Contraponto 133 - edição SETEMBRO/OUTUBRO

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ANO 21 Nº 133 Setembro/Outubro 2022 JORNAL LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes – PUC-SP ontraponto Comunidade puquiana junta-se às vozes de milhões de brasileiras e brasileiros, que gritam “não” ao autoritarismo, ao machismo, ao racismo e a todas as formas de intolerância LEMBRAR É RESISTIR PUC-sppela democracia PUC-sppela democracia

“Aqui é Bolsonaro”, aos gritos e tiros. O corpo que está no chão, agora pintado de vermelho, tem nome e tem lado. Marcelo Arruda morreu dia 9 de julho atingido pelas balas de Jorge José da Rocha Guaranho. Arruda, guarda municipal e tesoureiro do PT, celebrava seus 50 anos com a temática do partido, a estrela brilhava em seus olhos. Guaranho, agente penitenciário e bolsonarista, decidiu que já bastava de comemorações do outro lado. E foi assim que o Paraná perdeu um companheiro em Foz do Iguaçu.

Os pulmões de esquerda e direita no Brasil não estão sufocados apenas pela violência de motivação política, mas pela negligência estatal, que também é violenta, mas institucionalizada. Dom Philips e Bruno Pereira desapareceram dia 5 de junho no Rio Itaquaí, na Amazônia. O primeiro é jornalista que denuncia em um livro a realidade da floresta, o segundo um indigenista que ensina os nativos a monitorar as terras. O terceiro personagem são os madeireiros e pescadores ilegais, o quarto o narcotráfico e o quinto a ausência de Estado, todos atuantes, tão atuantes quanto as ameaças dos ilegais no território, de invasão, de roubo e de morte.

Segundo Jair Bolsonaro, “[...] duas pessoas apenas em um barco, em uma região daquela, completamente selvagem, é uma aventura que não é recomendável que se faça”. Não é recomendável que ninguém se aventure a amparar os nativos dos livres crimes que os ameaçam, se algo acontecer, é provável que as investigações não sejam concluídas, ou que demorem dois dias para as buscas. Após mais de um mês, o presidente chama por vídeo a família de Marcelo Arruda para entrevista, assim que sentiu que “a esquerda ia colocar a ação desse cara no meu colo”, se referindo a Guaranho, o fomentado pelo seu discurso.

São três grandes perdas, quatro se contar com o brasileiro que perde a sanidade pela “pátria, família e Deus”. Em outubro todos escolhem seus lados, lembrando apenas dos nomes que prometem, sem lembrar dos que foram mortos. A perda do Brasil, é a perda da memória de opostos que não se comparam. É preciso lembrar que Dom e Bruno poderiam ter voltado pela correnteza e que Arruda poderia comemorar o seu próximo aniversário. Está acontecendo uma guerra, e as escolhas são lutar ou morrer dela. Desde quando no Brasil, o vermelho deixou de ser sangue derramado, para ser apenas a cor de um partido?

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP)

Reitora Maria Amalia Pie Abib Andery

Vice-Reitora Angela Brambillia Lessa

Pró-Reitor de Pós-Graduação Márcio Alves da Fonseca

Pró-Reitora de Graduação Alexandra Fogli Serpa Geraldini

Pró-reitora de Planejamento Avaliação Acadêmicas Marcia Flaire Pedroza

Pró-Reitora de Educação Continuada Profa. Dra. Altair Cadrobbi Pupo

Pró-reitora de de Cultura e Relações Comunitárias Profa. Dra. Mônica de Melo Chefe de Gabinete Mariangela Belfiore Wanderley

FACULDADE DE FILOSOFIA, COMUNICAÇÃO, LETRAS E ARTES (FAFICLA)

Diretor Fabio Cypriano

Chefe do Departamento de Comunicação MiSaki Tanaka Vice-chefe do Departamento de Comunicação Mauro Peron Coordenador do Curso de Jornalismo Diogo de Hollanda Vice-coordenadora do Curso de Jornalismo Maria Angela Di Sessa

EXPEDIENTE CONTRAPONTO

Editora Responsável Anna Flávia Feldmann

Editora-assistente Rafaela Reis Serra Fotografia Sophia Linares

Mídias Sociais Ramon Baratella, Maria Ferreira dos Santos

Editorias

Artes Carlos Gonçalves Cidades Evelyn Fagundes Comportamento Bianca Novais Cultura Tabitha Ramalho Direitos Humanos Fernanda Querne

Economia Giovanna Crescitelli Educação Julia Takahashi

Esportes Maria Sofia Aguiar Internacional Gabriela Costa Moda Malu Marinho Política Hadass Leventhal

Revisão Carlos Gonçalves, Enrico Souto, Gabriel Porphirio Brito, Gabriela Costa, Giulia Aguillera, Isabela Mendes, Isabella Pugliese Vellani, João Curi, Laura Mariano, Manuela Nicotero Pestana, Sabrina Alvares, Maria Sofia Aguiar e Victoria Nogueira

Comitê Laboratorial Cristiano Burmester, Diogo de Hollanda, Fabio Cypriano, José Arbex Jr., Maria Angela Di Sessa e Pollyana Ferrari

Ombudsman Marlyvan Moraes de Alencar

Foto da capa Lídia Rodrigues de Castro Alves

Projeto e diagramação Alline Bullara Contraponto é o jornal-laboratório do curso de Jornalismo da PUC-SP. Rua Monte Alegre 984 – Perdizes CEP 05014-901 – São Paulo-SP Fone (11) 3670-8205

Ed. Número 133 – Setembro/Outubro de 2022

Um tiro, um Dom e um Bruno (ou, três disparos, um Dom e um Bruno)
Editorial
2 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP

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Caso Daniella Perez segue no imaginário brasileiro mesmo após trinta anos 4 Lado a lado e um passo atrás: o legado da imagem da primeira-dama 5

A contribuição da grande mídia na ascensão dos discursos de ódio 6

Os polos do 5G serão responsáveis por melhorar ou piorar ainda mais a desigualdade social? 8

O massacre dos caboclos: 70 anos do esquecido ataque ao povo Pataxó 9 Adoção: o encontro com o amor 10 Política Alan Santos/PR

Saúde

Os Primeiros Soldados: como a cultura desmistifica o tabu da AIDS 11 Varíola dos Macacos e o embate com a comunidade LGBTQIA+ 12

O debate acadêmico e político sobre a humanização da saúde 14

Internacional

Como a visita de Nancy Pelosi pode impactar o Ocidente? 16

Ensaio fotográfico Atos pela democracia 18

Do underground ao TikTok: o ressurgimento do pop rock Brechós arrecadam novos públicos e significados em meio à viralização nas redes sociais Moda

Mídias digitais ampliam os horizontes da moda

Cultura e comportamento

O papel das propagandas no aumento de transtornos alimentares 25 Etarismo e LGBTQIA+fobia: Idosos lutam contra a convergência de discriminações 26 Independência ou morte! 28 Cantar pela Liberdade 29

Do barroco aos lírios: a potencialidade de ser Tunga 30 Arte

Esportes

Os desafios na formação acadêmica de atletas no Brasil 32

A difusão e as verdades do mercado de apostas esportistas no Brasil 34 Breakdance nas Olimpíadas: Símbolo de Resistência Negra e Periférica 35

As figurinhas da Copa 2022 chegaram nas bancas, mas o preço alto preocupa 36

© Pedro Henrique Kevin C.
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Divulgação/Ronaldo Mitt
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Kox/AP Setembro/Outubro 2022 3

Caso Daniella Perez segue no imaginário brasileiro mesmo após trinta anos

Pacto Brutal, lançado pela plataforma de streaming HBO Max, conta a história – por meio de relatos inéditos de autoridades do processo – do assassinato da atriz e bailarina Daniella Perez, que impactou o Brasil em 1992. Com direção de Tatiana Issa e Guto Barra, as provas do caso e seu julgamento são detalhados ao longo de cinco episódios. Mesmo após trinta anos do trágico acontecimento, Glória Perez, mãe da vítima, ainda busca contar a verdadeira história do ocorrido e compartilha a experiência de ter vivenciado, precocemente e de uma maneira brutal, a perda de sua filha.

O fato de a série ter estreado três décadas após o delito, não impactou sua relevância, uma vez que se tornou rapidamente a obra ‘Max Original’ mais vista no Brasil e países latino-americanos. Mostrando que esse crime marcou não só uma época como uma região inteira, Pacto Brutal expõe minuciosamente esse evento sob diferentes aspectos: desde a repercussão e as provas, até o julgamento e o luto daqueles que conviviam com a vítima.

Os depoimentos mais chocantes partem da mãe de Daniella, a roteirista Glória Perez, que compartilhou a dor de perder sua filha mais velha. Ela relata que, naquela segunda-feira, recebeu uma ligação de seu genro, o ator Raul Gazolla, noticiando o desaparecimento da jovem mesmo após a procurarem em lugares da sua rotina. Juntos, eles fizeram diversas ligações aos seus colegas de trabalho e, assim, descobriram que a atriz havia ficado até mais tarde para tirar fotos com fãs ao lado de Guilherme de Pádua, seu par romântico na novela “De Corpo e Alma”.

Entretanto, o carro de Daniella não se encontrava no estacionamento dos estúdios de gravação, tampouco o de Guilherme. Esse, por sua vez, afirmou a Glória e Raul não saber o paradeiro dela, apesar de ter sido o responsável por levá-la desacordada ao matagal da Avenida Cândido Portinari, na Barra da Tijuca, e, com a ajuda de sua esposa Paula Thomaz, tê-la assassinado com 18 punhaladas.

Nesse mesmo tempo, o advogado Hugo da Silveira, morador de um condomínio próximo, notou a presença de dois carros parados em um local propício a assaltos. Desconfiado, ele foi até o matagal anotar as placas dos veículos e avistou um homem e uma mulher juntos, deduzindo que não passava de um casal de namorados. Entretanto, mais tarde, quando percebeu que só um veículo permaneceu ali,

ele aciona a polícia e, acidentalmente, o corpo de Daniella é encontrado, tornando Silveira a principal testemunha do crime.

Na 16° Delegacia de Polícia, a família Perez e amigos ficaram perplexos com a brutalidade do ocorrido e, depois, chocados ao descobrirem que o assassino esteve presente com eles para prestar condolências, já que foi somente na manhã de terça-feira que Pádua fora preso preventivamente. Esse choque foi sentido também pela população brasileira, visto que a atriz era extremamente querida e novelas, naquele momento, eram o principal produto de entretenimento no país.

É justamente por isso que o caso repercutiu tanto e tornou-se refém de mentiras e especulações – muitas delas, inclusive, foram difundidas pela defesa de Guilherme e Paula. O advogado Wenner Melo explica que desmoralizar a vítima é uma tática, mesmo que antiética, de “livrar o seu cliente’’ de muitos anos em cárcere. “Você desacredita [a vítima], e então, a partir do momento que você fala que a vítima também tem responsabilidade, o criminoso não é tão mau ou, então, [...] a pena dele não será tão alta, porque ela também é culpada”.

Melo ainda acrescenta que “a imprensa tem muita responsabilidade” pelo que foi feito com a imagem da falecida, tendo em vista que, os dois protagonizando uma relação amorosa na trama da novela das 20h, a mídia fortalecia boatos de um envolvimento entre eles na vida real. Já que a ganância em vender revistas fez com que a imprensa utilizasse imagens de Bira e Yasmin, personagens interpretados por Pádua e Perez, em momentos de afeto na novela para tratar do caso, plantando no subconsciente do público a ideia dos atores como um casal, estimulando diversas opiniões machistas. “As imagens das revistas são muito mais agressivas do que as fotos dela no local. Isso é continuar matando a pessoa”, desabafou a mãe da atriz na série. O documentário tem como propósito justamente desmentir os rumores e, em preservação à memória de Daniella Perez, os produtores optaram por nem mesmo convidar os assassinos e seus defensores para prestar depoimentos.

Embora o seriado exponha ocorrências da década de 1990, trata de temáticas atuais e relevantes, como sensacionalismo, feminicídio e culpabilização da vítima. Todavia, o que mais chamou a atenção dos telespectadores foi o fato de que tanto Guilherme quanto Paula já estavam de volta

às ruas em 1999, ainda que tenham cometido o crime em 1992 e julgados em 1997, recebendo uma pena de cerca de 18 anos. Quanto à essa questão, a advogada Jucelly Lopes explicou ao Contraponto de que se trata do sistema de reinserção do presidiário e progressão de regime: ao apresentar bom comportamento, o prisioneiro recebe o direito de, gradualmente, “sair do regime fechado para o regime semiaberto e, posteriormente, para o regime aberto”.

A tragédia, que devastou o país ao expor a tamanha crueldade que fora executada, também trouxe à tona outras atrocidades ocorridas no Brasil. Diferentemente do caso da atriz, essas transgressões não envolveram pessoas públicas e, por isso, foram banalizados pela mídia sem que obtivessem a devida repercussão. A produção dá luz, por exemplo, ao sequestro seguido de morte da mineira Miriam, acontecido no mesmo ano, quando tinha apenas cinco anos. Outro episódio presente no enredo é o das dez mães de Acari, que lutaram com muita coragem pela investigação do desaparecimento de seus filhos, ocorrido em 1990 na Baixada Fluminense e, até hoje, sem respostas.

Na época, tanto Jocélia Brandão, mãe de Miriam, quanto as mães de Acari juntaram-se a Glória Perez no combate por justiça. O maior intuito da união dessas mães revoltadas era aderir crimes premeditados ao caráter hediondo, preservando, assim, o valor e o direito de viver que foram brutalmente arrancados de cada vítima. Graças à ação delas, o objetivo foi atingido em 1994 na formulação de um projeto de iniciativa popular, que necessitou de 1,3 milhão de assinaturas para ser sancionado.

Por Bianca Athaide, Khadijah Calil, Laís Romagnoli, Laura Paro e Maria Ferreira dos Santos O assassinato que parou o Brasil diante da TV, em 1992, retorna por meio de uma série documental pelo serviço de streaming Documentário visa consertar os erros cometidos pela cobertura jornalística da época © Divulgação: HBO MAX
4 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP

Lado a lado e um passo atrás: o legado da imagem da primeira-dama

A posição feminina de maior estima no cenário público ainda é atribuída graças a seu marido. Entenda as contradições e o que carrega essa imagem

Otítulo “primeira-dama’’ passou a ser utilizado apenas no final do sécu lo 19. Ruth Cardoso detestava ser chamada assim, preferia ser reconhecida pelo que realmente era: professora. Ruth, esposa do ex-presidente Fernando Henri que Cardoso, foi a única primeira-dama na história do país que exerceu a profissão na qual é formada. Ela compõe, junto apenas com Marcela Temer e Rosane Collor, o se leto grupo das esposas de presidentes que concluíram o ensino superior.

história das mulheres fortes que já passa ram pelo Palácio, o perfil remete à década de 50 e exalta a imagem de uma mulher reduzida à troféu.

Lado a lado e, então, um passo atrás, os discursos e propostas da primeira-dama se alinham com o tom de governo que pro move o marido. Sua lista de afazeres inclui fisgar o público pelo carisma e promover o cuidado dos pobres, diminuição da fome e educação. Darcy Vargas era a “mãe dos pobres”, acompanhando o “pai”, Getúlio. Doando sua imagem e voz para uma cam panha que não era sua, ela também doou seu tempo para planejar e executar polí ticas públicas, igual seu marido, com a di ferença singela de não ter sido eleita para nada disso. Com a progressão da campanha e o acompanhamento midiático, a imagem curada e dada a ela por uma assessoria aju da seu cônjuge em detrimento de si mesma, negociando se sujeitar ao julgamento públi co, que tradicionalmente toma notas de sua vida privada, aparência e dotes maternos, para que seu parceiro pareça mais afável.

Em 2022, Michelle Bolsonaro é igual mente vocal em comparação ao seu mari do na campanha de reeleição dele. Ela é a promessa para reafirmar o cunho religioso do governo bolsonarista e tentar atingir o público feminino, que tende cada vez mais a Lula nesta eleição.

ex-presidente. Agindo nos bastidores, fa zendo ligações políticas que têm sido vi tais para a campanha, servindo como uma ponte entre toda a classe artística que vem demonstrando cada vez mais apoio ao partido.

Apesar de não ser um consenso entre membros da coligação o quanto a futura primeira-dama deveria se mostrar para o público, Janja se pronunciou abertamen te sobre suas pautas devido ao alto risco de se tornar alvo de ataques dos grupos bolsonaristas. Todavia, ela pode sempre ser encontrada no palanque ao lado do candidato, pegando no microfone para cantar e sendo muito vocativa sobre os ideais que defende.

A cultura patriarcal não consegue ver além do arquétipo da mulher. “A primei ra-dama é uma figura bem ‘Mulher de Cé sar’ – tem que parecer bela, recatada e do lar”, afirma a cientista social Carla Cristina Garcia em entrevista ao Contraponto, em referência à Marcela Temer.

“As mulheres conservadoras estão na política tão ativamente quanto as de esquerda, mas com uma agenda comple tamente oposta. Não há políticas públi cas de inclusão porque o machismo, por exemplo, não é uma questão; o poder é a questão, e incorporam o raciocínio do po der masculino”, comenta Garcia.

A história dessas coadjuvantes da política brasileira é analisada pelos jor nalistas Ciça Guedes e Murilo Fiuza no li vro “Todas as mulheres dos presidentes”, da editora Máquina de Livros. A obra, de 2019, reconta a história do Brasil a partir da trajetória das 34 primeiras-damas do país, de Mariana da Fonseca à Michelle Bolsonaro. Além do grau de escolaridade, o livro ressalta a idade dessas mulheres ao oficializar o matrimônio. “Elas se casavam muito novas, algumas delas com 14 anos. Outras treze se casaram antes mesmo de completar 20”, diz Guedes em entrevista à Folha de São Paulo.

O conceito de dona de casa submis sa pode ser usado para descrever grande parte das primeiras-damas que já foram as donas do Palácio, mas não todas. Sarah Kubitscheck criou a Fundação das Pionei ras Sociais e é reconhecida ainda hoje por sua atuação na área da saúde. Maria The reza Goulart se dedicou em grande parte à Legião e aos 26 anos suportou o exílio junto com seu marido, João Goulart. Mas esses grandes feitos saíram de moda. Em 2016, Marcela Temer foi enaltecida pela revista Veja ao ser descrita como “bela, recatada e do lar”. Deixando de lado a

Utilizando as igrejas e mídias como palco, Michelle faz sua presença ser notá vel especialmente com a parte evangélica do país, ocupando ao lado de seu marido e usando sua fala para enaltecê-lo a qual quer custo, chegando a descrevê-lo como “cura do Brasil” enquanto promove ideias nocivas como a de que o comunismo está destruindo o país “Nós estamos vendo o que o comunismo está fazendo nos países, perseguindo igrejas, queimando igrejas ca tólicas […] Eles vão perseguir os cristãos do Brasil”, disse em discurso de campanha.

De acordo com pesquisa recente da DataFolha, a influência de Michelle cap tou 49% das intenções de voto entre os evangélicos contra 32% de Lula. Porém, o petista tem 47% entre as mulheres, con tra 29% de Bolsonaro. A atual primeira -dama fez e foi exatamente aquilo que os setores conservadores esperavam, sendo recompensada de acordo.

Junto com a ascensão da figura de Mi chelle Bolsonaro, vale observar Rosânge la da Silva, também conhecida por Janja, é socióloga, militante e atual cônjuge do candidato petista Lula.

Vinda de uma história de ativismo pelo PT, Janja tem sido um dos perso nagens principais da corrida eleitoral do

Em seu contexto histórico, o título de primeira-dama não carrega muito mais di reitos ou poder factual do que as mulheres de velhas monarquias. No entanto, a cam panha de 2022 não só está sendo atípica no cenário político atual, como também no sentido da função dessas mulheres. O cargo que antes não passava de decora tivo, hoje tem o poder de decidir o resulta do das eleições.

Ruth e Fernando Henrique Cardoso em 1998 Michelle e Jair Bolsonaro em comício © Sergio Lima –6.mar.1998/Folhapress © Alan Santos/PR
Política
5Setembro/Outubro 2022

N os últimos anos, principalmente com o surgimento das redes sociais, o avanço da extrema direita com discursos de ódio, fez políticos ganharem notoriedade e, de certa forma, serem líderes de verdadeiras seitas com seus seguidores em redes sociais. Aqui no Brasil, principalmente com a eleição de 2018, o atual presidente Jair Bolsonaro, usou suas redes para propagar fake news e discursos coléricos contra seus adversários, alimentando uma cultura de ódio e perseguição entre seus eleitores e a sociedade. As mídias tradicionais se encontraram então com um importante papel: o de enfrentar esses comportamentos com a sua integridade que foi conquistada durante décadas, mas por conta da imparcialidade, acabam se perdendo nessa missão.

O Código de Ética da FENAJ (Federação Nacional dos Jornalistas), estabelece, no art. 2º, I, que “a divulgação da informação precisa e correta é dever dos meios de comunicação e deve ser cumprida independentemente da linha política de seus proprietários” e no art. 2º, II, acrescenta que “a produção e a divulgação da informação devem se pautar pela veracidade dos fatos”. Portanto, jornalistas devem ser cautelosos, há uma linha tênue entre ser imparcial e conivente a mentiras.

Já o artigo 4º afirma que “o compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos, deve pautar seu trabalho na precisa apuração dos acontecimentos e na sua correta divulgação” e o art. 7º, que: “O jornalista não pode (...) II – submeter-se a diretrizes contrárias à precisa apuração dos acontecimentos e à correta divulgação da informação”. Ou seja, o jornalismo precisa ser imparcial para propagar matérias neutras, em que o público escolha espontaneamente alguma face da

notícia, um compromisso com a diversidade e o equilíbrio dos pontos de vista.

Quando são retratadas mentiras parciais ou integrais vindas do presidente da República por parte da imprensa, a ética da profissão está sendo desrespeitada e o compromisso maior, que é prezar a verdade e a informação à serviço da sociedade para a construção de uma nação consciente de sua história e capacidade, não está sendo cumprido. Existe também o oposto, quando o veículo se alinha a determinado candidato e distorce verdades, falas ou situações em favor de outro estadista. Mídias com raízes e interesses bolsonaristas distorceram fatos a fim de tentar favorecer o presidente nesses últimos quatro anos.

O professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, apresentador e editor-chefe de telejornal na TV Cultura de São Paulo, Aldo Quiroga, faz um contraponto. Ele afirma que o problema é muito mais estrutural e educacional, “O jornalismo é incapaz da imparcialidade porque é uma produção humana, então, o que a gente busca através das boas práticas do jornalismo é o equilíbrio, mas a imparcialidade está longe das nossas possibilidades”.

Quiroga acrescenta que o problema não é existir uma determinada emissora ou empresa de comunicação que puxa “sardinha” para um estabelecido lado, mas o preocupante é a falta de educação e de preparo midiático para fazer essa leitura da mídia. “A Jovem Pan tem que existir e tudo bem, o que a gente necessita é educar as pessoas para que elas façam a leitura e saibam consumir aquilo com um distanciamento necessário. Assim como a Globo, Folha de S.Paulo, Brasil de Fato, todo mundo vai puxar para o seu lado porque a imparcialidade está fora da nossa possibilidade. O que a gente precisa é que as pessoas sejam capazes de fazer essa leitura”, o professor pontua que é preciso fazer um jornalismo que busque mais o equilíbrio para compensar a ocupação dos espaços midiáticos.

A prática constante de submeter discursos de ódio à processos de argumentação e “naturalizá-los”, fazendo com que se aproxime de uma simples questão ideológica, colabora e fortalece movimentos antidemocráticos, legitimando o absurdo. A imprensa, que abriu espaço para discursos de articulistas que relacionavam práticas de corrupção estritamente a um partido ou candidato, forneceu toda a matéria-prima necessária para um pensamento anti-político, que foi crucial para a ascensão da extrema-direita no Brasil.

Por Lucas Malagone, Marina Figueiredo, Mariana Luccisano e Yasmin Solon
A contribuição da grande mídia na ascensão dos discursos de ódio
Como o Jornalismo hegemônico repercute atitudes intolerantes e criminosas ao não se posicionar, omitir informações ou reforçar a violência
© Colagem por: Mariana Luccisano
6 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP

A relativização da violência, que vem acontecendo silenciosamente no país, é a chave necessária para a manipulação da massa e o crescente reconhecimento de políticas autoritárias. Quiroga ainda afirma que “a imprensa brasileira bateu palmas para essa criminalização da política que asfaltou o caminho para os discursos de ódio e, por fim, o fascismo”. O persistente esforço da imprensa brasileira de equivaler as oposições de Lula e Bolsonaro, forjando uma falsa “imparcialidade”, classifica o as sunto como uma mera polarização ideoló gica e escancara as portas para a barbárie. Em sua coluna para o UOL, a jornalista Milly Lacombe pontua que “Imparcialida de em tempos coléricos e fascistas é apoio ao fascismo fantasiado de sensatez. A fal sa simetria nos trouxe até aqui. Não era, afinal, uma escolha difícil.”

Relativizar um discurso violento, de ex trema-direita e apontá-lo como uma simples divergência política, estrutura ideologias au toritárias e prepara um terreno hostil para a tirania. Quiroga completa: “O que ainda se fala sobre a polarização é um discurso mui to perigoso, porque coloca as duas propos tas em lados opostos, obviamente, mas em mesmo nível. E na verdade o que temos é a democracia contra a barbárie.”

Com as eleições de 2022, novamente a mídia e a forma como o jornalismo atua está em evidência. Em 2018, tivemos o editorial do Jornal O Estado de São Paulo apontando uma “escolha difícil”, apesar de Bolsonaro criticar e atacar constante mente veículos de imprensa, ferindo um pilar de uma democracia – a liberdade de imprensa. No cenário atual, às vésperas de eleições presidenciais, entrevistas e debates com os candidatos se tornam as principais propagandas políticas.

Na semana do dia 22 de agosto, o Jornal Nacional, principal telejornal do país, entrevistou os principais candida tos à presidência do país. A polarização entre o candidato Luiz Inácio “Lula” da Silva (PT), e Jair Messias Bolsonaro (PL), e o antipetismo se mantiveram claros. Mesmo com duras críticas ao governo atual, os apresentadores do JN, William Bonner e Renata Vasconcellos, não fugi ram das perguntas com ênfase na supos ta violência por parte dos seguidores de Lula, enquanto Bolsonaro se safou desse questionamento.

Essa ascensão de discursos de ódio e de uma cobertura mais midiática e pas teurizada sem um viés jornalístico, não é

um recorte de agora. É um problema sis temático ao longo dessa última década. Podemos ir mais além, com os programas policiais que são produzidos desde mea dos dos anos 90. A cultura da violência propagada, e cada vez mais alimentada por programas policialescos, que diaria mente adentram a casa de grande parte das famílias brasileiras é, talvez, um dos exemplos mais contundentes de como dis cursos coléricos e narrativas discriminató rias têm sido cada vez mais naturalizados e compelidos aos consumidores da grande mídia tradicional. Com falas sensaciona listas, tendenciosas e autoritárias, tais conteúdos encenam um falso jornalismo, exibições como Brasil Urgente, Cidade Aler ta e Balanço Geral reforçam estereótipos sociais preconceituosos, apresentam ima gens explícitas, reportagens sem o míni mo compromisso ético, que submetem cidadãos a situações vexatórias e trata mentos desrespeitosos.

O professor Aldo Quiroga explica como essa dinâmica de espetaculariza ção do medo impacta e deixa cada vez mais vul nerável a sociedade, uma vez que é preciso fomen tar o medo para conseguir apoio ao extremismo. “Os programas policialescos cumprem essa função: quando você impute atra vés de longas imagens que vão se repetindo, de discursos que giram em torno da mesma informa ção, exacerbando um ato que, de fato é violento, mas exacerbando essa

violência, você alimenta um medo e uma população amedrontada que clama por ordem, uma população amedrontada precisa de um salvador. Esse é um discur so que casa muito bem com o fascismo, ‘eu vou aqui resolver os seus problemas, eu vou te proteger’ e é preciso ordem, é preciso pulso firme.”

O papel da grande mídia vai além de informar corretamente os fatos à popula ção, explicar de forma didática e aprofun dada as causas e consequências dessas conjunturas. Em um país que 38 milhões de pessoas entre 15 e 64 anos são analfa betas funcionais, segundo dados do Ibo pe Inteligência, desenvolvido pela ONG Ação Educativa e pelo Instituto Paulo Montenegro, ser transparente e divulgar a veracidade dos fatos é fundamental. É inaceitável que a imprensa omita infor mações políticas contribuindo para um movimento de repulsa e ira, ou incentive uma violência. O Jornalismo deve ser ético e responsável para que seja o quarto poder da democracia.

Entrevista de Jair Bolsonaro no Jornal Nacional conduzida por William Bonner e Renata Vasconcellos Apresentador Datena revoltado com a soltura do chefão do PCC BAND
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© Reprodução/G1 7Setembro/Outubro 2022

Os polos do 5G serão responsáveis por melhorar ou piorar ainda mais a desigualdade social?

Em São Paulo, a tecnologia não se difunde de maneira homogênea, até porque é acessível para todos os indivíduos do mesmo modo

O 5G é a banda larga mais potente até agora

Atecnologia do 5G é a quinta geração da banda larga móvel. Com essa criação, os downloads e uploads de conteúdos ocorrem entre dez ou doze vezes mais rápidos do que comparados ao 4G: agora, o tempo de processamento da informação é menor, há mais facilidade na conectividade simultânea, robotização da indústria além do agronegócio, e muito mais. A nova rede já está ativa em grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, entre outras.

A cobertura total do 5G em todo o país, segundo o Ministério das Comunicações (Mcom), ocorrerá até o ano de 2028, o que, consequentemente, pode vir a alastrar ainda mais a desigualdade digital perante ao acesso daqueles que não possuem nem o 4G. Como afirma Laerte Magalhães, fundador e CEO da empresa de telecomunicações, Nuh!Digital, “se não há a colaboração e inteligência para investimentos de recursos das redes, não terá atendimento para quem mora nas pequenas cidades.”

O avanço da tecnologia possui a capacidade de promover uma melhor comunicação para um meio mais justo e igualitário – entretanto, o diálogo chega a ser desleal ao seu papel quando, ao invés de unificar receptores e transmissores, os afasta. Com a importação do 5G no Brasil, chega também a possibilidade de maior desigualdade digital em diferentes regiões, já que os polos beneficiados com a capacidade da tecnologia serão apenas grandes cidades.

Todavia, a diferença tecnológica entre municípios brasileiros não é uma novidade e, muito menos, resultado da chegada do 5G no país: na verdade, essa realidade já

existe e afeta múltiplos municípios, entre eles, cidades no interior dos estados que são excluídas devido à falta de recursos. Em muitos desses locais interioranos há diversas universidades, tanto privadas, quanto públicas, responsáveis por pesquisas e avanços na ciência – instituições que atualmente sofrem com a falta de recursos e infraestrutura.

A nova tecnologia é capaz de piorar esse cenário ao afastar, ainda mais, as importantes áreas brasileiras das inovações: “Em antemão, as capitais serão atingidas com essa nova tecnologia para depois, áreas mais distantes. Geograficamente há uma preocupação enquanto a desigualdade, já que as áreas urbanas, estas mais estruturadas, serão muito mais beneficiadas em relação às outras”, explica Fábio Senne, coordenador de pesquisas de Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC), do Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação.

É inegável que, por exemplo, na própria cidade de São Paulo – a mais populosa do Brasil – a tecnologia não se difunde de maneira homogênea, até porque não é acessível para todos os indivíduos do mesmo modo. “Muito provavelmente, populações mais escolarizadas e ricas serão introduzidas a essa tecnologia primeiro, o que deve gerar mais desigualdade”, relata Senne.

O doutorando da Universidade de São Paulo (USP) explica também como a conectividade da geração de 60 ou mais anos ajudou no combate à COVID-19: “A internet foi fundamental para o distanciamento social. O idoso é justamente aquele que tem mais dificuldade em deslocamento e, portanto, pode vir a se beneficiar com os serviços proporcionados pelas redes”,indica Fábio.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o fenômeno da pirâmide invertida ocorre no Brasil. Senne visualiza a mesma situação: “Esse é um debate ainda pouco discutido no país, mas, com o envelhecimento da população, talvez seja necessária a elabração de políticas e equipamentos próprios para os mais velhos”.

O recente desenvolvimento das Tecnologias da Informação e da Comunicação

e sua desigual apropriação pelos diferentes estratos sociais acrescentou uma nova onda de desigualdades, cuja questão é a privação do acesso da população mais pobre ao computador, à internet e aos conhecimentos básicos para utilizá-los.

Atualmente, ao invés de reduzir as distâncias atreladas à hierarquia social, a internet as exacerba, devido ao acesso limitado. A disparidade tecnológica na era da informação ocorre por diversos fatores históricos, econômicos e políticos, e assim é sustentada pela exclusão de um conjunto da população ao acesso às tecnologias e ao próprio desenvolvimento. No auge deste crescimento desigual, questões sobre a inclusão digital, a cidadania e os direitos sociais têm sido uma bandeira de organizações governamentais e não governamentais.

O CEO da Nuh!Digital conta que esse cenário está mudando devido aos incentivos e um projeto de lei que utiliza recursos de um fundo criado visando universalizar a conectividade no país. “Parte desse fundo, em torno de 4,5 bilhões, será destinado para conectar esses alunos. Aqueles que estão cadastrados no CadÚnico [plataforma com beneficiários de programas sociais] vão ter direito a um chip gratuito. Inclusive, a empresa que represento, é uma das que vão prover essa solução”.

Existe também uma desproporção de gênero em relação à conectividade. Segundo a Agência Brasil, as mulheres são mais conectadas, mas acessam menos serviços na internet. Entretanto, de acordo com o estudo ‘Desigualdade digital de gênero na América Latina e no Caribe’, realizado pela Universidade de Oxford, o número de mulheres que possuem telefones celulares é menor que o de homens nos países da América Latina e do Caribe. Logo, as mulheres estão em desvantagem em 17 dos 23 países da região analisados.

5G aumentará ou diminuirá a desigualdade digital? Segundo Laerte: “O 5G tem sim um potencial de aumentar a questão de acesso. Se aumentar a conectividade, diminuirá a desigualdade, pois será utilizada para ensino e dará abertura ao mundo digital.” Já Fabio argumenta: “Algumas mudanças ao longo da história resultaram em mais desigualdade, de fato, pois atingiram diretamente o mercado de trabalho”. Logo, após analisar o cenário, pode-se afirmar que 5G beneficiará aqueles que já possuem a rede da quarta geração. Consequentemente, alastrando a desigualdade digital.

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8 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP

O massacre dos caboclos: 70 anos do esquecido ataque ao povo Pataxó

Trancoso, distrito de Porto Seguro, na Bahia, é um dos pontos turísti cos mais visitados no Estado devido as belas praias, comidas típicas e festas. Foi nesse território que a esquadra portu guesa liderada por Pedro Álvares Cabral desembarcou pela primeira vez em solo brasileiro, “descobrindo” o Brasil.

Desde o período pré-colombiano até o presente, esse território sempre foi ocupa do por indígenas Pataxós que vivem até os dias atuais espalhados pelo sul da Bahia. No decorrer dos séculos, o contato entre duas culturas distintas foi aumentando, e sendo muitas vezes violento.

Após 500 anos, a sociedade inevita velmente mudou. O Brasil garantiu sua in dependência, a república foi proclamada. Porém, a condição marginalizada do indí gena no Brasil permanece a mesma.

ingênuos e cortaram” em meio às expres sões faciais que demonstravam questiona mentos. “Quando passou três dias da linha não falar nada, chegou a ‘federal’ para castigar os ‘caboclos’. Uma metade foi fu zilada na hora, enquanto a outra a polícia arreou com selas de cavalo”.

“O homem que foi obrigado a colocar a sela, era o Tonheira, o chefe da Imbiriba, que foi feito de animal – homens cavalga ram nele durante toda a noite. As mulheres saíram correndo e foram parar numa fazen da lá em cima, em Queimado (26,4 km de Imbiriba), perto de Itabela (município baia no). As mães deixavam suas crias para trás. Dois dias depois os ‘caboquinhos’ tinha tudo morrido e seus corpinhos ficaram boiando no Rio dos Frades”. Nilda menciona que seu avô não conseguia sentir nada além de tristeza ao presenciar tudo aquilo com seus conterrâneos e amigos. “O povo de Tranco so e de Imbiriba era unido e, infelizmente, morreu criança, mulher e homem”.

A população residente do local tem medo de falar sobre assunto até os dias atu ais. A própria moradora carrega esse anseio. “Eu falo porque meu avô me contou, e te digo que foi uma tristeza! Meu avô era muito sábio, mas não sabia a leitura. Ele também tinha medo de falar e a federal vir aqui em Tranco so e massacrar a gente, porque a aldeia em Trancoso era muito pequena”, finaliza.

