Jornal mundo historia abril 2016

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ANO 12

■ tiragem:

Nº 2

ABRIL/2016

20 000 exemplares

Charles chaplin

80 anos de Tempos Modernos Sérgio Rizzo Especial para Mundo

Filme lançado em 1936 faz uma crítica humanística à opressão sobre os trabalhadores exercida pela indústria

HI ST ÓR IA & C ULT U R A

© Divulgação

lcançado o ano cabalístico de 2000, diversas enquetes promovidas pela mídia e por outras organizações procuraram eleger as contribuições mais significativas do século XX, em diversos campos do conhecimento. No cinema, o nome do ator, diretor, produtor, roteirista e compositor inglês Charles Spencer Chaplin (1889-1977) se impôs, nessas pesquisas, como uma referência obrigatória. Houve até quem julgasse mais adequado ampliar o seu campo de influência e o considerar o artista mais importante do século. De fato, talvez ele tenha sido o mais popular de todos, reconhecido e admirado pelo maior número de pessoas, em boa parte do planeta. A silhueta de Carlitos, seu personagem mais importante, tornou-se um ícone do próprio cinema. Quer identificar, em sua biblioteca ou em sua livraria, a prateleira de livros sobre imagem e som? Basta sapecar ali o vagabundo de cartola. Na obra de Chaplin, um punhado de filmes – como Em Busca do Ouro (1925), sua grande comédia do período silencioso, e O Grande Ditador (1940), seu primeiro longa inteiramente sonoro – está fincado na história de maneira incontornável, não apenas por razões estéticas, mas pelo modo como representaram alguns dos grandes temas de sua época, às vezes com independência e coragem exemplares. Entre eles, o caso mais duradouro, ainda hoje lembrado como um baluarte da reflexão (e provocação) política no campo das artes, é o de Tempos Modernos, cujo lançamento acaba de completar 80 anos – a pré-estreia em Nova York foi realizada em 5 de fevereiro de 1936. Custa acreditar, no atual momento em que a dependência econômica do cinema costuma prendê-lo a uma camisa de força em que raros são os filmes capazes de questionar a ordem socioeconômica dominante, que tenha saído do coração de Hollywood um libelo tão agressivo (ainda que irônica e docemente agressivo) contra a exploração do homem pela engrenagem capitalista. Tempos Modernos, o último filme protagonizado por Chaplin na pele de Carlitos, foi produzido por ele próprio e distribuído pela United Artists (o estúdio que Chaplin fundara, em 1919, ao lado de outros ilustres e talentosos colegas: o diretor e produtor D. W. Griffith, e os atores Douglas Fairbanks e Mary Pickford). Nada mais simbolicamente adequado para a despedida do vagabundo, dada a natureza do projeto: ao flagrar o funcionamento da avassaladora máquina de moer trabalhadores que espalhava seus tentáculos pelo mundo, o filme parecia celebrar o fim da era de inocência e esperança em que Carlitos reinou. É bem verdade que o final conhecido por todos, em que Carlitos e sua companheira – interpretada pela norte-americana Paulette Goddard, que foi mulher (e musa) de Chaplin de 1936 a 1942 – caminham por uma

© Doctor Macro/Coleção particular

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“O maquinismo deve ajudar o homem. Não deve provocar tragédias, nem suprimir empregos” (Charles Chaplin)

estrada que aponta para um horizonte em que um outro mundo seria possível, celebra em chave de esperança o severo diagnóstico do capitalismo promovido por Tempos Modernos. O final originalmente previsto era sombrio: o casal terminava separado, com um deles confinado a uma clínica. Despertar o espectador para o flagrante em que se encontrava o modelo capitalista era uma coisa; levá-lo a um sentimento depressivo, ao final da sessão, era outra, que Chaplin quis evitar. Para resistir àquela lógica perversa de exploração do ser humano que parecia se consolidar, o espectador-trabalhador precisava de ânimo. Que Carlitos então lhe fornecesse uma dose estética de encorajamento, e não de pessimismo. O século XX ganhou, com Tempos Modernos, uma de suas imagens mais fortes e simbólicas, embebida de poesia visual: a de Carlitos sendo absorvido pelas gigantes engrenagens da indústria em que trabalhava. O personagem demonstrava, individualmente, fragilidade para fugir delas, mas, ao mesmo tempo, mostrava a disposição de resistir, algo que, sinaliza o filme, só poderia surgir pela

via coletiva, da organização de classe com base na consciência da ação política. Não causa estranhamento que Chaplin tenha sido impedido, em 1952, de retornar aos Estados Unidos depois de uma viagem a Londres. Pouco a pouco, havia se tornado persona non grata no país que o abrigara (e que faturara em cima de seus talentos), acusado de comunista. Tempos Modernos representou uma peça importante no processo de perseguição e difamação promovido contra ele por forças conservadoras. A ideia para o filme começou a amadurecer graças à faceta jornalista, digamos, de Chaplin. Em 1931, ele deu início a uma viagem pelo mundo que duraria 18 meses. Era a coroação do artista mais famoso daquele período, recebido com honras de chefe de Estado por diversos países. O escritor inglês H. G. Wells (1866-1946), o físico alemão Albert Einstein (1879-1955) e o líder indiano Mahatma Gandhi (18691948) fizeram parte da sua extensa lista de interlocutores. Nessa jornada internacional, Chaplin desenvolveu uma visão do mundo – no período imediatamente posterior à quebra da bolsa de Nova York e ao início da Grande Depressão nos Estados Unidos, quando o fantasma dos regimes autoritários renascia na Europa, sobretudo na Alemanha – especialmente atenta a temas como a pobreza e o desemprego, as desigualdades econômicas entre países e no interior de sociedades, a intolerância política e a tirania do capital. “O maquinismo deve ajudar o homem”, disse ele em 1931, usando um termo então em voga para se referir à automação das linhas de produção, sob a égide do fordismo. “Não deve provocar tragédias nem suprimir empregos.” Eram frases características de um político em campanha, mas saíram da boca de alguém que acreditava na força conscientizadora de sua obra e também de sua ação pública como cidadão, e que jamais cogitou ingressar na política partidária, por julgar que tinha contribuição maior a dar para o desenvolvimento de um mundo mais equilibrado e justo a partir da posição privilegiada que alcançara, como artista de circulação planetária. Não se fazem mais artistas como antigamente, assim como não se fazem mais filmes como Tempos Modernos. Sérgio Rizzo é jornalista, professor e crítico de cinema: www.sergiorizzo.com.br

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William shakespeare (1564-1616) José Arbex Jr. Editor Geral de Mundo

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illiam Shakespeare tinha um caso de amor com a humanidade. Este é o “segredo” de sua obra: ela quer entender o ser humano em sua totalidade, com todas as suas qualidades morais, para o bem e para o mal, com todos os seus defeitos e virtudes. A própria vida era concebida como uma encenação num palco imenso, em que os atores tinham consciência mais ou menos aprofundada sobre o seu próprio papel. Como na famosa fala de Macbeth: “A vida nada mais é que uma sombra que anda, um pobre ator que se pavoneia e se agita durante sua hora no palco e depois não é mais ouvido. É uma estória contada por um idiota cheia de som e fúria que nada significa. Nada!” O bardo de Stratford-upon-Avon viveu numa época extremamente conturbada, entre as décadas finais do século XVI e início do XVII, rica de possibilidades transformadoras [veja o boxe]. Era a Inglaterra de Elisabeth I, que derrotou a “invencível armada” espanhola (1588) e lançou as bases para a construção do grande Império Britânico. No plano cultural, era um período de transição da Idade Média para o mundo moderno, quando tudo estava em questão, todos os valores políticos, ideológicos, morais e religiosos. Os questionamentos das relações de poder, sobretudo, ganhavam grande relevância: numa época em que a Igreja Católica entrava em crise e a religião deixava de exercer o papel normativo avassalador que manteve durante os mil anos anteriores, tudo estava em questão. O que significa ser um bom governante? Como devem se comportar homens e mulheres na vida cotidiana? Foi o momento em que pensadores, filósofos, políticos, religiosos e professores elaboraram os fundamentos do que viria a se constituir como mundo moderno ocidental. Estamos falando, aqui, de uma época marcada pelas obras de Thomas More (1478-1535), Nicolau Maquiavel (1469-1527), Martinho Lutero (1483-1546), Thomas Hobbes (1588-1679), René Descartes (1596-1650), além de artistas e cientistas como Leonardo da Vinci (1452-1519), Michelangelo (1475-1564) e Galileu Galilei (1564-1642). Todos os valores, enfim, eram colocados à prova. E Shakespeare escolheu o teatro como forma de expressar os anseios de sua época. “Para Shakespeare o mal é um dado permanente e, principalmente nas tragédias, ele mostra ações nas quais podemos perceber como o homem enfrenta o mal”, diz a crítica de teatro brasileira Bárbara Heliodora (19232015), considerada uma das grandes especialistas na obra do bardo, em entrevista publicada pelo portal Shakespeare Brasil <www.shakespearedigitalbrasil.com.br>. “O que é que acontece quando o homem se vê diante do mal, que está presente, de forma mais ou menos intensa, em todas as peças. Assim como a morte está presente em praticamente todas as peças, mesmo nas comédias. A ameaça da morte está na Comédia dos erros, em Trabalhos de amor perdido... Do mesmo modo, há personagens cômicos nas tragédias e personagens sérios nas comédias, porque na vida tudo é misturado. Por isso, podemos afirmar que ele

Há 400 anos, morria

Bibliotecas inteiras já foram escritas sobre a obra do ator e dramaturgo inglês, criad que há quatro séculos encantam o mundo tem sempre consciência de todo o panorama à sua volta. Shakespeare ama o ser humano em qualquer circunstância. Não é um amor piegas; o que Shakespeare considera nesse grande amor à humanidade é que a pessoa tenha, como diz lady Macbeth, ‘the milk of human kindness’, o ‘leite da bondade humana’.” Bibliotecas inteiras já foram escritas, e outras ainda serão, sobre a importância e o significado de sua obra para a cultura universal – 39 peças principais e 154 sonetos [veja o boxe]. Seus personagens mais conhecidos – Hamlet, Macbeth, Romeu, Julieta, Otelo, Iago e tantos outros – continuam a povoar e a fascinar o imaginário da humanidade, quatro

séculos após suas primeiras aparições no Teatro Globo, em Londres. Assim como algumas de suas frases, que acabaram se incorporando ao discurso cotidiano de muitos que nem fazem ideia de onde surgiram, ou como foram criadas, a começar por “ser ou não ser, eis a questão”, do inesquecível Hamlet. No Brasil, Romeu e Julieta acabaram virando o nome de uma sobremesa deliciosa (goiabada com queijo), degustada por muitos que pouco ou nada sabem sobre os amantes de Verona. Não há, de fato, qualquer forma de expressão artística – teatro, cinema, artes plásticas, música, literatura, poesia – que tenha escapado à influência direta ou indireta do legado shakespeariano.

Morreu no mesmo dia em que nasceu, aos 52 anos William Shakespeare (1564-1616) nasceu, muito provavelmente, em 23 de abril, o dia de São Jorge, santo patrono da Inglaterra, em Stratford-upon-Avon, situada a cerca de 150 quilômetros de Londres. O seu batizado que ocorreu em 26 de abril, sendo que era costume, à época, realizar o ritual três dias após o nascimento da criança. Era o terceiro entre oito, e o mais velho dos filhos homens de John Shakespeare, um comerciante de cintas, bolsas e luvas de couro, e de Mary Arden, filha de um proprietário de terras. Dos 7 aos 15 anos, provavelmente frequentou a New King’s School (Nova Escola do Rei), onde teria aprendido latim e retórica. Essa foi sua única educação formal e, mais tarde, Shakespeare seria criticado por seus contemporâneos por não ter cursado uma universidade, como fazia a maioria dos autores de teatro daquele tempo. Como consequência de problemas financeiros enfrentados por seu pai, Shakespeare deixou a escola. Antes de seguir para Londres, o escritor passou alguns meses em Stratford, quando aos 18 anos se casou às pressas com Anne Hathaway, oito anos mais velha e grávida. Teve três filhos, Susanna e os gêmeos Judith e Hamnet (dois anos mais novos). Hamnet, seu único filho homem, morreu aos 11 anos (vários críticos já escreveram tratados inteiros sobre a óbvia semelhança entre o nome do filho e o do trágico príncipe da Dinamarca). Não se sabe exatamente por onde Shakespeare andou nos seis anos seguintes após o casamento, o que deu e ainda dá margem a muitas especulações. O dramaturgo inglês Nicholas Rowe (1674-1718), o seu primeiro biógrafo, afirma que ele fugiu de Stratford para Londres devido a uma acusação envolvendo o assassinato de um veado numa caça furtiva, em propriedade alheia (provavelmente de Thomas Lucy). Tampouco se sabe quando, exatamente, Shakespeare começou a escrever, mas pesquisas recentes e registros de performances mostram que várias de suas peças foram representadas em Londres em 1592. Neste período, o contexto histórico favorecia o desenvolvimento cultural e artístico, pois a Inglaterra vivia os tempos de ouro, sob o reinado da rainha Elizabeth I (ocorrido entre 1558 e 1603). O teatro deste período foi de grande importância, não apenas como entretenimento, mas também como fonte de reflexões e debates sobre os rumos políticos, ideológicos e morais da sociedade. As peças eram lidas, e não apenas assistidas ou encenadas. Havia companhias que compravam obras de autores em voga e depois passavam a vender o repertório às tipografias. As tipografias imprimiam os textos e vendiam a um público leitor que crescia cada vez mais. Isso fazia com que as obras ficassem em domínio público. Biógrafos sugerem que a carreira de Shakespeare deve ter começado em qualquer momento a partir de meados dos anos 1580. Ao chegar a Londres, diz a tradição, Shakespeare não tinha amigos, dinheiro e estava completamente arruinado. Teria sido contratado por uma companhia de teatro para executar pequenos serviços, e logo fora subindo de cargo, chegando provavelmente à carreira de ator. Há referências que apresentam Shakespeare como um cavalariço. Ele dividiria seu emprego entre tomar conta dos cavalos dos espectadores do teatro, atuar no palco e auxiliar nos bastidores. Segundo Nicholas Rowe, Shakespeare entrou no teatro como “ponto”, encarregado de avisar os atores o momento de entrarem em cena. O então cavalariço provavelmente tinha vontade mesmo era de atuar e de escrever. Em algum momento, começou a compor sonetos e criar peças de sucesso, até ganhar fama e reputação como dramaturgo. Escreveu a maioria de suas peças entre 1590 e 1611. Mesmo trabalhando em Londres, Shakespeare voltava à cidade natal com frequência e nunca se desligou de sua família: mandava-lhe dinheiro e participou do casamento da filha Susanna. Ao se tornar sócio no maior empreendimento teatral que a Inglaterra já conhecera, o Teatro Globo, o dramaturgo disputava a atenção da plateia com inúmeros outros autores e teatros. Com o dinheiro adquirido na companhia teatral, Shakespeare tornou-se rico. Comprou uma casa em Stratford e muitas outras propriedades, incluindo terras férteis e uma casa em Londres. Com o passar dos anos, os estudos sobre Shakespeare foram se acumulando e sua fama cresceu na mesma proporção. Segundo Park Honan, um de seus biógrafos mais autorizados, desde o começo do século XX não houve um dia em que, em algum lugar do mundo, uma de suas peças não estivesse sendo ensaiada ou montada.

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2016 ABRIL

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Stratford

dor de tragédias, comédias e romances

Se William Shakespeare tivesse escrito apenas Hamlet, já seria, certamente, considerado um autor imortal. Mas escreveu também Macbeth, Romeu e Julieta, Rei Lear, Sonhos de uma noite de verão, Otelo, A tempestade, O mercador de Veneza. Foram, ao todo, 38 peças, além de mais de 150 sonetos, alguns classificados pela crítica como entre os mais belos da literatura universal. As dimensões absolutamente fantásticas de sua obra fizeram surgir uma antiga e duradoura polêmica sobre sua autoria. Seria Shakespeare, de fato, o autor das peças a ele atribuídas? Os que colocam em dúvida a sua autoria – incluindo o escritor Mark Twain, o diretor de cinema e ator Orson Welles, o ator John Gielgud (ironicamente, lançado ao estrelato mundial por sua interpretação de Hamlet), o “pai da psicanálise” Sigmund Freud e o ator e diretor Charlie Chaplin – alegam que não há provas históricas suficientes de que os textos sejam mesmo de sua lavra. Muitos atribuem a verdadeira autoria a outros escritores e artistas da época, incluindo Francis Bacon, Christopher Marlowe ou Eduardo de Vere, conde de Oxford. Um dos principais argumentos contra Shakespeare aponta para o fato de que a evidente erudição que transparece na arquitetura e argumento das peças é muito superior ao grau de instrução ao qual o autor teria tido acesso. A obra faz uso, no total, de um vocabulário imenso, de aproximadamente 29 mil palavras diferentes, equivalente a quase cinco vezes os 6 mil vocábulos distintos adotados pela versão da Bíblia adotada pelo rei Jaime. Uma pessoa comum do século XVI, como era o caso do bardo, sem qualquer conhecimento educacional elevado, não poderia ser tão bem fluente na língua inglesa, e muito menos em política, direito e em línguas estrangeiras – o latim, por exemplo. Os partidários de Shakespeare rebatem os argumentos, com provas concretas, incluindo o seu testamento – um documento longo e explícito, que lista posses de uma pessoa economicamente bem-sucedida. Quando contrastado com a sua origem relativamente modesta, revela um sucesso que pode muito bem ser explicado pelo êxito das peças, em especial pelas gordas bilheterias garantidas pelo Teatro Globo, do qual era dono. Alegam, também, que Shakespeare pode ter frequentado a Nova Escola do Rei, em Stratford, até os 14 anos, onde teria estudado latim, grego e uma vasta literatura, incluindo nomes como Ovídio e Platão, além de poemas franceses, histórias nacionais e romances italianos. E poderia ter completado sua educação com livros comprados na loja do tipógrafo Richard Field, um companheiro stratfordiano da idade de Shakespeare. A polêmica, enfim, é interminável. Novos argumentos pró e contra surgem a cada nova pesquisa. Provavelmente, nunca saberemos a resposta definitiva. Isso tudo parece ser a grande charada póstuma proposta pelo bardo, que, provavelmente, transformaria a própria controvérsia numa nova comédia imortal. De modo bem esquemático, a arte dramática de Shakespeare pode ser dividida em três partes. Na primeira, compreendida entre os anos de 1590 e 1602, o autor escreveu comédias alegres, dramas históricos e tragédias no estilo renascentista. A segunda fase, que vai até 1610, é caracterizada por tragédias grandiosas e comédias amargas, quando o autor estava em seu auge produtivo. A última parte, que vai até a sua morte, é marcada basicamente pelo lançamento de peças que têm o final conciliatório. Mas não há uma rigidez absoluta, uma “muralha da China” separando uma fase da outra. Por exemplo, sua mais importante obra lírica, Romeu e Julieta, é também uma grande obra trágica. Sua primeira peça, Tito Andrônico, escrita provavelmente em 1590, já revelava alguns dos elementos centrais de sua obra posterior: a luta pelo poder, a ambiguidade dos valores morais, os complôs e assassinatos. Segue a lista de suas principais peças:

© Biblioteca do Congresso, Washington D.C.

© Biblioteca do Congresso, Washington D.C.

