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Goodfellas Sandra Moreira da Silva

SANDRA MOREIRA DA SILVA

Goodfellas

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ou a colaboração premiada

Enfrentar e dar resposta eficaz à nova criminalidade, e, especificamente, à de colarinho branco e organizada, é tarefa árdua, verificando-se, cada vez mais, que a legislação penal e processual penal está desfasada da realidade. E, considerando a danosidade económica e social e a sua repercussão, à escala nacional e internacional, não há senão que considerar as propostas que lhes podem fazer face. Por essa razão, desde 1994, e na senda do direito da U.E., Portugal tem vindo a proceder a um aumento (e, essencialmente, especificação) legislativo e criação de entidades com competências específicas, tendo como objectivo dar uma resposta adequada a estes fenómenos. A Estratégia Nacional Anti-Corrupção (2020-2024) salienta o atentado deste tipo de criminalidade, contra os princípios fundamentais do Estado de Direito, a credibilidade e a confiança dos cidadãos nas instituições, a desigualdade e o prejuízo social e económico que dela advém. Isto é, fere, de forma gravosa, a democracia nas suas bases. A reformulação de meios e métodos de investigação penal, tornou-se, neste contexto, essencial. Não se estranha, pois, que o recurso ao direito premial se mostre ampliado. Direito premial, ao qual o nosso ordenamento não é estranho, desde logo, porquanto o Código Penal estabelece, no artº 72º, a possibilidade de atenuação especial da pena, considerando, entre outros, o arrependimento do agente do crime. Outros exemplos podem ser recordados. A legislação sobre a criminalidade organizada, criminalidade económicofinanceira (muitas vezes entrecruzada com aquela) e criminalidade contra o estado são reflexos do direito premial em Portugal. Por vezes, a pena é atenuada de forma facultativa (artº 368º-A, n.º 9 CP), (artº

8 da Lei 36/94), (arº 5 a) da Lei 20/2008) (artº 13º n.º 1 a) da Lei 50/2007), podendo considerar-se, inclusive, a isenção de pena ((artº 21º, 22º e 28º do DL 15/93), (artº 2º n.º 5; 3º, n.º 2; 4º n.º 13 e 5º n.º 2 da Lei 52/2003) (artº 87º nº3 da Lei 5/2006), noutros casos, é atenuada obrigatoriamente (artº 372º ss CP; (artº 374º - B n.º 2 a) CP e Lei 34/87; e artº 5-A n.º 3 da Lei 52/2003). É neste âmbito que alguns ordenamentos jurídicos optam pela utilização da figura do delator/colaborador, cujo objectivo é a identificação de outros agentes, as suas actividades específicas no iter criminis, sua localização ou localização de bens, entre outras provas ou informações que permitam a obtenção de provas que se possam mostrar relevantes para a prossecução criminal, auxiliando ao desmantelamento de redes criminosas, que só é possível através de inside informations, que só quem está dentro da rede pode fornecer. Importa, desde já, referir que o ordenamento jurídico português não contempla a figura da delação premiada, mas a da colaboração premiada. E esta distinção é absolutamente essencial – e não apenas semântica – para que não incorramos em erro aquando da análise do instituto. Até, porque, cremos, algumas das críticas de que é objecto, prendem-se com alguma confusão entre as figuras de delator e colaborador, como se verá adiante. É-lhes comum a existência de um dos agentes que participou no crime denunciar – delatar – os outros (suspeitos ou já coarguidos), todavia, enquanto na delação existe um acordo negociado entre o delator e o Estado, personificado pelo MP, na colaboração essa “negociação” não é possível. Na colaboração existe um “contributo processual de natureza probatória prestado por um arguido, mediante o qual dá a conhecer factos relevantes que implicam a sua responsabilidade penal e a dos demais arguidos (ou suspeitos).” A ajuda prestada é, portanto, auto e hétero-incriminatória. Confessa factos, auto-incriminando-se, e delata/denuncia terceiros relativamente a factos que tenham efectiva conexão com a realidade investigada. (Brandão, 2019, p. 116) E enquanto nesta o MP não tem possibilidade de prometer o que quer que seja – apenas pode informar das eventuais vantagens de que poderá, eventualmente, vir a usufruir (redução de pena, suspensão, ou arquivamento, entre outros benefícios para o arguido ou para a sua família, como medidas assistenciais e de protecção pessoal, quando haja fundado receio de represálias graves) – uma vez que todas as possibilidades são equacionadas e decididas pelo juiz, passando pelo crivo do julgamento, na delação cabe ao MP a negociação da pena, ou a sua isenção, com o arguido. No direito comparado, ordenamentos como o espanhol, italiano, brasileiro e norteamericano optaram por esta última hipótese, ou, pelo menos, foram inspirados no plea bargaining americano, ainda que com nuances distintivas. Em termos práticos, este último sistema (nas versões guilty plea e nolo contendere plea) representa 97,7% das condenações criminais. (Santiago, 2021). A Regra 11 c) (1) das Federal Rules of Criminal Procedure estabelece expressamente que o acordo é entre o estado e o arguido, sendo o tribunal alheio à negociação, não havendo, portanto, controlo judicial, salvo nos casos em que a questão seja colocada em audiência (11, n.º 3, [A e B]) No plea bargaining é, aliás, frequente a negociação com o arguido por um outro crime, distinto do da investigação/acusação, desde que tenha uma pena abstractamente aplicável substancialmente mais baixa. Esta é uma questão, a nosso ver, inultrapassável, na medida em o arguido se dá como culpado por um crime que não cometeu. Não nos restam dúvidas de que esta opção consubstancia violações constitucionais. Já a colaboração, e não obstante as críticas da doutrina, deverá ser vista com outros olhos. Vejamos. Escreve Eduardo Maia Costa: “o processo

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equitativo, essa criação distintiva e irrenunciável da nossa civilização, é desfigurado no seu “núcleo duro” pela justiça negociada”” (Costa, 2013, p. 97). De facto, se nos referirmos à negociação conforme é efectuada numa solução de delação premiada, concordamos com a afirmação. Todavia, considerando o contexto em que foi pronunciada, sublinhando uma vertente contratual, na qual o juiz é mero homologador do préestabelecido pelo MP, gestor e interessado no processo, desvirtuando o seu papel, parece-nos não ser de subscrever. O princípio da reserva de juiz (artº 32º n.º 9) não é violado com a figura do arguido colaborador, na medida em que é a ele que cabe decidir se a colaboração do delator foi ou não decisiva e, em função disso, avaliar e decidir sobre o benefício a atribuir. Acresce que o MP nada pode acordar ou prometer ao colaborador. E, no processo, pode, sim, sublinhar a contribuição deste na descoberta da verdade. Nem o MP, nem o juiz são interessados no processo, mais do que a própria comunidade. A busca da verdade material decorre da lei (artº 340º CPP), atribuindo-se ao juiz um poder-dever de pugnar pela investigação da verdade histórica, observando os direitos fundamentais do arguido. Neste sentido, “ao tribunal não pode ser subtraído ou diminuído o poderdever de instruir a causa sujeita a julgamento. A qualquer acordo há-de, por conseguinte, estar vedada a sua verificação à custa da realização dos princípios da investigação oficial (…) e da verdade processualmente válida.” (Dias, 2012) Alguma doutrina entende que além de se hipotecar a dialéctica acusação-juiz-defesa, os métodos colaboracionistas comportam um risco para a estrutura acusatória que molda o processo penal português, na medida em que consubstanciam momentos de cariz inquisitório. Assumindo-se que a colaboração do colaborador é voluntária e espontânea, e, só assim, aceite o seu contributo, não cremos que tal risco se verifique. Não obstante, reconhece-se que em alguns casos poderá existir um desequilíbrio entre as partes, mas esse decorre da má aplicação das regras do instituto. Por exemplo, nos Acórdãos do TRC de 25/06/2008, e STJ de 15/04/2010, dá-se conta de dois casos nos quais foi proposta a suspensão provisória do processo no crime de corrupção activa, nos termos do artº 9 da Lei 36/94, com a injunção da continuação de colaboração no processo, em ambos tendo havido concordância do JIC.

Injunção essa, inclusive, que, pelo menos num dos casos, contemplava a colaboração futura mediante depoimento na qualidade de testemunha. Ora, tal nunca poderia suceder se a SPP ainda decorresse, já que a qualidade do depoente era a de arguido, e não de testemunha (artº 133º n.º 1 CPP). E, no caso de ter havido desconexão de processos, o seu depoimento como testemunha só seria possível se em tal consentisse (artº 133º n.º 2 CPP). Naturalmente, em tais casos existe uma pressão sobre o arguido colaborador, desde logo, pelo receio

da revogação da SPP, verificando-se um claro desequilíbrio, e, até coacção sobre aquele. Mas isso, repete-se, tem a ver com o uso manifestamente errado, dirse-á, ilegal, da manobra de diversão em causa, pois o contributo probatório terá que ter existido anteriormente, aquando da investigação, e não no futuro. Destarte, a SPP nunca poderá ser decretada sob condição de participação futura. Outra crítica apresentada refere que a colaboração premiada viola o princípio do contraditório, previsto pelo artº 35º nº 5 CRP, e 322º n.º 2; 321º n.º 3; 327º; 348º; 355º; 360º n.º 1 e 2 CPP. É verdade que a imputação que um arguido faz a outro tem o grande atractivo de ser feita por quem conhece o facto que está em juízo e, que, em simultâneo está a assumir a sua própria culpa. Mas, por causa desse peso, é necessário um juízo crítico rigoroso sobre o valor de tal imputação. (Durán, 1999) Teresa Beleza defende que as declarações do co-arguido, na medida em que sejam totalmente subtraídas ao contraditório, são um meio de prova particularmente frágil, que, não sendo proibido, não deve ser considerado suficiente para basear uma pronúncia, e, menos ainda, para sustentar uma condenação. (Beleza, 1998). Porém, as declarações são válidas e processualmente admissíveis, com base no artº 125º CPP (neste sentido, expressamente, o Acórdão do STJ de 12/03/2008), e a CRP não o contradiz. Tal admissibilidade com colide com o catálogo de direitos dos co-arguidos. O eixo fundamental é que o depoimento incriminatório esteja sujeito às mesmas regras de qualquer outro: às regras da investigação, da livre apreciação e do princípio do in dubio pro reo. Assegurado que estejam, não subsistem argumentos para a invalidade de tal meio de prova. (Cabral, 2020) É necessário que o depoimento seja corroborado por dados periféricos objectivos, que demonstrem a verosimilhança da incriminação, assim dissipando qualquer suspeita objectiva, mas nada impede tais declarações, como entendeu, e bem, a nosso ver, o STJ, em acórdão de 20/06/2001, “sejam elas ou não incriminatórias ou agravantes da responsabilidade de outros intervenientes nos factos criminosos”, e em acórdão de 12-03-2008, não colidindo “com o catálogo de direitos que integram o estatuto inerente àquela situação, mostrando-se adequada à prossecução de legítimos e relevantes objectivos de política criminal, nomeadamente no que toca à luta contra a criminalidade organizada.”

( CONTINUA...)