Luta antimanicomial e a reinserção social de pessoas com transtornos na sociedade Como o atual governo promove a manutenção de comunidades terapêuticas de práticas questionáveis e o afastamento social de pessoas com transtornos psicológicos
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de Dezembro de 1987, município de Bauru, estado de São Paulo, 350 trabalhadores atuantes na área da saúde tomam as ruas e praças da pequena cidade. Inicia ali uma luta que estende-se até os dias atuais, por reforma no sistema psiquiátrico, justiça social, direito de exercer cidadania e viver em comunidade, por uma sociedade capaz de aceitar a coexistência das diferenças. Os gritos dos trabalhadores interioranos pediam por “uma sociedade sem manicômios”, uma reivindicação que se mantém vigente até hoje. “Os estigmas sobre a saúde mental ainda são muito presentes e são agravados quando entram em questões raciais, de classe, gênero e até idade.” segundo representante do Coletivo Libertas, em entrevista para o jornal Contraponto, integrado por estudantes de Psicologia da PUC-SP que promoveram a Semana da Luta Antimanicomial na faculdade. “Existem diversas áreas acadêmicas que não só a psicologia que podem ajudar e agregar na causa. É importante que essa luta seja manifestada no ambiente universitário para mobilizar os estudantes, a agregarem de forma mais compatível dentro de cada profissão.”, apontam. Diante do atual cenário, a política de remanejamento das questões de saúde mental demonstra maior interesse em realizar a reforma sanitária para tirar os ditos “loucos” do orçamento público do que fornecer um tratamento psicológico digno para esses indivíduos. Durante o governo vigente, a revogação dos programas de desinstitucionalização se deu através do fechamento ou corte de verbas no orçamento de instituições que prestavam serviços psicológicos gratuitos à comunidade. A verba passou a ser destinada a centros e comunidades religiosas que tornaram-se os principais núcleos de terapia para usuários de drogas. O programa objetiva reduzir gradualmente os leitos hospitalares de longa permanência e promover centros psicossociais que pretendem tratar e reinserir pessoas com transtornos na sociedade. Segundo dados de estudo do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) junto a ONG Conectas Direitos Humanos, entre 2017 e 2020 o Brasil investiu cerca de R$300 milhões para o financiamento de vagas de internação em 593 dessas instituições. A professora do curso de psicologia da PUC-SP, Elisa Zaneratto afirma: “Desde o início da implementação da reforma psiquiátrica no Brasil, é a primeira vez que se
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tem um governo declaradamente contrário a ela. Isso se expressa não só no posicionamento, mas principalmente por meio dos mecanismos de financiamento e de gestão”. A posição do Governo Federal é evidente visto que o Caps (Centro de Atenção Psicossocial) não recebe nenhum aumento desde 2011, enquanto as comunidades religiosas têm o benefício garantido. Em 2020, por exemplo, receberam 10 milhões de vagas financiadas pelo Estado. Sobre os problemas que envolvem o destino das verbas para as comunidades e a revogação do programa de desinstitucionalização, o professor do Departamento de Psicologia Social da PUC de São Paulo, Pedro Henrique Marinho Carneiro, afirma: “É um retrocesso absoluto, pois além das concepções de tratamento retrógradas, remetem à noção de refilantropização das políticas sociais, da mesma forma, os mecanismos de financiamento são análogos aos conveniamentos do INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social), que remonta um antigo debate sobre a relação entre público e privado no âmbito do SUS que ainda hoje se mantém. É importante dizer que até agora os recursos destinados para essas entidades não advêm do SUS, mas do Ministério da Justiça e da Cidadania”. Não há clareza sobre os métodos aplicados pelas comunidades terapêuticas e resultados. Segundo o estudo do Ipea, 82% das CTs afirmaram ter ligação com igrejas e organizações religiosas, e colocam a leitura da bíblia e a participação de cultos religiosos como atividades diárias. Uma fiscalização do Ministério Público Federal, Conselho Federal e Regional de Psicologia e Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura ouviu 28 internos de comunidades terapêuticas em 2018, e apontou que não há liberdade religiosa na maior parte das instituições, além de relatar punições e expulsões por não participarem dos cultos. O relatório recebeu também denúncias de maus tratos, cárcere privado, preconceito de gênero e violações de direitos. O livro Holocausto Brasileiro, escrito pela jornalista Daniela Arbex, denuncia as crueldades promovidas pelo Hospital Psiquiátrico Colônia em Barbacena-MG, lugar em que 70 mil pessoas perderam a vida por conta de tratamentos inapropriados e condições precárias de saneamento e higiene básica. Para além desse absurdo há a estimativa de que 70% dos atendidos não sofriam de doenças mentais, mas foram enviados para lá por serem “inde-
sejados” na sociedade. Destinavam-se ao lugar, homossexuais, negros, pobres, mendigos, mulheres que desobedeciam as ordens dos homens e militantes políticos. Restaram menos de 200 sobreviventes e um deles é Sônia Maria da Costa, despachada pela polícia aos 11 anos por fazer “molecagem” nas ruas de Belo Horizonte. De acordo com o livro, enquanto esteve na instituição, Costa se defendia fisicamente dos maus tratos do hospital e cuidava sem remédio de outros internos e de sua amiga Terezinha. Apesar da resistência, a interna foi vítima de choques diários, injeções de “entorta” – sessões de eletrochoque –e isolamento em celas úmidas, sem cobertor no frio. Após viver por mais de quarenta anos no local, em 2003 Sônia e Terezinha foram acolhidas pelo De Volta para Casa, voltaram a ter liberdade, passaram a receber salário e moram em uma residência terapêutica O programa De Volta para Casa é destinado a pessoas que passaram por longas internações psiquiátricas e tem o objetivo de auxiliar financeiramente e fornecer moradias, gerando liberdade social, reintegração e amenizando os prejuízos do isolamento nos manicômios. Os que passaram pelas internações podem optar ainda pelo Serviço Residencial Terapêutico, que procura mediar a vida social que foi interrompida, como o caso da Sônia e Terezinha. O programa é resultado do processo de desinstitucionalização promovido pelo Estado a partir da década de 1990. Sobre a importância da reinserção, o professor Pedro Marinho afirma que “a luta pelo fim dos manicômios é a luta em defesa da diversidade e contra a estigmatização e o preconceito. A ideia de contar com serviços abertos no campo da saúde mental tem relação com a oferta de apoio e cuidados para diferentes necessidades no sentido de afirmar o direito à participação na vida social. Reconhecer os direitos dos usuários do campo da saúde mental é fundamental para objetivar os princípios da reforma psiquiátrica”. © Reprodução: Carta Capital
Por Ana Kézia Andrade, Gabriela Figueiredo e Victoria Leal
Cartaz exibido no Ato pela Luta Antimanicomial
CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP