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O Mar Logo Ali Ana Gomes

E O MAR LOGO ALI

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Ana Gomes

Era uma faculdade muito opressiva (…) Quando ali entrei com 17 anos (…) já tinha havido o Maio de 1968 em França e o movimento de Coimbra de 1969 (…) no meio daquilo lia-se muito, falava-se de política, falava-se de tudo e fazia-se. Aurora Rodrigues, Gente comum - Uma história na Pide, 2022, edições Parsifal

Porque é que as pessoas escrevem memórias na forma de um livro? Porque se não o queimarem, é uma voz que pode ser multiplicada por tantas quantas as dos potenciais leitores, agora e no futuro.

Quem são hoje os estudantes que entram numa Faculdade de Direito? Defendem causas? Falam de política? Falam de tudo? Fazem? Os futuros juristas do nosso país têm voz para se fazerem ouvir e mãos para fazer?

Dora anda à toa pelos corredores à procura da sala. Tudo é enorme. O seu metro e meio parece ainda mais pequeno quando comparado com as paredes, altíssimas. Calhou encontrar um amigo de infância no primeiro dia. Sorriu-lhe. Ele, com ar de quem já conhecia os cantos à casa, não respondeu. Entrou receosa na aula de Direito Constitucional I. Chegou a pensar que o rapaz poucos anos mais velho viesse a receber os alunos à porta, como assistente do Professor. O rapaz estava na sala, mas numa das cadeiras do anfiteatro, como aluno. Dora voltou a sorrirlhe. Não houve resposta. Mesmo assim, sentou-se ao seu lado, como à procura de algo familiar, próximo, confortável. Das breves palavras que acabaram por trocar, ficou logo claro o propósito de estar ali, queria fazer coisas, sim, queria fazer leis. Estava integrado numa juventude partidária e já participava em grupos de discussão. Dora, 17 anos, sentiu-se diminuir abaixo do metro e duvidar sobre se devia estar ali.

Numa das primeiras aulas houve debate. Aos alunos tinha sido enviado o texto do art. 27.º da Constituição, nas quatro versões, desde 1976 até 1997, para, a partir daí, explorarem o tema do direito à liberdade. Dora, estudiosa e com espírito crítico apurado (obrigada, professor de Filosofia!, obrigada família pelas conversas à mesa!), lá foi lendo e tentando compreender o significado das palavras que, com certeza, naquele documento, tomavam um sentido preciso.

PRIMEIRA OBSERVAÇÃO:

afirma-se o direito no n.º 1; garante-se o direito no n.º 2, ao afirmar que ninguém pode ser privado da liberdade a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança, isto é, só um Tribunal pode mandar privar alguém da liberdade e, apenas e só, quando haja condenação pela prática de um crime que admita pena

de prisão; limita-se o direito no n.º 3 (aprendizagem inaugural do que virá a ser o estudo das normas: regra e exceção).

SEGUNDA OBSERVAÇÃO:

ao longo das revisões de 1982, 1989 e 1997 o n.º 3, o da limitação do direito à liberdade, tem vindo a crescer, de duas para oito alíneas.

TERCEIRA OBSERVAÇÃO:

além de o Tribunal poder privar alguém da liberdade, outras entidades têm tal competência, mas em casos e por tempo limitado.

O rapaz interveio para dizer que em breve haveria a alínea i)

para prever o confinamento ou internamento por razões de saúde pública de pessoa com grave doença infectocontagiosa, pelo tempo estritamente necessário, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente.

E sem hesitar, perante as bocas que se abriam de espanto, lá foi justificando o projeto de revisão constitucional apresentado pelo seu partido.

Dora abriu o tablet e encontrou o projeto e viu enunciadas as principais propostas. Nada. O rapaz tinha metido água … Mesmo assim, foi lendo o texto e lá estava, no meio, a proposta de inclusão da alínea i).

Ao contrário das outras alíneas, quase todos os portugueses, quase todos os habitantes de Portugal, muitas das pessoas que pisaram território nacional já tinham vivido a experiência da alínea i) e até além dela. Todos os alunos já tinham recebido ordens para ficar em casa, muitos tinham visto a polícia a visitá-los para saber se estavam a cumprir a ordem de confinamento do delegado de saúde, comunicada pelo diretor de turma. Alguns receberam, dias depois, um telefonema a perguntar se sentiam bem, se tinham sintomas, e determinando que deviam ficar assim 15 dias, mesmo sem doença. Rapidamente a discussão evoluiu com o relato de casos pessoais e o professor deixou correr, pondo apenas alguma ordem nos depoimentos.

- Ligaram ao meu pai e eu tinha faltado à escola nos últimos dias antes da turma ter ido toda para casa. Apesar disso tinha que ficar os mesmos 15 dias em casa, que mais um dia menos um dia, não faria diferença.

- A PSP tocou à campainha. Foi um susto. Nunca tinha sentido isso. Sabia ao que vinham porque uma amiga já me tinha contado. Logo avisaram que se eu saísse que cometia um crime de desobediência. Fiquei com medo.

- Eu estive assim dois meses. Ia à escola um dia e outros quinze em casa.

-Os pais da minha turma organizaramse e fomos ao Tribunal. O Juiz determinou a nossa imediata libertação.

O professor perguntou ao rapaz que apresentara a alínea i):

- Porque achas que há essa proposta de inclusão de uma nova alínea ao art. 27.º, n.º 3? As norma regem para o futuro e acabaste de ouvir relatos passados?

- Porque pode haver necessidade de, no futuro, voltar a prender as pessoas em casa ou numa instituição, e na verdade, a Constituição não previa essa situação – resposta do aluno.

- Estamos mesmo perante uma situação de privação da liberdade? – continuou o Professor.

- Então, o homem que agride a mulher fica em prisão domiciliária e eu que fico em casa, porque me dizem que se sair pratico um crime, não estou presa? – Dora não se conteve.

A sucessão de depoimentos pessoais passou a discussão de argumentos sobre cada uma das palavras da dita alínea - confinamento e internamento?

O que é uma grave doença?

Quem é a autoridade judicial competente ? - e sobre a justificação de privar a pessoas da liberdade.

De caminho, ainda se passou pela China.

No fim da aula, o professor estava visivelmente contente.

TEMOS TURMA!

No quadro interativo, abriu a página do Tribunal Constitucional onde constava jurisprudência relativa à pandemia. Trabalho: escolher um acórdão e comentar. Quem quisesse poderia também analisar o texto da alínea i) e defender ou contestar a sua inclusão na Constituição.

Dora soube logo que, na aula seguinte, iria crescer até ao teto, bem longe do rapaz com quem tinha partilhado a infância.