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DEZEMBRO 2023 59º Edição

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Indíce DEZEMBRO 2022

04 ....... Pano para Mangas | Margarida Vargues

06 ....... Flores na Abíssinia | Carla Coelho

10 ....... Protecção internacional (...) | Julieta Monginho

14 ....... Ré em Causa Própria | Adelina Barradas de Oliveira

16 ....... O luto |

Teresa Henriques de Almeida

18 ....... Há relógios inquebráveis, simples e respeitadores do Sol | José Luís Outono

20 ....... Liberdade e dignidade negadas | Nélson Faria de Oliveira

24 ....... O Mar Logo Ali | Ana Gomes

26 ....... O meu computador | Lícinia Quitério

28 ....... Cantinho do João | João Correia

DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA DESIGN E PRODUÇÃO: DIOGO FERREIRA INÊS OLIVEIRA SITE: WWW.JUSTICACOMA.COM FACEBOOK: JUSTIÇA COM A

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Editorial

DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA

FELIZ NATA L Que Desça do céu uma Estrela que anuncie a Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade Que Anuncie o Cessar fogo em todos os locais de Guerra E Uma Família reunida por laços à volta da mesa com gerações que têm direito à Paz Que Anuncie que o DIREITO À VIDA é mais importante que o DIREITO ao Território. ___________ Se tiverem tempo leiam-nos Falamos Muito de Natal neste número, de Maria(s) e do(s) seu(s)filho(s ), e reclamamos o nosso Direito à Paz, à Justiça, ao Natal às nossas alegrias e às nossas dores.

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PANO PARA MANGAS Margarida Vargues

PÁGINAS ÍNTIMAS Tinha a mania de visitar livrarias. Ainda que não as procurasse, elas apareciam à sua frente como que por um golpe de uma qualquer magia - por vezes quase negra - que não sabia explicar, e isto acontecia independentemente da vila, cidade ou país onde se encontrasse.

Lá, as horas passavam sem que desse por isso. Nunca saía de mãos vazias: poesia e romance - clássicos ou contemporâneos-, banda desenhada e livros infantis. Estes últimos tinham um lugar privilegiado na sua estante, que não é apenas uma, mas várias distribuídas por múltiplas divisões, ou nos lugares mais inusitados, já que a ausência

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de prateleiras e a preguiça de todo o processo de as escolher, adquirir, decidir onde ficar e de as montar levava a que diversos volumes fossem, de vez em quando, ocupar espaço inesperados. Sempre que imperava a falta de disposição para os mudar de lugar, arrumava-os, na tentativa de conseguir uma nesga, uns centímetros, um buraquinho que fosse para lá enfiar o último que acabara de se agarrar às mãos ou de se enfiar no aperto da mala. Tinha muitos. Mais do que os que alguma vez conseguiria ler e por isso, em tempos, a organização tinha sido um problema. Editora? Colecção? Autor? Tamanho? Alfabeto? Não! Nenhuma era viável! Uma verdadeira dor de cabeça. Por fim decidiu-se. Desde esse dia que demorou a chegar -, e até hoje, todos os volumes da sua biblioteca, se não for ofensivo dar-lhe tal nome - estão organizados por cor. A cor da lombada dita o seu lugar! Conheceas de cor. As brancas, as vermelhas, as azuis e as pretas predominam. Não é, propriamente, uma questão de estética do espaço. Não, não é! Não sabe a razão e também não quer pensar nisso. Recusa essa inútil reflexão. Em casa, sempre que se passeava pela Baixa, todos os caminhos desembocavam na chancela que carrega o título de “a livraria mais antiga do mundo”. Entrava e perdia-se. Na loja ao lado vira uma peça de roupa de que gostara. Fê-la escorregar pelo corpo. Ficava-lhe bem. Mesmo bem - pelo menos era o que o espelho lhe dizia. Imaginou-se com ela aqui ou ali, ainda acolá ou noutro qualquer lugar. Dirigiu-se à caixa vaidosa, mas no último segundo saiu da fila num acto de súbito arrependimento. De repente, achara-a cara. Um desperdício. Três minutos de prazer e meia dúzia de elogios seriam as mais valias daquela extravagância. Para quê? A efemeridade do tempo e a satisfação insignificante dos elogios pareceram-lhe, simplesmente, parolas. Porém, ao entrar na porta ao lado, - a tal onde se perdia como se de um labirinto se tratasse - conseguiu despender mais do que o valor dos tais três minutos de prazer e meia dúzia de elogios. Como? No seu maior vício. Os livros já não

tinham o estatuto de caros. Afinal, eram livros e poderiam ser usados por diversas gerações sem que se gastassem. Mais do que três minutos de prazer e meia dúzia de elogios, proporcionariam toda uma vida - ou várias, quiçá - dentro e fora das suas páginas. Ponderemos: quantas vidas cabem em O Principezinho? Tantas quantas as vezes que o abrimos, quer para o ler de uma à outra ponta, quer para, quando lá vamos buscar um marcador perdido, acabamos a saborear a página onde ele se encontra e descobrir palavras novas, nunca antes vistas de todas as vezes que fora lido. Perguntavam-lhe, inúmeras vezes: “- O que ler?”. Era uma sensação estranha, aquela de recomendar leituras, especialmente para esta ou aquela pessoa. As preferências literárias raramente coincidiam… Esta peculiaridade fazia com que apenas duas ou três pessoas em seu redor partilhassem dos seus gostos e sempre que alguém lhe oferecia um livro, antes de o desembrulhar, mentalmente implorava que o mesmo não tivesse escrita uma dedicatória e que viesse acompanhado de um bilhete premiado da lotaria, que é como quem diz, o talão de troca! Por vezes pediam-lhe livros emprestados. Que dor! Era como se um braço lhe estivesse a ser amputado. Dizer que não, seria visto como uma indelicadeza ou um acto de egoísmo, mas dizer que sim provocava uma dor sem explicação. Os seus livros eram seus. Só seus. Muitos estavam sublinhados, anotados, rabiscados e até desenhados. Deixá-los ir nas mãos de um estranho era uma espécie de violação da privacidade, era deixar que alguém entrasse no mais íntimo do seu ser. Os livros eram seus e as histórias que contavam ainda mais. Era a intimidade das páginas… Haverá lugar mais privado que uma livraria? É aí, onde todas as histórias impressas em papel ganham uma nova vida e se deixam apoderar por cada um que as transforma e as torna - exclusivamente suas - ao atravessar a porta da rua.