© Coleção particular

Depois de alcançar um grande sucesso em sua própria época – o suficiente para enriquecer e ter uma vida confortável –, Shakespeare se despediu da vida no mesmo local e dia em que nasceu, Sratford-upon-Avon, em 23 de abril, provavelmente vítima de febre tifoide. É irresistível imaginar que morrer na data de seu aniversário foi a sua maneira de lembrar que a vida é apenas isso, “uma sombra que anda”, um fugaz instante entre o nascimento e a morte. Até em sua despedida, o bardo reservou a última surpresa por ele preparada para o mundo.

Desde o começo do século XX, não houve um dia em que, em algum lugar do mundo, uma das peças de Shakespeare não estivesse sendo ensaiada ou montada

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To be or not to be, that is the question

Comédias • Sonho de uma Noite de Verão • O Mercador de Veneza • A Comédia dos Erros • Os Dois Cavalheiros de Verona • Muito Barulho por Nada • Noite de Reis • Medida por Medida • Conto do Inverno • Cimbelino • A Megera Domada • A Tempestade • Como Gostais • Tudo Bem quando Termina Bem • As Alegres Comadres de Windsor • Trabalhos de Amores Perdidos • Péricles, Príncipe de Tiro

© Coleção particular

o bardo de

Tragédias • Tito Andrônico • Romeu e Julieta • Júlio César • Macbeth • Antônio e Cleópatra • Coriolano • Timão de Atenas • Rei Lear • Otelo • Hamlet • Tróilo e Créssida

Dramas históricos • Rei João • Ricardo II • Ricardo III • Henrique IV, Parte 1 • Henrique IV, Parte 2 • Henrique V • Henrique VI, Parte 1 • Henrique VI, Parte 2 • Henrique VI, Parte 3 • Henrique VIII • Eduardo III

HISTÓRIA & CULTURA M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A


base curricular

Tiraram a Europa do mapa Meninas, vamos ao Vira / Ai, que o Vira é coisa boa! Eu já vi dançar o Vira / Ai, às meninas de Lisboa Meninas vamos ao Vira / Ai, que o Vira é coisa linda! Eu já vi dançar o Vira / Ai, às meninas de Coimbra [“Vira do Minho”, do folclore português]

Oh, raios! / Fui convidado pra uma tal de ****** / Não pude ir, Maria foi no meu lugar / Roda, roda e vira, solta a roda e vem [...] Oh, Manoel olha acá como eu estou

© Coleção particular

Flora Christina Bender Garcia Especial para Mundo

[“Vira-vira”, Mamonas Assassinas]

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A proposta inicial da Base Nacional Comum Curricular feita pelo MEC elimina o estudo de obras e autores fundamentais na formação de nossa sensibilidade e de nossa memória afetiva, incluindo a lírica de Camões e o inigualável Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, entre tantos outros

a Revolução Francesa, por exemplo, que influenciaram o pensamento e a ação dos inconfidentes em Minas Gerais, serão tratados como um pequeno item dentro do estudo da Conjuração Mineira. Paralelamente ao virtual desaparecimento da Europa nos conteúdos de História, há uma nova ênfase no estudo das civilizações ameríndias e africanas. Em vez de serem enfatizadas (como merecem, aliás), substituem a tradição europeia. As justificativas para tal prioridade estariam na própria formação do Brasil, legatário de três grandes matrizes culturais: indígena, africana e europeia. Na visão do Ministério, expurga-se o “excesso” de Europa e dá-se a devida importância somente aos negros e aos índios e aos países “colonizados e subjugados pelos europeus”, na América e na África. Divide-se o mundo em mocinhos e bandidos. No nosso caso, tira-se o bandido português e, junto com ele, a obrigatoriedade do estudo da literatura portuguesa. Intelectuais brasileiros se manifestaram contra essa ideia estapafúrdia e começaram a publicar artigos em jornais brasileiros e nas redes sociais. No mês passado, um jornalista português do Diário de Notícias, de Lisboa, “pôs a boca no trombone”. Publicou uma reportagem com duas jovens segurando a bandeira do Brasil defronte a um colégio português. Em cinco dias, tinha havido 100 mil compartilhamentos indignados. Os jornais portugueses pediram satisfação ao MEC, foi feito um abaixo-assinado on-line à presidente do Brasil para voltarmos a ter a obrigatoriedade do ensino da literatura portuguesa e... beleza! O Ministério voltou atrás e prometeu que voltaria a dar à literatura portuguesa a importância que ela merece. Seu estudo não será eletivo.