O massacre

A tragédia ficou conhecida como o Fogo de 51, incidente que causou a morte de um número incerto de Pataxós. O mas sacre é consequência do corte da linha de telégrafo que cruzava o Estado e de uma campanha de difamação promovida pela polícia para justificar o crime.

e 15 praças. Durante a ofensiva, todas as casas foram incendiadas, dezenas de pessoas foram mortas, torturadas e estu pradas. Depois da atrocidade, os militares perseguiram e mataram os dois brancos que incitaram os indígenas. Depois, o ter ritório pataxó foi tomado por grileiros.

Fabio, cacique da Aldeia Pataxó de Ponta Larga, na Bahia, também con tou sobre o massacre ao Contraponto “O Fogo do 51 foi um ataque. Eles alegam que os índios tinham feito um roubo ali de pois de Barra Velha. Porque Barra Velha é o território Pataxó (...), porém em todo esse território são 23 aldeias diferentes”.

A situação atual

A memória

Nilda, uma residente do local desde 1950 contou como a história do massa cre é um ponto de grande sensibilidade aos moradores da região. “Trancoso era uma terra de Caboclos, de índio, sabe? Era misturada com Imbiriba (BA) e era tudo muito pequeno. Quando tudo acon teceu, em 51, eu só tinha um ano e não me lembro de nada. Meu avô, João Alves dos Santos, que me contou tudo. Nesse dia, chegaram dois brancos que não se sabia se eram de Salvador ou São Paulo. Eles chegaram em Imbiriba, onde tinha uma linha, que era o telégrafo. Essa linha vinha lá de Porto Seguro e ia parar em Cumuruxatiba. Era o único jeito de saber das notícias da capital.

Nilda conta que os dois homens disse ram aos caboclos que os fios do telégrafo deveriam ser cortados, pois ali “era terra de índio e esse jeito seria melhor”. A mo radora ainda disse que “os caboclos foram

O mandante da operação foi o major Arsênio Alves de Souza, que naquele tem po ocupava o cargo de comandante das forças volantes da Bahia. Curiosamente, esse mesmo militar foi responsável pela morte de Ponto Fino, irmão mais novo de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.

Arsênio ordenou que seus homens in vadissem a aldeia, conforme o plano: de Porto Seguro, uma coluna de 14 praças foi liderada pelos sargentos Altino Calmón e Lourival José, enquanto outra coluna de soldados lideradas pelo cabo Eugenio vi nha marchando de Caravelas. O esperado era que as duas colunas se encontrassem próximo a aldeia de Barra Velha, todavia os soldados se confundiram na escuridão da noite e travaram uma troca de tiros de uma hora. O Integralista Arsênio foi apelidado de “MacArthur de Corumbau” e ridiculari zado pela comunidade. Enfurecido, decidiu que lavaria sua honra com sangue Pataxó.

O soldado reorganizou sua tropa e atacou a aldeia munido de metralhadoras

Hoje, caciques de muitas aldeias de Porto Seguro lutam para organizar um mecanismo de defesa contra fazendeiros, que estão atacando terras indígenas não demarcadas do sul da Bahia. O cacique Pa taxó comenta sobre as dificuldades para realizar essa entrevista ao Contraponto “Hoje, em um áudio que caiu no grupo de WhatsApp do conselho de caciques de Porto Seguro, foi mencionado sobre o pe rigo caso algum indigena passasse na rua, sentido BR-101”.

Além do confronto contra fazendeiros, outras questões afligem a população origi nária, conforme explica Fábio: “Nós sofre mos muito porque existe o preconceito. Eu vejo muito na mídia falando: ‘Índio de Iphone e de Hilux’. O índio, além de ser índio, é um cidadão brasileiro, acho que o índio tem direito de ser um advogado, um juiz, um doutor, usar um terno e gravata”. O cacique também reflete sobre os rótulos impostos aos indígenas. “Acho que aquele índio, pelado, com a flecha na mão, com cabelo de cuia e olho puxado é de livro de história, apenas isso!”

O cacique Pataxó comentou o objetivo que todos os caciques de Porto Seguro de sejam alcançar para suas aldeias. “Somen te preservar a nossa cultura, falar nossa língua e cuidar da mata, da natureza, proteger os bichos e seguir a vida. A gen te usa muito uma frase: ‘O ser humano só vai descobrir que o dinheiro não se come quando não tiver peixe e água’”.

Por Francisco Vecchia, Kawan Novais, Renan Barcellos Com chacinas pouco relevantes aos olhos da sociedade, os indígenas Pataxós ainda sofrem com a marginalização no Brasil Trancoso – distrito de Porto Seguro (Bahia) – 1938 Nilda Alves Bonfim Barreto © Reprodução: acervo pessoal © Reprodução: acervo pessoal
9Setembro/Outubro 2022

Adoção: o encontro com o amor

Ocontexto da pandemia da Covid-19 tem levado as pessoas a refletirem sobre as relações e o afeto. O isolamento social causou uma reviravolta nos relacionamentos entre familiares, devido principalmente à maior interação entre os membros de uma mesma família, bem como, em muitos casos, a vontade e oportunidade de aumentá-la.

Para a advogada Sandra Vilela, especialista em alienação parental e guarda compartilhada, um dos grandes motivos para a queda do número de adoções nesse cenário foi a dificuldade em manter alguns procedimentos que necessitam do contato presencial, já que a adaptação das crianças com a família se dava, na maioria das vezes on-line, seguindo a recomendação do distanciamento social. “As pessoas estavam com medo de receber as crianças em casa porque temiam que elas estivessem doentes”, comenta.

Mesmo com as instabilidades financeiras e sociais, muitas famílias brasileiras estavam a caminho de realizarem o sonho de ter uma família a partir da adoção. Os processos de acolhimento não foram interrompidos, mas o número de adoções sofreu uma considerável redução quando comparada aos anos anteriores à pandemia.

“Simplesmente ter um filho”

É nesse contexto de luta e esperança que Erasmo Coelho, professor e pai solo, conheceu Gustavo. Se a pandemia desfez muitas famílias, também formou novos núcleos.

Com o processo iniciado em 2019 e a pausa na habilitação de adoção para se dedicar à luta de seu pai contra o câncer em 2020, Erasmo Coelho passou, mais tarde, a fazer parte de grupos on-line de busca ativa

para pessoas habilitadas. Trata-se de fóruns formados por juízes que buscam famílias para crianças e adolescentes de difícil adoção, seja pela idade mais avançada, por terem irmãos ou ainda algum tipo de transtorno físico e/ou mental. Foi em um desses grupos, no WhatsApp, que tudo começou.

“Eu olhei pra aquela criança e falei: ‘mas que menino bonito’”. De início, não se empolgou tanto, já que outras tentativas não haviam dado certo. Ele conta, em entrevista ao Contraponto, que muitas vezes as crianças não queriam só um pai, queriam também uma mãe, ou então não podiam ser adotadas por um homem solteiro.

Além do preconceito da sociedade, ele denuncia também o péssimo imaginário de muitas pessoas, que acreditam que “crianças mais velhas não podem ser adotadas porque serão delinquentes e monstros”.

Mesmo assim, Erasmo mantinha em mente algo fundamental: “Na adoção, a gente não busca uma criança para a família, mas sim uma família para aquela criança”. E, assim como deve ser, Gustavo, de São Paulo, buscou seu pai, do Rio de Janeiro.

De certo modo, o cotidiano pandêmico facilitou o contato entre os dois, que, devendo ser feito virtualmente, poupou muitas viagens ao futuro papai. “A gente se falava todo dia por vídeo chamada, e de sábado e domingo, por ligação telefônica”, conta Coelho, apontando o cuidado intensivo do abrigo durante todo o processo de aproximação. Mesmo assim, houve também o lado ruim: “Não tive a oportunidade de conhecer, de levar no shopping ou tomar um sorvete”.

Um dia depois de seu aniversário, no dia 4 de abril de 2020, era a hora de buscar o seu maior presente. Ainda não tinha sido possível um abraço sequer, mas, em suas próprias palavras, “Deus não dá filho trocado pra ninguém. Tinha que ser ele”, Nas palavras de Erasmo é preciso que os futuros pais e mães trabalhem sua ansiedade.

Por outro lado, seu filho, hoje com 13 anos, conta no Instagram que também teve seus “momentos intensos”, em que queria voltar, sentia falta do abrigo ou tinha pesadelos. “Não vou voltar porque vou deixar meu pai triste. De pouquinho em pouquinho, eu fui me adaptando. Hoje não tenho mais isso”.

Complementando, Coelho define o significado da palavra adoção em sua vida: “Adoção pra mim é o desejo que você tem de formar uma família sem o pensamento de fazer uma caridade. Simplesmente ter um filho. Você se torna um ser bobo, muito sensível. É diferente!”.

Alegria em dobro

Ao contrário de Erasmo e Gustavo, Raissa Leite e o seu parceiro tiveram contato presencial com as crianças durante o processo:

“Como os meninos eram muito pequenos, nós tivemos que ir até lá. Fizemos o teste, pegamos uma autorização e viajamos”.

Inicialmente, Raissa queria a adoção tardia, mas, durante o curso obrigatório, mudou de ideia e decidiu pela adoção na primeira infância. Foi também durante o curso que lhe surgiu o desejo de adotar mais de uma criança: “Eu estava preparada para esperar 3 ou 4 anos na fila, mas Deus quis, por assim dizer, que nós tivéssemos uma gestação de apenas 4 meses. No início de dezembro nós recebemos a ligação de que havia dois meninos numa cidade vizinha disponíveis”.

Ela também conta sobre a importância da sua rede de apoio durante a fase de adaptação dos meninos à nova realidade: “A nossa família e, principalmente, os nossos amigos sempre nos apoiaram muito”. Ela acredita que esse apoio refletiu de forma positiva nas inseguranças dos filhos, especialmente na compreensão de que eles agora têm uma família que os ama e não vai abandoná-los.

“[A adoção] não é plano B. Existe muito esse tabu de opção por não conseguir engravidar e pode ser uma verdade também. Infelizmente, para muitos casais acontece mesmo de descobrir a infertilidade e recorrer à adoção, mas é sempre pelo desejo de serem pais, não uma segunda via menos valorizada, mas uma via que tem todos os benefícios e desafios de maternidades geradas”, opina Raissa.

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, “A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais” (ECA, Art. 41).

Tornar-se pai ou mãe por meio do ato de adoção é uma decisão dedicada àqueles verdadeiramente motivados pelo princípio do amor e do comprometimento com os direitos e o integral bem-estar das crianças e adolescentes.

Por Luísa Ayres, Manuela Dias e Sônia Xavier Erasmo e Gustavo Coelho, pai e filho. entrevista foi dada ao Contraponto justamente no dia dos pais Raissa diz que os filhos são muito sociáveis e participam de diversas atividades com o casal. Tito, 2, à esquerda e Benício, 3, à direita
Entenda como a pandemia ampliou o desejo por filhos adotivos em muitos brasileiros e qual foi o impacto do vírus no sistema de adoção nacional
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© Reprodução: arquivo pessoal © Reprodução: arquivo pessoal 10 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP

Os Primeiros Soldados: como a cultura desmistifica o tabu da AIDS

Filme brasileiro conta sobre os primeiros casos da doença no país, relembrando a luta dos portadores e sensibilizando o debate

sobretudo, lembrar que hoje há alterna tivas a infecção. Entretanto, o estigma criado e arquitetado nos primórdios da epidemia persiste quando se pensa que estar doente pode significar o fim da vida.

Ano novo, vida nova. A virada é sempre um recomeço, ou quase sempre. Na chegada de 1983, o pri meiro caso de AIDS no Brasil já tinha corpo e nome masculino que, quando descober to doente, lhe foi imediatamente associa do à sua sexualidade.

HIV é a sigla em inglês para o vírus da imunodeficiência humana, o causador da AIDS – Síndrome da imunodeficiência hu mana, também em inglês –, conhecida como o estágio avançado de infecção, ca racterizada pelo enfraquecimento do sis tema de defesa do corpo e aparecimento de doenças oportunistas. Por ser um re trovírus, eles compartilham as proprieda des de período de incubação prolongado antes do surgimento de sintomas, infec ção das células do sangue e sistema ner voso e supressão do sistema imune.

É possível, para portadores de HIV, viver anos sem apresentar sintomas ou desenvolver a doença. Podendo ser transmitido por relações sexuais, trans fusões de sangue ou compartilhamento de objetos perfuro-cortantes, a preven ção é feita pelo uso de camisinha nas re lações, tratamentos durante a gestação para grávidas portadoras e o não uso de objetos cortantes contaminados. O tra tamento pode ser feito por medicamento antirretrovirais.

Segundo a linha do tempo feita pelo Instituto Fiocruz, o vírus chegou ao Bra sil em 1980, enquanto o primeiro caso de AIDS foi identificado em 1982 por transfu são sanguínea. Em 1983, homossexuais foram proibidos de doar sangue, sob risco de punição em caso de infração, ao mes mo tempo que saíam nos jornais de São Paulo notícias sobre a “Peste Gay”, asso ciando a doença à homossexualidade. Em dezembro de 1988, o país já acumulava mais de 4 mil casos da doença.

A imprensa, poder público e profis sionais de saúde tiveram de lidar com o

moralismo e estigmas voltados para a homossexualidade. A vinculação da do ença à comunidade gay após o aumento dos casos iniciais, as críticas direcionadas à criação de alas para AIDS, a recusa de atendimento médico por falta de informa ções e falta de medidas preventivas pelo Ministério da Saúde arquitetaram os tabus entorno da síndrome.

A chegada da AIDS no Brasil foi mar cada por preconceito e desinformação, e, sua epidemia, pela construção de um es tado de medo.

O estudo Os jovens e o imaginá rio da AIDS: entre o risco e a prevenção, produzido por Leila Sollberger Jeolás, professora de Antropologia Social do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina, de monstra que as representações sociais atuais – propagandas preventivas e dis cursos prescritivos – em torno da AIDS não dão conta de atingir o imaginário de risco do público jovem, visto que não é levado em conta as contradições ineren tes à sua prevenção.

Ao entrevistar estudantes de seis es colas públicas em Londrina, evidencia-se que a maior parte dos jovens dizem se en xergar em uma posição de risco inevitável de contração do vírus e afirmam sentir medo da infecção.

Você não sabe o quanto acredita na preservação da sua vida, até ter que comer um pedaço da própria carne para sobreviver

Em Os Primeiros Soldados, de Rodri go de Oliveira, Suzano, personagem, biólogo e portador da AIDS, molda sua própria imagem em torno da doença. Ar tista de espírito, ele se veste de mulher na virada de 83, sozinho e isolado, após descobrir que estava contaminado. Seus amigos Rose, travesti, e seu amigo Hum berto, também gay, contam, em vídeo e atuação, o processo de descoberta da infecção de Suzano. O real se torna per sonagem quando os sintomas estão tão evidentes quanto a solidão e – também –a força. Neste momento, ninguém está mais atuando.

O filme reaviva o patrimônio dos pri meiros que sofreram com as dores da síndrome no Brasil e aborda a sensibi lidade que é viver com AIDS, além de,

Entre os depoimentos colhidos, uma das entrevistadas explica que “pesso almente tenho medo porque acho que sou nova para pensar em AIDS. Eu tenho medo do risco da AIDS porque eu tenho relação sexual com meu namorado, ape sar de ele ser meu namorado eu tenho medo. [...] Devemos cuidar do nosso cor po.” (19 anos, feminino, solteira). Outro comenta que “é como se fosse uma pe dra no caminho e eu tropeço, não tem hora para vir” (17 anos, masculino, sol teiro). Em outra ocasião, um jovem diz que “[...] se tiver que acontecer comigo vai acontecer mesmo, então não dá pra ficar pensando nisso!” (16 anos, mascu lino, solteiro).

Já que os meios convencionais de informação são insuficientes para infor mar sobre a vida cotidiana e amorosa quando se vive com a AIDS, o professor de Antropologia e Psicanalista da PU C-SP, Edmilson Felipe da Silva, afirma, em entrevista ao Contraponto, que, no processo de esclarecimento, “[...] os filmes auxiliam, na medida em que a participação afetiva e efetiva dos es pectadores em determinados temas, ou seja, na receptividade do filme, bem como outras expressões artísticas, os convocam a reaprender a dinâmica so cial em que vivem”.

A partir de obras como Os Primeiros Soldados, é possível romper com o estig ma e alterar o imaginário que estrutura o medo vinculado à contração e ao con vívio com o vírus. A vida não termina de pois da AIDS.

Por Gabriela Figueiredo e Victoria Leal © Reprodução/filme: Os Primeiros Soldados Os Primeiros Soldados
Saúde
11Setembro/Outubro 2022

Varíola

Nos últimos meses, o mundo presenciou um crescimento preocupante de casos de Monkeypox . Com o recuo da pandemia de COVID-19, a maioria dos países relaxou suas restrições sanitárias e voltou a abrir portas e fronteiras, mas a possibilidade de um novo vírus paira novamente no ar.

A doença viral popularmente conhecida como “varíola dos macacos" foi identificada pela primeira vez em 1958 em macacos de laboratório. Apesar disso, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a patologia está mais associada a roedores do que propriamente aos primatas. Nos seres humanos, a virose só foi detectada no ano de 1970.

Nesse ocorrido, um garoto de nove anos, natural da República Democrática do Congo, foi contaminado pela doença. Após o episódio, onze países do continente africano passaram a registrar casos de Monkeypox em zonas rurais e florestas. Eram eles: Benin, Camarões, Costa do Marfim, Gabão, Libéria, Nigéria, República Centro-Africana, Congo, República Democrática do Congo, Serra Leoa e Sudão do Sul. Assim, a varíola dos macacos tornou-se endêmica na África.

Em 2003, os Estados Unidos assistiram ao primeiro surto de Monkeypox fora do continente africano. Dos 87 casos suspeitos do país, foram confirmados 20. O vírus teria chegado às terras estadunidenses por meio de cães da pradaria – uma espécie de mamíferos roedores – importados de Gana.

Outro caso em que a patologia espalhou-se foi na Nigéria que, desde 2017, vive com uma epidemia de varíola dos macacos com uma taxa de letalidade em torno de 3%, segundo a OMS. A partir de 2018, o mundo testemunhou o aumento de casos, tendo o Reino Unido identificado novos casos em dezembro de 2019, em maio de 2021 e em 2022.

A crise recente

Em maio deste ano, a Europa e os Estados Unidos vivenciaram uma onda de contágios da doença, e os números não param de crescer. Cerca de 80 casos foram confirmados pela OMS em países como Alemanha, Bélgica, Canadá, Espanha, França, Itália, Portugal e Suécia. Em junho, já somavam mais de mil casos em cerca de 29 territórios.