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FLORES NA ABISSÍNIA Carla Coelho

POSTAL DE NATAL Este postal é daqueles com música, por isso, começamos com um medley, pode ser? A todos um bom natal, a todos um bom natal, desejo um bom natal para todos nós. Gingle bell, gingle bell, gingle bell rocks, all i want for Christmas is yoouuuu, i’m driving home for Christmas, get my feet in holy ground something about Christmas time makes us wish it was Christmas every year. Since we have nowhere to go, let it, let it snow, let it snow

Todos os anos é assim. Este ano nem foi preciso esperar pelo início do mês de Dezembro. O natal foi antecipado para meados de Novembro, talvez por associações de comerciantes previdentes ou talvez por existir no ar uma sensação de cansaço e desesperança. E assim, foram antecipadas as músicas de sempre nesta época do ano, as luzes de natal, doses excessivas de arranjos verdes, encarnados e brancos e filmes sobre cidades perfeitas nos Estados Unidos da América, onde não há fome, não há frio (o que é um verdadeiro milagre atenta a vasta camada de branco que cobre o cenário) e as histórias de

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Postal de Natal Flores na abissínia

amor avançam para o esperado final feliz entre gingerbread lattes (uma bebida que recomendo vivamente) e separações sem dor. Há umas semanas atrás passoume pelos olhos um artigo de uma revista onde se discutia a tristeza que as canções de natal evocam para muitos dos que as ouvem. Vou um pouco mais longe e confesso que o Natal enquanto produto de consumo é deprimente e cansame. A razão é simples: evoca um imaginário que poucos dos que saíram da idade infantil acreditam ser verdadeiro: várias gerações da mesma família sentadas à mesa com caras sorridentes e corações abertos, círculos de amigos sem perdas, mesa farta, coração tranquilo, saúde, um coração tranquilo, paz e prosperidade. Casas aquecidas sem sinal de preocupações climáticas. Nem é necessário apelar à esperança porque no mundo perfeito do natal que nos é vendido já conseguimos tudo aquilo que poderíamos desejar. A cada ano que passa sabemos que essa completude é impossível de atingir por cada um de nós, apenas seres humanos. Há pessoas que morrem e que não tornarão a sentarse a mesa com connosco, ainda que nos acompanhem todos os dias.

Há pessoas doentes. Há mortes que se anunciam. Há traições e desilusões. Há sonhos que temos e que mais uma vez não se realizaram. Há perdas e danos. Há receios que nos vão acompanhar. Há também desemprego, fome, guerra. Há abandono. Nada disto surge nos guiões dos natais perfeitos que nos são servidos entre meados de novembro até ao início de janeiro. E, no entanto, sabemos que tudo isto e muito mais anda por aí. Não é o natal em si mesmo que é deprimente. Mas antes o que foi feito dela na nossa sociedade. A festividade cristã colou-se à saturnalia romana, um festival romano que tinha lugar entre 17 e 23 de Dezembro. Honrava-se Saturno e o final do ano agrário e religioso, com banquetes, visitas a amigos e trocas de presentes. Nada mudou, portanto. Incorrecto. O deus honrado é outro e, por isso, tudo se alterou. A questão, caros olhos que me leem, está na intenção. E isto traz-nos ao momento presente. Que o natal possa ser um tempo de reflexão, de estar com quem amamos, de ensinar as crianças e os adultos que no mundo o que realmente interessa não está em lojas, nem em supermercados.

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Que cada presente (malgré tout …) seja marcado pela intencionalidade. Que cada mensagem enviada tenha sentido e seja pensada para a pessoa que a vai receber. Que ponhamos de lado as fórmulas gastas da educação novecentista e olhemos verdadeiramente para o que foi a vida da pessoa a quem nos dirigimos e saibamos adequar a nossa mensagem à sua realidade. Que nos dediquemos a ler ou reler O Suave Milagre do nosso Eça ou Um Conto de Natal de Charles Dickens. Nas páginas de ambos encontramos o verdeiro espírito da época. E que em todos nós se cultive a esperança e a empatia, pois o mundo (o pequeno e o grande) está muito longe do retratado nos anúncio e precisa de todos nós para mudar.

Feliz Natal para todos os que celebram a quadra (e que os demais sintam os efeitos da mesma ao longo dos 365 dias do ano que se avizinham).

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Julieta Monginho

PROTECÇÃO INTERNACIONAL entre muros e ruínas A extrema fragilidade de quem é deslocado por força de circunstâncias violadoras dos seus direitos desde cedo me convocou para o tema dos refugiados e requerentes de asilo. Não sendo prontamente assegurada no país ou comunidade dos países de chegada a integralidade da protecção devida, sofrerá nova violação dos direitos de que é titular enquanto ser humano. A este propósito, é sempre actual a leitura do texto de Hannah Arendt intitulado Nós, Refugiados, escrito em 1943, pouco depois da sua chegada a Nova Iorque, fugida ao regime nazi, no termo de um périplo atribulado por terras francesas, onde chegou a ser detida num campo durante a ocupação alemã. O texto incide essencialmente sobre a condição dos refugiados judeus. No entanto, as características do desenraizamento, da difícil inserção numa cultura alheia, da perda de capacidade para comunicar na sua língua, são extensíveis a todas as situações semelhantes e acentuadas perante a insegurança relativamente à

obtenção do estatuto de refugiado ou de protecção subsidiária. Se a história das deslocações forçadas poderia contar-se a partir dos primórdios dos movimentos humanos e em particular das perseguições por motivos religiosos que a atravessam, apenas a partir do século XX, com a I e sobretudo a II Guerra Mundial, foi erigido um edifício jurídico com vista a assegurar a protecção internacional, culminando em 1951 com a aprovação da Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados, que pretendia densificar o direito ao asilo consagrado no art. 14º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Enquanto fenómeno tutelado pelo direito, a história começa aí. Em 2016, decidi fazer voluntariado numa ilha grega, aonde chegavam diariamente centenas de pessoas, em barquinhos insufláveis, com coletes salva-vidas de brincar, que atravessavam o Egeu a partir da Turquia. Viajavam até lá vindos de vários pontos do globo, nessa altura

