Justiça com A 53º Edição

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1 DEZEMBRO 2022 53º Edição

Indíce

DEZEMBRO 2022

04 ....... Flores na Abíssinia | Carla Coelho

08 ....... Pano para Mangas | Margarida Vargues

10 ....... Ré em Causa Própria | Adelina Barradas de Oliveira

12 ....... Cantinho do João | João Correia

14 ....... Investigações Inconclusivas | Carlos Pinto de Abreu

18 ....... Goodfellas | Sandra Moreira da Silva

22 ....... O Mar Logo Ali | Ana Gomes

26 ....... O imaginário na justiça | José Carlos Oliveira

30 ....... Você corta a etiqueta | Margarida de Mello Moser

32 ....... O meu nome é Gal | Fernando Corrêa dos Santos DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA DESIGN E PRODUÇÃO: DIOGO FERREIRA INÊS OLIVEIRA

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SITE: WWW.JUSTICACOMA.COM FACEBOOK: JUSTIÇA COM A

Editorial

DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA

Façam de Conta que é Natal, que são crianças e não sabem qual vai ser a surpresa. Façam de conta que somos o Pai Natal

Pé ante pé para não acordar o Menino Jesus, deixo-vos a Nossa JustiçA com A Não vos digo do que fala

É surpresa. Descubram FELIZ NATAL Até 2023

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FLORES NA ABISSÍNIA

A CASA E O BALDIO

A casa não é um lugar. É o passado, as memórias de infância, o amor de adolescência, o primeiro emprego, o piquenique numa tarde de verão, o dia em que nasceu o nosso filho, o sorriso do amigo, a história que nos contamos sobre nós mesmos. São os sonhos, o segredo que nunca partilhado, as certezas que o mundo estilhaçou (ou não). O livro que lemos uma e outra vez na infância, o bolo que comíamos no intervalo das aulas, a canção que trauteamos ainda que a saibamos pirosa. Os filmes que nos devolveram a esperança nos momentos de negrume.

Os decoradores de interiores dizem

que uma casa está sempre incompleta. E têm muita razão num sentido bem mais amplo do que imaginam. Pela minha parte, tal como me falta sempre mais uma estante para livros, também tenho espaço para mais um rosto, uma nova emoção ou uma palavra inesperada. Ainda que isso implique, por vezes, deitar fora qualquer coisa que estava lá antes e que deixou de ter préstimo. Ou, de forma menos dramática, passar a vê-la com outros olhos.

Para termos coisas novas na nossa casa temos de nos arriscar a caminhar por baldios. Só aí, na aventura do inesperado, encontramos os objectos preciosos,

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A casa e o baldio

Flores na abissínia

que fazem da nossa casa o lugar único que habitamos. Diferente das casas dos outros. Que serão muito bonitas e capazes de os manter confortáveis. Mas são deles, não nossas.

Há dias encontrei uma coisa nova para a minha casa.

Entrei na sala do cinema no momento em que as luzes se apagaram. Senteime no silêncio (a sala tem pergaminhos e o público sabe estar). O ecrã iluminouse de um azul profundo, delicado e forte, a invadir a tela de liberdade. E comecei a seguir a história de Ana e Luís, dois amigos que vivem em São Miguel, nos Açores. Nunca fui à ilha (uma falha que espero corrigir em breve), mas posso jurar que lhe senti os cheiros trazidos pelo vento atlântico naquela sala de cinema plantada no meio da capital. Lobo e Cão, o título do filme, é uma metáfora para aquele espaço indizível entre uma coisa e outra, o intervalo subtil entre duas realidades que se sucedem. Assim é a adolescência em que se encontram os protagonistas do filme. Aquele momento em que acaba a infância, território em que a magia cobre a dureza da vida (mesmo quando esta é real as crianças conseguem esquecer-se disso, ainda que apenas pelo tempo em que correm atrás de uma boa de trapos ou entoam uma canção) e se entra na vida adulta, com

as suas responsabilidades, liberdades e desilusões. É um tempo que me interessa muito, não só porque também eu já lá vivi, mas também por a minha profissão me levar a olhar para quem por lá anda com interesse e curiosidade.

No filme, seguimos Ana e Luís na sua jornada de abertura de possibilidades e descoberta, na sua recusa em serem outra coisa se não quem são, num percurso de dificuldade e superação de rejeição e aceitação. O filme é construído sobre dualidades, com uma luz poética, um ritmo que segue o da vida, recortando os pedaços variados de realidade que é a vida na ilha. Um mar aberto de possibilidades, um pedaço de terra que pode parecer tão pequeno.

Os dois protagonistas jovens estudantes de liceu, vivem com as suas famílias e têm um grupo de amigos que se revela essencial na descoberta e suporte do mundo que cada um deles traz em si.

Não se porquê (e talvez não muito a propósito, diga-se) ao sair do cinema veio-me à cabeça o jovem Lucien Rupembré, herói das Ilusões Perdidas, romance de Honoré de Balzac. Se já tiverem lido o livro recordarão Lucien. Muito jovem (menos de 20 anos) vai para Paris, com o propósito de vencer na vida. Não tem dúvidas existenciais

sobre o que significa isso, diga-se. E para alcançar o seu objectivo, sabe-o bem, tem de moldar-se ao que a sociedade dele espera, integrar-se, deixar-se ir, tomar-se de ambições de conquista do mundo, tudo para que lhe caibam algumas migalhas caídas do banquete dos ricos. Balzac é um dos meus escritores de eleição e este livro um dos que mais marcou até hoje.

Nada dessa filosofia de vida encontra eco neste filme. Está nos antípodas mesmo. Ana e Luís, com o apoio dos seus amigos também eles à procura do seu lugar no mundo, têm outro objectivo, não dito, mas sentido. O da coragem e do direito que todos temos de dizer “estou aqui e o mundo é também o meu lugar”. Não é o sucesso material que os comanda, mas o existencial, mais difícil, subjectivo e, por isso, mais precioso.

Comoveu-me também a audácia de lhes oferecer um final feliz, algo muito raro nos tempos que correm. E, no entanto, que melhor coisa se pode oferecer a alguém: a possibilidade da coragem que anda de mãos dadas com a liberdade, a promessa de toda uma vida para se descobrir, para se construir, não sendo outra coisa se não aquilo que estamos destinados a ser?

Afinal, sei porque motivo me ocorreu Balzac, esse céptico de pluma abençoada. É que terminado o filme percebi que ao contrário do que o mestre francês vaticinava ser adulto, crescer, não tem de se traduzir em ganhar experiência no sentido de perder as ilusões. Pode significar algo muito diverso: fazer do que os outros pensam ser uma ilusão a realidade. Que diferentes são os jovens hoje!

Um Natal muito feliz a todos e um Ano Novo cheio de descobertas são os desejos desta vossa cronista.

Lobo e Cão é um filme português de Cláudia Varejão em exibição nos cinemas. Ilusões Perdidas, de Honoré de Balzac, tem várias edições em português, a última das quais da D. Quixote.

PANO PARA MANGAS

Margarida Vargues

A TERAPIA DO NADA

Vivia num constante dilema entre o querer estar noutro qualquer lugar e o ficar ali, no aconchego de umas meias quentes, num livro ou numa qualquer receita inventada à pressa com o que tinha a certeza de não haver no frigorífico. Queria fazer outras coisas, experimentar a novidade, porém não se decidia que rumo tomar. Apetecia-lhe fazer as malas, mas a ideia de as desfazer no regresso fazia com que a ideia do frigorífico quase vazio falasse

mais alto. O cozinhar era, indubitavelmente, uma terapia.