No mês de julho, contava-se mais de 14.500 casos em setenta países. No Brasil, o primeiro caso de Monkeypox foi confirmado no dia 09 de junho na cidade de São Paulo. Até o fechamento desta matéria, segundo dados do Ministério da Saúde, o país contava com 4.144 casos. Dentre os estados com os maiores números estão São Paulo, com 2.640, e Rio de Janeiro, com 508.

A posição da OMS

No mês de julho foi realizada uma reunião pela OMS para recomendar medidas de contenção da doença. No evento, o diretor-geral da organização, Tedros Adhanom, afirmou que 98% dos casos confirmados eram de “homens que fazem sexo com outros homens” (HSH) e que algumas medidas de prevenção deveriam ser tomadas por todos.

"A melhor maneira de fazer isso [diminuir os casos] é reduzir o risco de exposição. Isso significa fazer escolhas seguras para você e para os outros. Para homens que fazem sexo com homens, isso inclui, no momento, reduzir o número de parceiros sexuais, reconsiderar o sexo com novos parceiros e trocar detalhes de contato com novos parceiros para permitir o acompanhamento, se necessário", declarou Tedros.

Esse discurso vindo de uma autoridade da área da saúde corrobora para a criação de um estigma em torno de pessoas

LGBTQIA+, ainda que o próprio diretor da OMS tenha dito não ser a sua intenção.

Por parte da comunidade LGBTQIA+, a preocupação principal é de uma afirmação do preconceito existente sobre esse grupo. Já os profissionais da saúde temem que o estigma atrapalhe o processo de identificação da doença e leve ao diagnóstico tardio e, como consequência, a dificuldades no tratamento.

Em entrevista ao Brasil de Fato, a integrante do Conselho Municipal de Saúde do Recife e assessora de Programas da ONG Gestos, Juliana Cesar, apontou o erro do pronunciamento da OMS ao direcionar o comunicado apenas para uma população. Para Cesar, direcionar o discurso para uma comunidade que "concentra números de casos da doença, mas não é a única vulnerável e se dirige somente a ela, essa mensagem, que deveria ser geral – e que não necessariamente é correta –, acaba estigmatizando aquele grupo”.

Uma preocupação levantada por Juliana na ocasião, é a reprodução, por parte de entidades da ciência e saúde, dos erros cometidos no início da pandemia de HIV a partir dos anos de 1980. Naquela época a AIDS era tratada como uma “praga divina”, isto é, uma consequência enviada para a população homossexual que “vivia no pecado”.

Além de associar a imagem da população LGBTQIA+ com doenças contagiosas, o discurso cria uma cortina de fumaça que pode impedir, por exemplo, que heterossexuais busquem métodos contraceptivos

Por Beatriz Porto, Evelyn Fagundes, Gabriela Costa, Pedro Catta-Preta e Ramon Baratella
dos Macacos e o embate com a comunidade LGBTQIA+ Profi ssionais da saúde temem que preconceitos atrapalhem o processo de identificação da doença, levando ao diagnóstico tardio e dificuldades no tratamento Respostas preconceituosas a um Tweet informativo sobre a varíola 12 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP

e consultem médicos quando apresentam sintomas dessas doenças.

Outro grupo que também pode con trair a doença e ser prejudicado pela negli gência são os bebês. Por terem o sistema imunológico mais frágil, eles estão sujei tos a maiores complicações. No Brasil, já foram confirmados dois bebês contamina dos, um em São Paulo e o outro na Bahia.

A dificuldade de dar um diagnóstico por conta do preconceito também atin ge os profissionais de saúde. Ao Brasil de Fato, Juliana afirmou que teve contato com relatos sobre médicos que, ao des cobrirem que a suspeita de contaminação por varíola vinha de um paciente heteros sexual, suspendiam a hipótese.

"Se você espalha que isso é doença dos gays, as pessoas começam a atribuir a eles a responsabilidade, a culpa do agravo se espalhar – o que é péssimo, cria julga mentos morais – e você perde a oportu nidade de diminuir o número de casos e focar no que interessa", relatou Cesar ao site. Essa base discriminatória torna defa sado o processo do diagnóstico pela doen ça e, consequentemente, torna mais difícil o combate à varíola.

Um caso real

Dores nas articulações e febre mode rada foram um dos sintomas sentidos por João Pinheiro. Os primeiros sinais da doen ça afloraram em uma viagem internacio nal feita para Europa.

O advogado conta que sentiu um enorme cansaço que poderia ser causado pelo calor escaldante na Europa e, ao fa zer suas malas para voltar ao Brasil, sen tiu suas ínguas engessadas e doloridas. “Não era algo que estaria ‘inchado’ ou ‘do endo’, era uma coisa bem séria do tipo de não conseguir mexer o pescoço", contou João Pinheiros.

“Ainda estou em casa, no meu décimo nono ou vigésimo dia, não existe uma reco mendação específica porque vai depender da cicatrização da última ferida que tiver e acho importante isso ser frisado porque não é um isolamento igual a COVID que tem um tempo determinado. Por exem plo, não é ficar cinco dias em casa e não transmitir mais, é recomendado, pela li teratura científica e pelos infectologistas, que as pessoas fiquem em isolamento até que a última casca da última ferida caia e nasça uma nova pele cicatrizada”, afirmou.

O advogado disse que, no começo, sur giu uma afta em sua boca, mas não ligou

tanto, já que é algo comum. Mas mesmo com o uso de pomadas a lesão não apre sentou nenhuma melhora.

Sua primeira hipótese de como con traiu a doença foi em sua viagem para uma cidade litorânea. Outro ponto foi que fre quentou festas com várias pessoas sem camisa com as quais, consequentemente, teve contato físico. Além disso, afirmou ter tido relações com outro homem.

Após chegar ao país, sentiu febre na sala de embarque do aeroporto e foi direto ao hospital. O advogado diz que na época em que testou, tudo poderia ser feito atra vés do SUS ou por pagamento de laborató rios particulares.

A escolha de um hospital particular foi por conta do receio de discriminação, por que era algo que o deixava aflito: "cheguei no hospital e me atenderam super bem, só que a médica não entendeu que eu estava com uma dor que não adianta você reco mendar um dipirona ou tramal e mandar para casa”.

O relato de Pinheiro foi postado em sua conta no Twitter e viralizou ao ponto de muitas pessoas usarem seu tweet como fonte de informação primária ao invés de procurarem um veículo de imprensa ou uma página do governo, “chega a ser as sustador como usaram meu tweet, que era pra ser um lugar de debates rasos, para debater informações sérias. É uma vítima que está tweetando, não sou especialista”.

Apesar dos casos de homofobia que sofreu tanto dentro das redes sociais quanto fora, João afirma que recebeu inú meras mensagens positivas. Nos comen tários havia homens e mulheres contando

suas experiências e até especialistas con tribuíram com informações precisas nes te post.

“Nós sabemos que pelo menos a me dicina brasileira não está pronta para atender minorias. Eles não conseguem atender nem mulheres que estão em tra balho de parto, que é uma coisa que existe a milênios, quem dirá um homem gay num pronto socorro com uma doença nova. Nós que somos minorias temos que tomar muito cuidado com nossa saúde porque sempre seremos alvo quando surgir algo novo, mas também seremos os últimos a serem cuidados”.

A vacina

No dia 25 de agosto, a Anvisa aprovou a liberação de uma vacina de varíola dos macacos, a “Imvanex” (ou “Jynneos”, nos EUA). A autorização é exclusiva para o Mi nistério da Saúde e tem uma duração de seis meses, exceto se for expressamente revogada pela própria Anvisa.

O imunizante, fabricado pela empresa Bavarian Nordic A/S, é produzido na Dina marca e na Alemanha, e já possui aprova ção da Agência Europeia de Medicamentos (EMA) e da U.S. Food and Drug Administra tion (FDA) e é destinado a grupos com mais de 18 anos. Ainda não há previsão para o início da vacinação no Brasil.

Segundo dados do Boletim Epide miológico disponibilizado pelo Ministério da Saúde no site do Governo Federal, no Brasil, até a denominada “Semana Epide miológica 33”, que foi encerrada em 20 de agosto deste ano, foram registradas 14.054 notificações para Monkeypox . Esse dado demonstrou um aumento de quase 38% no número de notificações quando comparado a semana anterior.

Esses casos se dividem da seguinte forma: 3.825 (27%) classificados como confirmados; 258 (1,8%) como prováveis; 4.563 (32,5%) como suspeitos e 5.408 (38,5%) foram descartados.

A transmissão ocorre entre huma nos através de fluidos corporais, contato com itens contaminados, como roupas de cama, e/ou contato pele-a-pele. Seus principais sintomas são dor de cabeça in tensa, febre, dores musculares e erupções cutâneas; podendo durar cerca de quatro semanas. Quem identificar qualquer um desses sintomas ou tiver tido contato com alguém com suspeita de varíola, procure os postos de saúde da sua região.

Thread de João Pinheiro que viralizou no Twitter
13Setembro/Outubro 2022

O debate acadêmico e político sobre a humanização da saúde

Uma ciência utilizada para a cura que, em compensação, também apresenta seu processo

Segundo o filósofo Michel Foucault (1926-1984), o termo “medicalização”, foi criado para enfatizar a influência da medicina sobre praticamente todas as faces da vida social de grupos e indivíduos. O estudioso também disserta sobre atitudes dentro de ambientes hospitalares, seguindo o debate a respeito da violência em paralelo ao poder, ou seja, como ambos são vistos como sinônimos.

A demanda pela discussão se dá pelas constantes publicações sobre o tema, o qual se reforça ainda mais com base na necessidade da lei de 2003, a Política Nacional de Humanização (PNH). Alguns dos casos mais graves relatados, entretanto, são anteriores à popularização do tema, como, por exemplo, o de Roger Adbelmassih, médico que estuprava e inseminava suas vítimas com seu próprio material genético. Ou tendo em vista casos ainda mais antigos, como o conhecido horror do “Holocausto Brasileiro”, genocídio em massa de pessoas com deficiências psiquiátricas.

Qualquer tipo de violência é reconhecido como uma condição social e de saúde. A  questão da violência no meio médico tem sido foco de pesquisas que evidenciam, para além dos problemas econômicos e de infraestrutura que os serviços de saúde sofrem, aspectos socioculturais relacionados às práticas violentas de caráter institucional.

A constância de ocorrências como a negligência na assistência, discriminação social, violência física e sexual demonstram que a estrutura do sistema propicia a violência baseada nos estereótipos e preconceitos sociais mais desmoralizantes à população.

Tendo como base um contexto histórico e social profundamente marcado pela segregação de diferentes grupos sociais, o desenvolvimento da medicina teve, desde

seu princípio, a incorporação de tais pré-julgamentos em seus métodos. Grande exemplo definidor da teoria, seria o próprio crescimento e desenvolvimento das mais diversas técnicas da medicina moderna inseridas na lógica da exploração e experimentação nazista. Além disso, muito do que se conhece hoje como estatutos de ética médica vem dos meios médicos do regime fascista. Segundo a teoria do “ter” de Hegel (1770-1831), os judeus, por terem tido seus direitos fundamentais de vida, liberdade e propriedade extirpados, não eram considerados humanos, apenas corpo. Com isso em mente, médicos nazistas usaram da brecha ética para torturar a população.

Apesar de todo o histórico de testes em humanos de forma hedionda, a medicina surgiu como um instrumento de cura de doenças, cuja consequência levou o homem a tentar superar a morte, ou adiá-la. Gonzalo Vecina Neto, médico sanitarista e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, comenta para o Contraponto que a medicina, de certa forma, é antinatural. “A natureza nos leva para um canto que é o adoecimento e a morte, e a medicina tenta nos tirar desse caminho que a natureza nos colocou. Então, em certa forma, a medicina sempre produz um pouco de violência nesse sentido, de nos desviar de um caminho que a natureza nos havia colocado, que é um caminho de dor, é um caminho de sofrimento.”

Para Vecina, a medicina tem um comportamento ambíguo em relação à dor que os pacientes sentem, pois ela fará uma dor que livrará de uma outra dor. “Ela resolve isso cortando, retirando pedaços; ela é violenta de uma forma natural, por assim dizer. Penso que ao longo do tempo, é uma tentativa de diminuir o impacto dessa dureza, do duro, que é lidar com a morte”.

“Uma situação em que você coloca para dentro o mais grave e deixa os menos graves esperando é um tipo de violência, só que como os recursos são escassos, estrutura um processo de escolha. É o chamado ‘protocolo de Manchester’, cujo paciente mais grave entra e o menos grave fica. É uma violência e não tem como dizer que não seja uma violência”, explica o médico.

A violência do feminino na medicina

Assim como, em muitos contextos as mulheres, não são vistas como pessoa e sim como corpo, na medicina a perspectiva não difere, uma vez que o direito à propriedade de seu próprio corpo, muitas vezes não é respeitado.

Como relata a professora Carla Cristina Garcia, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) “Os tipos de violência que continuam existindo tem a ver com a ginecologia machista e patriarcal que trata as mulheres na hora do parto com a episiotomia – pequeno corte cirúrgico feito na região entre a vagina e o ânus, durante o parto, que permite alargar a abertura vaginal – que geralmente não se pede permissão para as mulheres antecipadamente, não explicam que o procedimento pode acontecer”. A professora ainda comenta sobre o procedimento chamado popularmente de “ponto do marido”, ponto que se dá após o parto para fins de prazeres masculinos, em que também não se pede permissão. “Pode se dizer que a violência que a medicina exerce tem a ver com a violência obstétrica.”

Garcia explica que a medicina vai se tornando uma ciência que legitima e perpetua violências, principalmente a partir do século XIX, quando o seu conhecimento se torna o saber hegemônico e dominante entre todas as outras. “Quando o paradigma científico da medicina decide quem é normal e quem é anormal, essa acaba sendo a maneira pela qual você considera aquelas e aqueles que devem ou não ser internados em manicômios, que controla os corpos e que de alguma maneira determinou também os lugares que as pessoas vão ocupar na sociedade burguesa a partir do século XIX.”

De acordo com relatos de pacientes, retirados do aplicativo de conteúdo médico, Sanar Flix, as mulheres, principalmente afrodescendentes e financeiramente desfavorecidas, fazem parte do grupo que mais sofre com a discriminação de tratamento médico.

A enfermeira obstétrica, Aline Bacelar, comenta que já ouviu relatos de mulheres que vieram procurá-la após terem

Por Gabriella Maya, Maria Luiza Tavolari e Rafaela Reis Serra Pacientes nos corredores do Hospital Geral de Palmas, no Tocantins
de dor
© Divulgação/Ronaldo Mitt 14 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP

acabado de passar por um parto vaginal, com o feto morto, relatando que sofreram violência obstétrica. “Já presenciei médi cos sendo agressivos, na hora do parto ‘faz mais força.’”

“Hoje em dia, tornamos essa questão da humanização dos partos como se fosse um grande destaque para aquela equipe que o pratica. E, na verdade, essa huma nização é uma coisa básica. É essencial.

A mulher que está sendo atendida para ter o seu filho, seja uma cesária, seja um parto normal, ela tem que ser respeitada e aco lhida”, revela Bacelar.

Outra enfermeira de UTI (Unidade de Terapia Intensiva), E.G. (nome fictício), traz um relato em um hospital público. Ela conta a vez em que um suposto criminoso, do qual havia sido ferido por arma de fogo, na região da cabeça, teve seu atendimento postergado, isso porque o pedido de comi da, feito naquele dia pela equipe médica, havia acabado de chegar.

“Acelerei o processo, para que esse pa ciente pudesse passar logo pela cirurgia e acionei a equipe de anestesia, pois só po díamos descer com o indivíduo se a equipe da anestesia descesse junto. As anestesis tas não estavam muito a fim de atender o paciente e fizeram várias solicitações, com a intenção de prolongar a espera. Mas eu, em 30 minutos, já apareci com tudo que me foi pedido”, conta a enfermeira.

E.G. relata que fizeram as solicita ções acreditando que ela não consegui ria. Quando todos os processos estavam prontos, a equipe estava pronta, o pa ciente. Só faltava o anestesista. A en fermeira então chamou o médico, que declarou ser impossível ela ter obtido todos os equipamentos. “Mas eu tinha, e fomos a caminho do paciente. Quan do chegamos lá, ele se deparou com o caso, se virou para mim e disse, na frente

de todo mundo, ‘eu não sei porque você correu para salvar esse cara’. Era claro que eles não estavam a fim de realizar o atendimento àquele paciente, porque na hora que eu chamei eles, havia acaba do de chegar uma pizza para comerem. Quando o entregador fez a entrega, eu os chamei para fazermos o atendimento e o médico ficou com muita raiva.”

O relato a seguir poderia facilmente ser mais um dos contados por pacientes, principalmente os que utilizam o aten dimento de saúde pública. Entretanto, dentro da cadeia de comando médica, é comum que funcionários de menor nível hierárquico sejam, maltratados, subju gados e difamados por seus chamados “preceptores”.

“Nunca sofri nem presenciei violência física dos médicos, mas assédio moral é parte da nossa rotina”, diz a estudante de medicina do 6° ano da faculdade Santa Marcelina, C.H. (nome fictício). Relatou para o Contraponto as várias maneiras como foi agredida ou às vezes que presen ciou a agressão de seus colegas por parte do médico encarregado pelo caso clínico, durante seu internato – período na carrei ra médica, durante o quinto e sexto ano de faculdade, em que o estudante acom panha a rotina de seus professores no hospital escola.“Na concepção deles [su periores], eles entendem que a gente só aprende na base da humilhação”.

A estudante de medicina revela que os casos de violência se amplificam, uma vez que, sendo uma mulher em um ambiente até recentemente dominado pela força de trabalho masculino, é comum a ocor rência de citações misóginas e intencio nalmente humilhantes. “Já ouvi muito no centro cirúrgico ‘até que você instrumen ta bem, para uma mulher.’ É muito de gradante ouvir algo assim e não poder se

manifestar por medo de que o preceptor possa te marcar e atrapalhar sua carreira.”

“Há três semanas, estava na UTI e um residente me pediu para trocar o curativo de seu paciente. A residente encarregada do plantão me impediu, e me jogou todo seu trabalho burocrático, que na realidade, sou proibida de fazer, mas é comum que eles nos usem para facilitar seu serviço.” A es tudante concluiu explicando que não só sua educação foi prejudicada, como a saúde de sua paciente, e atitudes de descaso como essa são extremamente comuns, e muitas vezes acarretam danos à saúde e do pacien te, ou em muitos casos, sua própria vida.

Para Alice Bacelar, a medicina deve trabalhar na questão da conscientização. “As universidades devem abordar temas de sensibilização desde cedo.(...) Fazemos juramento para mudar vidas, tem toda uma questão ética. Os meus problemas pessoais ficam fora do hospital”. Já Gon zalo Vecina Neto afirma que todo ato de violência é um ato deliberado, e todo ato pode ser evitado. “É óbvio que, para isso ocorrer, necessita haver decisões.”

