pelo lado religioso, espiritual e também pelo psicológico. A diferença entre o antídoto e o veneno é a dosagem. Tem que saber dosar”.




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