© Coleção particular

uem decide o que os alunos devem estudar na escola? A tradição do passado, o governo, a própria escola, os vestibulares? Houve uma época em que o rol de conteúdos de cada matéria, em cada ano escolar, era decidido pelo Ministério da Educação (MEC) e publicado no Diário Oficial. Cada professor deveria cumprir pelo menos 75% do que estava determinado, pois a fiscalização das delegacias de ensino cobrava. Dura lex, sed lex. A partir de 1980, o Brasil iniciou uma rediscussão de seu sistema educacional, que culminou na aprovação de uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em 1996. As novas normas ampliaram a possibilidade de escolhas por parte das escolas e estabeleceram diretrizes, em vez de conteúdos obrigatórios. Um currículo básico, no entanto, é necessário. A maioria dos países desenvolvidos, aqueles que aparecem no topo dos rankings de desempenho nas avaliações educacionais, tem uma base comum para orientar escolas e professores. Por isso, o MEC apresenta agora suas sugestões, disponibilizando-as para discussão pública. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) tem por objetivo estabelecer um conjunto mínimo de conteúdos obrigatórios para todas as escolas brasileiras. Pela proposta, 60% do currículo seria obrigatório, e os restantes 40% seriam eletivos – ou seja, cada unidade escolar comporia esse percentual de acordo com suas escolhas. O anteprojeto tem sido objeto de severas contestações, principalmente no que se refere a duas áreas do conhecimento: História e Linguagens. Em ambas, especialistas apontam para um mesmo problema: a ideologização da abordagem, cujo viés eminentemente político descartaria conceitos e informações pretensamente desnecessários à realidade brasileira e às vivências do aluno contemporâneo. Por detrás de um apelo ao interesse do aluno e à sua atualização, estudiosos enxergam pura e simples doutrinação político-ideológica, fundamentada em concepções nacionalistas e terceiro-mundistas. Nesse caso, a disciplina de História seria a mais afetada. Não há referência à história geral antes do “descobrimento” do Brasil. A Antiguidade e a Idade Média simplesmente desapareceram. Todo o estudo da História encontra-se subordinado à inserção do Brasil no mundo, a partir do ciclo das grandes navegações. O Iluminismo e

A produção literária portuguesa é determinante da nossa sensibilidade e de nossa memória afetiva. Das cantigas e novelas de cavalaria ao cordel nordestino, de Camões ao lirismo amoroso da música popular brasileira, dos Autos de Gil Vicente a Ariano Suassuna, do “Vira do Minho” ao “Vira-vira” da irreverente e bem-humorada banda Mamonas Assassinas, a herança de Portugal revelase explicitamente. Da Europa também veio a história de João e Maria, dois irmãos perdidos na floresta, que seriam degustados por uma bruxa antropófaga. Vamos tirá-la de nosso cotidiano? Até o genial Chico Buarque compôs uma música com o nome dos dois garotos, “João e Maria”, em que mistura herói, cavalo que fala inglês, cowboy e princesa, rei, alemães, canhões, rock, bedel, juiz e... o bom e velho bodoque, o estilingue (faz lembrar O garoto, de Charles Chaplin). Além do pião, é claro. Tudo junto e misturado, como deve ser. Nossa pátria educadora acabará mesmo é discriminando o ensino público, numa verdadeira pedagogia da exclusão. As escolas particulares certamente apresentarão a seus alunos muito mais do que as autoridades consideram dever ser ministrado, na proporção “legal”. E os alunos da rede pública, geralmente menos favorecidos, é que serão prejudicados, em nome de uma educação renovadora e socializante. Flora Christina Bender Garcia é professora de Língua Portuguesa e de Literatura dos ensinos médio e superior. Doutora em Literatura Comparada pela USP. É autora de livros paradidáticos sobre literatura e de crítica de cinema

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