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maioritariamente da Síria. Entre 5000 e 7000 pessoas acumulavam-se em campos desprovidos de condições dignas, à espera de serem convocadas para uma entrevista que lhes possibilitasse o acesso ao estatuto de refugiado, protecção subsidiária ou reagrupamento familiar. Os contactos em rede que então estabeleci foram tão desafiantes que me vi forçada a desligá-los pouco após o regresso, por falta de tempo para conjugar esta azáfama permanente com a minha actividade profissional. Tive, sim, a oportunidade de me confrontar com a realidade terrível dos que viviam nesses campos, entre a memória traumática e a esperança. Decorridos sete anos sobre esta experiência, o que verifico é um crescente desfasamento entre a realidade e o direito aplicável. O que mudou na realidade foram fundamentalmente as rotas mortíferas e a atitude face ao acolhimento, no plano do poder político e no da opinião pública. Após o período pandémico, as vagas regressaram com intensidade. Alguns números: Em mortes confirmadas, e só na rota do Mediterrâneo, os números do ano de 2023 já superaram os 2 400 de 2022, o que faz prever que venham a atingir-se cifras superiores aos 3000 de 2021. No final de 2020, o UNHCR – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados estimava o número de pessoas vítimas de deslocações forçadas em 82,4 milhões, sendo 26,4 milhões de refugiados e 4,1 milhões de requerentes de asilo (os restantes referem-se a deslocações internas). No final de 2022 o número global cresceu para 108,4 milhões. Destes, 35,3 milhões de refugiados e 5,4 milhões de requerentes de asilo. No final de setembro de 2023, assinalase nova subida 114 milhões.

A população mundial de refugiados duplicou nos últimos sete anos. No entanto, 75% são acolhidos por países de baixo e médio rendimento. Uma ínfima percentagem bate à porta da Europa. 51% dos refugiados são crianças. (Dados recolhidos na página do UNHCR.) Se juntarmos a estes os deslocados migrantes, vindos sobretudo do norte de África, os números tornam-se calamidade, embora ainda distantes dos que ocorreram em 2015, aquando da crise síria. A violência dos números e das reacções a estes fluxos dificulta o esclarecimento das questões relacionadas com a aplicabilidade da protecção internacional. Torna-se dificílima a individualização das situações, essencial para o enquadramento jurídico aplicável, perante o caos dos naufrágios, das chegadas massivas, da saturação dos pontos de chegada e das respostas fragmentadas a esta catástrofe humanitária. Os conflitos armados são crescentes, por todo o mundo. Enquanto escrevia este texto, um dos mais antigos – Israel/Palestina – explodiu de forma terrífica, originando novos movimentos internos. Gaza, Sudão, República Democrática do Congo e Myanmar são os territórios onde os maiores conflitos se desenrolam actualmente. Os sistemas não democráticos ou de democracia mitigada alastram. À devastação de áreas consideráveis do continente africano e também do asiático, juntou-se a invasão da Ucrânia, que deu origem a uma vaga de requerentes de asilo europeus como não existia desde a II Guerra Mundial. Os muros, quer físicos quer sob a forma de controlo de fronteiras no interior do espaço Schengen, têm proliferado de tal maneira que até a queda do muro de Berlim, há 35 anos, nos parece agora milagrosa. Só que estes novos muros não se destinam a separar sistemas políticos diferentes, sim a separar seres humanos que habitam

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Protecção internacional Julieta Monginho

territórios viáveis de seres humanos em fuga de territórios habitados pela morte. A Europa e os Estados Unidos, vistos como Terra Prometida, cercam-se de muros como um imenso condomínio onde os pobres não entram, a não ser na quantidade necessária para fornecer trabalho pouco remunerado. Pior, cercam-se de ameias contra um suposto inimigo, desarmado e faminto. Trata-se de um grande muro de injustiça, originado por esse muro maior, o da desigualdade. Quais têm sido a atitude e o papel do direito na resposta a este gigantesco desafio? Os instrumentos internacionais permanecem os mesmos e a sua aplicação encontrase em perda. A eficácia e coercibilidade, como, de resto, as do direito internacional noutras áreas, vêm diminuindo a um ponto preocupante. As instituições internacionais, nomeadamente a própria ONU, são incapazes de intervir eficazmente no sentido do seu cumprimento (como, de resto, foi demonstrado na mais recente erupção do conflito israelo-palestiniano). Muitas vezes ao arrepio dos princípios neles inscritos – como o princípio da não repulsão (non refoulement) ou o do salvamento marítimo, por exemplo – surgem em alguns países normas avulsas que se sobrepõem na prática à aplicação do direito internacional, em violação de direitos humanos, como já tem sido reconhecido pelo TEDH. Saúda-se a resposta pronta da União Europeia à crise de deslocados vindos da Ucrânia; lamenta-se o impasse relativamente aos outros, o que significa que critérios extrajurídicos, como o racismo e preconceitos de vária ordem, interferem no processo. Em 2016 ainda era possível encontrar esperança, apesar dos obstáculos. Neste momento, para os deslocados não europeus, já não é a esperança, mas o desespero, o