Herdara o gosto pelos temperos de um bisavô que nunca chegou a conhecer. Dele, restavam apenas algumas receitas, repetidas vezes sem conta nos almoços em família, nunca passadas para o papel, pois viviam nas papilas gustativas, nas colheres de madeira escurecidas pelo uso, na memória

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A TERAPIA DO NADA

olfactiva dos pratos acabados de cozinhar por - játrês gerações. Nenhuma tinha título. Nenhuma seguia uma lista de ingredientes. Estava tudo cá dentro. Onde? Na cabeça? Na ponta dos dedos que, como por magia, lhes davam sabor e nas lembranças que só podem ser criadas pelo coração.

Naquela manhã acordou ao som de uma chuva miudinha, aborrecida, entediante. Ouvia-a a bater nas janelas e nas árvores lá fora. Saiu da cama puxada pela promessa de um telefone a tocar. Ficou-se pela promessa … o telefone.

As horas foram, então, arrastadas, por entre a melancolia de um dia de inverno e o receio de uma calçada polida e escorregadia. Até o abrir da porta, ao regressar, parecia mais lento que o habitual. Pareceulhe ouvi-la ranger. Os sapatos ficaram à entrada, junto de outros que, silenciosamente, também lá se quedavam. Ainda os olhou com o desinteresse com que se olha algo que não existe. Desabotoou o sobretudo e fê-lo escorregar pelas costas abaixo. Depois do arrepio, pendurou-o no cabide. Ao lado, o espelho reflectiu um rosto cansado, sem cor e de olheiras profundas. Olhou-se, esboçou um sorriso e pensou: “- É do tempo… Isto passa!”. Passava sempre… O que lhe fazia falta naquele momento?

A promessa do telefone, que permanecia em silêncio. Avançou uns passos.

A cozinha que era só sua. Não gostava de a partilhar. A regra era: ninguém podia entrar enquanto lá estivesse. Era ali que punha as ideias em ordem, ou as desalinhava, consoante a necessidade. Era ali que curava as dores de crescimento e se tornava mais forte a cada volta do moinho de pimenta sobre um qualquer tacho fumegante. Era isto que - na verdade - lhe fazia falta. De quando em quando precisava daquele silêncio, daquela paz, do conforto que dali advinha O verdadeiro conceito de templo, em que o altar era o fogão. Um deus? Não. Na cozinha não

queria um deus. Bastava-lhe o frigorífico vazio de nada.

Tinha a mania que sabia escrever. Tinha a mania que sabia dançar. Tinha a mania que sabia cozinhar. Eram suas, as manias. Antes estas, que outras. E dava-lhes cor, vida, cheiro e sabor.

Abriu-o. Ao frigorífico. Dentro do nada encontrou umas sobras de Roquefort, uma taça meia de vibrantes bagos de romã, espinafres e meia dúzia de cogumelos - ainda - frescos. Virou o olhar em direção à bancada e deparou-se com umas pêras escondidas no cesto, onde já tinha ido parar um intruso pão de centeio caseiro vindo do monte. Do armário baixou dois frascos: um com nozes e outro com mel. Ligou o forno. Cortou as pêras ao meio com precisão, arrancou-lhe o coração, e dispô-las num tabuleiro cerâmico com a ferida à vista. Meticulosamente, recheou-as de queijo e de nozes quebradas com a raiva dos dedos. Enquanto isso, o mel esperava pela sua vez que não tardou em chegar. Amornado pelas mãos, desceu num fio doce, suave e delicado. Era a cura que a ferida pedia. O calor do forno tomou conta do resto.

Um quarto de hora depois - mais coisa, menos coisa - uma vigorosa e fresca salada, temperada somente com um pouco de limão, encheu de cor a saladeira: o verde dos espinafres, o vermelho vivo da romã e o bege dos cogumelos, entretanto laminados. O acompanhamento perfeito para as perfumadas pêras ainda a fervilhar.

A mesa enchia-se daquele amor incondicional, temperado de memória e cheiros que vinham de outros tempos. Paz. Harmonia. Silêncio.

Silêncio? O telefone fazia-se, afinal, ouvir.

Carta aos que me quiserem ler...

Adelina Barradas de Oliveira
RÉ EM CAUSA PRÓPRIA

Olha, sabes... não há pesares, há existências.

Somos assim mesmo, complexos, sim e não, bom e mau, revolta e medo, coragem e fúria, heroísmo e covardia, bondade e perversidade....

Esse Deus que os homens inventaram e que nos quer perfeitos será real?

O autêntico aceita-te como és, porque sabe o que és, quem és, o que consegues ser e os medos que tens de ser ou de não gostarem do que és; conhece-te as fraquezas, os tropeços, as variações de humor, as crenças e os descréditos, não, não é as crenças e as descrenças.... é mesmo dos descréditos que te falo, dos teus, dos meus, os descréditos esses momentos que pesam e parece que não acabam, mas acabam.

Acho que é porque dizem que nos criou à sua imagem e semelhança...... sabe bem do que somos feitos.

Quando ficamos com muitos dias, muitos meses e muitos anos, entendemos tudo melhor, ... e o sentido das coisas é tão simples... basta apenas não colidires com elas, nem com os outros... basta existir e coexistir

Porque o que há é existências, aceita-as para que não se tornem pesares. Assim, devagarinho, colher a colher até ao fim, só mais uma,....como as mães fazem quando nos alimentam para que cresçamos, e nos façamos homens e mulheres.... já agora, de Boa Vontade.

Não tenhas crenças, não acredites tanto que és dono da verdade, que conheces a perfeição, a retidão de coração.... não almejes o topo porque não há topo.... há existências e coexistências.

Viaja muito se puderes, convive com os outros, ri e chora quando te der na gana, mas não agridas ninguém, nem com palavras, nem com actos, nem com omissões.... porque te mortificas...

Existe, inspira a vida todas as manhãs... mais um dia para descobrir e uma noite para retemperar o corpo

Apesar de tudo será Natal mais uma vez..

Se ainda não descobriste a felicidade que é deixar existir, e coexistir, entender as diferenças e aprender com elas, sentir a variedade da cor da pele, a força das diferentes culturas, as orações que chegam ao mesmo lado de ti como chegam ao mesmo lado do outro, se ainda não percebeste que resistes demasiado ao que tem necessariamente de acontecer... se não sabes lidar com o que não podes mudar... e ainda não sentiste que o Natal é tudo isso ... a tua existência é um pesar.

Então é Natal, há gestos, sorrisos.... no meio da ceia alegra-te porque tens família, casa, crianças, velhos, a tua família tem coisas para contar e memórias para te deixar, cozinhaste, tens a mesa posta, o País em Paz...

Então é Natal... nasce de novo, mas nasce! Existe! Coexiste!

Acredita!... em ti como uma criança acredita que tudo acontece porque é assim, tem de acontecer.

As crianças não têm crenças... elas apenas deixam existir... sabem de um Pai Natal que tem uns bolsos do tamanho dos sonhos.... Sabem de um menino de nome Jesus que não tinha nada, mas era rei porque era criança.

As crianças não têm crenças, não sabem de acontecimentos obrigatórios com guião e rituais,... ... acreditam na magia de deixar fluir a existência, sem pesares, apenas com o olhar atento a tanto Natal, o sentir das almas simples... como os lírios do campo que não trabalham nem fiam.

Um Feliz Natal. Sintam a Magia.... ela anda por aí. Existam e Coexistam.

Somos feitos de pós de estrelas.... é só preciso equilibrarmos as existências.

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O invisível para os olhos

Qualquer adulto já leu certamente o “Principezinho” de Antoine Saint-Exupéry (“Saint-ex” para os amigos) em criança, por recomendação (ou melhor, imposição diplomática) de um adulto que, movido das melhores intenções, achou ser um bom livro para crianças. Depois, sou a crer que a segunda leitura ocorre, normalmente, quando essa criança se torna adulta e decide, movida pela melhor das intenções, repetir o processo junto de uma outra criança a qual, se tudo correr bem, repetirá o processo anos mais tarde.

Decidi relê-la apenas para mim escolhendo, de entre vários exemplares em diversas línguas que habitam as

prateleiras da casa onde vivo, a obra anotada por José Luís Peixoto e ilustrada por um desenhador/tatuador de seu nome Hugo Makarov, fugindo assim às ilustrações originais do seu autor.

As anotações são como alguém que, num museu, nos chama a atenção para detalhes ora importantes, ora apenas divertidos tais como o facto de Morrissey iniciar o vídeo da canção “Suedehead” a receber um exemplar do “Principezinho” das mãos de um menino loiro, ou da versão do livro em dialecto “Toba” que assumiu o nome de “Caciquezinho” pois, de acordo com o anotador, esses indígenas sul americanos desconheciam o que seria

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CANTINHO

um príncipe não se surpreendendo, porém, que uma das personagens fosse uma serpente que fala.

Encontramos a rosa que cativou o pequeno príncipe deixando-me a certeza que esta não é mais do que a narração da relação do seu autor com Consuelo, sua companheira de vida sendo o principezinho nada mais do que Saint-Exupery e este, nada mais do que uma criança ingénua que, como tal, vê o mundo com umas cores diferentes daquelas com que os adultos a veem.

Lá está o bêbado, o rei, o homem de negócios e o vaidoso também, retratados por um tatuador que as pinta com cores. Desta vez, diferentes não só daquelas que os adultos veem, mas também daquelas que as crianças vislumbram, numa obra sobre a qual eu tenho, por razões pessoais, uma ligação especial e tendo por certo, como diz o autor, que o planeta terra tem muitos bêbados, vários reis (e rainhas também) e muitíssimos vaidosos.

Cada uma destas personagens habita o seu planeta minúsculo ficando o leitor com a certeza que planetas e asteroides cada homem tem os seus cabendo-lhe fazer com os mesmos o que bem entender sem, porém, se esquecer que nos tornamos eternamente responsáveis por aquilo que cativamos.

INVESTIGAÇÕES INCONCLUSIVAS

CASOS NUNCA RESOLVIDOS

O Assassino do Machado de Austin

O Assassino do Machado de Austin foi, supostamente, um criminoso em série que aterrorizou a cidade de Austin no Texas desde a véspera de Ano Novo em 1884 até à véspera de Natal de 1885, tendo-lhe sido atribuída a morte de sete mulheres, na sua maioria criadas, que eram arrastadas das suas camas e violadas antes de serem mortas à machadada ou com instrumentos cortantes. Algumas das vítimas mostravam sinais de terem sido atingidas com objectos pontiagudos nas orelhas ou na cara.

A primeira vítima seria uma cozinheira, mulata, de cerca de 25 anos de idade, chamada Mollie Smith, que, tendo sido retirada de noite do quarto onde dormia, seria encontrada no dia seguinte num pátio por trás de sua casa, quase nua, com a camisa em ripas e com um buraco na cabeça, possivelmente resultado de golpes de um machado encontrado com sangue na casa. Havia vestígios de uma luta desesperada no quarto dela - vidros partidos, mobília desarrumada, dedadas de sangue na porta, sangue nas almofadas, nos lençóis e no chão.

Um jornal de Austin descreveria que tinha ocorrido ‘um dos mais horríveis crimes que alguma vez um repórter foi chamado a

noticiar – um acto quase sem paralelo na atrocidade da sua execução’.

O namorado com quem vivia Mollie Smith também tinha sofrido cinco golpes na cara, um dos quais havia provocado uma fractura do osso orbital. No entanto, não tinha presenciado a cena do crime, tendo acordado com dores. Se logo a seguir ao crime se dizia que ‘não há pistas para quem tenha sido o perpetrador do acto sanguinário’, a investigação seria inconclusiva.

As dificuldades da investigação na altura são bem retratadas numa obra de ficção por Steven Saylor relativa aos crimes em série, sob o título A Twist at the End, publicada em 2000, na qual uma das personagens, Will Porter, diria, anos após o crime, numa conversa:

“Tem que se ter em atenção que isto foi uns bons dois ou três anos antes da invenção do Sherlock Holmes. Os nossos únicos métodos de detecção eram Texas Rangers reformados e detectives da agência Pinkerton.  Os Rangers iam à procura de foras-da-lei nas fronteiras; os Pinkerton infiltravam-se nos sindicatos e espiavam para os patrões. As pessoas

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não tinham as expectativas sobre humanas relativamente aos detectives de investigação que se têm habituado a ter com base em obras populares de ficção. A coisa mais próxima que tínhamos de um Sherlock Holmes eram os cães de Santo Humberto!”

No dia 6 de Maio, não se suspeitando ainda que estivesse à solta um assassino em série, apareceria morta uma outra mulher, chamada Eliza Shelley, uma criada negra com funções de cozinheira. Os contornos do crime eram, na verdade, semelhantes, e não só quanto ao tipo de vítima como também quanto à forma e circunstâncias do assassínio: o corpo dela seria encontrado na rua, com a camisa de dormir puxada para cima, e com golpes profundos na cabeça, resultantes de um objecto cortante, sendo que um deles parecia resultante de um machado. Aliás, o assassino tinha-a atingido com tal força e violência que o crânio estava quase separado em dois.

Vários jornais refeririam mais, explorariam precisamente os aspectos comuns entre este caso e o de Mollie Smith, de tal forma que o assassino receberia a alcunha de “Aniquilador de Criadas.” Um dos jornais pronunciar-se-ia mais uma vez quanto ao facto de não haver pistas, acrescentando os seguintes detalhes, que começavam por uma descrição do quarto dela: “As almofadas e os lençóis estavam cheios de sangue, e o quarto estava em grande

desordem. Tinham sido abertas duas arcas, cujo conteúdo tinha sido despejado no chão. Depois da matança, o homicida arrastou a vítima a partir da cama e colocou-a sobre uma coberta retirada de uma arca, retirou uma manta da cama e envolveu o corpo nela. Tratava-se da frieza de um inimigo. Nada foi encontrado no quarto que permitisse descobrir o perpetrador nem um machado, nem um objecto cortante ou algum bocado de ferro ou aço que pudesse ter estado por trás da acção sangrenta. Só foi descoberta uma coisa pelo Dr. Johnson, os vestígios de pegadas de um homem descalço no caminho do quarto dela para a rua e regressando desta. O solo é arenoso e as pegadas ficaram claramente marcadas. A impressão na areia revelou que o pé era curto e grosso.”

Pouco tempo depois, no dia 23 de Maio, Irene Cross, uma outra criada negra, seria atacada de forma semelhante no local da sua residência. Neste caso, a pessoa que a assaltara utilizara uma faca. Tinha-a golpeado com tal violência na cabeça que parecia ter tentado retirar-lhe o escalpe e o braço dela estava quase separado do resto do corpo. Estava a morrer quando chegaram jornalistas, um dos quais ainda falaria com ela: “Sabe quem fez isso?”, perguntaria.  Ela apenas murmurara, abanando a cabeça. No Austin Daily Statesman, uma parangona: “Mais matança. Mais uma mulher de cor

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Investigações Inconclusivas

horrivelmente esfaqueada por um inimigo desconhecido. Que escapou da cena do crime – Quando irá isto acabar?”

