MARANHAY - Revista Lazeirenta - 69 - janeiro 2022

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SANTA ESPERANÇA VIRIATO GASPAR Naquele chão agreste, espremidos entre a secura implacável do chão e a sequidão mais inclemente ainda dos corações dos donos das terras e das vidas, a comida era sempre uma incerteza, que muitas vezes ficava apenas na nossa vontade de comer. Muitas vezes, ao fim de um dia inteiro de trabalho, nos cabia um litro de feijão, pra dividir por doze bocas varadas pela fome, esta sim, a convidada assídua, sempre presente em nossa casa. Nenhum de nós, doze bruguelos magros e de olhos sempre atentos a alguma coisa mastigável, se lembra com certeza de como ela apareceu em nosso rancho. Apenas, um certo dia, lá estava ela à nossa porta. Uma viralata amarela, grande, magra como nós, e como nós, de olhos atentos e alertas. O Pai logo a fez correr, à custa de pedradas, receoso de mais uma boca para alimentar. Mas ela sempre voltava e se deitava o mais longe possível no terreiro, de olhos atentos e observadores, como que vigiando em nossa proteção. Como, mesmo corrida a pedradas, sempre voltava para nós, a Mãe lhe colocou o nome de Esperança. Talvez, lá no fundo, na esperança teimosa, de que todo pobre padece, de que as coisas melhorassem e ela não tivesse, tantas noites, de ir dormir sem comer, para que a gente, os doze filhos, ganhasse mais um punhado do feijão suado que nos cabia ao final de um dia inteiro do Pai no cabo da enxada. Com tantas crianças, logo Esperança tornou-se membro da família. Ninguém nunca apareceu para reivindicar sua posse ou pedi-la de volta. E logo caiu nas graças do Pai, porque nunca comia. E o mais estranho e inusitado: quando as coisas estavam mais pesadas, a comida mais rara e mais difícil, Esperança deu pra trazer litro de óleo, cheio, lata de banha de porco, que depositava, silenciosamente, aos pés da Mãe, e se retirava para longe, mais para lá no terreiro. O Pai, no início, achava que ela tava roubando de algum lugar, talvez lá da venda, mas nunca, nem uma só pessoa apareceu pra reclamar ter dado falta desses óleos ou banhas. E Esperança nunca vinha comer, quando a chamávamos. A pouca comida que a Mãe punha para ela no terreiro, ela só cheirava e deixava intacta, como se dissesse: vocês precisam mais. Um dia, o Pai machucou a mão, nós todos no desespero da fome, que gania e gemia no saco vazio da barriga, Esperança chegou, de repente, com uma paca gorda na boca, que silenciosamente depôs aos pés da Mãe. Naquela rotina de fome e precisão, naquela incerteza de levantar todo dia sem saber se conseguiríamos alguma coisa pra comer, perdemos a conta das vezes em que Esperança matou a nossa fome. Uma latinha de banha, uma lata de óleo, uma paca gorda, um preá, um tatu, volta e meia, quando a fome apertava mais ainda, Esperança trazia alguma coisa, que depositava em silêncio aos pés da Mãe, como um fiel aos pés de sua deusa. Crianças que éramos, entretidos entre as brincadeiras, os banhos de rio e a voracidade insaciável por comida, nem percebemos que Esperança parecia a cada dia mais cansada, mais magra, de olhos cada vez mais acesos e tristes. Até que um dia, quando o Pai abriu a porta, manhãzinha, Esperança não estava no terreiro. Um, dois, três, quatro, cinco, seis dias, e nada de Esperança. No sétimo dia, a caminho da roça, o Pai viu a revoada dos urubus, lá pras bandas do coronel dono das terras e de todos nós.


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