impulso de sobrevivência, o que mantém a deslocação. Dissuadir a viagem, através da proibição dos salvamentos, através da devolução dos que se salvam aos territórios de origem sem sequer aceitar pedidos de protecção internacional, através de acordos de «exportação» com países terceiros cujo respeito pelos direitos humanos não é assegurado, através de agressões a quem, por via terrestre, se aproxime dos muros fronteiriços, todos estes procedimentos são contrários à Convenção de Genebra, à Convenção Europeia dos Direitos Humanos e às Directivas Comunitárias. Reforçam com a distância a inscrição de Dante à porta do Inferno que pode ser reformulada deste modo: «Deixai toda a esperança, vós que quereis entrar» . Não é fácil vencer a desilusão. António Vitorino, Alto-Comissário para as Migrações, reconhece o fracasso do mecanismo de relocalização definido para as chegadas oriundas do Mediterrâneo Central e Oriental bem como que o chamado «Novo Pacto para as Migrações e Asilo da União Europeia» não avança porque os Estados Membros se dividem acerca do problema. Esta divisão desenha-se com o mesmo traço de ameaça a outros princípios fundamentais do Estado de Direito: a não discriminação, a liberdade de expressão, a separação do poder judicial relativamente ao executivo. Como sabemos, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem intervindo e exigido a países mais renitentes a prestação de auxílio humanitário, casuisticamente. Não lhe cabe, porém, exigir o estabelecimento de corredores humanitários, formados através da negociação, que impediriam ou dificultariam enormemente esse flagelo que é o tráfico de seres humanos, um negócio multimilionário tão difícil de combater. Serão as resoluções, as recomendações da ONU, o Pacto Global para a Migração respeitados pela comunidade internacional?

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Parece-me que, no momento presente, não existe uma verdadeira vontade de concretizar estes objectivos. A ausência da casa, entendida esta como o reduto da intimidade e do desenvolvimento dos laços afectivos mais fortes, significa uma espécie de mutilação, de esvaziamento. A busca por um lugar a que possa chamarse casa torna-se, assim, de uma premência avassaladora. Quem conserva o seu reduto pode sentir qualquer movimento de aproximação como ameaça, e aderir à violência. Pode, em alternativa, partilhá-la, e ajudar ao apaziguamento. «Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos», proclama o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, instrumento nascido em 1948, no rescaldo da II Guerra Mundial e do Holocausto. Até chegarmos a esta formulação, deixámos para trás séculos de crueldade, escravidão, miséria e terror infligido contra o pensamento divergente. Desde então, os avanços têm sido frutíferos. Assistimos, todavia, nos últimos anos, a retrocessos, sendo que os refugiados e requerentes de asilo se tornaram um pretexto para o crescimento de regimes e movimentos autoritários. Couberam-nos tempos propícios à desconfiança, entre países, entre nacionais e estrangeiros, até entre vizinhos. Da desconfiança ao ódio vai uma curta distância, facilmente percorrível se não estivermos seguros dos nossos valores. Ambos são filhos do mesmo medo, que não devemos execrar, antes compreender, construindo instrumentos para o superar. Quando vivemos sob a escuridão do medo, tudo o que não é familiar nos parece fantasma. Os caminhos para sair deste negrume são árduos e tortuosos, não tenho a pretensão de os descobrir. Sei que não podemos permanecer fechados em nós próprios, que devemos dispor-nos a avançar, com passos cautelosamente firmes, sem nunca abdicar dos valores que assimilámos. O empenho da comunidade internacional,

da qual cada um de nós faz parte, tem de ser obtido através de vozes que se destaquem pela clareza e pela determinação, contra o vozeario caótico do discurso do ódio. A reconstrução dos territórios de origem, a viabilização da sua economia, o diálogo para obter esse resultado, devem tornar-se uma prioridade e um compromisso. A criação de canais humanitários e de um destino digno para quem não pode regressar deve tornarse um objectivo comum. Proponho o que sempre propus: passar palavra, usá-la para defender os valores que a Carta dos Direitos Humanos erigiu como fundamentais. O direito à vida digna, antes de todos. Não sucumbir ao sentimento de impotência. Tentar fazer um pouco mais do que a rotina nos pede. Impedir que o direito internacional deixe de ser cumprido, nas suas regras mais básicas, sobretudo a proibição do reenvio forçado ao país de origem sem registo do pedido de protecção internacional. Apoiar e divulgar o trabalho corajoso da comunicação social isenta e de milhares de voluntários organizados em ONG, cuja acção é cada vez mais arriscada. Seja em que circunstância for rebater os argumentos preconceituosos e desmontar falsidades. Aos juristas cabe uma responsabilidade acrescida: vigilância e iniciativa, em todos os campos de intervenção ao seu alcance, pelo cumprimento do direito internacional, e particularmente do direito humanitário, que se construiu a partir dos escombros de um mundo devastado pela guerra. Quando contemporizamos com limitações à prossecução de direitos fundamentais, como o direito ao asilo, não ofendemos apenas os que directamente são afectados, ofendemo-nos a nós mesmos, a cada um de nós.

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RÉ EM CAUSA PRÓPRIA Adelina Barradas de Oliveira

JESUS NASCEU (onde?) Independentemente de estudos religiões e saberes, num dia ou numa noite , dizem que fria, que para aqueles lados também há frio, principalmente de noite, nasceu em Belém no Território Palestiniano da Cisjordânia, a cerca de 10 quilômetros ao sul de Jerusalém, um Menino a quem deram o nome de Jesus

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Imaginemos que era um Domingo, uma noite de domingo a caminhar para segunda feira, no ano de 2023, em que não é de agora, nem só de ontem, o medo de um bombardeamento anunciado, uma Maria e um José que acreditam no amor, que estão em fuga com Maria no final do tempo de gestação, fugindo de uma morte anunciada em direção a Belém, às portas do deserto, em frente às areias que deslizam até ao Mar Morto Imaginem que era esta semana, este Natal, num espaço de território palestino, uma Noite de Natal, uma Maria carregada por um pobre animal de quatro patas, dócil e inteligente (ao contrário do que dizem dele), sob o céu riscado de luzes de bombardeamentos e não pela estrela de Natal nem pelo canto de anjos. Imaginem que em vez de um estábulo Maria e José têm apenas ruas e casas bombardeadas, escombros, choros e feridos, hospitais sem condições, falta de água e alimentos e, é nesse cenário em que os bombardeamentos se intensificam sempre à noite e aterrorizam velhos sós e pobres, famílias e crianças, que nasce Jesus, um judeu, a quem chamaram Messias.