A quarta e a quinta vítimas seriam encontradas em finais de Agosto em locais próximos daquele onde fora assassinada Eliza Shelley. Rebecca Ramey tinha sido atingida durante o sono de maneira a ficar inconsciente e a sua filha Mary, de 11 anos, tinha sido arrastada para fora de casa, e tinha sido violada e esfaqueada na área das orelhas. Rebecca sobreviveria, mas não Mary (embora não viesse a morrer imediatamente do ataque).

Nesta altura a população de Austin passou a viver num estado de quase pânico. Por outro lado, o facto de não se conseguir descobrir o autor do crime levava a conclusões racistas e preconceituosas quanto ao criminoso, com base em apreciações de raça e claramente discriminatórias: “Todas as circunstâncias envolventes nestes assassínios indicam que foram planeados com argúcia, direccionados cuidadosamente e consumados inteligentemente. Nenhum negro ignorante, tal como um que está agora preso, cometeu o crime. Foram concebidos, especialmente o de domingo, por uma inteligência superior e será necessário um trabalho intelectual de alto nível para se descobrir o autor. Dificilmente o crime de domingo poderá ser imputado a um negro ignorante. A história de ultrajes a mulheres por negros prova este facto. Raramente matam deliberadamente as suas vítimas, e a experiência demonstra que invariavelmente, nove vezes em dez, deixam alguma pista conducente à sua identificação e prisão.”

No dia 26 de Setembro, Lucinda Boddy, cozinheira numa casa perto da universidade, doente e necessitando de cuidados, tinha ido ficar com a sua amiga Gracie Vance, criada numa residência. Gracie acordou

de noite ao sentir-se agarrada. Orange Washington saltaria da cama, mas seria atingido por um golpe de machado, que lhe racharia o crânio. O intruso virou-se então para Lucinda, provando-lhe uma fractura no crânio, e violando-a, sendo que esta viria a desmaiar.

Patsie Gibson, outra empregada, seria atingida também no crânio e na cara com um machado. Gracie seria então arrastada para fora do quarto, para uns arbustos, onde, tendo oferecido oposição, seria assaltada e finalmente silenciada com um tijolo atirado ao crânio. Lucinda tinha nesta altura recuperado a consciência e, com uma lanterna na mão, viu que estava outro homem no quarto, que lhe diria para não olhar para ele e lhe apagaria a luz. Em pânico, ela arremessou-lhe a lanterna e conseguiu correr para o exterior.

A preocupação era generalizada na cidade, num crescendo de percepção de falta de protecção policial. Curiosamente, apareceria a seguinte notícia precipitada num jornal de Austin, desta feita com o preconceito inverso: “Até agora, estes ataques têm sido perpetrados contra criadas negras, com uma excepção, e, tanto quanto podemos saber, por homens negros. Estas pessoas têm tanto direito à protecção quanto quaisquer outras, mas não temos a garantia de, caso tais assassinos não venham a ser punidos, que isto não se venha a estender a outras vítimas. Se for permitida a impunidade durante mais tempo, seremos uma manhã surpreendidos pelo anúncio de que uma família de bem foi assassinada na cama e está agora na altura de se considerar que todos os cidadãos se devem tornar guardiães da vida e da propriedade. ”

Terá sido uma premonição, uma sugestão? Na véspera de Natal de 1885 verificaramse novos ataques, mas diferentes no tipo de vítima então escolhida.  Depois de

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um concerto, Moses Hancock, acordou e encontrou a sua mulher, Sue Hancock, branca, morta no pátio de sua casa. Tinha sido levada da cama depois de ele se ter deixado adormecer numa cadeira.  Ela tinha sido atingida na cabeça por um machado, sendo que parte da lâmina tinha ficado presa no cérebro. Embora ainda não morta ao ser encontrada, estava inconsciente, e tinha sido violada.

Ao mesmo tempo, morria Eula Phillips, um modelo de mulher civilizada e moderna, residente num dos bairros mais ricos de Austin.  O seu corpo nú, “ultrajado”, foi encontrado num caminho perto da casa da casa do sogro onde vivia. O seu marido Jimmy tinha também sido atacado e jazia na cama, com ferimentos graves na nuca. Havia um machado no meio do chão. Uma pegada, claramente de homem, foi descoberta no pórtico da casa. Tratava-se de uma mudança no padrão de crime, e que afectaria largamente a comunidade branca. Uma notícia de jornal sairia com a seguinte parangona: SANGUE! SANGUE! SANGUE!  HORRÍVEL MATANÇA ONTEM À NOITE.  OS DEMÓNIOS TRANSFERIRAM A SUA SEDE DE SANGUE PARA OS BRANCOS.

Depois da véspera de Natal, os crimes de repente terminaram. Entretanto, iam sendo apontados suspeitos, como os maridos das últimas vítimas, que seriam até, alguns, julgados. Moses Hancock seria absolvido. Por outro lado, provar-se-ia que a pegada no pórtico era de um pé maior do que o do marido de Eula (mesmo com o peso da mulher se estivesse a carregá-la, como alertaria a acusação), e em todo caso não a sua. Mesmo assim, o marido viria a ser condenado no julgamento, embora posteriormente absolvido na segunda instância.

Tendo continuado a surgir suspeitos nas décadas seguintes, esta série de assassínios nunca foi, porém, resolvida. Houve naturalmente tentativas posteriores de associar o famoso criminoso inglês,

a quem foi dada a alcunha de Jack o Estripador, e que actuaria a partir de 1888, ao “Aniquilador de Criadas”. Logo após a ocorrência dos crimes na zona de Whitechapel em Londres, o Atchison Daily Globe no Kansas e o Daily Statesman no Texas, entre outros, estabeleceriam uma ligação destes casos com os ocorridos em Austin três anos antes, sendo apontada por exemplo a semelhança na origem social da maior parte das vítimas classe social baixa nas duas séries de casos.

Choca-nos, hoje, a irresolubilidade de todos estes casos, desde logo pela profusão de indícios deixados no local do crime – os cadáveres disponíveis de sete vítimas mortais, os testemunhos das vítimas sobreviventes, vestígios hemáticos e lofoscópicos nas dedadas de sangue na porta; uma arma do crime recuperada, uma pegada, etc.

Mas, infelizmente, e também nos dias que correm, houve, há e haverá sempre, casos policiais não solucionados e processoscrime a aguardar melhor prova. Por isso este título sugestivo (Investigações Inconclusivas – casos nunca resolvidos) de uma série de relatos simples, sem pretensões, de artigos de memória e meramente informativos, de alguns processos históricos de homicídios sem solução.

Os assassinatos de Austin - Austin Axe Murderer Jack the Ripper e Jack the Stripper Dag Hammarskjöld (Killings in the Congo) Massacre de Katyn – 1940 Sir Harry Oakes (The Harry Oakes Affair) Oscar Slater (Sherlock Holmes’ Real Case)

Ontem, como hoje, haverá sempre, por mais que se recorra à investigação, à ciência e se esforce a inteligência, enigmas insolúveis…

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Goodfellas ou a colaboração

premiada

Enfrentar e dar resposta eficaz à nova criminalidade, e, especificamente, à de colarinho branco e organizada, é tarefa árdua, verificando-se, cada vez mais, que a legislação penal e processual penal está desfasada da realidade. E, considerando a danosidade económica e social e a sua repercussão, à escala nacional e internacional, não há senão que considerar as propostas que lhes podem fazer face. Por essa razão, desde 1994, e na senda do direito da U.E., Portugal tem vindo a proceder a um aumento (e, essencialmente, especificação) legislativo e criação de entidades com competências específicas, tendo como objectivo dar uma resposta adequada a estes fenómenos. A Estratégia Nacional Anti-Corrupção (2020-2024) salienta o atentado deste tipo de criminalidade, contra os princípios fundamentais do Estado de Direito, a credibilidade e a confiança dos cidadãos nas instituições,

a desigualdade e o prejuízo social e económico que dela advém. Isto é, fere, de forma gravosa, a democracia nas suas bases.