Complexo hospitalar do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de São Paulo Fachada do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de São Paulo Paciente na UTI de covid de Goiás © Helena Mendes © Helena Mendes © Vinícius Schmidt/Jornal Metrópoles
15Setembro/Outubro 2022

Como a visita de Nancy Pelosi pode impactar o Ocidente?

C om amplo espaço geográfico, a hegemonia ética e ideológica sempre foi um desafio para a China. Desde sua Revolução, em 1949, quando o Partido Comunista assumiu o poder do país, outros grupos começaram a se organizar no que viriam a ser os movimentos separatistas. Entre os nacionalistas, contrários ao socialismo no poder, o grupo liderado por Chiang Kai-shek se exila na ilha de Taiwan (também chamada de ilha de Formosa) e desenvolve o território como uma nação independente e capitalista.

Situada a cerca de 130km do litoral chinês e separada pelo estreito de Taiwan, a nação emergente gerou a divisão entre a República Popular da China e a China Nacionalista. Apesar de independente, a ilha é reconhecida pelo governo chinês como uma província rebelde em seu território, não havendo reconhecimento como país pela ONU e demais organizações internacionais importantes.

Como um agente de segurança, Taiwan tentou estreitar os laços com os Estados Unidos, porém, o acordo durou apenas quinze anos. Dado o restabelecimento de relações diplomáticas com o país socialista, a maior potência mundial desfez o Tratado da Defesa que mantinha com a ilha, além de desativar sua base militar e transferir sua embaixada de Taipei (capital

taiwanesa) para Pequim, capital da China Popular. Apesar disso, o apoio dos EUA se manteve, mesmo que de forma velada, como suporte à democracia local, através de trocas comerciais e apoio bélico. A nação insular mantém relações diplomáticas com apenas 26 países do globo, isso porque seu alto desempenho – conquistado a partir da associação de países do Pacífico, os “Tigres Asiáticos” – a tornou relevante dentro do mercado mundial.

A divisão se torna uma tensão geopolítica, pois a República Popular detém uma legislação que autoriza o uso de forças armadas caso Taiwan declare sua independência formalmente. Além disso, a China também impõe aos parceiros comerciais da ilha o reconhecimento de Pequim como capital legítima, tornando o processo de relações com Taiwan ainda mais delicado. Os Estados Unidos que, mesmo de forma extrajudicial, mantêm relações com ambas, têm interesse estratégico em defender os nacionalistas, não apenas pelo sistema capitalista adotado pela nação, mas também por sua influência estratégica. Uma vez que o estreito de Taiwan é um importante canal para rotas comerciais, o controle marítimo da região gera grande influência em todo o Pacífico, algo que seria de grande interesse americano, pois a ascensão chinesa é sua maior ameaça à posição de maior potência mundial.

Nancy Pelosi visita Taiwan

No início de agosto, a presidente da Câmara dos EUA, Nancy Pelosi, fez uma viagem para Taiwan com o intuito de “honrar o compromisso inabalável da América em apoiar sua vibrante democracia”. Em agosto deste ano, a parlamentar disse, em discurso no escritório presidencial em Taipé, que os norte-americanos não abandonarão os taiwaneses. A presidente Tsai Ing-wen fez questão de agradecer, dizendo que “Taiwan não vai recuar. Defenderemos firmemente a soberania de nossa nação e continuaremos a manter a linha de defesa da democracia”.

Essa, porém, não foi a primeira visita de uma autoridade estadunidense ao território. Em 1997, o então presidente da Câmara, Newt Gingrich, fez uma visita à ilha. Entretanto, existem diferenças entre os contextos, tornando a comparação mais difícil. A viagem de Pelosi aconteceu em meio a conflitos nas relações internacionais entre China e Estados Unidos, além do agravante de ser uma democrata, assim como o atual presidente Joe Biden.

Pelo lado do governo estadunidense, o presidente ainda tentou convencer Pelosi

Por Gustavo Henfil, Leonardo Capogchini, Lucas Galeno, Lucas Galvani e Thiago Scorvo © Nazri Rapaai / AFP (Agence Presse-France)
A visita da presidente da Câmara americana a Taiwan e um possível conflito entre China e os EUA
16 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP

a não fazer a visita, que foi confirmada ape nas no dia da viagem e anunciada assim que a parlamentar chegou em Taiwan. Em conversa por telefone com Biden, o atual presidente da China, Xi Jinping, disse que “quem brinca com fogo acaba se queiman do” e ainda acrescentou que o país se opõe à independência da ilha e a interferências externas. Após o fim da conversa, o gover no americano anunciou, em comunicado, que sua posição não mudou.

Os Estados Unidos são os maiores apoiadores militares da ilha de Formosa. Em julho deste ano, o Departamento de Estado aprovou uma possível venda de assistência técnica militar para Taiwan, e ainda aconselharam a compra de ar mamento para combater uma eventual invasão chinesa. Ainda, a marinha ameri cana se posicionou no Pacífico e no Mar da China Meridional para dificultar o acesso naval à ilha.

A visita de Pelosi foi apontada como uma estratégia para agradar alianças na re gião Indo-Pacífico. Assim, envolvendo tam bém países europeus nas “manobras de liberdade de navegação”, que são realiza das em territórios reivindicados pela China.

No dia 21 de agosto deste ano, o go vernador do estado de Indiana (EUA), Eric Holcomb, também fez uma viagem para a ilha. Seu objetivo era reforçar as ideias de Nancy Pelosi, e ainda afirmou que não pa raria com suas visitas políticas a Taiwan. “Estou energizado para passar esta sema na construindo novos relacionamentos, reforçando aqueles de longa data e forta lecendo importantes parcerias do setor com Taiwan e Coreia do Sul”, anunciou o governador em sua conta no Twitter.

Contudo, a China não concorda com a postura americana de influência política, muito por conta de sua própria consolida ção como potência mundial. Os chineses tinham, nos anos 1990, um PIB menor que o brasileiro. Hoje, tomam frente como a grande força econômica mundial e ado tam uma conduta para que esse feito ga nhe destaque. A República Popular da China (RPC) demonstra, por meio de suas últimas ações, querer o reconhecimento de potência no mesmo patamar que os Es tados Unidos têm.

Em resposta, o Exército de Libertação Popular da China fez exercícios militares em uma área perto de Taiwan, logo após a visita de Nancy Pelosi. Houve, inclusi ve, uso de munição real no espaço aéreo da ilha. Essas ações foram vistas como demonstrações de uma “nova era”, com a RPC impondo uma transição global de uma para duas grandes potências no mundo.

Com isso, a relação com os EUA tende a ser ainda mais delicada e representantes do alto escalão chinês têm se manifesta do contrários às “ingerências dos Estados Unidos”. O ministro das Relações Exterio res da China, Wang Yi, comentou sobre a intervenção americana: “Se ignorarmos a interferência [dos EUA] em nossa política doméstica, este mundo voltará às leis da selva e Washington se tornará ainda mais inescrupuloso em usar a força para repri mir outros países”.

O chanceler chinês ainda demonstrou preocupação com o avanço militar no Oriente e pediu para que os americanos obedecessem algumas determinações: “[Devem] respeitar a soberania e a inte gridade territorial da China na questão de Taiwan, parar de interferir nos assuntos internos da China e deixar de apoiar as for ças separatistas de Taiwan”.

Segundo especialistas, as ameaças bélicas a esses territórios não devem in comodar, por agora, as áreas afetadas. A RPC não vai tentar incorporar territórios neste momento, apesar de ser algo a ser discutido pelo governo chinês a longo pra zo. Entretanto, falhas no acordo de exi gências dos chineses podem desencadear problemas diplomáticos.

Uma das vias mais importantes para a manutenção da paz chinesa na região é a “Lei Anti-Secessão”, que discute sobre o não reconhecimento de Taiwan como um estado, além de o proibir de se tornar in dependente, sob a ameaça de repressão severa. A China é tão intolerante quanto à soberania taiwanesa que não gosta nem que os governantes de Taipei (capital da província) se refiram às suas áreas como “Taiwan”. Os funcionários públicos chine ses, por exemplo, aprendem a tratar presi dentes da região separatista como “chefes administrativos locais”.

A constante tensão geopolítica entre ambos países está longe de chegar a um fim. Tendo isso em vista, o Contraponto en trevistou Gabriel Marchiori, estudante de “Estudios Globales” na Universitat Pompeo Fabra, em Barcelona. Quando perguntado sobre a relevância do conflito no cenário mundial, Gabriel ressalta que “esse possa ser considerado um dos mais importantes conflitos geopolíticos atuais devido à rele vância econômica dos atores envolvidos. Os Estados Unidos são um dos principais compradores (e investidores) dos semicon dutores taiwaneses, e grande parte deles é usado para finalizar produtos que também têm peças feitas na China continental”.

Ele observa que todos os agentes têm relações diplomáticas entre si, por mais

restritos que sejam, enaltecendo ainda mais a importância de um bom vínculo entre as nações envolvidas. Gabriel ainda aponta que uma eventual invasão chinesa a Taiwan causaria uma recessão global muito mais intensa que a atual. “Os movimentos diplomáticos claramente apontam para um afastamento das potências em blo cos, cada vez mais armadas e polarizadas, e a criação de novos acordos de seguran ça, como a AUKUS ou o QUAD, que visam manter o status quo e a supremacia naval americana no Indo-Pacífico. Isso afeta a co operação internacional em todos os níveis, e dificulta a concretização de diversos acor dos ambientais, econômicos e sociais”.

Questionado sobre como uma possível guerra entre China, EUA e Taiwan afetaria o panorama socioeconômico da América Latina e, mais especificamente, no Brasil, o estudante explica que as regiões foram “afe tadas pela guerra russo-ucraniana de forma indireta, através do encarecimento da ener gia global, da inflação nos Estados Unidos e da interrupção das cadeias de produção”. Ele também levanta hipóteses de que o mesmo viria a ocorrer caso haja um conflito armado entre China e Estados Unidos.

Em relação ao possível estopim de uma invasão, Gabriel pontua que a visita de Nancy Pelosi a Taipei evidencia que os Estados Unidos estão prontos para au mentar a aposta e apoiar cada vez mais o exército taiwanês. “A China deve respon der no campo econômico, aproveitando a instabilidade do governo Biden e os efeitos da guerra russo-ucraniana. A guerra eco nômica persistirá, e se agravará indepen dente caso Donald Trump seja reeleito nas próximas eleições ou não”, complementa o estudante. Mesmo que não ocorra uma resposta armada chinesa, o pouso da pre sidente da Câmara americana em terras taiwanesas evidencia que a guerra de ide ologias políticas ainda perdurará.

É claro o risco de uma guerra começar com um simples acidente, ainda mais no período mais tenso entre os dois países. Este aumento de apoio dos Estados Uni dos impacta na disputa hegemônica entre eles e a China, principalmente, quando o governo chinês avisou que se Nancy Pelosi fosse até a “ilha rebelde” haveria consequ ências sérias, mas que uma disputa militar na região de Taiwan não interessa para ne nhum dos dois lados.

Além do risco de duas potências se enfrentarem militarmente, esse possível conflito pode impactar negativamente os outros países pelo fator econômico, derru bando o PIB global e deixando o comércio mundial em estado de preocupação.

Internacional
17Setembro/Outubro 2022

Ensaio fotográfico Atos pela democracia

Na manhã do dia 11 de agosto, milha res de pessoas se reuniram em frente à Faculdade de Direito da para acom panhar a leitura da carta em defesa da democracia.

Sônia Guajajara gesto
USP,
faz
de resistência em ato pelo direito e respeito às terras originárias indígenas no dia 9 de agosto em frente à Faculdade de Direito da USP © Sophia Linares © Sophia Linares © Sophia Linares © Sophia Linares © Sophia Linares © Mariana Luccisano © Mariana Luccisano © Mariana Luccisano 18 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP
Na PUC, o mesmo ocorreu e contou com a participação de alunos e professores. No final do dia, outro ato ocorreu em frente ao MASP, na Avenida Paulista. Fernanda Querne Fernanda Querne Fernanda Querne Fernanda Querne
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© Luana Galeano © Luana Galeano © Luana Galeano © Luana Galeano 19Setembro/Outubro 2022

No dia 22 de setembro foi relembrado no TUCA, os 45 anos de invasão da PUC-SP pelas forças governamentais que, à época, eram regidas pela Ditadura Militar.

O manifesto, escrito por estudantes, professores e funcionários da Universidade, de monstra apoio à democracia e alerta sobre os ataques ao sistema em que vivemos diariamen te, relembrando nomes como de Marielle Franco, Dom Phillips e Bruno Pereira e afirmando que “É urgente impedir o livre curso da barbárie. (...) Queremos que o resultado das urnas seja respeitado. Abominamos, de imediato, qualquer tentativa de golpe, intimidação ou desvio do curso do processo democrático. Por isso mesmo, nós nos declaramos em estado de vigi lância permanente até o fim das eleições e a garantia de empossamento dos eleitos.”

Nós, estudantes da PUC-SP, lutaremos para que a democracia continue firme e que nenhuma tentativa de ataque seja feita. Estamos em estado de vigília de algo que demo ramos muito a conquistar.

© Lídia Castro Alves © Sophia Linares © Sophia Linares © Sophia Linares © Sophia Linares © Sophia Linares Sophia Linares © Sophia Linares
© Sophia Linares © Sophia Linares
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Mídias digitais ampliam os horizontes da moda

Em busca de impactar novos públicos, grifes passam a investir em ações com novas plataformas digitais, como games, NFTs e até o metaverso

Omundo mudou e, com ele, a moda também. As mídias digitais transfor maram as tendências culturais e esté ticas da atual geração. Com isso, as grandes grifes decidiram não estagnar e, na neces sidade de atingir novos públicos, mergulha ram fundo no setor digital e nas inovações. Esse tipo de proposta poderia ocorrer antes, mas, a partir da expansão de novas tecnolo gias, atingiu um escopo totalmente novo.

As primeiras iniciativas de marcas com moda digital ocorreram no mercado dos games, que tem crescido exponencial mente. Grande parte dos jogos contam hoje com recursos cosméticos, logo, não foi uma tarefa difícil para as grifes encon trar maneiras de imprimir a sua identidade no mundo dos games.

Apesar de essa relação ter se consoli dado apenas nos últimos anos, o primei ro registro de uma colaboração entre os segmentos ocorreu em 2012, em uma parceria entre Diesel e The Sims, que ren deu roupas e objetos de decoração para o game de simulação social.

Porém, em 2019, a Louis Vuitton ele vou o nível em uma parceria sem preceden tes com a Riot Games, criadora do League of Legends. Apesar de não serem as pri meiras, a grife francesa e a desenvolvedora americana podem se considerar pioneiras pela proporção dessa ação de marketing, realizada durante o Campeonato Mundial de League of Legends, em Paris.

A colaboração não ficou limitada so mente a skins – como são conhecidas as roupas virtuais. Também foi realizado um desfile que apresentou uma coleção com 47 peças, um clipe musical protagonizado pela personagem Qiyana, que vestia rou pas da marca, além do troféu do torneio, também desenvolvido pela grife de Paris.

Com o sucesso dessa collab, era de se esperar que outras empresas do ramo se envolvessem em ações parecidas.

Fortnite, outro jogo de grande sucesso, realizou uma parceria com Jordan e Ba lenciaga. FreeFire, por sua vez, colaborou com a Puma, empresa de moda sportswear alemã, e a Riachuelo, varejista brasileira. Contudo, os modistas almejavam mais. A necessidade de se adequar à proposta do jogo em questão, para alguns, se tor nava uma barreira criativa. Em busca des sa autonomia, as grifes se apossaram do metaverso, espaço digital onde poderiam exercer as criações com maior liberdade Apesar disso, os primeiros experimen tos com o metaverso ocorreram justa mente nos games. Conceito definido como uma rede de mundos virtuais que busca re plicar nossa realidade com foco em cone xões sociais, o jogo Second Life, de 2003, é considerado o grande precursor.

De lá para cá, muita coisa mudou e, hoje, testes com o metaverso têm sido aplicados, sobretudo, em tecnologias de realidade vir tual. Exemplos práticos já podem ser encon trados em jogos como Roblox e nos projetos da empresa Meta, a antiga Facebook Entretanto, o exemplo mais emble mático da fusão entre moda e metaverso ocorreu entre 24 e 27 de março: a Metaver se Fashion Week, realizada na Decentraland, uma das maiores plataformas aderidas pelos usuários do metaverso e pioneira na aplicação prática desse conceito.

O evento contou com a contribuição de 60 companhias, incluindo as maiores grifes do mundo, como Tommy Hilfiger, Hugo Boss e Elie Saab. Apenas o ‘terreno’ em que o desfile foi realizado, inspirado na Avenue Montaigne, de Paris, foi vendido por 13 milhões de reais. Um pouco antes, em agosto de 2021, a Dolce&Gabbana lei loou uma coleção de wearables – roupas que só existem online – e arrecadou cerca de 6 milhões de dólares.

Além disso, também pisaram na Meta verse Fashion Week marcas nativas digitais, como DressX e Auroboros, que encontram espaço propício para expansão no meta verso. Analisando esta movimentação, grandes empresas firmam parce rias com essas novas grifes.

A Meta, a título de exemplo, que já havia feito colaborações com Prada, Balenciaga e Thom Browne – todas originalmente lo jas físicas – para produzir roupas aos avatares de seu metaverso, anunciou que a própria DressX en traria para o time, se consagrando como a primeira grife digital a re ceber esse convite.

Devido a grande parte destas plata formas usarem criptomoedas como base – a Decentraland, por exemplo, foi de senvolvida pela blockchain Etherium – as NFTs se tornaram o pilar das transações comerciais no metaverso. Em termos gerais, NFTs (tokens não-fungíveis, em inglês) são símbolos eletrônicos que re presentam ativos, como roupas, fotos e obras artísticas.

Um dos grandes motivos da inserção da moda no mercado dos NFTs está na exclusividade gerada pelos comprovantes de autenticidade das peças, códigos arma zenados em um grande banco de dados. A primeira venda de uma peça em formato digital foi feita pela The Fabricant, em maio de 2019. O vestido iridescenceda marca se tornou, através do processo de autentica ção digital, único.

Com a popularização desse novo tipo de transação, as grandes empresas da moda não ficaram de fora. A Burberry, em parceria com a Mythical Studio, lan çou uma coleção de NFTs em Blankos BlockParty, game multiplayer de mundo aberto, no qual os jogadores podem com prar, vender ou coletar os brinquedos de vinil NFT. Para a divulgação da grande gri fe inglesa, o jogo contará com acessórios digitais produzidos pela própria marca, como pulseiras, tênis e jetpacks.

A Gucci não ficou de fora e lançou sua primeira NFT como um fashion filme, ins pirado na coleção Aria. O token que cele bra os 100 anos da empresa foi vendido por 25 mil dólares, no dia 3 de junho de 2021.

Sem surpresas, as marcas nativas di gitais também tomam a frente na popu larização das NFTs. A empresa brasileira hōlstudio vem trabalhando exclusivamen te com o ecossistema digital, mostrando uma moda sustentável e independente.

Os criadores da hōlstudio, David Chang e Bernardo Nery, ainda anunciaram o início da marca Fuzzee. Compartilhando os ideais da hōl, a Fuzzee transformará dez looks em NFTs, sempre focando na arte e na redução de lixos produzidos pela moda.

Louis Vuitton veste Qiyana, personagem da girl band virtual de kpop K/DA Dolce & Gabbana colocou cabeças de gato em seus modelos para o desfile da Metaverse Fashion Week Divulgação/Dolce & Gabbana Por Enrico Souto, Leonardo de Sá, Matheus Monteiro
Moda
© Reprodução/Riot Games ©
21Setembro/Outubro 2022

Do underground ao TikTok: o ressurgimento do pop rock

No começo dos anos 2000, a estética pop-rock dominou as paradas musicais e as peças de roupa de toda uma geração. Tecidos pretos, de couro e metalizados, camisas de bandas de rock, maquiagens carregadas e acessórios com correntes são alguns dos elementos que expressam o visual desse estilo, junto a cantores e bandas que narram trilhas sonoras de uma tendência que marcou uma cultura com suas músicas hardcores e sentimentais, como My Chemical Romance, Avril Lavigne e Paramore.

Provando que a moda é cíclica e os estilos ressurgem de acordo com um período histórico ou cultural, a geração Z vive a nostalgia dos anos 2000 e traz de volta as tendências pop-rock para a realidade. De acordo com a jornalista de moda Giuliana Mesquita, muitos jovens vêm descobrindo o que foi esse movimento no passado e se identificando com ele, do mesmo modo que as pessoas do começo dos anos 2000 se identificavam com o grunge, o glamrock e outros estilos mais antigos. Naquela época o estilo era propagado em redes sociais como o MySpace, o Tumblr e o Fotolog e, atualmente, as mídias também são o grande pilar do pop-rock como o TikTok e o Instagram, que possuem diversos perfis e hashtags com a estética.

Tanto na moda quanto na música, o estilo emo ressurge forte entre a nova geração e o momento atual em que vivemos é uma explicação para esse boom. Após o mundo passar por uma pandemia e quase dois anos de isolamento social, um lado sentimental e sombrio dominou essa geração, que com o alcance das redes sociais puderam se reconectar com os anos 2000 e se identificar com a cultura daquela época.

Mesquita acredita que esse estilo de música mais melancólico e emo cresceu novamente, pois exprime alguns dos sentimentos que a sociedade estava vivendo durante o período de isolamento. E o mesmo ocorre na moda, já que as turbulências vivenciadas foram manifestadas nas roupas, cabelos e maquiagens dessa estética pop-rock. Revisitar o passado é uma forma que a geração atual tem de resgatar toda uma identidade vivida anteriormente, e isso vai além da estética visual e sonora.

Recentemente, mídias e produções culturais retomam a tendência em suas trilhas sonoras e figurinos, como por exemplo, o filme Cruella (2021), com seu visual inspirado no punk e a série Stranger Things, com música estilo metal e peças que, apesar de simples à época, viralizaram pela influência de seus fãs.

Além da música, peças como botas pesadas e belly chains, calças wide leg e jaquetas de couro voltam às vitrines, trazendo de volta a nostalgia vintage. Roupas não são as únicas a aderirem à tendência, os cortes e tons de cabelo mais vibrantes e artificiais também acompanham a moda. O coque “espetado”, ou “spiky hair ” voltou a ser o penteado favorito entre as celebridades.

A trend dos anos 2000 já foi usada por Billie Elish, Gigi Hadid e Doja Cat, que além do coque, adotaram o gel de cabelo retomando uma vibe de Matrix (1999), com seus sobretudos pretos e roupas de couro.

Grifes como Chanel e Yves Saint Laurent já anunciam a volta da tendência em seus desfiles; Chanel apostou em cortes de cabelo repicado e delineados gráficos em seu Resort 2022 Fashion Show, do diretor criativo Virginie Viard, enquanto Saint Laurent retomou peças de alfaiataria e estampas como animal prints e xadrez em sua coleção de inverno 2021, de Anthony Vaccarello.

Coleções já datadas de Vivienne Westwood, conhecida por sua influência nas origens do punk, voltam a ser compartilhadas em redes sociais principalmente por seus corsets e corselets. Seus desfiles recentes também investem em xadrez e sapatos de salto plataforma.

A segunda instalação de Matthew M. Williams para a Givenchy Fashion Week 22 conta com botas de cano alto e calças de couro e o próprio logo da marca foi representado em suas roupas com uma fonte semelhante à de logos de bandas do rock. Bruna Marquezine esteve presente no desfile e se impressionou com o diretor de criação da grife, Williams. Ela também aderiu à tendência do desfile e usou peças de cor preta e bota de cano alto, que se tornou um ícone dessa estética. Para a

revista Vogue, Marquezine afirma que o design da Givenchy faz com que as pessoas se sintam “confiantes, sexy e mordazes’’.

Quando se trata de representatividade desse movimento no Brasil, vale a menção a Fkawallys Punk Couture, que exibiu seu estilo auto denominado “punk tropical” na 48° Casa dos Criadores em 2021. Com o desenvolvimento de uma customização autoral, o estilista Fábio Gurjão levou ao mercado elementos como spikes, animal prints e correntes.

O couro, muito presente nos estilos alternativos, também volta a aparecer através de marcas. É o caso da coleção de inverno 2021 da marca Celine e até mesmo da Balenciaga, que, em seu desfile de 2023, apresenta correntes e adornos de metal, remetendo ao “ fetishcore ”, uma estética sensual e punk. Outras peças desse estilo que se popularizaram foram os harness, as body straps e o látex.

Fora das passarelas, peças que se adequam à estética do rock já fazem parte do dia a dia. O salto plataforma, popularizado pela Versace em 2021 com seu sapato Medusa Head, ganha um aspecto alternativo, com cano alto, tons escuros e textura remetente ao couro. Conhecida como plataforma Angel, é acompanhada de meias calças, minissaias e até casacos oversized

Outro a virar tendência seria o coturno e os saltos tratorados, remetendo ao movimento punk dos anos 1990. Sejam pretos, vermelhos ou brancos, os coturnos são usados com jaquetas, jeans e blazers de alfaiataria.

Por Catarina Pace, Isabela Lago, Isabela Santos, José Pedro dos Santos e Sophia Pietá Modelos posam com peças do punk e do pop rock Tendência © Ramon Baratella Instagram
Nostalgia cultural e ideológica dos anos 2000 volta a viralizar nas redes sociais
pop-rock na moda
© Reprodução:
@bhu.shop 22 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP

Um exagero na composição de colares e correntes é usado como complemen to de um visual gótico. Elementos como a corrente, os spikes e as gargantilhas grossas compõem o look com handbags e ecobags menores que também levam o elemento da corrente. Além disso, clássi cos como o colar com o logo da Vivienne Westwood voltaram a ser procurados.

Na parte de cima, corselets, corsets de couro e com amarrações e body straps em tons escuros trazem uma estética sensual no meio do rock. Junto a elas, casacos gran des de alfaiataria, como coletes, são usados na temporada de inverno. Camisas com animal prints, xadrez e textura de couro são prediletos, assim como blusas de tule.

Calças mom jeans, wide leg e cintura baixa também voltam a aparecer graças a essa nostalgia dos anos 2000 e anos 1990 – o jeans, como peça atemporal, ganha esse aspecto alternativo. A cintura baixa também abre espaço para croppeds e belly chains, estilo que é ilustrado e influencia do por figuras como Bella Hadid.

Uma coisa que todos têm em comum é a predominância da cor preta e a ausência do colorido, dando um tom melancólico e obscuro ao visual. Correntes e a acesso rização resgatam a ideia de amarras, de estar confinado, que ilustra bem a menta lidade daqueles que viveram a pandemia e carregam esse período na aparência. O rock, em sua origem, vem também como ideia de protesto e contestação a socieda de e autoridade, o que reflete na atuação de muitos jovens em período eleitoral e em seus posicionamentos em pautas sociais.

Giuliana Mesquita também considera o estilo um espaço para a customização e liberdade de expressão, e relembra que mo dificações em roupas e aparência ficaram em alta durante a pandemia.

“Eu acho que os principais elementos que voltam são ligados à customização, dos alfinetes, do quadriculado, dos cabelos co loridos. É mais um estilo no geral, que pode ser modificado de acordo com a personali dade da pessoa. Acho que as camisetas de rock também voltam bem com esse concei to”, afirma Mesquita.

Grande parte desse retorno está ligado às redes sociais mais famosas da atualida de como o Twitter, TikTok e Instagram. As re des possuem grande influência nesse estilo e a partir delas surgiram vários “influencers” que ganharam destaque no pop-rock atual, tanto na música quanto na moda.

O Tik Tok recebeu uma enorme popu laridade durante a pandemia, e no apli cativo surgiram trends virais com músicas antigas como “I’m Just A Kid ”, do Simple Plan, de 2002 e “Dear Maria, Count Me In”, de 2008 do All Time Low, trazendo o estilo de volta aos holofotes. Logo em seguida artistas adeptos ao pop-punk ganharam fama após viralizarem no app, como Cha se Hudson, Nessa Barrett, Jaden Hossler e Olivia Rodrigo.

Rodrigo tem grande contribuição para a volta desse estilo após o lançamento de sua música “Good 4 u” que se tornou a mais tocada em formato streaming no mundo. Seu clipe, dirigido por Petra Collins, con tém figurinos inspirados nos anos 2000, som de guitarra e a mistura perfeita entre o pop e rock. Não demorou muito para a música se tornar viral no TikTok, transfor mando a atriz e cantora em uma referên cia quando se trata do assunto.

A moda conquistou a atriz Megan Fox, que passou por uma mudança de estilo re centemente após iniciar seu namoro com o cantor Machine Gun Kelly e começar a ser vestida pela stylist Maeve Reilly. Fox passou a aderir à moda pop-punk e seus looks se tornaram evidência no mundo da moda. Esse tipo de visibilidade fez com que o estilo virasse nicho importante no Tik Tok e Instagram.

Dessa forma, conteúdos como “Get Ready With Me ” (do inglês, “arrume-se co migo”), tomaram conta das plataformas, popularizando influencers como Natalia Cangueiro, Malu Borges e tantas outras que ajudam a propagar tendências. Mon tando looks formados por meia arrastão, cintos com spikes, peças de roupa em xa drez e couro, elas mesclam a cultura pop dos anos 2000 com o punk dos anos 1970, de uma maneira descontraída que estimu la seus seguidores a utilizarem e admira rem o estilo vintage descolado, que voltou a estar em alta.

A música também se virou novamen te para o punk-rock e para o pop-rock. Artis tas como Olivia Ro drigo, Miley Cyrus, Machine Gun Kelly e Manëskin, trazem a sonoridade e a esté tica desse gênero em seus trabalhos.

As referências ao gênero não são no vas, e podem ser vistas, por exemplo, quando o rapper Vince Staples, em seu ál bum de estreia Summertime ’06 (2015), ho menageia a capa Unknown Pleasure (1979) da banda punk, Joy Division. Ou quando Kanye West interpolou a música Iron Man (1970), do Black Sabbath, em Hell Of A Life (2010), mesmo que esses artistas cita dos, não se consideram membros do estilo pop-punk ou pop-rock.

Por outro lado, esses novos artistas, não só trazem a sonoridade, como carre gam a estética e se consideram membros do gênero, subvertendo os conceitos do punk e do rock e revitalizando o estilo. A banda italiana Manëskin, foi vencedora do Eurovision 2021. O quarteto traz de volta a energia e a emoção da cena rock e a modifica para as expressões, ideias e conceitos da geração Z. A banda usa em seus shows roupas combinando, como as bandas de rock clássica, com macacões e roupas de couro. O estilo enérgico da ban da, tanto nas músicas como nas roupas, rendeu a eles o convite da Gucci para se rem modelos para a campanha da coleção Aria, assinada por Alessandro Michele.

A cantora Olivia Rodrigo é grande exemplo dessa cultura atualmente. Em seu primeiro álbum, SOUR (2021), colo cou duas músicas com a produção de poprock. A primeira faixa do EP, Brutal, na qual Rodrigo mostra para o público como ela se sente e as principais ideias do traba lho e, também, o hit Good 4 u, um pop-ro ck sobre término, com instrumental feito em cima de um riff de guitarra e uma ba teria verdadeira, construindo a sensação da raiva e tristeza que a artista sentiu ao escrever o álbum.

Além desses exemplos, Miley Cyrus, trouxe o estilo à tona no seu último traba lho, Plastic Hearts (2020), com direito a referência a canção Sympathy For The De vil (1968), do The Rolling Stones, na faixa título. Outros artistas como Willow Smith e Machine Gun Kelly também se aventu ram nesse “novo velho” estilo, levando sonoridades com artistas que faziam mui to sucesso e eram exemplos do estilo nos anos 2000, como Avril Lavigne e Travis Barker, ex-baterista do Blink-182.

Bella Hadid e modelo com peças em referência ao estilo pop-rock de 2000 Modelo peças © Ramon Baratella © Ramon Baratella
veste
punk, como a jaqueta de couro, as correntes e os espinhos
23Setembro/Outubro 2022

Brechós arrecadam novos públicos e significados em meio à viralização nas redes sociais

Brechó “105”, uma marca sustentável que busca resgatar a singularidade de peças que podem estar esquecidas no fundo do guarda-roupa. Antes de iniciar o seu negócio, o empreendedor Pedro Henrique teve que perguntar à mãe, Denise Ferraz, do que se tratava este ramo. “Em 2019, ela começou vendendo desapegos de suas amigas e chegava com várias sacolas de roupas”, relata. “Então, começamos a entender mais sobre garimpar, ir a bazares, ir em outros brechós e até mesmo desapegar das nossas próprias roupas”, completa.

Apesar de serem tradicionais em todo o mundo, os brechós passaram por mudanças significativas nos últimos anos, seguindo as novas tendências de consumo alinhadas às novas tecnologias. Um levantamento realizado pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) apontou que, das 958 pessoas entrevistadas, 33% compraram produtos usados pela internet entre 2020 e 2021, ao passo que roupas e sapatos representam 24% dos objetos mais adquiridos da categoria.

Segundo análise do Instituto de Economia Gastão Vidigal da Associação Comercial de São Paulo (IEGV/ACSP), o número de vendas no segmento deve crescer 30% em 2022, comparado ao ano anterior, quando o faturamento era de R$ 2,9 bilhões. Outra pesquisa, realizada pela ThredUp, ainda estima que a categoria de vendas de roupas usadas deverá alcançar US$ 64 bilhões até 2028, sendo um valor maior do que o esperado para o departamento de fast fashion (US$ 43 bilhões).

Todo esse processo tem incentivado o surgimento de microempreendedores nesse ramo nos últimos anos. Segundo o SEBRAE, já são mais de 13 mil pequenos negócios focados no setor em nosso país. É o caso de Camila Guerrero, que administra o Brechó “Dona Clô” há um ano, no bairro Perdizes, em São Paulo. Depois de comprar o comércio com o estoque pronto de outra proprietária, a empreendedora se cadastrou como MEI para ter um suporte maior. “Dessa maneira, além de garantir meus direitos, consigo também estar legalizada”, explica.

O ambiente digital, por sua vez, especialmente as redes sociais, incentivaram pequenos empresários a investirem em brechós online. Foi nesse cenário que surgiu o

Nesse contexto, apesar das redes sociais apresentarem alguns empecilhos, como a falta do contato dos clientes com a peça ou a dependência do algoritmo para alcançar os usuários, o ambiente digital se demonstrou aliado de Pedro no processo de criação. “Tem prós e contras. Eu tenho clientes de vários estados, então isso já é um ponto bom”, afirma. Ele ainda ressalta a praticidade do processo de venda virtual. “Eu anuncio as roupas no Instagram, a pessoa me paga e envio no outro dia. Não tem erro”.

Da mesma forma, o brechó “Capricho à Toa” não ficou para trás diante desse processo de modernização, e em meio à pandemia, viu no formato online uma forma de alcançar novos públicos, como aqueles incentivados pelas redes sociais. “Principalmente clientes vindos do TikTok, a geração Z”, revela a fundadora Denise Pini. “Ainda mais que começamos nosso e-commerce na pandemia, já que nossa loja física não podia abrir. Nossos clientes fiéis se mantiveram e se adaptaram à compra online, mas novos também surgiram”.

Denise ainda comenta que o estigma de que brechós só vendem roupas “velhas” têm se convertido em uma nova visão. “A ideia de se comprar roupas usadas ainda é um tabu, mas não como antigamente. Hoje o movimento da moda circular é uma pauta que tem se falado cada vez mais”, aborda. “Não só a compra em brechós aumentou pós-pandemia, mas também a venda de roupas para brechós, que não era comum”.

Segundo Mare Baptista, estudante de moda que atua profissionalmente na análise e consulta de tendências, os brechós nada mais são do que uma forma de aumentar o ciclo de vida de uma peça. “Você não quer jogar a roupa no lixo, quer contribuir com o meio ambiente, então você

pode doar ou até vender”, conta. “O papel do brechó na moda é acolher as peças que já não estão mais em uso”.

Por outro lado, a estudante ressalta que os brechós tradicionais costumam oferecer peças vintage e únicas, o que acaba sendo prejudicado pela divulgação viral nas redes sociais que estimulam a concorrência. “A alta demanda em cima de produtos que estão em tendência, em bom estado, que sejam únicos e customizáveis faz com que quase ninguém encontre o produto que procura”.

Em alguns estabelecimentos, inclusive, existem peças datadas de antes dos anos 1970. Esse conteúdo vintage é conservado nos brechós e contribui com a teoria dos vinte anos, que consiste em uma tendência que retorna ao mercado de forma repaginada. “Agora, por exemplo, muitas pessoas buscam os brechós para encontrarem peças da estética dos anos 2000, conhecida como Y2K ”, comenta Mare. “Ela voltou em alta no streetwear e foi influenciando as grandes marcas de moda, como a “Miu Miu” fazendo saia de cintura baixa”.

Contudo, é necessário considerar o impacto ambiental que acompanha a indústria têxtil, que representa 8% da emissão de gás carbônico na atmosfera – atrás apenas do setor petrolífero. A prática de fast fashion incentivou um consumo exacerbado, rápido e de baixo custo que exige muito das capacidades do planeta. Segundo levantamentos deste ano da Administração Oceânica e Atmosférica Nacional (NOAA, em inglês), os continentes asiático e europeu registraram o segundo mês de junho mais quente desde 1880.

Nesse sentido, os brechós são comumente atribuídos a uma carga sustentável dentro da indústria da moda, considerando as práticas de reutilização de roupas e acessórios. É o que reforça Denise Pini, presente no mercado há mais de 30 anos: “O cliente está mais consciente. Aumentou o número de pessoas que buscam o brechó, principalmente os jovens, pois eles sabem que lá eles apoiam a sustentabilidade. O produto mais sustentável é o que já existe e é com isso que eles se preocupam hoje”.

Entretanto, Mare alerta que os efeitos positivos desse segmento de revenda não sustentam resultados a longo prazo, tendo em vista que os produtos que ficam estacionados no estoque têm o mesmo destino das peças comuns de fast fashion: os aterros sanitários. “Mas isso não é culpa dos brechós, que continuam sendo uma alternativa sustentável a curto e médio prazo”, defende a estudante. “O problema está na produção têxtil, que aumenta cada vez mais e não acompanha o volume de vendas, produzindo peças que vão ser jogadas fora”.

Por Gustavo Pereira, João Curi e Sophia Dolores
Com a ascensão do segmento em meio à pandemia, empreendedores aproveitam alta no mercado fashion com incentivo do TikTok e Instagram
Brechó Dona Clô, loja localizada em Perdizes
© Sophia Dolores
24 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP

O no aumento de transtornos alimentares

Ao longo dos anos, os meios de co municação estabeleceram sua própria definição do que seria a ma neira “ideal” de apresentar-se. Composta pelo corpo magro e sem marcas, a pele impecável, o cabelo hidratado e sempre no lugar e as roupas da última moda sem pre perfeitas.

No mundo real, essa perfeição não existe. O ser humano é desigual. Cada cor po tem seu formato, a pele nem sempre está perfeita, cada cabelo é de um jeito e a roupa, às vezes, é o que vai ser confortável para aguentar o dia.

As propagandas midiáticas e o ide al que elas constroem influenciam uma grande parcela da sociedade, principal mente jovens mulheres, que sentem que precisam atingir esse ideal para serem aceitas pela sociedade. E, por conta dis so, muitas acabam desenvolvendo pro blemas psicológicos, como depressão, ansiedade e transtornos alimentares, na busca de alcançar aquilo que veem nas propagandas.

“A gente, infelizmente, vem de um his tórico da publicidade no qual sempre foi muito comum que a gente utilizasse edi ções fortíssimas principalmente nas mo delos. Não tem como ignorar o fato que, na verdade, isso é uma construção cultu ral e social que se definiu como ‘belo’.”, co menta a publicitária Rebeca Miscow.

Há um movimento que, ao mesmo tempo em que vai contra essas imagens irreais, também preza pela realidade e representação. A atriz norte-america na Zendaya, por exemplo, em uma capa para revista Americana Modeliste, em 2017, se viu completamente diferente após as alterações feitas pelos edito res da revista em seu corpo, e resolveu

veicular em suas redes sociais as imagens originais, apenas com maquiagem e ca belo arrumado, sem photoshop e reto ques exagerados, junto de uma objeção pública contra a ação da revista.

Para Miscow, a publicidade, assim como o jornalismo, tem a função de infor mar sobre as marcas e produtos e o uso de imagens irreais não é algo benéfico para os projetos. “Normalmente, ali a gente está falando sobre a realidade de marcas, em presas ou instituições, então porque não usar a verdade? Não faz sentido usar nada que seja irreal.”

A busca pela perfeição se tornou um problema global e pode ser considerada questão de saúde pública. O parlamento britânico, vendo esse crescente aumento, criou em agosto deste ano um projeto de lei que exige que anúncios que tenham sido al terados digitalmente devem conter um avi so de que houve modificações na imagem.

Em 2018, as atrizes Lili Reinhart e Camila Mendes fizeram uma sessão de fotos para a edição das Filipinas da revista Cosmopolitan. Posteriormente, as atrizes vieram a público criticar a revista pelas edições feitas no corpo de ambas, dimi nuindo suas cinturas, para encaixá-las no padrão de beleza do Oriente. “As em presas de publicidade editam o corpo das pessoas com o intuito de atender a agenda da beleza e da perfeição da cultura que ela está inserida”, diz Miscow.

O psicólogo André Ryoki explica que o ideal de beleza é reforçado pelas imagens manipuladas espalhadas pelas mídias e que não é algo tangível. Além disso, ele reforça que a disseminação de edições nas publicidades e nos meios de comunicação causam e agravam quadros de transtor nos alimentares. Durante a pandemia, segundo o Royal Children’s Hospital, hou ve um crescimento de 48% no número de internações por transtornos alimentares e, além disso, as mulheres representam 80% das pessoas que mais sofrem com esse quadro.

Ademais, ele diz que estimular um ide al inatingível de beleza ao consumir conte údos com imagens manipuladas faz com que o indivíduo decida fazer uma interven ção cirúrgica. “Se eu não sou aquilo e nunca serei, o que me resta é uma intervenção no real, na carne. Vou fazer o que o photoshop faz na fotografia: eu vou no cirurgião plás tico para ele fazer na minha pele”.

A Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) diz que o número de ci rurgias plásticas cresceu 140% entre os adolescentes de 13 a 18 anos somente em 2021. O Brasil é o país que mais realiza ci rurgias no mundo. São cerca de um milhão de procedimentos por ano. A mais realiza da é o silicone, seguido da lipoaspiração e blefaroplastia (procedimento para corrigir pálpebras caídas).

O consumo em massa reforça um ideal cultural impossível. “Trata-se de uma retro alimentação bem cruel”, comenta Ryoki e finaliza: “nós nos organizamos em socieda de e a gente nunca está sozinho. Isso impli ca que a gente não é a gente sozinho. Nós somos sempre para o outro, com o outro, em relação ao outro e tendo o outro como parâmetro e como espelho.” Com isso, entende-se que a publicidade, querendo puxar o apelo da massa, tenta se fixar em um padrão inalcançável, fazendo com que essa massa de consumo continue em busca desse “outro” perfeito. Assim, até os corpos expostos em anúncios e tidos como ideais apresentam edições para chegar mais per to do conhecido como “perfeito”.

Laura Mello, Marcela Foresti e Paula Moraes Photoshop realizado em Lili Reinhart para a revista Cosmopolitan Phillipines, em 2018 Antes e depois do Photoshop feito em ensaio da atriz Zendaya, para a Revista “Modeliste”
Cultura e comportamento
papel das propagandas
Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) diz que o número de cirurgias plásticas cresceu 140% entre os adolescentes
25Setembro/Outubro 2022

que sobreviveram e continuam a sobreviver, ao longo de décadas, batalham por um mundo em que se possa viver.

Se o tempo envelhecer o seu corpo, mas não envelhecer a sua emoção, você será sempre feliz”, escreveu o psiquiatra e escritor brasileiro Augusto Cury. Evitada por muitos, a palavra “envelhecer” por si própria causa constrangimento. Ao nascer, somos expostos a inúmeros questionamentos, hipóteses e pensamentos. Em contrapartida, temos apenas uma certeza: nos tornamos longevos a cada dia.

A atividade orgânica dos corpos não pode ser controlada. Não há saída quando o tempo se torna o regedor da vida. No entanto, ao pensar na existência das velhices, deve-se entender que cada uma delas é extremamente singular a cada pessoa, com refl exo de diversos fatores e, dentre eles, o pertencimento a um grupo social.

O filme “Suk Suk: Um Amor em Segredo” (2019), produção de Hong Kong, narra a história de dois homens idosos, Park e Hoi, que passaram uma vida inteira sem poder assumir a homossexualidade. Quando chegam aos 60 anos, além de lidarem com as dificuldades do envelhecimento, eles enfrentam o julgamento do mundo sobre a legitimação da existência das sexualidades dos dois.

Paralelamente, essa é a realidade de várias pessoas LGBTQIA+ no Brasil e no mundo, que, com o passar dos anos, são pautadas pelas faces do etarismo acentuadas pela discriminação das orientações sexuais.

Transformação na luta

Por meio do ativismo no Brasil, membros da comunidade lutaram pela transformação da realidade em prol de suas existências. Muitos deles tiveram as vozes caladas e as vidas perdidas. As resistências

Essa luta diária de ganhar o devido espaço na sociedade levou anos para acontecer e garantir a realidade que hoje se conhece, com um número cada vez mais progressivo de pessoas que fazem parte das siglas. Com os anos, essas vozes também sofreram as implicações do tempo e envelheceram. Velhices com algumas similaridades com o padrão heteronormativo, mas com desafios extremamente diferentes pela sua singularidade.

Sexualidade na terceira idade

A associação sem fins lucrativos, Eternamente Sou, foi criada em 2017 com o intuito de atuar em prol das pessoas idosas LGBTQIA+ através da implementação de serviços e projetos com foco no atendimento psicossocial. Luis Baron, presidente da associação, expôs a importância da existência de projetos dedicados aos idosos da comunidade.

“A questão da velhice, em geral, é muito delicada, é tratada como heterossexual e assexual. Como se, quando a pessoa fica velha, ela não tem mais sexualidade. A minha orientação e a minha forma de enxergar o mundo são dispensadas. Torno-me a ‘pessoa velha’, como se aquilo fosse a classificação de tudo que eu sou”, ressalta Baron.

Para ele, a destituição das individualidades da pessoa na velhice é comum a todos os indivíduos, mas sofre um agravamento quando se trata da população queer. “Quando você destitui a sexualidade dessas pessoas, você destitui a diversidade. Somos diversos em função da nossa sexualidade. Algumas pessoas, com a necessidade de sobreviver dentro de um ambiente que as acolha efetivamente, realmente abandonam a sua orientação ou a até a identidade.”

Membro da Eternamente Sou, Ângela Fontes, aos 70 anos, revelou o desejo de poder expressar livremente o seu amor ao lado da companheira. “Os idosos estão ficando muito esquecidos, eles vivem ali no seu cantinho, no seu mundo. Estamos batalhando para conseguir o bási-

co para que o idoso possa viver a sua vida normal. Já que nós estamos juntas há 28 anos, eu quero viver com ela. Onde eu estiver, quero passar com ela.”

Luís Baron ressalta que a Parada LGBTQIA+, realizada na Avenida Paulista, é um dos maiores e mais importantes eventos da cidade de São Paulo. “É o nosso dia. Eu falo que a Feira da Diversidade é o Natal das ‘bixas’ e a Parada é o Réveillon das ‘bixas’. Então vamos festejar, vamos soltar foguete e vamos batalhar para que a gente tenha uma existência melhor e para que as futuras velhices tenham uma velhice muito melhor do que a minha.”

A Parada LGBTQIA+ é uma das maiores representações de resistência e luta da comunidade. O evento acontece anualmente na Avenida Paulista desde 1997 e tem um poderoso efeito nos cenários político, social e, até mesmo, econômico.

Apesar de ser um símbolo de poder, é também considerada uma comemoração, por isso, fica atrás apenas do Carnaval. Todo o clima de festa é um momento de descontração dentro dos muitos dias recheados de medo e inseguranças que cercavam e ainda cercam a vida de pessoas LGBTQIA+.

Sua primeira edição foi chamada de “Parada do Orgulho GLT” e englobava apenas os gays, lésbicas e travestis. Em 1998, foi criada uma organização não-governamental que se responsabilizou por toda a estruturação do evento, visando mais segurança e diversão para quem fosse participar do desfile. A Associação do Orgulho GLBT, hoje conhecida como APOGLBT-SP, já começava a pensar em uma comunidade um pouco mais abrangente e que conseguisse incluir outras sexualidades.

Como o etarismo existe na comunidade

A assistente social e gerente da unidade de Brasilândia do Núcleo de Convivência de Idosos (NCI), Elaine Cristina da Silva, frisa a necessidade de mais programas de acolhimento, profissionais preparados e uma rede de suporte para idosos queer “O etarismo, assim como qualquer outra forma de preconceito, se manifesta através de diferentes maneiras de abordagem ao idoso, como piadas, infantilização e atitudes de exclusão. Ninguém deixa de ter desejo ou sentir-se amado. O que acontece, e muito, é que o idoso é considerado pela família ou grupo que vive como um sujeito assexual”, reflete Silva.

Por Bárbara More, Larissa Isabella, Livia Veiga Andrade e Victor Trovão
Etarismo e LGBTQIA+fobia: Idosos lutam contra a convergência de discriminações Sobre as dores silenciadas de viver, resistir e envelhecer debaixo da bandeira colorida © Bárbara More/Parada LGBT 2022 26 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP

Com unidades em toda a São Paulo, o Núcleo de Convivência de Idosos contri bui para um processo de envelhecimen to ativo, saudável e autônomo. O serviço oferece acompanhamento domiciliar e ati vidades socioeducativas presenciais que favorecem a qualidade de vida, além de incentivar a convivência e participação so cial. As unidades reforçam a necessidade de implementação de mais projetos sociais voltados à população com mais de 60 anos.

Conflito geracional

“Eu estive na primeira Parada, então ver uma edição com três milhões de pes soas é importante. Ela ganha robustez e representatividade cada vez maior, com uma população imensa, maior do que os dados recentes nos informaram”, conta Luis Baron.

No ano de 2022, após dois anos, a Pa rada LGBTQIA+ voltou a acontecer pre sencialmente. No momento de ocupação da principal via de São Paulo, a Avenida Paulista, alguns grupos não se sentem bem representados no desfile.

A população sênior não é lembrada com frequência. O primeiro teste nacio nal do Censo Demográfico 2022 mostrou números surpreendentes: a população brasileira, que atualmente tem cerca de 216 milhões de cidadãos, é constituída por 16,7% de idosos.

Com isso, mais de 36 milhões de bra sileiros são pessoas com mais de 60 anos de idade. Em geral, o tratamento com os mais velhos não é uma pauta frequente para a população, mas o caso se torna pior quando levamos em consideração o grupo de idosos da comunidade LGBTQIA+.

“Essa é uma relação muito ruim. A comunidade, assim como as pessoas, enxerga a velhice de uma forma muito negativa. A nossa cultura vê a velhice como improdutiva. Há uma conexão mui to forte com a juventude na nossa co munidade, é uma moeda de troca muito poderosa. A questão estética, a potência

da aparência, a potência do ser jovem. Então, existe uma dificuldade muito grande em olhar para as pessoas velhas e enxergar um espelho ali de que poderia ser você no futuro”, explica Luis.

Repensar as velhices é urgente

De acordo com Baron, os integrantes da comunidade não colocam os envelhe centes como uma questão a ser debatida, pois, muitas vezes, a expectativa de vida não é alta. Por vezes, isso não está ligado apenas ao falecimento: “muitas são mor tas efetivamente ou morrem, mas mui tas morrem socialmente. Elas perdem a possibilidade de trabalhar, pois algumas trabalham com corpo ou algum tipo de trabalho que precisa da juventude, certa passabilidade para existir. Elas começam a ser invisibilizadas socialmente aos trinta e cinco anos, isso é um fim terrível. É uma morte em vida, você está vivo, mas você não pertence mais a um lugar.”

A discriminação contra grupos de idade recebe o nome de etarismo. Diaria mente, diversas micro-agressões contra essa população acontecem. As ações de desrespeito trazem o julgamento quando essas pessoas decidem fazer determina das atividades.

Na comunidade LGBTQIA+, as situa ções são semelhantes e a população idosa sofre com essa discriminação embasada pelo preconceito da idade. “Essas pessoas chegam à velhice de uma juventude que talvez tenha sido muito difícil de ser vivida. A população queer passa a ser fragilizada, as velhices não são olhadas adequada mente. Trazer alguém mais idoso para esse convívio é reafirmar a dificuldade que elas têm em entender o processo de enve lhecimento”, diz Luis Baron.

Para Dora Cudignola, vice-presiden te da associação, a falta de uma tradição de gerações mais velhas na população, acarretadas pela grande represália que sempre enfrentaram, faz com que, junto à discriminação, os mais jovens sempre

enxerguem os idosos de forma problemá tica. “A maioria dos jovens vê os idosos como alguém sem expectativas, sendo isso, muitas vezes, ligado à visão de in capacidade física e doença. Ou seja, ida dismo. Sem respeito e com preconceito principalmente aos LGBTQIA+”.

Para os colegas de trabalho Dora e Luis, a falta de visibilidade também está ligada a não representatividade da comu nidade envelhecida nas grandes mídias.

A vida dessas pessoas precisa de maior re conhecimento para que sejam pensadas melhores formas de assegurar segurança.

Como lembra Baron, essa é uma gera ção que enfrentou muitas dificuldades em sua idade jovem. “A minha geração de pes soas idosas é completamente diferente do que serão as próximas. Eu venho de uma geração que passou por uma ditadura mi litar, por uma epidemia de HIV e AIDS, que marcaram profundamente essas pessoas. Elas chegam na velhice de uma juventude caótica, muito difícil de ser vivida, levando em consideração as orientações. Muitos precisaram deixar as suas famílias, seus núcleos de segurança afetivo-emocional e até financeiros para poderem viver suas orientações adequadamente.”

Nascer, viver e morrer sendo LGBTQIA+

Doeu resistir no século passado, dói hoje e, no futuro, infelizmente também será doloroso. No entanto, progressiva mente menos. Não se controla a maneira como a sexualidade se manifesta. Nunca será possível que seja manipulada. Desde o nascimento, essa face acompanha todas as fases da vida até seu fim.

O que se inicia tende a terminar em al gum momento, viver não é uma exceção. É sobre nascer e se tornar indivíduo, sobre viver ao explorar cada fase da vida e resis tir diariamente, é sobre partir e deixar o mundo um lugar melhor para as próximas gerações. Tudo de baixo de uma bandeira que carrega incontáveis sonhos, existên cias e transformações.

© Bárbara © Reprodução/Instagram @eternamentesou
More/Parada LGBT 2022
27Setembro/Outubro 2022

Independência ou morte!