Quantas vezes será preciso nascer, morrer e ressuscitar? Porque não ficará pedra sobre pedra? E porque se repete ao longo da história este cenário de morte, de ódios e de interesses maiores que os Direitos Humanos, os Direitos das Crianças, o Direito à Vida. Será Natal de novo contra tudo e contra todos. Podemos agradecer o que temos e exigir um cessar-fogo ou/e Podemos sentar-nos juntos com os nossos e fazer a ceia de Natal porque estamos felizes por viver em paz, por não odiarmos ninguém, por rejeitarmos conflitos, por rejeitarmos a Guerra, porque fomentamos a Paz e porque queremos ter o Direito de continuar a viver nela. Que seja Natal e que as luzes da Guerra deixem de brilhar para que do céu desça uma Estrela que anuncie um cessar-fogo Que seja Natal

Nasce no próximo domingo em Belém no território palestiniano da Cisjordânia, a cerca de 10 quilômetros ao sul de Jerusalém onde um dia, esse mesmo Menino a quem deram o nome de Jesus, virá a ser sentenciado à morte, por crucificação, pelo seu povo.

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TERESA HENRIQUES DE ALMEIDA

O Luto Na Província de Chefchaouen, a cidade azul a norte de Marrocos, havia um Menino que caiu num poço... Ryan caiu num poço Quantas crianças caem em poços? Há tantos “poços” por aí. A Mãe aguardou dias que tirassem o seu filho de 32 metros de profundidade... ainda que morto... As mães aguardam sempre. Já ninguém se lembra porque já ninguém se sobressalta Só as Mães. “Quando um filho morre, nós engravidamos novamente, pois eles vêm para dentro de nós”

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Eu tinha um filho. Um filho que amava. Um filho a quem dava colo. Depois ... o colo ficou vazio .... um vazio, que nada, nem ninguém, nem mesmo um outro filho preenche. Não é um filho que parte. É, literalmente, uma parte de nós que vai com ele. Não sei medir a dor. Dizem que é a maior dor que uma mãe (e pai) pode ter. Sei a dor que senti. Mas, e a dor de ver um filho sofrer para um desenlace sabido? A dor de não saber onde está o filho desaparecido ...se está vivo, se passa fome ou frio, se é vítima de maus-tratos, se... e se ... e se ... ... Rayan não resistiu .... Impossível para mim, não me colocar no lugar dessa mãe. Não a conheço. Mas estou segura, que quer acalentar a esperança de que Rayan tenha tido morte imediata; de que não tenha sofrido. ... E mais uma vez sinto que, “apesar de … “, sou uma sortuda . Por tantas razões de que já vos falei. E porque não vi o meu filho sofrer. Porque pude estar sempre com ele. Por saber como ele via a vida e a morte. ...

Como sobrevive uma mãe? Como sobrevivem mães como a mãe de Rayan?

*A angústia de ter perdido, não supera a alegria de ter um dia possuído “ (Santo Agostinho)

Por Amor, uma mãe sobrevive. E pode voltar a viver, a sorrir e ser feliz. Por amor a esse filho, por amor a outro ou outros que tenha. Por amor aos netos.

... Para bem de todos nós e do mundo, não esqueçamos:

Por amor a …

“Viver é sempre dizer aos outros o quanto eles são importantes.

Creio que só pelo Amor se consegue.

Por que um dia eles se vão.

Ouvi, há anos, uma senhora, cuja filha perdera a vida num acidente, dizer o que explicava como eu sentia e não sabia dizer: ”Quando um filho morre, nós engravidamos novamente, pois eles vêm para dentro de nós” Para uma mãe, um filho nunca morre. (Há outros factores, evidentemente, que ajudam, ou não, no longo caminho para uma mãe se voltar a erguer. Mas não me vou alongar sobre isso) ... Pela minha experiência de vida, acredito, que há muito mais do que nós conhecemos e sabemos. Acredito que há vida para além da vida. Como o meu filho, nos seus 10 anos, parecia, tão bem, saber ... e tanto mais. ...

E ficamos com a nítida impressão que não amamos o suficiente” ( Chico Xavier) Tanto mudaria! ... Desculpem as minhas palavras de tristeza. Mas a tristeza é um sentimento a que não devemos fugir. Pelo contrário. Devemos senti-la e seguir em frente. Não podemos é parar e viver nela. Porque a vida é feita de muito mais. Não só de “coisas” más. É também feita de muita alegria e muitos momentos de felicidade. E é no equilíbrio de todos esses sentimentos, e na forma como os encaramos, que poderemos (ou não) sentirmo-nos felizes, “apesar de ...”

Fico-me por palavras que muito me dizem: *filho é um ser que nos emprestaram para um curso intensivo de como amar alguém”.

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Não será fácil. Mas se até eu consegui .... ...


José Luis Outono

Há relógios inquebráveis, simples e respeitadores do Sol. (excerto)

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.../... quantas vezes o relógio dos enredos é alterado na corda dos olhares sem rigor? quantas vezes mostramos a vaidade no pulso perante um desenho atraente, e a sombra de séculos infinitos dita o rigor em sombreados fidedignos? quantas vezes chegar atrasado é um índice despreocupado perante a farsa de que os ponteiros nunca estão simetricamente iguais, e a desculpa acontece? quantas vezes o bater dos sinos é a nota de uma boa agenda, no horário preciso, mas o barulho tece contradições errantes, para um estar com perdões? quantas vezes senti o sinal horário sem mensagem segura e cenário atraente, as cortinas corriam, a orquestra dava o tom de inícios dialogantes, e até o final tinha de ser respeitado como o fechar de uma porta, simplesmente? quantas vezes o relógio do amor é idêntico a uma traição sem horário, ou o fecho da vida corrido bruscamente? quantas vezes olhamos as páginas de um cronómetro, e a corda tropeça na recta final da aferição? quantas vezes ... um sumário enervante de escrita à pressa envenenada, e o acordo apregoa novas porque na excitação da língua verdade escorregamos em incertezas. Regressa Camões porque serás sempre bem-vindo! JLO (todos os direitos de autor reservados/S.P.A. 106402)

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Nelson Faria de Oliveira Advogado e Secretário-Geral da Comunidade de Jurista de Língua Portuguesa (CJLP)