A reformulação de meios e métodos de investigação penal, tornou-se, neste contexto, essencial. Não se estranha, pois, que o recurso ao direito premial se mostre ampliado. Direito premial, ao qual o nosso ordenamento não é estranho, desde logo, porquanto o Código Penal estabelece, no artº 72º, a possibilidade de atenuação especial da pena, considerando, entre outros, o arrependimento do agente do crime. Outros exemplos podem ser recordados. A legislação sobre a criminalidade organizada, criminalidade económicofinanceira (muitas vezes entrecruzada com aquela) e criminalidade contra o estado são reflexos do direito premial em Portugal.

Por vezes, a pena é atenuada de forma facultativa (artº 368º-A, n.º 9 CP), (artº

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SANDRA MOREIRA DA SILVA

8 da Lei 36/94), (arº 5 a) da Lei 20/2008) (artº 13º n.º 1 a) da Lei 50/2007), podendo considerar-se, inclusive, a isenção de pena ((artº 21º, 22º e 28º do DL 15/93), (artº 2º n.º 5; 3º, n.º 2; 4º n.º 13 e 5º n.º 2 da Lei 52/2003) (artº 87º nº3 da Lei 5/2006), noutros casos, é atenuada obrigatoriamente (artº 372º ss CP; (artº 374º - B n.º 2 a) CP e Lei 34/87; e artº 5-A n.º 3 da Lei 52/2003).

É neste âmbito que alguns ordenamentos jurídicos optam pela utilização da figura do delator/colaborador, cujo objectivo é a identificação de outros agentes, as suas actividades específicas no iter criminis, sua localização ou localização de bens, entre outras provas ou informações que permitam a obtenção de provas que se possam mostrar relevantes para a prossecução criminal, auxiliando ao desmantelamento de redes criminosas, que só é possível através de inside informations, que só quem está dentro da rede pode fornecer.

Importa, desde já, referir que o ordenamento jurídico português não contempla a figura da delação premiada, mas a da colaboração premiada. E esta distinção é absolutamente essencial – e não apenas semântica – para que não incorramos em erro aquando da análise do instituto. Até, porque, cremos, algumas das críticas de que é objecto, prendem-se com alguma confusão entre as figuras de delator e colaborador, como se verá adiante.

É-lhes comum a existência de um dos agentes que participou no crime denunciar – delatar – os outros (suspeitos ou já coarguidos), todavia, enquanto na delação existe um acordo negociado entre o delator e o Estado, personificado pelo MP, na colaboração essa “negociação” não é possível.

Na colaboração existe um “contributo processual de natureza probatória prestado por um arguido, mediante o qual dá a conhecer factos relevantes que implicam a sua responsabilidade penal e a dos demais arguidos (ou suspeitos).” A ajuda prestada é, portanto, auto e hétero-incriminatória.

Confessa factos, auto-incriminando-se, e delata/denuncia terceiros relativamente a factos que tenham efectiva conexão com a realidade investigada. (Brandão, 2019, p. 116) E enquanto nesta o MP não tem possibilidade de prometer o que quer que seja – apenas pode informar das eventuais vantagens de que poderá, eventualmente, vir a usufruir (redução de pena, suspensão, ou arquivamento, entre outros benefícios para o arguido ou para a sua família, como medidas assistenciais e de protecção pessoal, quando haja fundado receio de represálias graves) – uma vez que todas as possibilidades são equacionadas e decididas pelo juiz, passando pelo crivo do julgamento, na delação cabe ao MP a negociação da pena, ou a sua isenção, com o arguido. No direito comparado, ordenamentos como o espanhol, italiano, brasileiro e norteamericano optaram por esta última hipótese, ou, pelo menos, foram inspirados no plea bargaining americano, ainda que com nuances distintivas. Em termos práticos, este último sistema (nas versões guilty plea e nolo contendere plea) representa 97,7% das condenações criminais. (Santiago, 2021). A Regra 11 c) (1) das Federal Rules of Criminal Procedure estabelece expressamente que o acordo é entre o estado e o arguido, sendo o tribunal alheio à negociação, não havendo, portanto, controlo judicial, salvo nos casos em que a questão seja colocada em audiência (11, n.º 3, [A e B])

No plea bargaining é, aliás, frequente a negociação com o arguido por um outro crime, distinto do da investigação/acusação, desde que tenha uma pena abstractamente aplicável substancialmente mais baixa. Esta é uma questão, a nosso ver, inultrapassável, na medida em o arguido se dá como culpado por um crime que não cometeu. Não nos restam dúvidas de que esta opção consubstancia violações constitucionais. Já a colaboração, e não obstante as críticas da doutrina, deverá ser vista com outros olhos. Vejamos.

Escreve Eduardo Maia Costa: “o processo

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equitativo, essa criação distintiva e irrenunciável da nossa civilização, é desfigurado no seu “núcleo duro” pela justiça negociada”” (Costa, 2013, p. 97). De facto, se nos referirmos à negociação conforme é efectuada numa solução de delação premiada, concordamos com a afirmação.

Todavia, considerando o contexto em que foi pronunciada, sublinhando uma vertente contratual, na qual o juiz é mero homologador do préestabelecido pelo MP, gestor e interessado no processo, desvirtuando o seu papel, parece-nos não ser de subscrever.

O princípio da reserva de juiz (artº 32º n.º 9) não é violado com a figura do arguido colaborador, na medida em que é a ele que cabe decidir se a colaboração do delator foi ou não decisiva e, em função disso, avaliar e decidir sobre o benefício a atribuir. Acresce que o MP nada pode acordar ou prometer ao colaborador. E, no processo, pode, sim, sublinhar a contribuição deste na descoberta da verdade. Nem o MP, nem o juiz são interessados no processo, mais do que a própria comunidade.

A busca da verdade material decorre da lei (artº 340º CPP), atribuindo-se ao juiz um poder-dever de pugnar pela investigação da verdade histórica, observando os direitos fundamentais do arguido.

Neste sentido, “ao tribunal não pode ser subtraído ou diminuído o poderdever de instruir a causa sujeita a julgamento. A qualquer acordo há-de, por conseguinte, estar vedada a sua verificação à custa da realização dos princípios da investigação oficial (…) e da verdade processualmente válida.”

(Dias, 2012)

Alguma doutrina entende que além de se hipotecar a dialéctica acusação-juiz-defesa, os métodos colaboracionistas comportam um risco para a estrutura acusatória que molda o processo penal português, na medida em que consubstanciam momentos de cariz inquisitório. Assumindo-se que a colaboração do colaborador é voluntária e espontânea, e, só assim, aceite o seu contributo, não cremos que tal risco se verifique. Não obstante, reconhece-se que em alguns casos poderá existir um desequilíbrio entre as partes, mas esse decorre da má aplicação das regras do instituto. Por exemplo, nos Acórdãos do TRC de 25/06/2008, e STJ de 15/04/2010, dá-se conta de dois casos nos quais foi proposta a suspensão provisória do processo no crime de corrupção activa, nos termos do artº 9 da Lei 36/94, com a injunção da continuação de colaboração no processo, em ambos tendo havido concordância do JIC.

