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Pano para Mangas Margarida Vargues

PANO PARA MANGAS

Margarida Vargues

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A TERAPIA DO NADA

Vivia num constante dilema entre o querer estar noutro qualquer lugar e o ficar ali, no aconchego de umas meias quentes, num livro ou numa qualquer receita inventada à pressa com o que tinha a certeza de não haver no frigorífico. Queria fazer outras coisas, experimentar a novidade, porém não se decidia que rumo tomar. Apetecia-lhe fazer as malas, mas a ideia de as desfazer no regresso fazia com que a ideia do frigorífico quase vazio falasse mais alto. O cozinhar era, indubitavelmente, uma terapia.

Herdara o gosto pelos temperos de um bisavô que nunca chegou a conhecer. Dele, restavam apenas algumas receitas, repetidas vezes sem conta nos almoços em família, nunca passadas para o papel, pois viviam nas papilas gustativas, nas colheres de madeira escurecidas pelo uso, na memória

A TERAPIA DO NADA

olfactiva dos pratos acabados de cozinhar por - já - três gerações. Nenhuma tinha título. Nenhuma seguia uma lista de ingredientes. Estava tudo cá dentro. Onde? Na cabeça? Na ponta dos dedos que, como por magia, lhes davam sabor e nas lembranças que só podem ser criadas pelo coração.

Naquela manhã acordou ao som de uma chuva miudinha, aborrecida, entediante. Ouvia-a a bater nas janelas e nas árvores lá fora. Saiu da cama puxada pela promessa de um telefone a tocar. Ficou-se pela promessa … o telefone.

As horas foram, então, arrastadas, por entre a melancolia de um dia de inverno e o receio de uma calçada polida e escorregadia. Até o abrir da porta, ao regressar, parecia mais lento que o habitual. Pareceulhe ouvi-la ranger. Os sapatos ficaram à entrada, junto de outros que, silenciosamente, também lá se quedavam. Ainda os olhou com o desinteresse com que se olha algo que não existe. Desabotoou o sobretudo e fê-lo escorregar pelas costas abaixo. Depois do arrepio, pendurou-o no cabide. Ao lado, o espelho reflectiu um rosto cansado, sem cor e de olheiras profundas. Olhou-se, esboçou um sorriso e pensou: “- É do tempo… Isto passa!”. Passava sempre… O que lhe fazia falta naquele momento?

A promessa do telefone, que permanecia em silêncio.

Avançou uns passos.

A cozinha que era só sua. Não gostava de a partilhar. A regra era: ninguém podia entrar enquanto lá estivesse. Era ali que punha as ideias em ordem, ou as desalinhava, consoante a necessidade. Era ali que curava as dores de crescimento e se tornava mais forte a cada volta do moinho de pimenta sobre um qualquer tacho fumegante. Era isto que - na verdade - lhe fazia falta. De quando em quando precisava daquele silêncio, daquela paz, do conforto que dali advinha O verdadeiro conceito de templo, em que o altar era o fogão. Um deus? Não. Na cozinha não queria um deus. Bastava-lhe o frigorífico vazio de nada.

Tinha a mania que sabia escrever. Tinha a mania que sabia dançar. Tinha a mania que sabia cozinhar. Eram suas, as manias. Antes estas, que outras. E dava-lhes cor, vida, cheiro e sabor.

Abriu-o. Ao frigorífico. Dentro do nada encontrou umas sobras de Roquefort, uma taça meia de vibrantes bagos de romã, espinafres e meia dúzia de cogumelos - ainda - frescos. Virou o olhar em direção à bancada e deparou-se com umas pêras escondidas no cesto, onde já tinha ido parar um intruso pão de centeio caseiro vindo do monte. Do armário baixou dois frascos: um com nozes e outro com mel. Ligou o forno. Cortou as pêras ao meio com precisão, arrancou-lhe o coração, e dispô-las num tabuleiro cerâmico com a ferida à vista. Meticulosamente, recheou-as de queijo e de nozes quebradas com a raiva dos dedos. Enquanto isso, o mel esperava pela sua vez que não tardou em chegar. Amornado pelas mãos, desceu num fio doce, suave e delicado. Era a cura que a ferida pedia. O calor do forno tomou conta do resto.

Um quarto de hora depois - mais coisa, menos coisa - uma vigorosa e fresca salada, temperada somente com um pouco de limão, encheu de cor a saladeira: o verde dos espinafres, o vermelho vivo da romã e o bege dos cogumelos, entretanto laminados. O acompanhamento perfeito para as perfumadas pêras ainda a fervilhar.

A mesa enchia-se daquele amor incondicional, temperado de memória e cheiros que vinham de outros tempos. Paz. Harmonia. Silêncio.

Silêncio? O telefone fazia-se, afinal, ouvir.