LIBERDADE E DIGNIDADE NEGADAS TRÁFICO HUMANO E REFUGIADOS A ESTRATÉGIA DO CRIME ORGANIZADO RAMIFICAÇÕES E COMBATE NA PROTEÇÃO DA SOCIEDADE

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Atualmente, o crime organizado ocupa uma enorme parcela da economia mundial, movimentando em torno de trinta e dois mil milhões de dólares por ano, através dos seus ganhos diretos e indiretos, notadamente por diversos métodos de locupletamento indevido, que escraviza, explora e denigre uma grande parcela de pessoas, essas normalmente vulneráveis. Calcula-se que cerca de mais de dois milhões de pessoas são vítimas desse ilícito. Combater o crime organizado transnacional é uma tarefa complexa e desafiadora que requer os esforços de vários mecanismos e organizações a nível local, nacional e internacional. Estas organizações e mecanismos trabalham em conjunto para prevenir e combater atividades criminosas que atravessam fronteiras. Temos como entidades e mecanismos essenciais os agentes de autoridades a nível nacional que cooperam e colaboram com organizações internacionais, como a Organização Internacional de Polícia Criminal, conhecida por INTERPOL, o Gabinete das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, tendo como siglas UNODC, a Agência da União Europeia para a Cooperação Policial, designada por EUROPOL, Como agentes da autoridade, a polícia local e nacional, bem como os demais sujeitos processuais, desempenham um papel crucial no combate ao crime organizado. Investigam e acusam grupos criminosos que operam nas suas jurisdições e trabalham com parceiros internacionais para localizar criminosos que atravessam fronteiras. Notadamente, a INTERPOL, uma organização internacional que facilita a cooperação e coordenação entre agências da autoridade de diferentes países para combater o crime transnacional, fornecendo uma plataforma para compartilhar informações e conduzir operações conjuntas. Já a EUROPOL, enquanto agência no combate ao crime transnacional na União Europeia, apoiando os Estados-Membros na coordenação de esforços e na partilha de informações. Por último, mencionamos a UNODC uma vez que se trata de uma agência das Nações Unidas que tem como foco abordar várias formas de crime

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Liberdade e Dignidade Negadas Nelson Fa r ia de Ol i vei ra

organizado transnacional, incluindo tráfico de drogas, tráfico de pessoas, corrupção, entre outros, contribuindo com assistência técnica, realização de pesquisas e no auxílio aos países no desenvolvimento de estratégias para combater o crime organizado. Além do mais, os Estados possuem as suas agências nacionais de inteligência que recolhem e partilham frequentemente informações relacionadas com o crime organizado, contribuindo para a compreensão e rastreio de redes criminosas. Por outras palavras, Estados celebram tratados e acordos bilaterais, multilaterais e regionais para reforçar a cooperação no combate ao crime organizado, que inclusive envolvem frequentemente tratados de extradição, partilha de informações e forças-tarefa conjuntas. Nese contexto, falemos a respeito da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional e respectivos Protocolos,

também conhecida pela Convenção de Palermo, tendo sido aprovada pela AssembleiaGeral da Organização das Nações Unidas a 15 de novembro de 2000, tendo entrado em vigor há vinte anos atrás, mais precisamente a 29 de setembro de 2003. Todavia, tendo em conta a natureza e gravidade deste crime e da responsabilidade em mitigar a sua propagação, os referidos protocolos abordam três específicos tópicos: Protocolo relativo à prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças; Protocolo relativo ao combate ao tráfico de migrantes por via terrestre, marítima e aérea; Protocolo contra a fabricação e o tráfico ilícito de armas de fogo, suas peças e componentes e munições. Importa ainda transcrever, à luz do artigo 2º alínea a) da mencionada Convenção, a definição de «grupo criminoso» que é entendido como «um grupo estruturado de três ou mais pessoas, existindo durante um período de tempo e atuando concertadamente com a finalidade de cometer um ou mais crimes graves ou infracções estabelecidas na presente Convenção, com a intenção de obter, directa ou indirectamente, um benefício económico ou outro benefício material». No que toca ao Protocolo para a prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças, este vem definir «tráfico de pessoas», esclarecer que os direitos humanos são direitos absolutos e indisponíveis, conferindo uma lista exemplificativa, e não

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taxativa, no que toca a toda e qualquer forma de exploração das crianças. Infelizmente, o tráfico de pessoas é um dos ilícitos mais rentáveis na esfera do crime organizado, somente sendo ultrapassado pelo tráfico de drogas e armas. Todavia, este tráfico humano, pode ter diversas finalidades, desde exploração sexual, para o trabalho escravo, tráfico de órgãos, movimentando inclusive diversas atividades empresariais. Sendo assim, outros entidades possuem um papel importantíssimo no que toca ao combate ao crime organizado transnacional. Mais concretamente, as instituições financeiras, na monitorização, controle e denúncia de transacções financeiras suspeitas que possam estar relacionadas a atividades criminosas, aplicando o Regulamento dos Deveres Gerais e Específicos de Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais e ao Financiamento do Terrorismo. Algumas Organizações Não Governamentais estão ativamente envolvidas na sensibilização, na prestação de apoio às vítimas e na defesa de políticas de combate ao crime organizado, podendo também desempenhar um papel na assistência aos governos e às organizações internacionais nos seus esforços. Ademais, uma vez que o crime organizado extravasa fronteiras, as alfândegas e o respectivo controlo são agências vitais na intercepção do movimento de mercadorias ilegais e contrabando através das fronteiras, incluindo drogas, armas, artigos contrafeitos mas também de pessoas e órgãos.

A rápida e profunda revolução tecnológica, com o crescimento do crime cibernético, agências e organizações especializadas em segurança cibernética trabalham para combater atividades criminosas transnacionais no domínio digital, partilhando esforços para combater websites e plataforma que tenham como objetivo a exploração do tráfico de pessoas, órgãos, pornografia infantil, entre outros crimes hediondos.