Injunção essa, inclusive, que, pelo menos num dos casos, contemplava a colaboração futura mediante depoimento na qualidade de testemunha. Ora, tal nunca poderia suceder se a SPP ainda decorresse, já que a qualidade do depoente era a de arguido, e não de testemunha (artº 133º n.º 1 CPP). E, no caso de ter havido desconexão de processos, o seu depoimento como testemunha só seria possível se em tal consentisse (artº 133º n.º 2 CPP).

Naturalmente, em tais casos existe uma pressão sobre o arguido colaborador, desde logo, pelo receio

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Sandra Moreira da Silva Goodfellas ou a colaboração premiada

da revogação da SPP, verificando-se um claro desequilíbrio, e, até coacção sobre aquele. Mas isso, repete-se, tem a ver com o uso manifestamente errado, dirse-á, ilegal, da manobra de diversão em causa, pois o contributo probatório terá que ter existido anteriormente, aquando da investigação, e não no futuro. Destarte, a SPP nunca poderá ser decretada sob condição de participação futura.

Outra crítica apresentada refere que a colaboração premiada viola o princípio do contraditório, previsto pelo artº 35º nº 5 CRP, e 322º n.º 2; 321º n.º 3; 327º; 348º; 355º; 360º n.º 1 e 2 CPP.

É verdade que a imputação que um arguido faz a outro tem o grande atractivo de ser feita por quem conhece o facto que está em juízo e, que, em simultâneo está a assumir a sua própria culpa. Mas, por causa desse peso, é necessário um juízo crítico rigoroso sobre o valor de tal imputação. (Durán, 1999) Teresa Beleza defende que as declarações do co-arguido, na medida em que sejam totalmente subtraídas ao contraditório, são um meio de prova particularmente frágil, que, não sendo proibido, não deve ser considerado suficiente para basear uma pronúncia, e, menos ainda, para sustentar uma condenação. (Beleza, 1998). Porém, as declarações são válidas e processualmente admissíveis, com base no artº 125º CPP (neste sentido, expressamente, o Acórdão do STJ de 12/03/2008), e a CRP não o contradiz. Tal admissibilidade com colide com o catálogo de direitos dos co-arguidos.

O eixo fundamental é que o depoimento incriminatório esteja sujeito às mesmas regras de qualquer outro: às regras da investigação, da livre apreciação e do princípio do in dubio pro reo. Assegurado que estejam, não subsistem argumentos para a invalidade de tal meio de prova. (Cabral, 2020)

É necessário que o depoimento seja

corroborado por dados periféricos objectivos, que demonstrem a verosimilhança da incriminação, assim dissipando qualquer suspeita objectiva, mas nada impede tais declarações, como entendeu, e bem, a nosso ver, o STJ, em acórdão de 20/06/2001, “sejam elas ou não incriminatórias ou agravantes da responsabilidade de outros intervenientes nos factos criminosos”, e em acórdão de 12-03-2008, não colidindo “com o catálogo de direitos que integram o estatuto inerente àquela situação, mostrando-se adequada à prossecução de legítimos e relevantes objectivos de política criminal, nomeadamente no que toca à luta contra a criminalidade organizada.”

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( CONTINUA...)

E O MAR LOGO ALI

Ana Gomes

Era uma faculdade muito opressiva (…) Quando ali entrei com 17 anos (…) já tinha havido o Maio de 1968 em França e o movimento de Coimbra de 1969 (…) no meio daquilo lia-se muito, falava-se de política, falava-se de tudo e fazia-se.

Aurora Rodrigues, Gente comum - Uma história na Pide, 2022, edições Parsifal

Porque é que as pessoas escrevem memórias na forma de um livro? Porque se não o queimarem, é uma voz que pode ser multiplicada por tantas quantas as dos potenciais leitores, agora e no futuro.

Quem são hoje os estudantes que entram numa Faculdade de Direito? Defendem causas? Falam de política? Falam de tudo? Fazem? Os futuros juristas do nosso país têm voz para se fazerem ouvir e mãos para fazer?

Dora anda à toa pelos corredores à procura da sala. Tudo é enorme. O seu metro e meio parece ainda mais pequeno quando comparado com as paredes, altíssimas. Calhou encontrar um amigo de infância no primeiro dia. Sorriu-lhe. Ele, com ar de quem já conhecia os cantos à casa, não respondeu. Entrou receosa na aula de Direito Constitucional I. Chegou a pensar que o rapaz poucos anos mais velho viesse a receber os alunos à porta, como assistente do Professor. O rapaz estava na sala, mas numa das cadeiras do anfiteatro, como aluno. Dora voltou a sorrirlhe. Não houve resposta. Mesmo assim, sentou-se ao seu lado, como à procura de algo familiar, próximo, confortável. Das breves palavras que acabaram por trocar, ficou logo claro o propósito de estar ali, queria fazer

coisas, sim, queria fazer leis. Estava integrado numa juventude partidária e já participava em grupos de discussão. Dora, 17 anos, sentiu-se diminuir abaixo do metro e duvidar sobre se devia estar ali.

Numa das primeiras aulas houve debate. Aos alunos tinha sido enviado o texto do art. 27.º da Constituição, nas quatro versões, desde 1976 até 1997, para, a partir daí, explorarem o tema do direito à liberdade. Dora, estudiosa e com espírito crítico apurado (obrigada, professor de Filosofia!, obrigada família pelas conversas à mesa!), lá foi lendo e tentando compreender o significado das palavras que, com certeza, naquele documento, tomavam um sentido preciso.

PRIMEIRA OBSERVAÇÃO:

afirma-se o direito no n.º 1; garante-se o direito no n.º 2, ao afirmar que ninguém pode ser privado da liberdade a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança, isto é, só um Tribunal pode mandar privar alguém da liberdade e, apenas e só, quando haja condenação pela prática de um crime que admita pena

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de prisão; limita-se o direito no n.º 3 (aprendizagem inaugural do que virá a ser o estudo das normas: regra e exceção).

SEGUNDA OBSERVAÇÃO:

ao longo das revisões de 1982, 1989 e 1997 o n.º 3, o da limitação do direito à liberdade, tem vindo a crescer, de duas para oito alíneas.

TERCEIRA OBSERVAÇÃO:

além de o Tribunal poder privar alguém da liberdade, outras entidades têm tal competência, mas em casos e por tempo limitado.

O rapaz interveio para dizer que em breve haveria a alínea i)

para prever o confinamento ou internamento por razões de saúde pública de pessoa com grave doença infectocontagiosa, pelo tempo estritamente necessário, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente.

E sem hesitar, perante as bocas que se abriam de espanto, lá foi justificando o projeto de revisão constitucional apresentado pelo seu partido.

Dora abriu o tablet e encontrou o projeto e viu enunciadas as principais propostas. Nada. O rapaz tinha metido água … Mesmo assim, foi lendo o texto e lá estava, no meio, a proposta de inclusão da alínea i).

Ao contrário das outras alíneas, quase todos os portugueses, quase todos os habitantes de Portugal, muitas das pessoas que pisaram território nacional já tinham vivido a experiência da alínea i) e até além dela.

Todos os alunos já tinham recebido ordens para ficar em casa, muitos tinham visto a polícia a visitá-los para saber se estavam a cumprir a ordem de confinamento do delegado de saúde, comunicada pelo diretor de turma. Alguns receberam, dias depois, um telefonema a perguntar se sentiam bem, se tinham sintomas, e determinando que deviam ficar assim 15 dias, mesmo sem doença. Rapidamente a discussão evoluiu com o relato de casos pessoais e o professor deixou correr, pondo apenas alguma ordem nos depoimentos.

- Ligaram ao meu pai e eu tinha faltado à escola nos últimos dias antes da turma ter ido toda para casa. Apesar disso tinha que ficar os mesmos 15 dias em casa, que mais um dia menos um dia, não faria diferença.

