
JUNHO 2025
66º Edição











JUNHO 2025
66º Edição
Os alunos do 5ºano (10 anos) de Setúbal, abraçaram o desafio de desenhar uma árvore a partir do tema: “ A Árvore dos meus sonhos”, utilizando os materiais riscadores ( lápis de grafite, de cor, pastel, canetas de feltro) e técnicas aprendidas (aguarelas, texturas visuais, por decalque e fricção), dando lugar à imaginação e criatividade nos trabalhos realizados.
Passaram 3 meses desde a última vez que vos oferecemos a nossa escrita e os nossos pensamentos.
De volta no Mês de Junho, o mês das Crianças, dos Idosos e dós Refugiados, decidimos homenagear uma mulher que se destacou pela sua presença, pela vontade de fazer mais e melhor no que respeita à proteção das crianças seres tão atingidos nos dias de hoje.
Dizer-lhe que olhamos e gostamos do que vemos pelas palavras de Dulce Rocha e pelas imagens de Fernando Corrêa
Obrigada Dra Manuela Eanes, por ser quem é e, pela vontade de fazer muito pelos pequeninos que serão o Mundo amanhã. É uma
Honra poder homenageá-la.
Gostaríamos de vos desejar boas férias e, de vos dizer que já não há discursos de ódio, não há sofrimento, as crianças crescem serenamente no seio familiar e tornam-se adultos responsáveis e idosos cheios de vontade de viver.... mas, não é assim… basta olhar as políticas internacionais ….
É Junho, tragam um balão, uma noite de Verão, um cantinho à beira mar, um livro e o som da praia e...muitas ações pela Paz e pelos direitos dos mais pequenos que este mês nos ofereceram as árvores que desenharam com a sua imaginação , uma delas é a nossa capa. Pode ser que aconteça pelo Mundo Inteiro se cada um de nós fizer a sua parte….
Escrito num Junho de 2025 entre alergias e dias longos que não aquecem porque os homens não deixam.
Adelina Barradas de Oliveira Diretora
06....... Ao Fernando Pessoa | António Manuel Monteiro Mendes
08 ....... A adolescência das redes | Fernanda de Almeida Pinheiro
10....... Homenagem a Manuela Eanes | Dulce Rocha
14....... A voz das Mulheres | Mariana Roque
18....... Mães e sistema judicial | Daniela Cosme
22 ....... O Mar Logo Ali | Ana Gomes
24 ....... Há uma hora em que todos | Lícinia Quitério
26....... Cantinho do João | João Correia
28 ....... Pano para Mangas | Margarida Vargues
30....... Expectativas | David Gurita
32....... Traços de Outono | José Luis Outono
34....... Notas à margem da lei | José António Barreiros
36 ....... Ré em Causa Própria | Adelina Barradas de Oliveira
38 ....... Flores na Abíssinia | Carla Coelho
40 ....... Apagão | Jorge Martinez Batalha
42 ....... O labirinto das manifestações de interesse | Rute Carvalho
46 ....... NOVA IORQUE | Luís Roque Alegria
48 ....... Revisibilidade das decisões automatizadas | Manuel David Masseno
52 ....... Entre Linhas | Recomendações literárias
DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA
DESIGN E PRODUÇÃO: INÊS OLIVEIRA
PUBLICAÇÕES: ISSUU.COM/JUSTICACOMA
FACEBOOK: JUSTIÇA COM A
Presunçoso nesta manhã quase igual à de ontem, recorro às mãos de hoje, escrevendo no presente a vontade do passado. Os poetas de acordes límpidos, de palavras sãs, ergueram-se humildes, acenaram-nos de longe, com um sorriso de compreensão perante a nossa ímpia (sentida...)vontade. Escrever como eles, eleitos, ou apenas lidar com as letras. Eu não! Perdoem-me. Sou um poeta firme. Pobre como pessoa. O Fernando que me escore. Seguro das minhas palavras, célebre nessa exigível e minha solidão, exploro os recantos frágeis da pretensão. Sábia ingenuidade. Li tanto, tudo o que já está escrito, porque o que não leio, sussurro num canto escuro que fui eu que o escrevi. Faltam as minhas obras. Eu, singular, orgulhoso como ninguém, entendo que outrem, desconhecidos na minha sala-fantasia, não merecem conhecer a minha rara arte. Mesmo tu, que escreves sempre, melhor e mais do que eu. Fácil, digeres a filosofia da comunicação, a sociologia, as intempéries que colidem entre o passado num fresco, ou, num outro bem longínquo o que apenas se adivinhou pela imensa loucura de quem o escreveu. Ninguém me lê! E os que não dormem comigo estão tão distantes... Ah..sim...Não escrevo para outros. Para os semelhantes. Nem tu. Nisso somos aparentados. Tenho por mim um cinismo absurdo. Tu não. És louco, já o disse. Lamento dizer-te que és melhor de louco tanto, de novo, que criaste heterónimos/ ortónimos disfarçando a tua dor e questões em seres imaginários. Sou bem mais produtivo do que tu. Não entendo o amor como ridículo. (Álvaro Caeiro) Nunca amei. Os sonhos são quiméricos. Não tenho tanto pudor. Escrevo nu... Não sou nem de perto nem de longe, simples como o Alberto. Sou muito mais radical do que tu. Vivo ainda com a cobardia de não me exilar. Quero democracia pura, expulsar os demónios da corrupção, findar com a pobreza e a doença, e, claro, escrever sobre o que não percebo. Tu não, (Ricardo Reis), fugiste para o Brasil. Não estou minimamente preocupado com o teu público. Eras mais casto. São meros figurantes, ignorantes, sendo eu a figura central. Leiote e nunca percebo o que viste na escrita. Morreste por ela e nem o teu amigo Bernardo Soares te impediu de partires e deixares-me só. Desassossegado. Pela minha real capacidade. Ainda ontem te li. Irritei-me solenemente contigo. Escreveste ao Walt Whitman. Porque não cresceste comigo? Seria sublime e hipócrita. Escritor como tu foste, no passado não sou. No presente, reconheço-te como meu mentor. Na soberba do disfarce, adequado para a humildade é só uma forma de me esconder. Na minha futilidade ao ler e comentar-te. Sabes, como tu e ele, o Walt, amámos sem saber que o desatino era fluído. Estou doente. Como tu, o Walt morreu primeiro. Assim, a última data do poema, é a carta que te escrevo. Por inteiro.
O termo “Incel”, que corresponde à aglutinação de duas palavras inglesas “Involuntary celibates” entrou nosso léxico através da minissérie “Adolescência”, criada por Jack Thorne e Stephen Graham, este último que também faz parte do elenco, e que nos confronta com uma nova realidade até aqui desconhecida de pais, professores, profissionais do foro, etc.
Sem correr o risco de ser spoiler, a trama gira à volta do assassinato de uma adolescente menina que é cometido por um adolescente, também ele um menino, com um ar perfeitamente angélico, que apanha totalmente de surpresa a sua família, a comunidade escolar, investigadores e psicólogos.
Esta ideologia “Incel”, que é amplamente difundida na manosfera (rede de comunidades masculinas online contra o empoderamento das mulheres que promovem crenças antifeministas e sexistas), funda-se na profunda convicção de homens e jovens heterossexuais, que as mulheres são detentoras de demasiado poder na esfera
sexual e romântica, e que isso arruína as suas vidas, sendo responsáveis alguns dos seus membros pelos ataques mais mortíferos executados contra mulheres e meninas.
Não é, infelizmente, nenhuma novidade para quem está inserido no meio judicial, ou apoia profissionalmente jovens e crianças, o crescimento do número de crimes violentos cometidos por crianças e jovens, tantas vezes ligados ao mundo virtual e disseminados através das redes sociais.
Segundo os dados do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), em 2024, a criminalidade grupal (factos criminosos cometidos por três ou mais suspeitos) e a criminalidade juvenil, registaram, respetivamente, aumentos de 7,7% e 12,5%, em relação a 2023.
Se do lado da criminalidade grupal as incidências estão relacionadas a rivalidades entre grupos, que também utilizam as redes sociais para mobilização dos seus membros para ações de violência organizada, do lado da criminalidade juvenil mantém-se a predominância dos casos ligados à criminalidade sexual, nomeadamente o abuso sexual de crianças, cometidos também por agressores (12,4%) que são crianças, com idades entre os 12 e os 16 anos de idade.
Merece destaque também o crime de pornografia de menores, sempre com recurso a aplicações como o Discord ou o WhatsApp. A tudo isto, acresce a utilização de ferramentas de inteligência artificial (IA) que facilitam o aliciamento e a exploração de menores nas redes, designadamente através de algoritmos sofisticados para atrair vítimas em plataformas de comunicação e redes sociais.
Dúvidas não existem que as redes sociais, principalmente as mais conhecidas (X Corp, TikTok, Snap, Meta e Discord), são hoje responsáveis pelos conteúdos que são disponibilizados a milhões de jovens
e crianças no mundo inteiro, expondo-as a conteúdos que são de uma enorme violência, inclusivamente sexual, e que têm culminado em situações de agressões graves entre jovens e crianças, bulling, automutilação ou até suicídios.
Naturalmente que as referidas corporações procuram sacudir a ‘água do capote”, recusando a responsabilidade pela publicação de tais conteúdos, ou da falta de fiscalização dos mesmos, referindo que não são os próprios os seus autores, mas sim os perfis que estão nessas plataformas, mas a verdade é que sabemos todos muito bem que o controlo parental tem limites que podem ser ultrapassados pelos jovens com grande facilidade, pelo que não tem sido eficaz no seu combate, sendo que a utilização dos algoritmos em cada uma delas potencia a exposição destes conteúdos, de forma reiterada e prolongada no tempo, o que contribui para uma completa distorção da realidade destas crianças e jovens, levando-as a cometer atos de grande violência contra si próprios ou contra terceiros.
O caminho para tentar impedir tudo isto terá de passar pela exigência de regulamentação imposta a nível mundial a estas plataformas, que são agora as grandes “educadoras” destes jovens e crianças, exigindo que as mesmas controlem os conteúdos que vão sendo publicados e a exposição das crianças e jovens aos mesmos.
Tentar ignorar estas evidências, ou tentar responsabilizar os progenitores pela contenção destes fenómenos, quando estes desconhecem completamente estas novas realidades (até porque não são as mesmas que viveram nas suas próprias juventudes), não é a solução e se não forem tomadas medidas sérias para conter estes fenómenos, continuaremos a assistir, petrificados, à massificação da desinformação, à normalização da violência e à disseminação constante destes comportamentos desviantes, que colocam em risco a nossa paz social.
DULCE ROCHA
Decidiu a Sra. Diretora da nossa Revista homenagear Manuela Eanes, neste ano em que celebramos o 50º aniversário das primeiras eleições livres, em que as mulheres puderam votar em igualdade no nosso País.
É de Justiça, sim, porquanto se trata de uma
Mulher muito especial, merecedora de distinções dirigidas à sua determinação na luta por ideais de Justiça social, que é afinal o que move os juristas humanistas: uma aproximação à Justiça, enquanto valor superior. Irei salientar algumas das suas qualidades menos conhecidas, sem deixar de mencionar outras mais notórias.
Quando, em 1976 iniciou um percurso de
promoção dos Direitos Humanos ao lado do primeiro Presidente da República eleito no nosso País após o 25 de Abril, tivemos oportunidade de cedo constatar que não iria limitar a sua acção como esposa do Presidente.
Percebemos logo que era alguém que não iria conformar-se, que iria utilizar a visibilidade que decorria das elevadas funções exercidas pelo marido para lutar pelos mais vulneráveis e vimo-la em iniciativas de natureza social, e sobretudo no apoio às crianças.
1979 havia sido declarado pela ONU Ano Internacional da Criança, e Manuela, então com 40 anos, rodeou-se de um conjunto de
personalidades de elevada craveira intelectual ligadas à Comissão criada para a efeméride, com o objectivo de contribuir para a promoção dos Direitos da Criança.
Manuela Eanes recebera das mãos de João dos Santos um manuscrito com um título motivador “A caminho de uma Utopia - Um Instituto da Criança” e compreendeu que era, afinal, uma verdadeira tese. Apercebeu-se da sua importância e viu a necessidade de concretizá-la. Para Manuela não há impossíveis e decidiu tudo fazer para que tal instituição nascesse.
Reunidos esses notáveis, no essencial profissionais ligados à defesa da Criança, em Março de 1983, foi criado o Instituto de Apoio à Criança (IAC), já com a nova perspectiva de olhar a Criança como sujeito de Direito, que só uns anos mais tarde, a Convenção da ONU viria a consolidar.
Preconizava, já nessa altura, uma perspectiva inovadora, holística, e a criança passou a ser encarada na sua globalidade, com as suas necessidades de desenvolvimento integral. Interessava-a tanto a condenação da violência como a valorização do bem-estar, entendido como caminho seguro para a felicidade, consciente que, em geral, os adultos felizes tiveram infâncias felizes.
Foram sendo criados múltiplos sectores no IAC, que correspondiam a um
conjunto relevante de matérias, em que Manuela considerava que se deveria intervir através de acções de sensibilização e depois até de Projectos dirigidos a crianças e jovens em situação de pobreza e exclusão, como é por exemplo o caso do Projecto das Crianças de Rua. Um dos Serviços mais antigos, criado em 1988, foi o ainda hoje emblemático “SOS Criança”, linha telefónica anónima e confidencial, que visava combater os maus tratos, o perigo e o risco em geral, mas sobretudo prevenir casos de perigo para a vida ou de lesões irreversíveis. Actualmente são as próprias Convenções do Conselho da Europa que aconselham canais de denúncia, e até a Comissão Europeia patrocina linhas telefónicas de apoio
com números únicos nos Estados da União, mas durante bastante tempo questionava-se até a legitimidade da existência de linhas com estas características.
Também o Sector da Actividade Lúdica, dos primeiros a ser criado, teve um papel importante, numa altura em que o Direito de brincar não era valorizado, e o Sector da Humanização ainda hoje é uma referência no atendimento à Criança, em particular no âmbito da saúde.
O Serviço de Apoio Jurídico ainda hoje tem um papel relevante no acompanhamento e no
encaminhamento de situações complexas, muitas delas trazidas pelo SOS Criança e ultimamente pelo Consultório Social. Tem tido um trabalho de parceria com as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens e o número de atendimentos não pára de crescer.
Talvez por ter iniciado a sua actividade profissional no Instituto de Obras Sociais do Ministério da Educação, Manuela incentivou sempre a criação de projectos com o objectivo de dar às crianças e aos jovens de contextos menos favorecidos, ou mesmo hostis, mais instrumentos que permitissem a sua motivação e interesse, e, na verdade, ao longo dos anos, foram inúmeras as iniciativas no domínio da Educação, sempre com a preocupação de dotar as crianças e os jovens de melhores condições a nível social.
É disso exemplo, a acção Educar e Formar para Inserir, que hoje está integrada nas escolas de segunda oportunidade da área de Lisboa e que tem sido um sucesso.
Também não descurou as parcerias, e nasceram nas escolas os Gabinetes de Apoio ao Aluno e à Família, com a participação das autarquias e das associações de pais, no âmbito do Projecto de mediação escolar, para combater o insucesso, o abandono e a violência na escola.
Todo este trabalho ao longo de mais de quatro décadas foi liderado pela nossa homenageada.
Manuela Eanes é uma defensora da intervenção cívica e valoriza o papel da sociedade civil. Daí que esteja sempre a par das novas realidades emergentes, e disposta a trilhar novos caminhos.
Impressionou-me também o espírito crítico, que levou, por exemplo a muitas alterações legislativas que aperfeiçoaram o nosso sistema de protecção. Sucedeu isso, por exemplo, quando por sua influência directa, em 2010, foi revogada a norma do artº 30º do Código Penal que permitia a aplicação da figura do crime continuado a crimes contra as pessoas, designadamente aos crimes sexuais contra crianças. Ou quando se reconheceu como verdadeiro direito da criança a preservação das suas relações afectivas profundas, ou quando se obrigou à intervenção do Tribunal sempre que houvesse suspeitas de crimes sexuais praticados pelos pais, para que não se assistisse à perversidade de ver as Comissões de Protecção a perguntar aos suspeitos se davam autorização para a intervenção.
Manuela Eanes é agora Presidente honorária do Instituto de Apoio à Criança, mas continua, como dizia Sebastião da Gama “a cumprir o seu Destino de não ficar parada”.
Há dois anos, envolveu-se na promoção de uma petição que visou dar o estatuto de vítimas às crianças que assistem à violência doméstica, ainda que essa violência não lhes seja directamente dirigida. A lei foi alterada e hoje são critérios objectivos que determinam que as crianças que assistem à violência doméstica são ouvidas em declarações para memória futura, por exemplo. Manuela Eanes nunca se cansa de defender causas que entende justas. E tem estado do lado certo da História, em obediência aos princípios e aos valores que decidem o progresso da Humanidade.
O seu trabalho é reconhecido justamente porque a Dignidade da pessoa humana esteve sempre presente e ousou lutar pelos mais vulneráveis. As suas qualidades são múltiplas e valiosas. Além da dedicação e da persistência, conseguiu cuidar da coesão das suas equipas a quem atribuía sempre os louros dos êxitos alcançados. Simultaneamente, conseguia manter firmeza, sempre que necessário, e exigia rigor nas acções desenvolvidas, segredos que estão na base do respeito e da admiração que lhe é dedicado.
É sempre uma honra dar a conhecer os méritos de grandes mulheres que contribuem para tornar mais digno e mais justo este mundo neste tempo em que nos coube viver. Agradeço, pois, à Sra. Directora da JustiçA, ter-me permitido associar-me a esta homenagem, pois como tão bem diz no seu mais belo poema, “há mulheres que trazem o mar nos olhos”. Vejo em ambas esta sensibilidade de proporcionar a quem as rodeia momentos inesquecíveis, de grande elevação e de uma imensa dimensão espiritual.
O exemplo inspirador de Manuela Eanes ajudanos a melhor cumprirmos missões de vida que abraçámos com convicção e espírito de liberdade e justiça, para prosseguirmos na senda da Dignidade humana. Termino a recordar Jorge de Sena, que apelava a que preservássemos “uma fiel dedicação à honra de estarmos vivos”.
Fotos de Fernando Corrêa dos Santos, gentilmente cedidas pelo mesmo para a revista Justiça com A.
I. Pensar a literatura sob a perspetiva do género. As questões do universo feminino. A voz feminina. O poder silenciado das mulheres:
A literatura é um espelho da sociedade, refletindo as suas normas, os valores e as desigualdades. A literatura sob a perspetiva de género revela questões profundas relacionadas à voz feminina e ao poder silenciado das mulheres.
As mulheres têm desempenhado papéis cruciais na literatura ao longo da história, sendo a voz
feminina na literatura diversa e multifacetada. Ela pode ser suave e introspetiva ou forte e desafiadora. Autoras como Virgínia Woolf, Simone de Beauvoir, Audre Lorde, Jane Austen, George Eliot, Louisa May Alcott, Chimamanda Ngozi Adichie, Clarice Lispector, Toni Morrison, Emily Dickinson, Sylvia Plath, Adélia Prado, Alice Munro, Mary Shelley, Marguerite Duras, entre outras, têm explorado a complexidade dessa voz.
São elas que, ao criarem personagens femininas complexas e profundas, dando voz a questões de identidade, amor, desejo, sexualidade, maternidade, poder, luta e resistência, não
deixando esquecer que a experiência feminina é vasta e diversa, indo além dos estereótipos tradicionais, criam obras atemporais. Muitas destas mulheres usaram a literatura como ferramenta de ativismo, denunciando desigualdades de género, desafiando normas de género e lutando por mudanças sociais.
Historicamente, as mulheres foram silenciadas na literatura: as suas vozes foram apagadas, censuradas ou relegadas a papéis secundários. Na verdade, o panorama literário era dominado por autores masculinos.
E foram aquelas autoras que desafiaram essas limitações, sendo que muitas outras permaneceram desconhecidas ou subestimadas. Os escritos destas mulheres oferecem, a quem os lê, perspetivas únicas sobre a condição feminina e a luta pela igualdade. E pensar a literatura sob a perspetiva de género é precisamente isto: convida cada um de nós – homens ou mulheres - a questionar, a desafiar e redefinir o seu entendimento sobre o mundo literário, pois apenas dessa forma é possível construir um modelo mais inclusivo e representativo.
No entanto, apesar de tantos avanços, as mulheres escritoras ainda enfrentam muitos desafios. Na verdade, a literatura escrita por mulheres nem sempre recebe a mesma visibilidade que a dos homens, sendo essencial promover e reconhecer as suas obras. As autoras têm de lidar frequentemente com estereótipos de género, sendo rotuladas como “escritoras femininas” em vez de simplesmente “escritoras”, mantendo-se a desigualdade ao nível da publicação, promoção e premiação destas obras literárias.
A voz feminina não pode ser silenciada, por ser vital para a riqueza e diversidade da literatura. Deve sim ser valorizada e devem ser amplificadas essas vozes femininas, reconhecendo o papel fundamental das mulheres na construção do cânone literário contemporâneo.
II. As “Novas Cartas Portuguesas” e a sua importância no panorama literário e social português:
As Novas Cartas Portuguesas são um marco inquestionável na história da literatura portuguesa, completando agora 52 anos desde a sua publicação,
continuando a ser uma obra de extrema relevância e pertinência. Publicadas em abril de 1972, durante o período do Estado Novo, insurgiram-se contra um regime patriarcal e autoritário que perpetuava a subjugação das mulheres e a sua relegação a papéis de inferioridade e submissão.
Escritas pelas “Três Marias” – Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa –, as Cartas reescrevem e subvertem o contexto das conhecidas cartas seiscentistas atribuídas à freira portuguesa do Convento de Beja e endereçadas a um oficial francês.
Surgem num período pré-25 de Abril, marcado pela censura, pela guerra colonial e pela opressão, desafiando as normas sociais e políticas da época, a ordem estabelecida e a moral vigente, explorando questões do corpo e da escrita das mulheres e denunciando questões como a guerra, o sistema judicial, a emigração, a violência e a situação das mulheres.
A estrutura da obra, inspirada nas “Lettres Portugaises” atribuídas a Mariana Alcoforado, é composta por uma série de cartas, poemas e ensaios que, de forma entrelaçada, constrói um discurso crítico e multifacetado. As autoras, ao tentarem transcender a reclusão feminina por meio dos textos, recorrem à literatura como ferramenta revolucionária e exploram imagens relacionadas com as tarefas femininas – mães/esposas, freiras, prostitutas, prisioneiras e loucas - como forma de denúncia. Essa abordagem ecoa outras autoras que as antecederam, como Christiane de Pisan, Mary Wollstonecraft, Virgínia Woolf e Simone de Beauvoir (Prado, 2017, págs. 3 a 10). A obra também possui um marcante caráter social (Jesus e Bernardo, 2016, pág. 32), suscitando questionamentos políticos e literários profundos (Simosas, 2007, pág. 13).
Pelas “Cartas” somos conduzidos através de uma experiência literária translúcida, sem precedentes
(Tavares, 2001, pág. 177). Essa obra desafia as categorias rígidas de autoria e autoridade (Amaral, 2005, pág. 81) e representa uma ousada incursão em territórios proibidos, numa “audaciosa decisão de caminhar para um sítio interdito” (Wolf, 1929).
A obra desconstrói relações de parentesco e de género, questiona papéis sexuais e sociais, abalando a estrutura patriarcal, negando o domínio masculino e a autoridade da ordem estabelecida. A escrita dessas cartas dá gradualmente forma a uma afirmação fundamental: a mulher possui uma identidade própria e, ao reivindicar igualdade, inscreve sua diferença na história “e, com o gesto com que reclama igualdade, traça na história a sua diferença fundamental” (Pintassilgo, 2010b): XLVI).
As Cartas analisam as estruturas sociais patriarcais, explorando diversos aspetos da vida quotidiana, usando uma linguagem enraizada numa tradição literária invisível (Amaral, 2005, pág. 80). Redefinem a luta antifascista, destacando a inelutável relação entre a democracia e os direitos humanos, bem como entre liberdade e direitos das mulheres. Transgridem as convenções literárias tradicionais associadas à produção literária feminina, desafiando os padrões literários e sociais instalados. Criam uma tensão irónica que desconstrói e reconstrói os jogos de poder presentes na sociedade e na própria literatura.
O teor das Cartas é desconstrutivo, pois resgata o passado de uma mulher que escreveu, Mariana, a freira ousada no seu amor platónico e carnal. Esse amor norteou a bravura das “Cartas” das Marias. Assim, desafiou-se a crença de que o passado não estava povoado da escrita feminina, rompendo-se com o silenciamento e a segregação das autoras femininas (Edfeldt, 2006, pág. 25). Além disso, a obra parodia o “cancelamento” imposto pelo patriarcado crítico literário institucional (Gnisci, 2002, pág. 64, apud Simosas, 2007, pág. 63), cujo poder estabeleceu um paradigma predominantemente masculino e ocidental, moldando os padrões
culturais hegemónicos (Simosas, 2007, págs. 63 e 64).
As Novas Cartas apresentam dicotomias, dualismos culturais, defendem uma multiplicidade de identidades fluídas e não estáveis, destacando-se pela sua ambiguidade e fluidez, questionando marcos normativos e, em última análise, constituindo um espaço de exuberância literária (Amaral, 2005, pág. 79 e 86). Rejeitam normas e padrões, abalam os estereótipos, num vai e vem entre a aceitação e a transgressão das dicotomias, numa dialética entre o “«pulsar subterrâneo» e a «acção»” que “exprime o constante vaivém entre a expressão do inconsciente e o diagnóstico social” (Pintasilgo, 2010b, XXXVII). Além disso, essas Cartas antecipam correntes literárias que, embora nelas presentes, surgem posteriormente – por exemplo, na crítica ao heterossexismo, à ordem patriarcal e aos dualismos que fundamentam a cultura (Amaral, 2005, pág. 82). A dimensão literária dessas cartas é marcada pela reescrita, hibridismo e alteridade (Amaral, 2005, pág. 88), permitindo leituras aleatórias que geram novos significados a cada encontro (Simosas, 2007, pág. 13).
Conforme refere Adriana Bebiano, “é um livro feito de fragmentos: cartas, poemas, curtos nacos de ficção. (…). São fragmentos a várias vozes: Anas, Marianas, Maria Anas diversas, entre os séculos dezassete e vinte, vão falando das suas vidas, do quotidiano difícil de mulheres, pobres, ricas, enclausuradas, abandonadas, violadas, por vezes apaixonadas. Daqui resulta uma polifonia de queixas e lamentos, mas também de celebrações (…).”
As Cartas “inauguraram um novo tempo na corrente literária do neofeminismo contemporâneo” (Pintassilgo, 2010b), XXXI). São multifacetadas, laboriosas, engenhosas, literais e desafiadoras. Do ponto de vista de género e literatura, elas são tudo e nada simultaneamente, como destacam Amaral (2015) e Pintassilgo (2010b). Rompem, transbordam e ultrapassam limites (Pintassilgo, 2010ª, XXVII). Enfrentam essa realidade por meio da ironia, criticando os padrões estereotipados de comportamento, valorizando as qualidades femininas e denunciando os duplos padrões morais e as divisões sociais de poder e privilégio. Maria Teresa Horta, em diálogo com Carneiro (2020), destaca a devastadora eficácia do humor ao debater a masculinidade.
É uma obra que desconstrói a marginalização feminina (Pintassilgo, 2010b): XXXI), que se assume antiguerra e denuncia a estratificação social (Amaral, 2005, pág. 86), assim construindo uma “poética de resistência (Amaral e Freitas, 2015, pág. 15).
No resumo de Inês Pedrosa (Filbox produções, 2011), o livro é descrito como erótico, violento, inovador e escrito em linguagem antiga e moderna simultaneamente. A escrita é considerada plástica, elástica, imaginativa e sonhadora, sendo o corpo o meio pelo qual se expressa.
CONTINUA...
Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta
Tenho 48 anos, sou filha de emigrantes, nasci na Alemanha e vivi lá até aos 8 anos. Regressei a Portugal, para uma aldeia da Beira Alta, onde fui confrontada com a pobreza e atraso. Encontrei histórias de abuso sexual que, na minha tenra idade, não conseguia compreender.
Ouvia: “Fulano tal desonrou a filha”. Aos 12 anos, uma amiga da escola confidenciou-me que o avô e o pai abusavam dela. A mãe tinha morrido, e o pai era polícia. Ouvi e silenciei. Era demasiado para crianças de 12 anos. Na impotência e ignorância, sem saber o que fazer, calei a minha voz.
Hoje, depois de tantos anos, não posso mais ficar calada.
Sou psicóloga, acompanho mães, sei que este tipo de violência acontece dentro das casas, com as figuras em quem deveríamos confiar. O abuso e a violência é uma realidade que temos de enfrentar, para poder resolver com dignidade e respeito pelas vítimas, muitas delas crianças.
Nos últimos 6 anos tenho-me dedicado às dinâmicas familiares narcisistas, relações abusivas, violência doméstica e abuso sexual infantil intrafamiliar.
E chegou a hora de dar voz às mães.
“Ouve bem: se denuncias, tiram-te os filhos.”
Esta frase ecoa nas consultas, nos grupos de apoio, nas noites de insónias de tantas mães.
O simples som da sigla CPCJ faz estremecer pernas e corações destas mulheres. São gatilhos, que ativam o trauma - stress pós-traumático complexo - Supostamente existe para proteger, mas por vezes arranca filhos injustamente às mães, entregando-os a agressores ou a instituições. Não se compreende esta equação fria, este comportamento cruel.
Não se compreende o rótulo injusto de “mãe ansiosa” atribuído nos tribunais, como se fosse um selo de incapacidade afetiva.
Sou mãe. E tu? Também és?
Então talvez consigas sentir mais empatia, no que te vou contar.
É a história de muitas mulheres — portuguesas, reais — que vivem ao teu lado. No rés-do-chão ou no bairro vizinho. No Norte, no sul, nas ilhas. São de todo o lado. E se te permitires ouvir com o coração, talvez ainda as consigas escutar... a chorar.
Têm medo. Um medo profundo. Já não do companheiro perturbado e violento — porque esse já ficou para trás, graças a Deus, com o divórcio/ separação.
O medo agora tem outro nome: chama-se Justiça.
Muitas destas mulheres já vêm marcadas pela infância — cresceram em contextos familiares abusivos, onde as dinâmicas narcisistas eram o seu “lar”.
Aprenderam a normalizar a violência, a confundi-la com amor.
Como explica Iñaki Piñuel, as vítimas não escolhem os narcisistas — são programadas desde a infância para se
ligarem a eles.
Os chamados “psicopatas integrados” têm duas faces: são socialmente encantadores, mas, em privado, mestres da destruição emocional. Lobos vestidos com pele de cordeiro. Raramente batem — não precisam.
A manipulação é eximia, e basta. Raramente deixam marcas, mas cometem crimes. Porque destruir o psicológico de mães e crianças é crime.
Essas personalidades perturbadas — embora encantadoras — entram na vida das mulheres, inundando seus cérebros de dopamina por meio de estratégias de manipulação como love bombing e future faking. No entanto, desaparecem repentinamente, apenas para ressurgirem mais tarde com táticas como ghosting e reforço intermitente. Assim se inicia o ciclo de micro- abusos: gaslighting, uso de “macacos voadores”, campanhas de difamação... E, quando a mãe se defende e denuncia, vêm os castigos e as ameaças — sendo coagida através da alienação parental. Essas são apenas algumas das estratégias de manipulação narcisista usadas para aniquilar psicologicamente mães e filhos.
Sim, ouviram bem: os filhos também. Porque estas personalidades carecem de empatia, não têm moralidade e não sentem remorso. A PPN é a perturbação da maldade, da frieza e da destruição psicológica. Usam os filhos para satisfazer as suas necessidades perversas e para provocar dor e sofrimento à mãe. Por isso, mais cedo ou mais tarde, entram nos tribunais com processos de violência doméstica ou abuso sexual infantil.
Passam pelas perícias psicológicas com mestria — não são detetados nem pelos psiquiatras, nem pelas psicólogas. E por quê? Porque os testes utilizados pelos colegas, não detetam a patologia. São testes de sintomas e escalas de autorrelato que servem para avaliar outras condições, mas não identificam o psicopata integrado.
E quando algum colega até identifica PNN com várias entrevistas, chega ao tribunal da primeira instância, e estar escrito pai narcisista ou bom pai é o mesmo. E não se espantem, quando sobe para o tribunal da relação o entendimento não é diferente. Por quê? Não sei.
Astutos, não deixam vestígios e, na maioria das vezes, não são condenados. Invertem a culpa para quem cumpriu o dever cívico de denunciar — que acabam por ser culpabilizadas, descredibilizadas, incriminadas por difamação ou maus-tratos (ainda não por alienação parental, porque esta não é lei — e rezamos para que nunca seja).
As mães, desde que pisam os palcos do tribunal, tem de provar constantemente a sua inocência.
E as crianças, re-vitimizadas, são expostas em depoimentos e em memórias futuras... muitas vezes, para nada. Pois, no tribunal dos adultos, a criança não tem voz e o contraditório facilita-se.
Nas consultas com estas mulheres, mostram-me requerimentos, perícias, despachos. E fico chocada com o modo como são desconsideradas e humilhadas. Ainda mais perturbador é ver como as crianças são expostas, re-traumatizadas e colocadas nas mãos de quem as devia proteger... e não protege.
Contam-me, que têm medo do juiz. E do procurador. Das técnicas — quase sempre mulheres, estas últimas, muitas vezes mais machistas do que os próprios homens. Sim, por mais cruel que pareça, é uma triste verdade. Como costumo dizer, o machismo não está no género, mas no nível de consciência. E não há nada mais assustador do que uma mulher machista, uma mulher que não empatiza com a dor de outra mulher. Especialmente quando ela representa instituições como a Segurança Social, as EMATs, as CAFAPs ou a Santa Casa. Siglas,
tantas siglas... que se erguem como sombras sobre quem mais precisa de luz.
Se eu não as ouvisse, também não acreditaria. Mas ouço. E fico incrédula. Fico chocada. Relatam-me, litigâncias de má-fé, calúnias e ameaças — enredos dignos de uma telenovela, mas sem intervalo para respirar. E pergunto, ainda com alguma ingenuidade e uma réstia de fé no sistema: não estarão estes profissionais ao serviço da protecção das crianças? É a questão que coloco, tanto às mulheres que chegam à minha consulta como aos pequenos grupos de mães que se vão formando nas redes sociais — comunidades espontâneas onde se partilham dores, angústias e, por vezes, um fio ténue de esperança.
Estas mães devem ser acolhidas, ouvidas e valorizadas. Todos nós nascemos de uma mãe — e nenhum de nós gostaria que a sua fosse maltratada. Elas devem ser tratadas com a dignidade que merecem, e não com gritos e ameaças, como ocorre nos palcos dos tribunais — como tantas me relatam durante as consultas, chorando de medo e humilhação. Excesso de poder? Abuso? Sim: abuso institucional.
E que me perdoem todos os intervenientes dos tribunais que pensam diferente, que querem fazer diferente, mas que parece que ainda são poucos para lutar contra esta onda gigante da Nazaré — que poucos conseguem surfar, muitos sucumbem e a maioria assiste, paralisada ou distante, ao espetáculo.
Mas não há mães com Perturbação da Personalidade Narcísica (PPN)?
Sim, claro que há. Mas não são a regra nos tribunais — são a exceção. É um fenómeno psicológico que se manifesta com maior frequência no sexo masculino, talvez porque a sociedade continua embebida em machismo e assente numa visão patriarcal.
E O MAR LOGO ALI
O mês de maio é sempre de grande azáfama. Além dos processos para despacho diário, das audiências agendadas e das sentenças que se seguem, os Juízes ponderam se é de concorrer ao movimento judicial que produzirá efeitos a partir de setembro próximo. Têm até ao dia 31 de maio para o fazer.
Na hora em que lerem este texto, Eva já terá decidido se quer mudar de ares. À partida, há várias soluções possíveis, desde propor-se ao lugar vizinho – que tem menos processos pendentes –, mas só se o colega o libertar, ou tentar chegar a lugar a que podem chegar os que tenham mais de 10 anos como Juiz e nota de “bom com distinção” ou “muito bom”. Ainda falta muito para chegar a Juíza Desembargadora (Juízes dos Tribunais da Relação), patamar a que se chega cada vez mais tarde. Por isso, a gestão da carreira deve ser ponderada com cuidado.
Eva foi aprendendo com os erros: aquando da primeira colocação preferiu ficar perto de casa. O trabalho era tanto que a sua energia foi engolida pelo sistema e ela, jovem e inexperiente, incapaz de pôr fim aos processos que constavam da lista de objetivos. Depois, foi colocada num lugar menos exigente, mas a mais de 500 km de casa. Resultado: por dois anos, foram duas casas, muitas viagens e quase dois namorados …
Algum tempo passado, Eva domina os assuntos e mudar agora de área irá obrigála a novos desafios. Por outro lado, sempre pensou que com os anos poderia estar mais desafogada e não está. Se conseguir um lugar como Juiz de Juízo Central irá
ficar a ganhar para sempre o mesmo. Era isto que os colegas mais velhos queriam dizer quando falavam em “carreira plana”.
Mas eis que o sistema que lhe engoliu a alegria também lhe oferece a solução: acumulações. Quando ouviu falar que entre setembro de 2023 e julho de 2024 tinha havido 281 acumulações de serviço na primeira instância, não achou possível. Como é que os Juízes esgotados que estão, ainda conseguem aceitar (a medida é voluntária) mais trabalho? Porque as ações têm duração cada vez menor e de forma sustentada desde 2016 (números das ações cíveis) e para manter essa tendência é necessário mais mãos e mais cabeças humanas – a escassez de recursos em face das necessidades –, porque não se formam Juízes num mês, e porque em carreiras estagnadas e perante o custo de vida, acumular é também uma forma de o rendimento (exclusivo da atividade de administrar a justiça) aumentar.
A descrição de Chico Buarque, em Estorvo, (2019, Companhia das Letras) inspira-a: espalha uma película de geleia grená na torrada, como que esmaltando a torrada, depois analisa, desiste do grená e arremata com geleia cor de laranja; vai morder, muda de idéia, toma um gole de chá (…)
Eva decidiu manter o seu lugar e oferecerse para garantir a sustentabilidade do sistema judicial, acumulando.
LÍCINIA QUITÉRIO
Há uma hora em que todos se vão embora do retrato. Ficamos sós, senhores do nada, acreditando. No silêncio do mundo evaporam-se as águas e uma bruma de rendas desfoca contornos vegetais. Se guerras houve por ali e assassinos a soldo e a loucura invadiu a cidade, tudo se esvai naquela hora. Ficamos nós e as brancas mãos e os cabelos de fogo e as lágrimas antigas esperando o tempo de chorar. Sob as brumas ou cinzas, tanto faz, um barco há-de surgir, com gente dentro, a remar devagar, a desdobrar o manto, a seda, a desmentir a braveza do mar.
Existe mesmo. Fica no Japão.
É pequeno, com apenas doze lugares e neste, todos os empregados de mesa sofrem de algum tipo de demência por isso, e para lhes facilitar a vida, o mesmo só tem três pratos disponíveis a saber, pizza, hambúrguer ou gyozas.
Por sua vez, o papel onde apontam os pedidos é um formulário igualmente simples, para evitar enganos.
Todos os seus clientes são informados, previamente, da demência dos empregados e que, a probabilidade de os seus pedidos virem trocados, apesar de todos os cuidados, é real, situação que ocorre com frequência, aliás 17% dos pedidos saem errados.
Apesar disso, os clientes saem sempre satisfeitos deste restaurante pois aqui os erros não incomodam.
Um projecto que funciona em modo popup em várias cidades do Japão lançado por um realizador televisivo de seu nome Shiro Oguni o qual quis demonstrar que muitas pessoas com demência sentem que, se forem aceites
pelas pessoas à sua volta com um espírito de compreensão, podem fazer parte da sociedade.
Ah, o logotipo do restaurante e que consta da capa de um livro com o nome idêntico, uma boca sorridente com a língua de fora, representa uma expressão facial que os japoneses usam muito em situações em que cometem um erro e que poderia traduzir-se em qualquer coisa como “Ups …”.
Por outro lado, em Portugal não temos qualquer restaurante de pedidos trocados, mas um modelo semelhante. Sem pedidos tocados, mas igualmente inclusivo.
Chama-se “café joyeux” com lojas na baía de Cascais, na Universidade Nova de Carcavelos, e pelo que sei, também em São Bento sendo a inclusão o seu mote principal ao empregar pessoas com deficiência sendo que, escusado será dizer que o trabalho é o primeiro passo para uma cidadania plena.
Espero-vos lá.
https://pt.cafejoyeux.com/
Margarida Vargues
Falar de consentimento parece, para muitos adultos, um assunto demasiado sério, íntimo ou até embaraçoso para que seja discutido com crianças, afinal, dizem - alguns - , que “são só miúdos, o que é que eles percebem disso?”.
O problema é que esta pergunta está errada logo na origem: não se trata de “o que eles percebem”, mas sim de como nós, enquanto adultos, o ajudamos a formar essa perceção. E o mais curioso — ou talvez o mais óbvio — é que tudo começa muito antes da adolescência, das conversas sobre namoros ou da - tão falada, discutida e polémica - “educação sexual” propriamente dita. Começa, imagine-se, no recreio.
No recreio? Sim! No recreio! Aquele espaço aparentemente caótico entre aulas, onde se cruzam gritos, correrias sem fim, jogos improvisados, olhares perdidos nos ecrãs dos telemóveis e, até, lágrimas ocasionais. O recreio é uma espécie de laboratório social a céu aberto. É lá que os mais novos
testam, pela primeira vez sem a nossa - a dos adultos! - supervisão direta, as suas habilidades de negociação, liderança e sobrevivência emocional.
Também é lá que se desenrolam os primeiros confrontos com limites — os próprios e os dos outros. E é precisamente aí que o consentimento entra em cena, ainda que muitas vezes de forma silenciosa, quase imperceptível, como quem espia pela janela à espera de ser convidado para entrar.
Educar para o consentimento implica, antes de mais, reconhecer que os corpos das crianças lhes pertencem. A elas, sim! A mais ninguém. Parece evidente, não parece? Pois, mas nem sempre o é. Basta lembrar a quantidade de vezes em que, em jeito de convite, sob o escudo da “boa educação”, obrigamos uma criança a dar um beijo a um adulto, mesmo que ela recuse,
recue, vire o rosto ou diga com todas as letras: “não quero”. E lá estamos nós, com o famoso “vá lá, é só um beijinho!” Desde quando ter autonomia sobre o próprio corpo é sinónimo de má educação? O que se ensina aqui - ainda que sem intenção - é que o desconforto pessoal deve ser silenciado em nome da conveniência social. É aqui que passamos a primeira rasteira ao consentimento!
É óbvio que ninguém está a sugerir que deixemos as crianças fazer tudo o que lhes apetece, nem que transformemos o recreio numa “Assembleia das Nações Unidas” em ponto pequeno, contudo é importante perceber que o equilíbrio é possível — e extremamente necessário — entre a autoridade de um adulto e o respeito pela vontade da criança. Aquela que aprende que pode dizer “não” com segurança é uma criança que, mais tarde, será um adulto convictamente capacitado para estabelecer limites claros. E não só, pois será também alguém com a sensibilidade de respeitar os limites alheios, o que, convenhamos, está muito longe de ser uma competência universal.
De entre muitas outras, há uma expressão que merece ser um alvo maior da nossa atenção: “foi só uma brincadeira!”. Quantas vezes já a ouvimos usada como desculpa para puxões de cabelo, empurrões, beijos forçados ou piadas de mau gosto? Aquelas pequenas-grandes coisas que, como diz o ditado: “não matam, mas moem”... É impressionante como a suposta inocência de uma acção pode ser usada para minimizar o impacto que ela tem em quem a vive. O que deveríamos ensinar, em vez disso, é que a brincadeira só é válida quando todos se estão a divertir, pois a partir do momento em que alguém deixa de rir espontaneamente e com gosto, não estamos, de todo, a brincar — estamos, muito provavelmente, a invadir um território que não nos pertence.
E que papel temos nós - adultos -, afinal, nesta dança delicada entre limites e liberdade? Ora, se os adultos forem aqueles que insistem em cócegas depois do terceiro “pára”, ou que acham graça em esconder o brinquedo favorito da criança só para a “ver desesperada”, talvez seja altura de revermos as nossas próprias noções de consentimento. Porque educar não é apenas dizer o que é certo — é, sobretudo, viver o que é certo. O exemplo, dizem, não é a melhor forma de ensinar: é a única!
Nas escolas, muito poderia ser feito sem a
necessidade de grandes reformas curriculares, como por exemplo, a escuta ativa, a validação das emoções e a criação de momentos em que se fala sobre respeito, desconforto e escolha são ferramentas poderosíssimas.
Isto podem ser momentos trans-disciplinares e não exclusivos das ditas aulas de cidadania que obedecem, mais uma vez, a programas definidos e decididos por quem, ou nunca deu aulas ou já não se lembra do que é estar sentado num banco de uma sala de aula. É duro admitir isto, não é?
Às vezes, basta perguntar a uma criança “gostaste da brincadeira?” ou “quiseste mesmo partilhar o teu lanche, ou sentiste-te obrigado/a?” para abrir uma janela de consciência que, de outro modo, permaneceria fechada.
Curiosamente - e aqui vale uma nota para os adultos mais cépticos - as crianças têm uma compreensão surpreendentemente apurada do que é justo e do que é invasivo. Talvez por ainda estarem completamente moldadas pelos padrões sociais, que tantas vezes relativizam o respeito em nome do hábito, da tradição e da “boa educação”. Para elas, um “não” é um não. E, quando não é respeitado, percebem de imediato que algo está errado, mesmo que não tenham ainda o vocabulário apropriado ou a capacidade para o explicar.
Educar para o consentimento é, no fundo, educar para relações mais humanas, mais saudáveis, mais éticas e muito mais conscientes. E não, não precisamos esperar que os adolescentes comecem a namorar para falar sobre este assunto. Podemos - e devemos - começar a fazê-lo antes que saibam soletrar a palavra, afinal, se conseguimos ensinarlhes a pedir licença para ir à casa de banho, também conseguimos ensiná-los a pedir licença para abraçar um amigo ou para entrar num jogo. E, mais importante ainda, conseguimos ensiná-los a ouvir e a aceitar o “não” com a mesma naturalidade com que aprendem a contar até dez.
Em tempos tão turbulentos, em que se fala tanto sobre liberdade e direitos, talvez seja hora de escutar os sussurros do recreio, porque é aí, entre o escorrega, o elástico e a Bota Botilde, que nascem os cidadãos e cidadãs do futuro - e com eles, esperamos, uma cultura de respeito que começa com uma pergunta simples: “posso?”.
DAVID GURITA
Pela primeira vez, sinto um impulso que me diz que devo escrever.
É difícil organizar-me e perceber por onde começar, o que começar, mas creio que sobre as expectativas.
Há poucas coisas que nos tragam tanto de bom, como de mau - talvez o amor, o dinheiro, os vícios. Talvez haja muitas até! Mas, a mim, são as expectativas que me afligem: criar um plano para cada momento da nossa vida e esperar que corra como esperado. Ter a certeza de que queremos uma coisa, que talvez não queiramos tanto. É, simplesmente, difícil - mas talvez seja a vida.
Não sei até que ponto acredito numa vida sem expectativas, sem desejos, sem sonhos. Mas, porque não?
A expectativa entra em nós desde que nascemos: se saímos à mãe, ao pai, se vamos ser bonitos, se começamos a andar e a falar antes do primeiro ano, se vamos ser bons alunos, se vamos ter uma boa profissão, uma vida “feliz”.
E estes planos? Seriam reais numa vida paralela? Será que existe a hipótese desta pressão não existir e qualquer um de nós poder ser livre e, talvez, nem aprender a falar?
Sei lá. A verdade é essa, não faço ideia do que seria a vida se a humanidade não tivesse uma história, que nos trouxe aqui. E por isso, não valendo a pena enlouquecer com estas hipóteses infinitas, mais vale voltar ao tema da expectativa.
Por exemplo, estou a escrever isto com o “sonho” (que acabei de criar) de ter paciência para tornar “isto” num livro, num best-seller internacional e ser um escritor famoso. Porque não?
E porque não escrever apenas sem compromisso, apenas porque me está a saber bem, sem expectativa?
Olhando para trás, para agora, e talvez para o futuro, não sei se as expectativas que criei foram boas ou más. Mas sei que muitas me fizeram sofrer, por todos os sonhos que não cumpri. Talvez “ainda” não os tenha cumprido, mas com o passar do tempo, vamos aceitando a dor e desistindo de acreditar neles, nos sonhosum pouco como temos que aceitar a morte de alguém, ou qualquer outra fatalidade.
Mas sonhos não cumpridos não são uma fatalidade, talvez os consigamos reinventar, ou pelo menos acreditar que aquilo que achávamos que nos iria fazer felizes aos 18 anos pode ainda vir a acontecer. Ou melhor, talvez ainda devamos acreditar na felicidade, mesmo sem esses sonhos.
Ou nada disto. Será que a felicidade existe mesmo, ou é só uma expectativa? Quem é feliz, de facto?
Acho que as crianças, pelo menos as inocentes - ou que foram de alguma forma protegidas da realidade - o são. Por acreditarem que tudo é possível, por terem quem cuide das suas necessidades mais básicas, por conseguirem viver sem qualquer preocupação.
Quando a vida chega, e chega cedo, isso vai morrendo - talvez seja mesmo uma fatalidade - e vamos deixando de acreditar, vamos assumindo os impossíveis, as coisas que nem vale a pena tentar. E talvez isso seja triste: a resignação tornar-nos menos crianças.
Seguindo esta lógica, parece haver dois caminhos, que também me parece que podem
ser tomados ao mesmo tempo - talvez com uma perna em cada um: o que nos mantém crianças e o cria as crianças para nunca deixarem de o ser.
Como? Não faço ideia, mas parece fazer sentido.
O que me pode manter criança? Gostar de desenhos animados? Continuar a sonhar? Acreditar em tudo?
Acho que acreditar, sim. Acreditar que estamos no caminho certo. Que podemos não ter tomado as melhores decisões, mas - a ter de decidir - aceitar que não podemos voltar atrás e devemos viver com elas.
Acreditar que o melhor está para vir, ou que pelo menos algo de bom virá. Acreditar e fazer por isso.
Ter fé. Um conceito que muitos acham quase “perigoso”, ou motivo de gozo, mas que me diz muito. Ter fé, desde há uns tempos para cá, que me ajuda a aceitar melhor a vida, a fazer as pazes com as coisas menos boas que vão acontecendo. E parece ser algo tão universal e comum a tantos de nós, que talvez faça mesmo sentido.
No final de contas, ninguém sabe se existe algo mais, para além “disto”, nem creio que alguma vez irá existir esse alguém. Mas talvez faça sentido ter fé, porque me permite ser criança, ser “feliz”.
Fé no que quiser, num jantar incrível, num futuro em que vivemos até aos 100, ou em que somos ricos, ou que nos vamos encontrar com quem vai “indo”. Ter fé que amanhã o dia vai ser melhor.
A tal expectativa, que ainda há pouco, me parecia tão boa e má, talvez seja isso mesmo: fé.
Então será só boa? Porque me referi a ela no início como má?
Porque estava a pensar no trabalho que tudo isto dá. Viver dá muito trabalho, mas se não estamos cá para isso, estamos cá para quê?
Voam os sóis desde um crescer, entre semear sonhos de vontades ímpares.
Os tempos sem atrasos, mas sucessivamente variáveis na representação do NASCER do SOL sem calendário ... dizem, são pontos desafiadores do nosso acordar multiplicando ventos e chuvas de análises constantes ao termómetro sem regime.
Cada calendário “voa”, e as agendas ditas programadoras são uma inconstante teoria de “interrogatórios” , quantas vezes indecifráveis.
Na mente... os monumentos das nossas construções, configuram livros que construímos e recordamos insistentemente , ao ponto de corrermos o risco de corrigir sem ética ... ou olharmos o lado dito gramatical do nosso navegar “nuvens fora”.
Hoje, é a abertura constante do enredo de vivermos o amanhã. Felizmente que os sonhos acontecem numa ondulação bem iodada de “somatórios” agradáveis, e as assinaturas eternizam o querer sempre nascente e desafiador.
Como “ PAI da NOIVA”, o orgulho dita agrados ... e o impossível bem humorado acontece:
- Que bom ser PAI de DUAS FILHAS ... e aguardar o casamento da mais nova!
De fato e gravata gritarei - YES !
E o meu futuro genro aplaudirá encenando - SO GOOD !
José António
Literatura e Direito, eis uma correlação já afirmada.
Quantos juristas não se notabilizaram na escrita ao trocarem o mundo legal pelo literário. Em menor número são os que conseguem manter-se em ambos e nos dois exímios. Mas não faltam exemplos.
Paulo Ferreira da Cunha, professor de Direito, autor de uma vastíssima obra filosófica de diversificada matriz, poeta ele também, colaborador deste jornal, autor do livro Prova de Vida, onde encontrei os versos «Atulhado em livros, em processos/ declina-me a tarde e me foge o Sol». Ou Orlando de Carvalho, professor de direito também, activo militante cívico, nos versos levados ao poema Transfiguração, integrado na antologia que chamou Arqueologia, publicada em 1947: «É tempo de esquecer/
lirismos estafados e felizes/e de sentir, de amar e compreender/a voz amordaçada das raízes». Ou ainda Francisco d’Eulália e o seu vasto manancial poético, algum sob a chancela da Modo de Ler, de José Cruz Santos, em que poesia é quase a de um alter ego da persona que conhecemos enquanto jurista, ele também pintor também, a firmar as suas telas como José d’Eulália, como a dar razão ao verso «Como se pode desenhar/o vazio/ como se pode construir/matematicamente/o silêncio».
São três exemplos, a que poderia somar tantos, dos que procuram na poesia companhia, pela poesia uma outra forma de ser, com a poesia consolo para a sua sensibilidade, lenitivo para as dores da alma que são o preço da profissão.
Como não citar, entre os contemporâneos a Raiz Afectuosa de António Osório, o poeta que conhecemos com tendo sido o advogado António Osório de Castro, a escrita vária de Rui Barbot Costa, que lemos como Mário Cláudio, «jurista a contragosto» lhe chamou Carlos Ascenso André, a polimórfica obra Vasco Graça Moura, a extensíssima produção poética de António Arnaut, tantos, tantos e quantos esqueci!
Adelina Barradas de Oliveira, juíza desembargadora junta-se a esse universo resistente, com um livro a evidenciar que o Direito não estiola necessariamente a alma de quem o viva humanamente, missão dolorosa porque esforçada e sacrifical, mas encargo, porém, de humanos para humanos, nunca demasiadamente humanos.
Trata-se de um livro mimoso, obra de cuidado e esmero, a escapar ao descuido editorial que, infelizmente, amiúde desfeia este tipo de iniciativas editoriais. Aos poemas juntam-se a fotografias, por vezes em suave flagrância.
Lido o livro, pressinto nele a irrecuperável solidão, mesmo que a aparência da jovialidade nos sugira o inverso. «Formado em Direito e Solidão» é título, aliás, de um poema de Pedro Tamen, levado ao livro Escrito de Memória que publicou em 1973.
Solidão também aqui, mesmo quando é a própria reflectida na alheia, como no poema O Homem Só, escrito a 22 de Julho de 2012 e republicado, com ligeiras invariâncias, no mesmo dia e mês, no ano de 2018, e nele recordado em ambas as versões: «Era um homem daqueles homens muito/Jovens e muito sós …/Com uma vida de solidão pela frente». Há nele a poesia como acto noctívago, furtivo e esconso, a coberto do segredo e do recolhimento e eis o encontro com tal circunstância: «Às vezes quando fico a trabalhar até muito tarde/(não foi o caso hoje)/Vêm os pássaros lembrar-me que o Sol começa a despontar/Na linha do horizonte/Ali … naquele lado onde nascem todos os sonhos e a realidade».
Poesia incendiada pela luminescência solar logo tornada em poente, como no verso Com Sol ao
Fundo, poética inspirada pela Natureza, o mar, o céu e o vento, poética de palavras ditas e de palavras perdidas, de cores, viagens e de vontade de partir, a de Adelina Barradas de Oliveira é também a lírica do quotidiano, povoada de mulheres que aparentam flores, mas «a vestirem-se de espinhos», poética a irromper como um «sorriso que abriu a porta e «entra o sol misturado com Lisboa».
Versos marítimos, como o título da obra no-lo sugere, é poesia com palavras e de palavras, que nos irrompem no poema Chegam Palavras.
Estamos perante uma poesia que revela a poeta, a que não saberá que o é, sendo-o afinal, como nos diz no poema O Poeta Não Sabe: «O poeta não diz: eu sei escrever poesia/O poeta não sabe que sabe escrever poesias, mas sabe que o [que] escreve é poesia».
Estamos, enfim, perante um livro que é, afinal, a alma de um ser humano excepcional, mas que, tendo por profissão ser uma jurista escrevente, porque a ter de escrever em processos judiciais, sublima-se aqui pela poética.
Andamos distraídos
Com os comportamentos dos pais e os comportamentos daqueles que deviam ser crianças.
Não sabemos nada … Vivemos no nosso globozinho com uma agenda e uma preocupação umbilical que está perfeitamente a Leste do Inferno.
Fazemos muitos congressos colóquios mesas redondas mas não temos respostas da parte das instituições.
Não vamos aos porquês dos comportamentos!
Vendemos pensos rápidos para as feridas mas nem percebemos como foram feitas.
Despertamos quando uma série que passou na Tv começa a ser falada por vozes sonantes ou, quando também na Tv se fala até à exaustão das mulheres que são mortas todos os dias, desde há muitos anos, ou outra voz sonante vem afirmar, só agora, na Tv, que não deve ser a vítima a sair de casa.
Há mais de meio século que é a vítima a sair/ fugir de casa porque o agressor não sai nem ninguém o tira.
E não pensem que são só homens que agridem ou abusam sexualmente dos filhos no silêncio do lar, também mulheres o fazem . Ainda há dias na TV o disseram…
Mas nada disto é de agora…andamos todos muito distraídos, ou desligados, ou alheios, ou mal informados….
Para quem tem em mãos todos os dias, tantas vidas e não tem solução para elas porque, nem a
lei tem solução, nada do que se diz agora, na TV, é novidade, nada do que se concluiu agora por vozes sonantes, é novidade.
Mas não desatem a pensar que a solução está na lei, ou está na aplicação melhor ou pior da lei, ou na alteração da lei….
Não sei onde está a solução, mas sei que andamos distraídos desde que as crianças nascem, se calhar até antes de nascerem…
Estamos preparados para as termos? Quando nós nascemos estavam todos preparados?
Se a vossa filha de 12 anos for surpreendida a fazer sexo oral com 6 rapazes, colegas, que levou para casa na vossa ausência, estão preparados?
Se a vossa filha marca uma date (dizem assim agora), com um indivíduo adulto que nas redes sociais se fez passar por um garoto, estão preparados?! E se esse indivíduo for um psicopata… estão preparados?!
Estão atentos enquanto fazem o jantar e os filhos estão fechados no quarto?!
Os fins de semana servem para fazerem o quê em família?!
E já repararam como reagem os vossos filhos quando há um apagão ou simplesmente acabou a bateria do TM?!
Têm solução ?!
Desculpem se esqueci algumas vírgulas…. se calhar,… foi de propósito.
Carla Coelho
Quando era mais novo acreditava em muitas coisas em que depois deixei de crer. Estava, imaginem a ingenuidade, convencido que tinha direito a ser amado. Intensa e exclusivamente. Por um ser diáfano feito de carne que me havia de adorar. E, nisto está a perversidade da minha convicção, tinha esse direito porque eu era bom. Generoso, altruísta. A vida tinha de compensar esta amplitude de alma com que me tinha agraciado.
Deu-se então este caso.
Entrei já a conferência estava em andamento. Ninguém deu pela minha entrada pois a palestrante tinha todo o auditório suspenso de si enfeitiçado pelo discurso voluptuoso que sobre ele derramava. Não eram só as palavras o que sustentava o encantamento, como de imediato me apercebi quando me sentei na primeira fila, ao lado do amigo que me tinha guardado lugar. A oradora era belíssima. Olhos verdes, um rosto onde a vida passava sem derrotar, emoldurado por cabelos louros caídos em cachos como uma dama medieval. O gesto era fantasioso e firme, as mãos
bem tratadas coroadas de anéis, descreviam arcos, circunferências e sentidos que a audiência seguia hipnotizada como crianças perante um passe de mágica. Apaixonei-me.
Troquei olhares com o meu amigo que logo percebeu. Sorriu e murmurou já ta apresento. Anuo com um sorriso vitorioso. Relaxado, continuei a seguir as palavras da oradora que quase parecendo adivinhar o meu sentir olhava agora para mim de vez em quando oferecendome um sorriso nos lábios rosados cuja maciez já antecipava. Ia ser assim, então. Era esta a história que iria contar aos amigos. Deste modo, no curso da vida, num dia que parecia igual a todos os outros, sem blind dates, sem apps, sem interferências de ninguém, conhecia o amor da minha vida. Sim, é verdade que o meu amigo nos ia apresentar. Mas ainda que não o tivesse proposto eu ia aproximar-me da oradora no final da palestra e apresentar-me. Não iria deixar fugir a oportunidade. Aliás, eu é que tinha tido a ideia de ir à conferência. Ele só me tinha seguido. Depois da exposição, houve algumas perguntas.
Ela respondeu envolvendo convicções em ternura para não ser algoz dos ignorantes. Aplausos. Muitos. Ela, agradecida. Os olhos brilham-lhe e também eu estou orgulhoso dela. Todos se levantam. Eu também.
O meu amigo puxa-me para o seguir e chama o nome dela. Acenam-se. E ela afasta-se da mesa onde esteve a falar para nos vir cumprimentar, fazendo-lhe sinal para esperar onde está. Vem ela ao nosso encontro, com inesperados passos desarticulados. Parece uma boneca de corda desengonçada, como que deixada cair ao chão uma e outra vez por uma criança mimada em ímpetos por ter sido contrariada. Ouço a sua passada coxa, batendo com força no chão de madeira. Ecoam implacáveis pelo anfiteatro: pum pumpumpum …pupu … marchando sobre o meu sonho de amor fenecido poucos instantes depois de nascer. Afastei o olhar, penalizado. Custava ver-lhe a anca vir a baixo e subir em esforço, ao som de um compasso que nada tinha da harmonia clássica que o seu rosto me tinha prometido.
Procurei o olhar do meu amigo, mas ele estava-me alheado. Seguia a mulher loura com os olhos fazendo sinal discreto a um dos presentes para afastar a cadeira que alguém se tinha esquecido de arrumar quando saiu da sala.
Ela aproximou-se ofegante, o sorriso mostrando uns dentes brancos que há minutos atrás me pareciam perfeitos, mas que de perto eram um pouco amarelos. O seu rosto estava coberto por umas partículas de suor que adensaram a minha recusa. Como é inconstante o coração humano!
O meu amigo deu-lhe os parabéns pela exposição. Apresentou-me e eu também a elogiei, ao mesmo tempo que olhava para o relógio. Sorrio contido e vermelho. Então ouvi
o meu amigo dizer que ela abordou muitos pontos interessantes na sua comunicação e que gostava de os desenvolver, pois entroncam em questões que também ele estuda e que me interessam igualmente. Porque não jantarmos todos juntos daqui a pouco? Temos preferência de restaurante?
Ela diz logo que sim, sugerindo um coreano ao fundo da avenida, onde se come bem e barato. Eu, muito vermelho, pedi desculpa, escusandome a acompanhá-los. Um compromisso prévio, balbuciei. Tinha-me quase esquecido, mas sim, tinha de ir embora já para não me atrasar. Olhei para o ecrã morto do telemóvel, como se tivesse acabado de receber uma mensagem. O meu amigo devolveu-me um olhar primeiro de espanto e depois de gelo. Sei perfeitamente, que percebeu porque motivo já não tinha interesse no jantar. Cinicamente, insistiu que eu tinha de ir. E eu, torneando a irritação, repeti que tinha mesmo aquele compromisso. Era uma pena, mas era assim. Foi ela quem resolveu o impasse, embora lhe lido espanto também no rosto. Disse ser mesmo uma pena, mas não deveriam impedir-me de seguir o meu destino. Iriam jantar os dois, eles, tinham sempre muito
JORGE MARTINEZ BATALHA
Violação de dados pessoais por falta de energia elétrica durante várias horas?
“Fiquei sem energia elétrica durante várias horas e por essa razão fiquei sem imagens de videovigilância desse espaço temporal. Que fazer, em matéria de proteção de dados pessoais?”
No apagão de 28 de abril, em Portugal, as notícias desse dia e dos dias seguintes evidenciavam a venda de medicamentos, em farmácias, mesmo sem energia, tentando, cada Direção técnica, improvisar da melhor forma que entendeu, a continuidade de prestação de serviços aos seus clientes.
Sabendo que a proteção de pessoas e bens corresponde à finalidade de instalação de um sistema de videovigilância, que consequências podem advir para as pessoas que se encontravam num estabelecimento comercial, ou se deslocaram até este, o qual dispõe de um sistema de videovigilância, mas não foram recolhidas imagens, para sua proteção, durante várias horas? Pode ser considerada uma violação de dados pessoais?
O Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) refere que uma violação de dados pessoais é entendida como uma violação da segurança que provoque, de modo acidental ou ilícito, a destruição, a perda, a alteração, a divulgação ou o acesso, não autorizados, a dados pessoais transmitidos, conservados ou sujeitos a qualquer outro tipo de tratamento.
O que dizem as Orientações do Comité Europeu
para a Proteção de Dados (CEPD)sobre as notificações de violações de dados?
A fim de incentivar a aplicação coerente do RGPD, o CEPD, além de outras atribuições, emite diretrizes, recomendações e melhores práticas, a respeito de matérias específicas, entre as quais, a respeito das circunstâncias em que as violações de dados pessoais são suscetíveis de resultar num risco elevado para os direitos e liberdades das pessoas singulares.
Num dos exemplos que o CEPD apresenta, pode ler-se o seguinte: “Uma perda de disponibilidade também pode ocorrer quando tiver havido uma interrupção significativa do serviço normal de uma organização, por exemplo, uma falha de energia (…), que torne os dados pessoais indisponíveis”. Foi o que aconteceu em grande parte dos sistemas de videovigilância instalados. Ou seja, ocorreu uma violação de dados pessoais por perda de disponibilidade.
A principal questão está em avaliar os riscos decorrentes de uma violação de dados pessoais para as pessoas singulares, ou seja, os titulares desses dados. Sim, porque é de igual forma necessário avaliar a necessidade de informar as pessoas afim de que estas possam tomar medidas para se protegerem das eventuais consequências.
Mas, concretamente em relação à impossibilidade de registo imagens de videovigilância por falta de energia, durante várias horas, que consequências serão expectáveis?
Por opção, muitas entidades instalam sistemas de videovigilância sem serem obrigados a fazê-lo. Por outro lado, sabemos que a legislação que estabelece o regime do exercício da atividade de segurança privada, face ao risco, prevê a obrigação de certas entidades disporem de um sistema de videovigilância. Entre estas, estão as farmácias, postos de abastecimento de combustível, instituições de crédito e sociedades financeiras, centros comerciais e grandes superfícies comerciais, estabelecimentos de exibição, compra e venda de obras de arte, ourivesarias, entre outras.
A verdade é que todas estas têm de respeitar a legislação em matéria de proteção de dados pessoais. Por essa razão, todas têm de garantir, entre outros, o exercício do direito de acesso às imagens de videovigilância que digam respeito ao titular dos dados, imagens essas que são conservadas pelo prazo de 30 dias.
A título de exemplo, as imagens podem servir de prova para eventual defesa jurídica, em caso de agressão, face à agitação popular que o apagão provocou, com a “corrida” a vários estabelecimentos, designadamente, farmácias e centros comerciais.
Assim sendo, coloca-se uma primeira questão: é necessário proceder ao registo interno dessa ocorrência? Sim, é necessário, ou melhor, é obrigatório.
Uma segunda questão: é necessário notificar a autoridade de controlo, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD)? Provavelmente, sim. Tudo depende do risco que esteja em causa.
Em suma, no mínimo, o responsável pelo tratamento dos dados tem obrigação de manter um registo de cada violação de dados pessoais E tem de avaliar a necessidade de notificar a CNPD, ponderando ainda sobre necessidade de dar conhecimento aos titulares dos dados da ocorrência de cada violação de dados pessoais.