O combate ao crime organizado transnacional requer uma abordagem multifacetada que envolva cooperação internacional, medidas legais, esforços de aplicação da lei e sensibilização do público. A eficácia destes mecanismos e organizações depende da sua capacidade de trabalhar em conjunto e de se adaptarem à evolução das tácticas e tecnologias criminosas.

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E O MAR LOGO ALI Ana Gomes

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Quero beber um chá e comer uma fatia de bolo, mas não os sei pedir em alemão (…) duas senhoras bebem chá (…). Quero este bolo, dizia à minha mãe, apontando para a montra de vidro da Pastelaria Riviera. Ao estender o dedo no café de Leipzig, é ainda a minha mãe que me olha, embevecida. Carregamos pela vida fora o amor que recebemos na infância. Como uma armadura indestrutível. Dulce Maria Cardoso, “O miolo das palavras”, Autobiografia não autorizada, 2021, Tinta da China Leipzig, 24 de dezembro de 2023

Querida Mamã!

Gostava de te entregar em mão não uma carta, um bilhete, papelinhos que as pessoas que estão próximas podem fazer e depois guardam como marca-livros e onde regressam. Não consigo chegar a Lisboa antes de dia 25. Temos andado desencontradas nos períodos festivos. Neste ano em que regressaste a Portugal, foi tão bom viver os pequenos momentos, incluindo na pastelaria, ao sábado de manhã, recriando os rituais passados, tal como Dulce nos relata. Não é o ambiente, não são as vozes alegres dos clientes e os passos ritmados, quase musicais, dos empregados, não é a cor apelativa, demasiado apelativa dos bolos antes amarelos de gemas verdadeiras, hoje red velvet e chocolate com framboesas. É o encontro, é a partilha, é o amor … E só isso, que é tanto, devia ser suficiente, para, assim, ficarmos finalmente juntas. Não foi. Não é.

Apesar de eu ser resultado de uma produção internacional e de me chamar Helen (filha do meu querido daddy), por mim, vivia sempre em Portugal aconchegada num colo a sorrir. Nada de aviões, nada de novas experiências e novas culturas, aquilo que mais apreciavas quando viajavas em trabalho, porque ansiavas por ir além das fronteiras que sabias existirem. Detesto viagens e adoro dizer que sou portuguesa. Vir para Leipzig foi a decisão mais dolorosa. É claro que te agradeço o estímulo para a coragem que me faltava para sair de uma situação difícil. Está na hora de fazer pelos mais pequenos, dar-lhes um futuro que aí está bloqueado. Ao chegar aqui para trabalhar tive a certeza de que, em Portugal, não foi suficiente o amor, não foi suficiente o curso superior, não foi suficiente ganhar acima da média, nada foi suficiente apesar de parecer que fiz tudo certo. O que vale é que … Carregamos pela vida fora o amor que recebemos na infância. Como uma armadura indestrutível. (As personagens do texto são as mesmas das apresentadas nas edições de dezembro de 2016 e de 2021)

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Licínia Quitério

O meu computador ou o dia em que o velho começou a brincar Desbravar uma máquina como esta, no limiar do século vinte e um, teve o seu quê de aventura para quem como eu aprendeu a escrever com caneta de pau, aparo de folha molhado em tinteiro de vidro, salpicos de tinta na folha de papel, no bibe e no chão.

Tal como na vida dos homens, seus progenitores. Diálogo bem bizarro este, diga-se. Feito de sinais cabalísticos, de linguagens de Babel, resultando em encontros ou perdições. Impiedosa, esta máquina de aventura.

Aventura talvez comparável a ser largado de noite numa cidade grande aonde vamos pela primeira vez. Tudo o que sabemos é que ela existe, está ali à nossa volta, mas não sabemos por onde seguir, nem o que iremos encontrar. É um dobrar de esquinas, um voltar atrás, uma espreitadela aqui, outra mais além, um deambular inconsequente à procura sabemos lá bem de quê. É certo, porém, que sempre alguma coisa haveríamos de encontrar, tão depressa conseguíssemos dialogar com a máquina.

A lógica é o seu sustento, lógica é a sua esteira de progresso, lógicas as suas revoltas contra a nossa ausência de lógica. Assim não é a vida. Antes toda feita de contradições, de relações logicamente inconsequentes, de desfechos inesperados. Assim não és tu, máquina, porque os deuses que te criaram, egoístas como qualquer deus que se preze da sua omnipotência, não te transmitiram a chama sagrada do sentir antes do saber. Só sabes, tout-court. Sentir, não é para ti. Por isso mesmo, quem sabe, o nosso

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relacionamento tivesse sido mais pacífico do que esperava. Perante a tua absoluta passividade, a tua ausência de emoções, o teu seguidismo aos ensinamentos do criador, quebraram-se irremediavelmente todos os meus ímpetos de animal forrado de instintos, de sensações, de emoções. Contigo não há artimanhas que resultem. É tudo ou nada. Passa corrente ou não passa. É branco ou é preto. Não aceitas um talvez, um poucochinho, um acinzentado. Ainda bem. Por toda essa frieza te saúdo. Deste-me a calma necessária no tempo requerido. O descanso do guerreiro nesta contenda ferocíssima da vida sofrida porque sentida, ou pressentida, ou tão somente adivinhada. Para mim, pobre ignorante das virtualidades de uma ferramenta como tu, não és mais do que uma preciosa máquina de escrever o que te mando. Uma obediente e limpinha serva que só exige ordens inequívocas. Quem me dera fosses mais do que isso e conseguisses extrair da meada intrincada de memórias e pensares o fio alinhado do discurso necessário. Nunca os homens falaram tanto como nesta era da sagrada comunicação, mas talvez nunca tenham dito tão pouco.