- A PSP tocou à campainha. Foi um susto. Nunca tinha sentido isso. Sabia ao que vinham porque uma amiga já me tinha contado. Logo avisaram que se eu saísse que cometia um crime de desobediência. Fiquei com medo.

- Eu estive assim dois meses. Ia à escola um dia e outros quinze em casa.

-Os pais da minha turma organizaramse e fomos ao Tribunal. O Juiz determinou a nossa imediata libertação.

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O professor perguntou ao rapaz que apresentara a alínea i):

- Porque achas que há essa proposta de inclusão de uma nova alínea ao art. 27.º, n.º 3? As norma regem para o futuro e acabaste de ouvir relatos passados?

- Porque pode haver necessidade de, no futuro, voltar a prender as pessoas em casa ou numa instituição, e na verdade, a Constituição não previa essa situação –resposta do aluno.

- Estamos mesmo perante uma situação de privação da liberdade? – continuou o Professor.

- Então, o homem que agride a mulher fica em prisão domiciliária e eu que fico em casa, porque me dizem que se sair pratico um crime, não estou presa? – Dora não se conteve.

A sucessão de depoimentos pessoais passou a discussão de argumentos sobre cada uma das palavras da dita alíneaconfinamento e internamento?

O que é uma grave doença?

Quem é a autoridade judicial competente ? - e sobre a justificação de privar a pessoas da liberdade.

De caminho, ainda se passou pela China. No fim da aula, o professor estava visivelmente contente.

TEMOS TURMA!

No quadro interativo, abriu a página do Tribunal Constitucional onde constava jurisprudência relativa à pandemia. Trabalho: escolher um acórdão e comentar. Quem quisesse poderia também analisar o texto da alínea i) e defender ou contestar a sua inclusão na Constituição.

Dora soube logo que, na aula seguinte, iria crescer até ao teto, bem longe do rapaz com quem tinha partilhado a infância.

O IMAGINÁRIO NA JUSTIÇA

Andava há muito para escrever umas linhas, mas, sempre que pensava no assunto, fervilhavam imensas ideias na minha mente, fragmentadas, fazendo-me constantemente dispersar quanto ao meu propósito.

Resolvi, então, delimitar o tema a algo que estivesse no domínio do meu conhecimento, pois, com a pretensão de ser eclético, corria o risco de me tornar fastidioso ou ininteligível, porque escrita livre não é, seguramente, a minha vocação assumida. Sou mais de falar e pensar, mas, acima de tudo, de observar e escutar atentamente o que me rodeia, com o possível e desejável espírito crítico.

Foi, assim, com fulgor, que, num turbilhão de pensamentos, me deixei abraçar por Morfeu, começando a sonhar que vivia numa sociedade evoluída, humanista, com uma visão política e social séria, e a pensar como seria se se perdesse este fio condutor de ética, de responsabilidade, de transparência, de visão estratégica, de são exercício da cidadania, dando enfâse à Justiça, pilar fundamental de qualquer Estado de Direito.

Imaginei, então, apreensivo, que a Justiça se

encontrava cada vez mais fragilizada por parca ou inexistente aposta numa verdadeira reforma estrutural a fazer-se no seu seio.

Imaginei um Estado em que as instituições que gravitavam na órbita da Justiça eram elas próprias incumpridoras da lei, o que, manifestamente, a descredibilizava.

Imaginei haver uma Lei de Política Criminal (LPC), caduca, por culpa objetiva e subjetiva do legislador, cuja função seria determinar, com periodicidade bienal, os objetivos, prioridades e orientações de política criminal.

Imaginei, no defluir dos propósitos da Lei Quadro da Política Criminal, que essa LPC em nada contribuía para a celeridade dos processos, por serem tantas as exceções consagradas que, praticamente, se transformariam em regra, ressalvando a patente discriminação entre ilícitos penais que merecem constitucional e legalmente idêntica dignidade de tratamento e a eventual declaração ou juízo de inconstitucionalidade que desta iniquidade poderia advir.

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Imaginei que a duração média de conclusão de um processo crime se cifrava nos 8 meses, sublinhando, todavia, que a esmagadora maioria dos findos, designadamente os que corriam termos nos juízos de pequena criminalidade, sê-lo-iam por via da aplicação de medidas de consenso e diversão processual, como a suspensão provisória do processo ou o arquivamento com dispensa de pena, o que desmistificava, em parte, as médias reclamadas.

Imaginei, por outro lado, que os crimes de branqueamento ou corrupção, crimes de investigação prioritária na LPC, tinham uma duração média de, respetivamente, 14 e 11 meses, não olvidando que parte substancial da criminalidade económica tivesse lapsos de tempo muitíssimo mais alargados quanto à sua conclusão nas várias fases processuais, designadamente, nas fases de inquérito e instrução, durando, por vezes, longos anos.

Imaginei, além da jurisdição comum, que, na jurisdição administrativa e fiscal, o tempo médio de duração de um processo administrativo se fixava em 31 meses e, no que tange a processos fiscais, em cerca de 50 meses.

Imaginei que estas crónicas, extensas e, por tal, indesejáveis marchas processuais redundavam numa violação do direito à realização da Justiça num prazo razoável, conforme dispõe, v. g., o artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Imaginei, de outra sorte, que havia uma politização e, quiçá, partidarização da Justiça, com casos tão flagrantes que envergonhariam qualquer cidadão ou cidadã, como, a título meramente exemplificativo, um processo de escolha de magistrado/a para a EPPO (Procuradoria de Justiça Europeia) ou uma querela fútil sob a (in)admissibilidade legal de renovação de mandato de Procurador(a)-Geral da República.

Imaginei, nesse registo de ingerência, que as designações para cargos dirigentes e de chefia, em entidade organizada hierarquicamente sob dependência do membro do Governo responsável pela área da Justiça, se faziam, todas elas, unicamente sob proposta do dirigente máximo,

sem qualquer procedimento concursal, caso único na Administração Pública, tornando-se, assim, um porto de abrigo para família, amigos e «homens de mão», independentemente da (in)competência, e, por isso, uma incubadora de nepotismo, de relações tentaculares, de opacidade e abuso de poder, minando qualquer possibilidade aos demais que pugnavam pela transparência e pelo direito legítimo de acesso a cargo dirigente ou de chefia.

Imaginei, igualmente, que tal entidade se tornava numa espécie de «braço armado» do poder político vigente, atenta a dependência hierárquica e a competência e atribuições, abrindo, deste modo, caminho à violação do princípio da separação de poderes, sem prejuízo da sua lídima interdependência, o que, obviamente, não se

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O imaginário na Justiça

coadunaria com os princípios de um Estado de Direito.

Imaginei que o Ministério Público, órgão constitucional, cuja principal competência é representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, tinha sob sua direção e dependência funcional entidade coadjuvante, a qual, por sua vez, se encontrava na dependência hierárquica do membro do Governo responsável pela área da Justiça, o que, em bom rigor, configuraria um risco iminente, por exemplo (mas não só), ante a criminalidade económico-financeira registada e a natureza dos seus agentes quando titulares de cargos políticos ou altos cargos dirigentes.

Imaginei, ainda, que o titular de um alto cargo dirigente na órbita da Justiça, fazia, impunemente, declarações públicas intoleráveis, reiterando-as, ao lançar labéus, desprovidos de fundamento legal ou factual, sobre outros atores judiciários, sem quaisquer consequências civis, disciplinares e/ou criminais, em clara violação dos princípios gerais de ética contidos no Estatuto do Pessoal Dirigente dos Serviços e Organismos da Administração Pública, continuando, porém, e insolitamente, a merecer confiança do superior hierárquico, isto é, do titular do cargo político a quem devia obediência.