Pelas razões apontadas, talvez seja expectável a ocorrência da maior “avalanche” de notificações de violações de dados pessoais à autoridade de controlo, por perda da disponibilidade, nos dias seguintes ao “apagão”, desde a aplicação do RGPD, em 25 de maio de 2018.
Saberemos todos, se assim foi, no mínimo, quando o relatório de atividades da CNPD, relativo ao ano de 2025, for apresentado publicamente. Será interessante!
O regime de concessão de autorização de residência para exercício de atividade profissional subordinada, previsto no artigo 88.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, lei que aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional (comummente designada como REPSAE, Lei de Estrangeiros ou Lei da Imigração), tem sofrido alterações ao longo dos anos, refletindo as mudanças nas políticas de imigração e as necessidades do país.
O regime regra encontra-se no n.º 1 da norma mencionada que estabelece que para obter uma autorização de residência para a finalidade referida, um cidadão estrangeiro terá de ter um contrato de trabalho bem como inscrição na Segurança Social para além de outras condições gerais, destacando-se a posse de um visto de residência para o exercício de atividade profissional, concedido pelas autoridades portuguesas antes da sua entrada em Portugal. Contudo, o n.º 2 do artigo 88.º, desde a sua redação inicial, sempre permitiu a obtenção de autorização de residência com dispensa de visto de residência.
Em 2007, o n.º 2 do artigo 88.º revestia caráter excecional, prevendo-se a concessão da autorização de residência para trabalho por conta de outrem, com o início do procedimento por proposta do diretor-geral do Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras ou por iniciativa do Ministro da Administração Interna, podendo ser dispensado o visto de residência desde que o cidadão estrangeiro, entre outras condições, tivesse um contrato de trabalho e entrada e permanência legal em território nacional e estivesse inscrito junto da Segurança Social, com a sua situação contributiva regularizada. O legislador introduziu na Lei de Estrangeiros uma cláusula que permitia permanentemente a regularização extraordinária de cidadãos estrangeiros desde que preenchessem as condições definidas legalmente. Ou seja, desde que cumprissem com as condições descritas, os cidadãos estrangeiros podiam apresentar uma manifestação de interesse com vista à obtenção de uma autorização de residência ainda que não tivessem solicitado o visto válido e adequado à finalidade da deslocação para Portugal, o qual, excecionalmente poderia ser dispensado.
A alteração à Lei de Estrangeiros introduzida pela Lei n.º 59/2017, de 31 de julho veio trazer mudanças significativas na redação do artigo 88.º, n.º 2, eliminando-se a excecionalidade prevista e definindo os requisitos necessários para a concessão de autorização de residência para exercício de atividade profissional. Entre estes requisitos, destacam-se a necessidade de o requerente possuir um contrato de trabalho ou uma promessa de contrato de trabalho, ter entrado
legalmente em território nacional e estar inscrito na Segurança Social, dispensando-se a posse do visto de residência para exercício de atividade profissional.
Em 2019, foi introduzida na norma uma presunção de entrada legal para os cidadãos estrangeiros que provassem trabalhar em
Portugal e tivessem a sua situação regularizada junto da Segurança Social há pelo menos 12 meses (cf. n.º 6 do artigo 88.º da Lei de Estrangeiros).
Mais recentemente, após a revogação dos procedimentos de autorização de residência assentes nas manifestações de interesse pelo Decreto-Lei n.º 37-A/2024, de 3 de junho,
exceto para aqueles cidadãos que tivessem apresentado as referidas manifestações de interesse até ao dia 3 de junho de 2024, a Lei n.º 40/2024, de 7 de novembro, veio introduzir um regime transitório. Veio acautelar-se que, quem, comprovadamente, demonstre que se encontrava inscrito e a contribuir para a Segurança Social antes do dia 4 de junho de 2024, poderá ainda apresentar uma manifestação de interesse e vir a ter o seu pedido de autorização de residência para exercício de atividade profissional subordinada analisado.
Se, por um lado, as alterações descritas ao artigo 88.º procuraram, até à sua revogação, criar uma politica de imigração mais flexível, ajustada às necessidades do mercado de trabalho e à situação económica do país, equilibrando a necessidade de regular a imigração com a importância de integrar os imigrantes na sociedade portuguesa, permitindo, em especial que Portugal responda à falta de mão-de-obra em determinados setores de atividade, este normativo tem sido alvo de várias críticas relacionadas com a exploração e insegurança dos cidadãos estrangeiros, com a burocracia e demora por parte da Administração na análise dos processos e ao atraso no acesso pleno a direitos fundamentais por parte dos nacionais de países terceiros.
O artigo 88.º da Lei de Estrangeiros foi também muito criticado pelo receio do “efeito de chamada”, i.e., pela preocupação de que a possibilidade de regularização através deste normativo pudesse levar mais pessoas a entrar ilegalmente em Portugal, na esperança de obterem um contrato de trabalho e, consequentemente, uma autorização de residência para se regularizarem em território nacional e terem uma “porta aberta” para a Europa.
A verdade é que, a imigração, que é um dos assuntos em foco diariamente, é um fenómeno global com impactos diretos nas economias, nas sociedades e nas políticas dos países envolvidos. Em Portugal, o regime da manifestação de interesse para a obtenção de autorização de residência para o exercício de atividade profissional subordinada surge, inicialmente, como uma estratégia para regularizar os imigrantes que já se encontravam em território português a trabalhar e, assim, contribuir para o desenvolvimento da economia, através do pagamento de impostos e de contribuições para a Segurança Social mas que não possuíam um título de residência que os habilitasse a aqui residir legalmente.
No entanto, nos últimos anos, verificouse um aumento do número de imigrantes em Portugal e a um crescimento de submissões de manifestações de interesse, estimando-se um número de 400.000 pendentes não há muito tempo.
A implementação de políticas de imigração exige um equilíbrio cuidadoso para que os benefícios se estendam tanto aos imigrantes quanto à comunidade de acolhimento, ou seja, à sociedade como um todo.
É, por isso, crucial promover a coesão social evitando desequilíbrios no mercado de trabalho, os conflitos sociais, a exploração laboral, os sentimentos de xenofobia e a competição desleal, os “efeitos de chamada” excessivos e a sobrecarga dos serviços públicos. É urgente pensar as políticas de imigração tendo em conta os desafios de integração e a falta e recursos adequados, os impactos negativos na sustentabilidade e na falta de planeamento bem como os problemas de habitação e a pressão sobre as infraestruturas.
Para que a imigração seja bem-sucedida, é essencial que as autoridades portuguesas garantam um sistema transparente e eficiente, que permita a entrada de imigrantes tão necessários ao mercado de trabalho, de preferência de forma segura, ordenada e regulada, e promova a integração dos imigrantes na sociedade e que se continuem a desenvolver políticas públicas que possam apoiar a formação e qualificação dos imigrantes e facilitar a sua adaptação ao mercado de trabalho e à cultura local. A imigração, quando bem gerida, pode ser uma ferramenta poderosa para o desenvolvimento económico e para a construção de uma sociedade mais dinâmica e plural.
Finalmente, a integração social é um elemento chave para a construção de uma sociedade mais inclusiva e coesa, permitindo que as pessoas migrantes que escolheram Portugal para viver possam contribuir positivamente para o país. Parece-nos que, somente através de uma gestão equilibrada e justa da imigração será possível alcançar os benefícios desejados, sem comprometer a estabilidade social e económica do país.
Ela havia regressado a Nova York, abandonando a digressão da banda, devido à sua gravidez de risco.
Em casa, com a ajuda de uma amiga, prega um espelho na parede, quando ele surge à porta.
Ela vê-o pelo espelho que estava a segurar. Larga o espelho e vai ter com ele.
O espelho fica inevitavelmente torto. Aquela relação não iria acabar bem.
Mais tarde, ela tenta pôr as fotografias do casal num álbum. No entanto, elas não encaixam nos cantos, previamente colados.
Quando a vida não se endireita, as nossas peças não cabem no lugar que lhes havíamos destinado.
Uns anos depois, estando o casal separado e sendo ambos famosos e bem sucedidos, ele dispõe-se a assistir a uma actuação dela e, no final, entra no seu camarim.
Ela volta a olhá-lo pelo espelho que tem na parede. Mas, desta vez, o espelho está direito e bem firme na parede.
A separação entre os dois havia equilibrado a vida dela.
Ele convida-a para jantar, num restaurante chinês e, ela, impulsivamente acede.
Ele sai do camarim e espera por ela, na rua.
Ela prepara-se para sair, quando lê a palavra « saída » por cima da porta fechada.
Então, desiste e volta para trás, pela porta que estava aberta.
Quando se está bem na vida e se vê uma porta aberta, ninguém quer caminhar para a porta que está fechada.
Eles partilharam tudo : as mesmas festas, a mesma orquestra, a mesma casa, a mesma cama. Só não conseguiram partilhar-se um ao outro.
Resta-lhe, a ele, ver a sua própria sombra e o brilho das luzes da cidade, reflectidos nas poças de água que ensopam o passeio.
E pensar que, quando a chuva cai, por vezes o coração também nos trai.
MANUEL DAVID MASSENO
(...)
3. As Concretizações Legislativas Específicas
Sempre na Lusofonia, a consideração da IA no referente às decisões afetando os direitos e as liberdades dos cidadãos colocouse essencialmente no âmbito da proteção de dados pessoais. Começando por Portugal, em consequência da constitucionalização da matéria, inclusive ao ficar “proibida a atribuição de um número nacional único aos cidadãos.” (Art.º 35.º n.º 3), um dos pressupostos materiais para tais decisões. Assim, na primeira das Leis ordinárias sobre a matéria:
“Nenhuma decisão jurisdicional, administrativa ou disciplinar que implique apreciação sobre um comportamento humano pode ter por único fundamento o resultado do tratamento automatizado da informação atinente ao perfil ou à personalidade do titular do registo.” (Art.º 16.º - Limites da apreciação judicial), e, adicionalmente, “1 - É proibida a interconexão de ficheiros automatizados, de bases e bancos de dados pessoais, ressalvadas as exepções previstas na presente lei. [assim como] 2 - Não é permitida a atribuição de um mesmo número de cidadão para efeitos de interconexão de ficheiros automatizados de dados pessoais que contenham informações de carácter policial, criminal ou médico.”
(Art.º 24.º - Interconexão de dados pessoais)
Em seguida e por força do previsto na
Diretiva 95/46/CE, a Lei da Protecção de Dados Pessoais de 1998 disciplinou as “Decisões individuais automatizadas”, nos seguintes termos:
“1 - Qualquer pessoa tem o direito de não ficar sujeita a uma decisão que produza efeitos na sua esfera jurídica ou que a afecte de modo significativo, tomada exclusivamente com base num tratamento automatizado de dados destinado a avaliar determinados aspectos da sua personalidade, designadamente a sua capacidade profissional, o seu crédito, a confiança de que é merecedora ou o seu comportamento.” (Art.º 13.º)
Por seu turno, em Cabo Verde, além de a Constituição determinar também que “Em nenhum caso pode ser atribuído um número nacional único aos cidadãos.” (Art.º 44.º n.º 5), a Lei de proteção de dados pessoais, aliás recém atualizada, disciplina igualmente a matéria em termos análogos.
Em Angola, ainda que a sua Lei fundamental enuncie o “Direito à identidade, à privacidade e à intimidade” (art.º 32.º) e o “Habeas data” (Art.º 69.º), apenas a Lei n.º 2/11, 17 de junho, a Lei de Proteção de Dados Pessoais, enfrenta as questões relativas às “Decisões individuais automatizadas” (Art.º 29.º).
Ao passo que em São Tomé e Príncipe, ultrapassando a omissão constitucional relativa à proteção dados pessoais, respetiva Lei prevê também o “Direito de não sujeição a decisões individuais” (Art.º 13.º n.º 1).
No que se refere a Moçambique, embora xo preceito da Constituição relativo à “Utilização da informática” (Art.º 71.º) não inclua qualquer indicação nesse sentido, é surpreendente que o mesmo ocorra na Lei das transações eletrónicas de 2017, ao ter a mesma sido aprovada em sequência da Convenção da União Africana sobre Cibersegurança e Proteção de Dados Pessoais.
No Brasil, a situação atual das Fontes afigura-
se radicalmente distinta das anteriores. Assim, antes de mais, na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD, o “uso compartilhado de dados” é a regra no Setor Público Administrativo, ao passo que no Setor Privado o controlador “deverá obter consentimento específico do titular para esse fim, ressalvadas as hipóteses de dispensa do consentimento previstas nesta Lei” (Art. 7º § 5º), depois de facultar ao titular informações específicas (Art. 9º V). Ainda assim, ficou ressalvado o direito do titular a obter “informações acerca do uso compartilhado de dados pelo controlador e a finalidade” (Art. 9º V), enquanto “A autoridade nacional poderá estabelecer normas complementares para as atividades de comunicação e de uso compartilhado de dados pessoais” (Art. 30º).
Por outro lado, se “O titular dos dados tem direito a solicitar a revisão de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais que afetem seus interesses, incluídas as decisões destinadas a definir o seu perfil pessoal, profissional, de consumo e de crédito ou os aspectos de sua personalidade.” e “O controlador deverá fornecer, sempre que solicitadas, informações claras e adequadas a respeito dos critérios e dos procedimentos utilizados para a decisão automatizada, observados os segredos comercial e industrial” (Art. 20, caput e § 1º), a mesma pode ser feita também automatizadamente, sem intervenção humana. Apesar de o mesmo Governo ter subscrito a Recomendação do Conselho da OCDE e a Declaração Ministerial sobre Comércio e Economia Digital do G20, acima referidas, além de a ter inserido na EBIA –Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial.
Na União Europeia, e consequentemente em Portugal, o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), dispõe que:
“1.O titular dos dados tem o direito de não ficar sujeito a nenhuma decisão tomada exclusivamente
com base no tratamento automatizado, incluindo a definição de perfisi que produza efeitos na sua esfera jurídica ou que o afete significativamente de forma similar.” (Art.º 22.º - Decisões individuais automatizadas, incluindo definição de perfis).
A este direito do titular dos dados, ao qual corresponde um dever do responsável pelo tratamento [controlador], acresce o de lhe facultar informações sobre “A existência de decisões automatizadas, incluindo a definição de perfis […] e, pelo menos nesses casos, informações úteis relativas à lógica subjacente, bem como a importância e as consequências previstas de tal tratamento para o titular dos dados” (Art.ºs 13.º n.º 2 f) e 14.º n.º 2 g), assim como o direito do titular obter acesso a tais informações (Art.º 15.º n.º 1 h), sempre “de forma concisa, transparente, inteligível e de fácil acesso, utilizando uma linguagem clara e simples” (Art.º 12.º n.º 1).
Encontramos preceitos análogos, embora com a ênfase colocada na responsabilidade das autoridades competentes, para fins de prevenção e combate ao crime e ao terrorismo, Diretiva LE [Law Enforcement] e Diretiva PNR), ambas adotadas e publicadas em conjunto com o RGPD.
4. O Acórdão Ligue des droits humains e o futuro imediato
Uma das questões nucleares neste âmbito prende-se com os sistemas de IA licitamente utilizáveis para decidir, a título definitivo, sobre os direitos e as liberdades dos seres humanos, sobre a qual o Tribunal de Justiça da UE pronunciou-se no Acórdão Ligue des droits humains c. Conseil des ministres (Processo C-817/19), de 21 de junho de 2022.
O mesmo resultou de um reenvio prejudicial
da Cour constitutionnelle da Bélgica a propósito da conformidade da Diretiva PNR com a CDFUE (Art.ºs 7.º, 8.º e 52.º n.º 1) desencadeado por um processo promovido por uma ONG belga, a centenária Ligue des droits humains, tendo por objeto a legalidade da loi du 25 décembre 2016, relative au traitement des données des passagers, que a transpôs.
Em extrema síntese, embora não anulando a Diretiva, o TJUE procedeu a uma interpretação extremamente estrita da mesma, obrigando a uma efetiva revisão das leis nacionais de transposição.
No que em especial nos importa, seguindo expressamente as Conclusões do AdvogadoGeral Giovanni Pitruzzella, a Grande Secção do TJUE considerou:
“194. No que respeita aos critérios que a UIP pode utilizar para esse efeito, importa salientar, antes de mais, que […] esses critérios devem ser «preestabelecidos». Como o advogado-geral salientou no n.º 228 das suas conclusões, este requisito opõe-se à utilização de tecnologias de inteligência artificial no âmbito de sistemas de autoaprendizagem (machine learning) [e, por maioria de razão, de deep learning], suscetíveis de alterar, sem intervenção e controlo humanos, o processo de avaliação e, em especial, os critérios de avaliação em que se baseia o resultado da aplicação desse processo bem como a ponderação desses critérios. [pelo que] 195. Importa acrescentar que o recurso a tais tecnologias poderia privar de efeito útil a verificação individual dos resultados positivos bem como a fiscalização da legalidade exigidas pelas disposições da Diretiva PNR. Com efeito […] tendo em conta a opacidade que caracteriza o funcionamento das tecnologias de inteligência artificial [as denominadas “caixas-pretas”], pode revelar-se impossível compreender a
razão pela qual um dado programa chegou a um resultado positivo. Nestas condições, a utilização de tais tecnologias seria suscetível de privar também as pessoas em causa do seu direito à ação, consagrado no artigo 47.º da Carta [dos Direitos Fundamentais da União Europeia], que a Diretiva PNR visa, segundo o seu considerando 28, garantir a um nível elevado, em particular para contestar o caráter não discriminatório dos resultados obtidos.”
Entretanto, dia 8 de dezembro 2024, ficou
fechado o acordo político entre o Conselho e o Parlamento Europeu sobre o conteúdo do futuro Regulamento IA. Dos Comunicados das Instituições constam diversas referências à “transparência” e à “supervisão humana” dos sistemas de “risco elevado”, incluindo os “modelos fundacionais” criados a partir de “aprendizagem profunda”, mas cumprirá aferir se o texto final cumpre os critérios enunciados pelo TJUE no Acórdão de quo. Se assim não for, o Regulamento IA poderá ser também objeto de uma interpretação restritiva ou até anulado, como ocorreu com a Diretiva sobre a conservação de dados do tráfego [id est, dos “registros de conexão”], de 2006, por força do Acórdão Digital Rights Ireland, em abril de 2014, igualmente do TJUE.
Porém, os sistemas de IA baseados em “caixas-pretas” são suscetíveis de facultar pré-conceitos / pré-juízos considerados como adequados pelo aplicador / decisor humano, desencadeando o círculo / espiral hermenêuticos, com especial utilidade nos casos especialmente difíceis (Hard cases).
Adicionalmente, com o apoio da IA Generativa, podem ser enunciados os argumentos passíveis de virem a fundamentar a decisão, propiciando a fusão de horizontes do decisor com a comunidade jurídica no seu conjunto, promovendo a respetiva robustez perante as seguintes revisões, necessariamente humanas, ainda que também assistidas por IA.
Mas, estas reflexões já ultrapassam em muito o nosso objeto, necessariamente humilde.
Algures durante os anos 90 a narradora/autora de O Jovem, assume-se na obra como uma mulher, na casa dos 50, que vive um relacionamento com um jovem três décadas mais novo.
Nesta obra de escrita simples, directa e concisa, como é apanágio de Annie Ernaux, a complexidade temática faz com que a sua narrativa seja desconcertante e viciante da primeira à ultima página.
Mais do que a diferença de idades, que há uns anos era capaz de me chocar, o que me prendeu foram os temas relacionados ao envelhecimento no feminino, à resposta que um espelho dá quando o reflecte, o facto de ela sentir que já não “faz virar cabeças” à sua passagem e à consciência tomada apenas na presença de outras pessoas.
As diferenças sociais, as diferenças de idade, uma sociedade castradora de determinados comportamentos.
O Jovem é uma leitura rápida, marcante e inesquecível, tanto pelo conteúdo como o que provoca no leitor.
Recomendação de Margarida Vargues
Mariana Salomão
Nascida em 1986, Mariana Salomão Carrara é formada em Direito trabalhando como defensora pública no Brasil.
Escreve desde muito jovem. A recordação da criança que foi terá sido uma boa ferramenta para trazer ao mundo Maria Carmem, menina de onze anos (“a pior idade do mundo”) protagonista e narradora deste livro. Seguimos o quotidiano da sua vida, entre a escola e a casa, onde vive com os pais. Assiste em silêncio ao casamento destes, ao mesmo tempo que tenta navegar as dificuldades da saída da infância e entrada na adolescência. O aspecto mais tocante do livro é a solidão em que se encontra. A escrita é densa, ingénua e, às vezes, acutilante (como um pré-adolescente consegue ser). Um livro curto que deixa marca em quem o lê
Recomendação de Carla Coelho
Bummm!!
E cais dentro do Mundo ou cai-te o Mundo em cima.
Não, não é o Mundo, é a tua cidade de luz que ninguém consegue pintar com as cores que nenhuma cidade tem como ela.
2 p.m são frações de segundo em que toda a cidade te atinge em cheio no peito.
É a Lisboa dos interrogatórios onde não chegas e só sabes de ouvir falar nos jornais, em piadas ou em conversas de crítica; a cidade a que chegam refugiados sós, em busca de uma vida nova, ou sós em busca da afirmação de uma causa. A cidade das montras e dos tristes que ninguém conhece e com quem todos se cruzam; a cidade dos jogos políticos e das fragilidades dos corredores do Poder; a cidade dos juízos prévios e do faz de conta...
2 p.m. podia ser um filme americano, uma série da Netflix, mas não, tudo o que nele se desenrola não é um filme americano, nem uma série para ver ao serão.
É Vida num livro que nos entra pelos sentidos adentro, que nos revela os personagens numa vertigem e os atira contra nós para depois nos afastar deles e, mais à frente, os ir buscar para juntar os pedacinhos deles e os nossos.
Como o título, deve ser lido num flash, numa súbita vontade de entender o que já entendeste porque, a Vida tem aquelas gentes, aqueles personagens, mas nunca as olhaste nos olhos, sabes delas,.... mas nunca as leste.
Surpreendentemente surgem todas ali, escritas e descritas, organizamse nos respetivos papéis, riem-se perante a angústia que te provocam só porque sabes que tudo o que vivem e são é a realidade que te rodeia...
O autor conhece-as, trata-as por tu até no pormenor do medicamento que tomam, nos tiques que têm, no adoecer da Vida.
2 p.m avança sem véus, sem pudores, sem metáforas, sem disfarces. Combina as horas e os dias numa vertigem de que julgas adivinhar o desfecho...
Bommm!!..... E a Verdade em que vives explode-te no peito at 2 p.m.
A nossa próxima edição será em papel.
Será uma Edição de coleção e de Aniversário Teremos surpresas e claro!, novidades. Esperamos por vós numa banca, na Fnac, na Bertrand, quiçá apenas na nossa Editora Edições Esgotadas
Leia-nos agora e adquira as nossas cores em Final de Setembro princípios de Outubro