A inocência não se recupera. É preciso ter muito cuidado com os brinquedos novos que nos dão, principalmente com aqueles que se atrevem a não nos temer. Tal e qual como os homens. Quem leva a sério um velho que quer saltar ao eixo? O certo é que ele, muitas vezes consegue, sem cair e sem se beliscar. Apesar de todos os sustos que posso imaginar, acreditem que é útil ter um computador que podia bem ser nosso neto, com a vantagem de não contar a ninguém como somos ignorantes e, melhor que tudo isso, de não poder rir na nossa cara quando tropeçamos no maldito degrau ou procuramos enraivecidos os óculos encavalitados no nariz. Por enquanto…

Vivemos encharcados de palavras, de sons. Mas quantos dizem o que é urgente dizer? Tantas vezes apetece perguntar: Is anybody in there? Pensando melhor, será mais prudente não o fazer, quando o meu computador estiver a funcionar. Se ele me responder, o que é que eu faço? Fujo a sete pés. Vou ao sótão onde ainda guardo alguns jogos da infância, limpo-os do pó e peço-lhes desculpa por os ter traído.

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CANTINHO DO JOÃO João Correia

Querido Pai Natal, Sei que já não tenho idade para acreditar no Pai Natal e, para ser sincero, não gosto muito de ti. És um velho gordo com umas barbas estranhíssimas que cativa as crianças a sentarem-se no seu colo, mas enfim, devo ser eu com as minhas manias. Cada um tem as suas. De qualquer das formas, caso te lembres de mim, aqui vai a minha lista de prendas. Mas vê bem, não te quero dar muito trabalho. Se passares por cá não deixarei leite nem bolachas, mas sim, umas garrafas de vinho alentejano e chouriço para aguentares melhor o caminho. Serve-te à vontade, mas, depois, se te “esbardalhares” com as renas na primeira curva

isso já não é problema meu (não faço ideia se o verbo “esbardalhar” existe, mas o português é uma língua viva, por isso “esbardalha-te” à vontade). Assim, e em primeiro lugar, quero Mário Vargas Llosa, nomeadamente “A Casa Verde”. Repara como eu disse “quero”. Ou seja, não estou a pedir. Tive um contacto com este autor antes da pandemia e sou a crer que o mesmo me ajudou a manter a sanidade mental (a pouca que me resta). Durante essa fase, fez-me ler dez dos seus livros, um a seguir ao outro (ou quase, pois intervalei-os com outros pequenos livros de

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autores não tão interessantes, por forma a dar algum descanso ao mesmo). Tenho saudades. Não da pandemia, mas sim do autor. Da pandemia tenho tantas saudades como tenho do colo do Pai Natal. Ou sejam nenhumas. Em segundo lugar, Bruce Chatwin, a saber “Na Patagónia” local onde nunca fui, mas onde gostava de ir. Gosto de viagens e, se tivesse que escolher outra nacionalidade que não a minha, escolheria ser sul americano. Não argentino pois não conheço nenhum, mas talvez mexicano. Em tempos conheci um português de Santa Comba Dão que geria um restaurante em Cuzco, no Perú, chamado “Los Perros” e que me disse que, na realidade, não era português, mas sim mexicano pois, de acordo com a sua visão das coisas, não era necessário nascer no México para ser mexicano, nem ter qualquer ligação com essa terra em concreto. Para ele bastava ter um certo espírito e atitude para, de imediato, o ser, por isso, com a minha atitude e espírito, talvez seja mexicano. Como não encontrei nenhum livro que envolva o México, optei pela Argentina, Patagónia, lugar esse onde, caso te esqueças da minha lista de prendas, bem podes fugir. Pensa bem nisto. “Esteiros”, de Soeiro Pereira Gomes. Não sei se conheces, pois, deves andar demasiado ocupado a descobrir crianças que se “portaram bem”. Qualquer dia ainda tens problemas com isso, mas enfim, problema teu. Nunca li, mas gostava de o ler. A minha curiosidade surgiu quando ouvi uma crítica na rádio Observador sobre o mesmo e a qual o qualificava como uma obra com uma fortíssima conotação política. Na realidade, a forma como eles o disseram na rádio soou a crítica negativa por isso, se a rádio Observador fala mal de um livro, eu tenho que o ler pois, só por isso, já sei que vou gostar.

música, de um pianista de seu nome Rómulo, de Liszt, da sua relação com um filho que nunca corresponderá às suas expectativas. Tal como tu que nunca corresponderás às minhas. A Herança de Eszter, de Sándor Márai. Gosto do nome Eszter, de origem judaica, senhora essa a qual foi enganada, juntamente com a sua família, por um patife (como tu) chamado Lajos, o qual regressa a sua casa passado vinte anos de ausência. Lajos foi o único homem que ela amou e, da parte que me toca, gostaria de “ler” a sua mente, assim como a dele. Numa outra perspetiva, li que todas as personagens secundárias são igualmente fascinantes pelo que, como sei que o diabo se esconde nos detalhes, tenho esperança que, neste caso em concreto, se esconda nestas pois, gosto de livros em que as personagens principais são apenas maestros de uma orquestra composta por múltiplas personagens secundárias. Cada um com o seu mérito. Por fim, “Um Balé de Leprosos” de Leonard Cohan. Sei que no final da sua vida já só dizia disparates, mas, quem nunca pecou que atire a primeira pedra. Da parte que me toca gostava de ter a sua voz (a dele, não a tua) e, muito francamente, acho que qualquer disparate dito com a voz de Leonard Cohan transforma-se, de imediato, numa verdade inegável ou, quanto muito, num disparate absolutamente poético. Cohen escreveu-o quando ainda não optara completamente pela redação e composição de canções por isso, agrada-me conhecer, não o que o tornou famoso, mas o antes, tais como as personagens secundárias de que te falei, há pouco, e em cima. Aguardarei pela tua visita e, por favor, não leves a peito as minhas críticas. Sabes como é, a idade não me torna mais polido. Aparece, nem que seja pelo vinho e pelas chouriças. Abraços e não te percas.

Já agora, e se não te der muito trabalho “A Dor Fantasma” de Rafael Gallo. Vi uma entrevista com ele num programa na Dois e na qual este relatava as suas sensações quando soube que ganhou o prémio literário José Saramago em 2022. A descrição das suas emoções, por si só, relatadas por este, aquando da notícia em questão, mereciam um livro de tão belas que foram. De acordo com o seu autor, fala de

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“Eu farei de vós pescadores de Homens” Fotografia gentilmente cedida pelo repórter fotográfico Fernando Correa dos Santos.

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