Imaginei que o mais alto dirigente na entidade inspetiva ministerial manifestava, amiúde, tolerância para atos e factos reconhecidamente menos claros ou ilícitos aquando praticados por dirigentes e chefias, sendo magnânimo com estes, embora, ao invés, contundente com os demais trabalhadores, também alegadamente prevaricadores.

Imaginei que em inúmeros tribunais subsistiam condições terceiro-mundistas para o exercício da nobre função de julgar, como, por exemplo, a

realização de debates instrutórios ou audiências de discussão e julgamento em salas decrépitas ou em contentores, a chover copiosamente no seu interior, ou, ainda, a falta de papel para uma simples citação ou notificação, mostrando que a solenidade exigida para a realização da Justiça não passava de uma vã quimera.

Imaginei, pasme-se, que do valor atribuído à Secretaria-Geral do Ministério da Justiça pelo PRR (10,35 milhões de euros), mais de metade (5,5 milhões de euros) se destinava à Unidade de Supervisão da Execução do PRR, de forma a assegurar a melhor articulação e economia de esforços entre as entidades envolvidas, reforçando a capacidade organizativa central, associada à tutela e com a possibilidade de apoiar as diferentes fases da execução dos projetos, desde a sua conceção à análise de impacto e à gestão de risco, ou, em resumo, destinando-se à criação de sinecuras, para não utilizar o nome masculino mais conhecido na linguagem popular.

Imaginei que esta quase distopia se encontrava provada e era, no mínimo, do conhecimento do membro do Governo responsável pela área da Justiça.

Súbita e abruptamente, eis-me a despertar, do modo representativo, da dimensão paralela, para a vida real, constatando que a fértil imaginação se confunde, afinal, com a realidade e, pior, persiste na espuma dos dias, pois os problemas inerentes à Justiça e seu funcionamento existem factualmente, mantêm-se e, por este andar, têm, até, tendência a agudizar-se.

Admito, contudo, laborar em equívoco, ante a declaração da atual ministra da Justiça, feita, à guisa de conclusão, e diametralmente oposta ao que se perceciona, aquando da discussão na especialidade

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do Orçamento do Estado para 2023, na Assembleia da República, afirmando que o ministério da Justiça estava «com as pessoas, pelas pessoas e para as pessoas, estamos a fazer acontecer».

Incréu, questionei-me: além dos persistentes problemas, como a falta de recursos humanos e materiais, da imperatividade de revisões e/ou reformas estruturais em várias áreas e estruturas orgânicas, da quase inexistência de propostas sustentadas e exequíveis para uma verdadeira administração da Justiça e dos seus operadores, o que acontece, realmente?! Parece-me, admitindo, reiteradamente, estar equivocado, que nada de novo e importante, trazendo-me à memória a frase batida do Príncipe de Falconeri, na obra de Giuseppi di Lampedusa, «O Leopardo», quando este alvitra, para se salvar, que «tudo deve mudar para que tudo fique como está»!

Apercebi-me, outrossim, que a aludida ministra, referiu que o Orçamento do Estado «reforça o rumo que traçámos, e que permitirá que, em 2023, todo o trabalho de planificação, de racionalização e de estabelecimento de prioridades – um trabalho invisível que, por isso, deixa escondida a monumentalidade da sua dimensão – possa emergir e revelar-se».

Após o torpor da alvorada, e já plenamente acordado, fiquei – e continuo – expectante sobre o desvendar desse profícuo trabalho oculto, a aguardar a Revelação, o que se esconde sob o véu da monumentalidade, pois esta nossa Justiça, que se quer digna, efetiva, progressista e prestigiada, está, há muito, a necessitar de uma verdadeira Ressurreição.

A rematar, por mera curiosidade histórica, relembrese o que, há cerca de 600 anos, na afamada e, por incrível que pareça, muito atual Carta de Bruges, datada de 1426, escrevia o Infante D. Pedro, o das Sete Partidas, a seu irmão, o Príncipe D. Duarte, futuro rei de Portugal, sobre a Justiça:

A justiça parece só existir em Portugal na cabeça do rei e do seu herdeiro; e dá ideia de que lá não sai, porque, se assim não fosse, aqueles que têm por encargo administrá-la comportar-se-iam mais honestamente. A justiça deve dar a cada um aquilo que lhe é devido e deve dar-lho sem delongas [...]. O grande mal está na lentidão da justiça.

Pois é ...

O covid e a guerra justificam quase tudo nos dias que vão correndo.

O covid e a guerra permitem quase tudo nos dias que vão correndo.

O covid e a guerra não permitem quase nada nos dias que vão correndo.

Mas quem é que se entende no meio de toda esta bagunçada?

- Depende? Depende de quê?

- Pois depende de tudo: do dia, do clima, das circunstâncias, das pessoas que estão presentes, enfim, e resumindo, depende do politicamente correcto.

- E, afinal de contas, o que é politicamente correcto?

- Aí é que está o cerne da coisa. É mais ou menos o contrário daquilo que deve ser.

- O contrário? Como é que isso pode sercomo deve ser?

Já ninguém sabe como se comportar. Tudo é global, exposto, questionado. Não há regras - ou só há regras e quem as dita faz gala em não as cumprir.

E mais do que nunca, a questão é pertinente:

- Você corta a etiqueta?

- Eu sei lá. Depende .... - Depende? - Pois, depende!

- Poder, poder, não devia. Mas pode! E, de mansinho, aproveitando a boleia do covid, a moda pegou. Já ninguém diz o que verdadeiramente pensa. Ou se cala - o que acontece demasiadas vezes, ou grunhepara ficar a dúvida no ar, ou afirma com convicção o que jamais pensará. Raras vezes, nos dias de hoje, temos a sensação do discurso livre, franco, aberto, da discussão acesa - essa mesmo, de onde por vezes nasce a luz ou que nos atira para a escuridão ou ainda que nos faz explodir para o infinito.

- De facto ....

- É um facto, sim! E é irritante, revoltante, angustiante, desarmante ...

- Mas, o que é que tudo isso tem a ver com cortar ou não a etiqueta? Não estou bem a ver ....

- Ora, tem tudo! Porque agora a pergunta mudou, inverteu-se, a pergunta agora é:

COMÀSVOLTASAETIQUETA

você não corta a etiqueta? - Hum ...

Não, ainda não endoideci, e, sim, era eu a falar com o meu umbigo.

E nesta pequena desconversa misturam-se expressões. palavras, ideias que provocam estes estados de alma. Palavras que nos atiram à cara com a maior desfaçatez e leviandade, esquecendo o peso que elas têm para quem a liberdade, a ética, os direitos humanos, o respeito pelo próximo, a verdade, a educação, importam verdadeiramente.

Não é preciso ir longe. Este Outono deunos tantos exemplos de não verdade, não etiqueta, não direitos humanos e tantos mais nãos, que só queremos que o ano acabe a correr para ver. se o novo, nos traz algo de novo. E é isto!

Pois podíamos ter falado do Natal, do

VOCÊ CORTA A ETIQUETA?

nascimento do Menino Jesus, dos presentes, da Família.

E, afinal, talvez tenhamos falado. Esta é seguramente uma boa altura para fazer balanços e uma altura tão boa, como outra qualquer, para reflectir e mudar de rumo - ou não.

E afinal quanto à etiqueta? Cortamos? Não cortamos?

Um Santo Natal

Boas Festas Um Bom Ano

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MARGARIDA DE MELLO MOSER.

O MEU NOME

NOME É GAL...

Fotografias de Fernando Corrêa dos Santos...
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