Ocrescimento da demanda por livros trouxe à luz um gênero literário que havia sido esquecido nas prateleiras: a literatura nacional independente. Apesar das dificuldades enfrentadas, o setor literário vem ganhando cada vez mais visibilidade, abrindo portas para o surgimento de novos escritores. “Quando eu publiquei o meu primeiro livro, Lembre-se de mim, Thomas (2020), eu achei que estava revolucionando, porque não fazia ideia de que existia um mercado de editoração independente.”, diz a escritora Fernanda Freitas sobre sua primeira publicação.

com editoras, os autores independentes são responsáveis não só pela criação da história, mas por todo o processo que envolve a publicação de um livro. Eles escrevem, diagramam, revisam, criam a capa, divulgam etc. Procedimentos que geralmente são responsabilidade da editora ficam em suas mãos.

Quando se torna independente, o escritor precisa desafiar-se diariamente, tendo que se arriscar em áreas que muitas vezes, não são de seu domínio, como o marketing, por exemplo. Promover um produto envolve diversos conhecimentos e mecanismos estudados por profissionais de publicidade e propaganda, atividade essa que provavelmente será desafiadora para um escritor sem domínio dessas faculdades. Fernanda Freitas acredita que conviver com essa realidade é extremamente complicado, ainda mais tendo que lidar com os complexos algoritmos das redes sociais. “A divulgação do livro é sempre a parte mais complicada. As redes sociais, nem sempre entregam o conteúdo da forma como esperamos. O engajamento é algo de altos e baixos, o que muitas vezes faz com que o seu alcance não seja o melhor do mundo”, explica a escritora.

“Antes de publicar o meu primeiro livro, tentei mandar o manuscrito para uma editora, mas a competição é absurda e dificilmente te dão um retorno. Então, uma amiga minha disse que a Amazon tinha uma ferramenta que podia publicar um eBook sem precisar de editora e sem pagar nada: o Kindle ”.

Os leitores dessas obras, em sua maioria, são o público jovem. Os livros infanto-juvenis, em sua maioria independentes, são uma excelente porta de entrada para que o jovem crie gosto pela letra e acabe, após algum tempo, buscando outros tipos de autores e obras. Diferente da literatura clássica – que muitas vezes afasta esse público do mundo literário por ter uma escrita complexa –, os livros contemporâneos utilizam uma linguagem mais familiar ao leitor.

Ao contrário do imaginado, redigir um livro nesse formato é muito mais trabalhoso do que simplesmente sentar e escrever, pois envolve outras áreas além da escrita. Ao contrário dos que possuem contratos

Um dos problemas mais difíceis para um escritor, sendo independente ou não, é a questão monetária. Em uma sociedade cercada de consumo e imediatismo, a literatura não gera uma renda fixa suficiente para que se possa viver apenas dela. Logo, para a maioria dos agentes envolvidos nessa área, ter um segundo trabalho se torna essencial para o andamento de suas produções. Com a divisão entre trabalho e paixão, esses autores precisam dedicar o tempo de lazer e outros momentos de folga para continuar suas obras, dificultando ainda mais o processo burocrático e criativo da produção de um livro.

Além dos diversos problemas comentados, como a falta de divulgação, visibilidade e espaço no mercado, esse novo grupo literário enfrenta um importante obstáculo: o local de publicação das obras. Conseguir expor seu exemplar na vitrine de uma livraria, por exemplo, envolve uma série de contratos e permissões, procedimentos dos quais geralmente são resolvidos por editoras. Tendo essa trava em vista, os independentes optam por um caminho alternativo e muito recorrente na atualidade, os eBooks, modalidade essa que reduz os custos de um lançamento tradicional.

O Kindle Unlimited é uma plataforma digital com teor literário, como uma “Netflix de livros”, ferramenta que muitos autores independentes publicam suas obras. Esse recurso é um grande aliado desses escritores, proporcionando uma melhor visibilidade para suas produções, dando a oportunidade de apresentar ao mundo um pouco da literatura nacional independente.

Para subir um livro no Kindle Unlimited , o autor já deve ter seu manuscrito formatado, diagramado e revisado –todo esse processo é feito pelo próprio escritor. Em contraponto, surpreendendo a muitos, as gráficas são uma luz no fim do túnel para esses profissionais que vivem na eterna lanterna dos afogados. “Hoje em dia, muitas gráficas prestam serviço para autores independentes, o que possibilita que nós tenhamos nossos livros publicados fisicamente. É um mercado que tende a crescer e nos ajuda bastante”, diz Fernanda.

Ser autor independente é desgastante, há muito trabalho para ser feito, mas é esse trabalho que nos dá esperança de um futuro mais plural, no qual pessoas possam enxergar que qualquer um com esforço e disposição pode ser um escritor; podendo fazer parte da história do mundo.

Por Amanda Furniel, Eduardo Machado e Felipe Assis Apesar das dificuldades, autores independentes sobrevivem no mercado editorial Colagem feita com livros de autores nacionais independentes, disponíveis no Kindle Unlimited Autora entrevistada, Fernanda Freitas © Amanda Furniel © Amanda Furniel
28 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP

Cantar pela Liberdade

Os manifestantes gritavam por democracia em frente à Universidade de Direito da Universidade de São Pau lo, no Largo de São Francisco, centro da capital paulista. Era agosto de 2022. Jovens, estudantes ou não, dividiam o espa ço com trabalhadores e idosos que, imersos em seus círculos de amizade, retomavam memórias da juventude – muitas ligadas ao período da ditadura militar. No local, em 1977, brasileiros foram convocados para a leitura da Carta pela De mocracia, conduzida pelo professor Goffredo Telles Júnior.

Desta vez, eu também estava lá, dispersa na multidão. A chuva tomou conta daquela manhã de quinta-feira, mas não o suficiente para roubar dos indignados o desejo inces sante por mudança. Ao contrário, minutos antes do início da leitura do documento, o Sol despontou sobre a torre dos pré dios e, ali mesmo no aglomerado de gente, ouvi um rapaz di zer em alto e bom som: “Olha só como Deus é maravilhoso!”

Na sacada da faculdade centenária, representantes liga dos aos movimentos de luta discursavam um por um, pe dindo respeito às urnas eletrônicas. Era um momento que, a exemplo do passado obscuro, adotava narrativas autori tárias e antidemocráticas. Uma das lideranças que engatou um dos discursos também lembrou da importância da cul tura brasileira, alvo de desmontes governamentais. Cultura esta que, há exatos 55 anos, abriu as cortinas do palco para o jovem Caetano Veloso no Festival de Música Popular, rea lizado em 1967.

Natural de Santo Amaro, na Bahia, o filho da Dona Canô e do Seu José Teles Veloso fez, em 1967, o Teatro Record can tarolar com euforia, e em pleno regime de opressão, a can ção “Alegria, Alegria”. Aos 25 anos, ele já esboçava o sorriso farto, até então acompanhado dos cabelos longos, castanhos escuros e encaracolados.

Em 2022, muitos dos jovens presentes no Largo de São Francisco deviam ter a mesma idade de Caetano no ano do festival. De fato, pode ser que uma parcela dos novos brasi leiros não esteja sintonizada em totalidade à obra do baiano. Ainda assim, um desejo em comum é capaz de unir ambas as gerações, seja do presente ou do passado: liberdade.

Na comemoração do aniversário de seus 80 anos, as re des sociais foram bombardeadas por cumprimentos e exalta ções ao artista. Na imprensa, um caderno de cultura ligado a um jornal de grande circulação aproveitou o momento para publicar uma reportagem especial – que ganhou a capa do periódico paulistano. O artigo destacava que Veloso estava “mais à esquerda como nunca”. Mas, afinal, como não estar diante desta situação? Não, senhor presidente, precisamos investir em bibliotecas e não em clubes de tiros. Queremos carne no prato e não ossos retirados do lixo. Somos uma so ciedade laica e, sobretudo, um Estado Democrático de Direi to. E a cultura é sim, fundamental.

Caetano, assim como Chico Buarque e Gilberto Gil, tal vez tenha traduzido em melodias harmônicas o “Brasil Bra sileiro”. De “Sampa” a “São João, Xangô Menino”. De “Lua de São Jorge” a “Milagre do Povo”. O “Caê”, como foi apelidado pela irmã Maria Bethânia em “Mano Caetano”, encarou o Brasil como um objeto de inspiração em períodos de apre ensão e esperança. O país é, no fim das contas, o verdadeiro protagonista de sua prosa e, ouso dizer, poesia.

Agora, a figura de Caetano se torna ainda mais necessá ria. A arte é um instrumento de revolução e questionamento e, mesmo que certos homens tentem desmontá-la e destruí -la a qualquer custo, ela não cede, mas sim, renasce em no vas formas de expressão. Vale mencionar que governos não são para sempre, porém ainda lembramos com carinho de Elis Regina, Tom Jobim, Cazuza e Marília Mendonça. E, por que não Paulo Gustavo, cuja alegria foi vencida pela negli gência, frases e atitudes desprovidas de humanidade?

Volto à memória do Largo de São Francisco, onde gera ções separadas por décadas de vida se encontravam aos pés do edifício histórico. Juntos, fechamos as ruas e gritamos palavras de ordem. Distribuímos e recebemos adesivos com substantivos de protesto. Posamos para fotos com o intuito de registrar que estávamos presentes. “Presente”, aliás, tam bém se transformaria em verbo para lembrar Dom, Bruno e Marielle, vítimas do caos estimulado pelo Estado.

Após a leitura da carta, mas antes do encerramento ofi cial do ato, artistas ganharam um telão num vídeo em que reiteravam o texto e o compromisso na defesa da democra cia. Salve Fernanda Montenegro, Djavan, Milton Nascimen to, Lázaro Ramos! Caetano, que foi punido no passado com as penas do exílio, estava lá. E foi aplaudido por um grupo de pessoas que acompanhavam atentamente cada trecho lido.

Celebrar Caetano é celebrar a cultura brasileira e, igual mente, o Brasil em sua complexidade de povos, costumes e crenças. Governos podem estar fadados a entrar para história por suas atuações notórias ou vergonhosas. E os que tiram da cultura, da saúde, da ciência e educação só podem ser classi ficados com a segunda opção. Estamos de olho, Brasília!

Viva Caetano Veloso e todas as formas de arte constru ídas de Sul ao Norte deste país que, iludido com uma pro messa de futuro, se tornou uma nação maltratada. Vai melhorar. Enquanto não, lutamos, gritamos, cantamos pe las ruas e avenidas. Não vão nos calar – sempre haverá outro dia. O nosso, sabemos, será em outubro. Até lá, Brasil! Reprodução:

Caetano Veloso se tornou símbolo de resistência durante a ditadura militar © Victoria Nogueira Faculdade de Direito da USP – leitura da Carta pela Democracia
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TV Record
29Setembro/Outubro 2022

Do barroco aos lírios: a potencialidade de ser Tunga

Artista denso e misterioso, que alcançou o reconhecimento internacional,explorou os diversos campos da arte em seus trabalhos

Antônio José de Barros Carvalho e Mello Mourão, conhecido popularmente como Tunga, foi um artista performático que utilizou a escrita, a escultura e a performance como meio para expressar o que lhe incomodava. Sedento pela descoberta, foi um estudioso assíduo da filosofia, biologia, psicanálise e teatro. O seu trabalho é formado com a elaboração de materiais em escalas industriais e com densidade; podendo também orbitar pela a escala oposta; da leveza e delicadeza.

Quem entrasse em seu ateliê, encontraria um galpão aberto que se asseme-

lhava a um ambiente fabril; era fácil se perder nas diversas peças em formação. Havia materiais espalhados nas prateleiras e pelos cantos, como ímãs, cerâmicas, pedras, troncos e metais enferrujados. Por mais que possa parecer, Tunga não precisava de uma grande infraestrutura para impulsionar as suas ideias, para ele não existia a necessidade de um endereço físico carregado de estímulos para que surgisse alguma inspiração (studiolo). O seu ateliê poderia ser em qualquer lugar, já que para o artista, ele habitava dentro da sua consciência; estando na multidão ou na solidão.

O barroco contemporâneo

Reflexões existenciais acompanharam o artista como base para a sua pesquisa sobre o corpo e o desejo, sendo representado em diversos trabalhos analogias que ligam as problemáticas e as fragilidades do corpo. O vermelho da sopa de beterraba, a urina, a gelatina, o cabelo, o dente e os ossos são algumas formas de retratar o indivíduo dissolvido dentro das suas obras, podendo ser entrosado com materiais energéticos ou densos, como fios de cobre, ímãs e correntes.

Graças ao seu método de criação comovente e expressivo, Tunga foi definido entre os críticos como um dos precursores do barroco contemporâneo. O professor no curso de Jornalismo e diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes – FAFICLA, Fabio Cypriano, analisa esse conceito herdado pelo artista: “Vamos lembrar que o barroco sempre foi a ideia da encenação, da emoção, ele ia contra o racionalismo do renascimento da arte ser algo frio. Portanto, o barroco é algo quente, algo envolvente; e o trabalho do Tunga é definido como o barroco

contemporâneo nesse sentido de ser uma obra muito dramática, emocional e baseada em teatralização.”

A construção teatral atrelada a elaboração de mitos foi um dos pilares do artista, criando diversas performances em pequena e grande escala. “Se observamos as gêmeas xifópagas (Obra: Xifópagas Capilares Entre Nós, de 1985), um dos trabalhos mais conhecidos do Tunga, é uma obra absolutamente teatral”, completa o Professor.

Ver uma obra de Tunga é como estar em um sonho surrealista, onde não há regras ou limites, tudo é permitido. E deve ser permitido. Na obra “Encarnações Miméticas”, de 2003, observamos a relação entre a performance, a construção de narrativa e o seu universo imaginativo. O enredo sugere uma cena da mitologia grega, onde ninfas sentadas entram em contato com objetos amorfos, garrafas e cálices. Esta ação passa por uma metáfora que constrói o ciclo de vida e morte, que se origina e acaba; devolvendo a própria carne à terra quando se chega ao fim da vida, e encarnando novamente.

Carlos Gonçalves Xifópagas Capilares Entre Nós Encarnações Miméticas © tungaoficial.com.br
© tungaofi cial.com.br
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30 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP

Nas instalações, Tunga também fez o cruzamento entre o orgânico e o inorgâni co. Tendo a intenção de a obra envolver o corpo e a mente do espectador; tanto pela sua dimensionalidade, como pelos símbo los que ela acarreta. Nas obras a seguir, vemos um emaranhado de redes içadas, torcidas e aglutinadas que sustentam fras cos preenchidos com esponjas, absorven do um líquido vermelho viscoso que goteja no chão da exposição. O vermelho pulsan te em totalidade, ou a estrutura preta em contraste com âmbar da urina enfrascada pulsam como um corpo do avesso: seja pela similaridade que há com o sistema circulatório que sangra (Obra: “True Rouge ” – 1977) ou pela fragilidade do sistema ex cretor (Obra: “Cooking Expanded ” – 2008). “Com o conceito de instauração que ele criou, Tunga fez performances que trans formavam o ambiente, criando situações que fazem o espectador pensar de uma maneira que não é tão passiva em relação ao trabalho artístico. Penso que essa ma neira envolvente do Tunga ter pensando a arte é essencial quando observamos o le gado que ele nos deixou”, observa.

O reconhecimento internacional

Já na obra a seguir, “A Luz de Dois Mun dos”, de 2005, Tunga alcançou o reconheci mento internacional, conquistando o título de ser o primeiro artista contemporâneo brasileiro a ter sua obra exposta no museu do Louvre, em Paris. Com uma estrutura que se auto sustenta em forma de contra peso, a obra se equilibra por um sistema semelhante ao de uma cruzeta, fios se en trelaçam formando uma rede de balanço, onde jaz o esqueleto símbolo da violência histórica. Em suas ancoragens, susten tam-se cabeças decapitadas que simbo lizam os espólios culturais destruídos nas guerras; servindo também como contrape so para manter o equilíbrio da obra.

Tunga foi labiríntico em essência, em suas obras expôs questões epifânicas que o rodeavam. Em um primeiro olhar sobre os seus trabalhos, podemos concluir de forma desatenta como algo solto, sem sentido, aparentando ser uma escultu ra que começa e acaba em si. Mas a sua natureza vai além, o significado das suas obras expande-se em diversas direções; onde cada material utilizado e cada for ma criada tem um motivo psicológico ou poético de intensa sofisticação. Ao expan dir a sua visão sobre a construção “psico -escultural”, conseguiu no decorrer das décadas unir diversas obras em conjuntos,

onde antes eram questionamentos soltos, fundiu-as em totalidade, materializando como uma parte da narrativa do seu in consciente. “O que o Tunga fez foi poten cializar ao máximo essa situação, porque ele se coloca dentro dos trabalhos, pen sando eroticamente e biograficamente a sua obra. Portanto, é constituinte da obra de todo artista pensar o seu Eu, mas no trabalho do Tunga isso é potencializado ao máximo”, conclui Cypriano.

True Rouge Cooking Expanded A luz de Dois Mundos © tungaoficial.com.br tungaoficial.com.br © Alline Bullara inhotim.org.br
Arte
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31Setembro/Outubro 2022

Os desafios na formação acadêmica de atletas no Brasil

Arelação entre o esporte e o ensino no Brasil sempre aconteceu de maneira conturbada. A grande maioria dos atletas brasileiros não recebe o ensino que deveria por direito constitucional. Quando jovens, alguns fatores como dificuldades financeiras, familiares ou até mesmo geográficas motivam esses profissionais a largar os estudos para apostar as suas vidas nos campos esportivos.

De acordo com pesquisas de 2019 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep), apenas 20% da população brasileira entre 25 e 34 anos possui diploma de ensino superior e somente 48% completou o ensino básico, acarretando em um grave problema educacional que afeta de maneira direta os esportistas. Em busca da realização do sonho de infância de milhões de brasileiros, adolescentes abrem mão do convívio com a família, da rotina e, em muitos casos, da oportunidade de estudar e conquistar um diploma.

encaixar as duas rotinas. Já a faculdade é um pouco mais complicada, muita burocracia para tudo, até tem uma área de atleta/aluno para entrarmos em contato caso tenha que faltar e tudo mais, mas é perceptível que falta uma compreensão e um apoio maior a nossas demandas”.

Gabriel Augusto (21) é jogador profissional de futebol, atualmente no Manthiqueira e, ao Contraponto, contou como foi a relação entre futebol e estudos. “No Ensino Fundamental era uma coisa mais tranquila, faltava umas aulas, mas sempre consegui conciliar. Já no Ensino Médio faltei muitas, tive que mudar de escola, porém nunca deixei de lado e sempre conseguia correr atrás da matéria; apesar do esforço, a perda de aula sempre foi presente. Existe uma parcela que consegue conciliar os dois, mas é de uma minoria, até porque a mudança constante de lugar e ambiente atrapalha nessa questão; e tem o fato de nem todos terem uma cobrança familiar tão grande em relação aos estudos. Para muitos pais o foco é o esporte mesmo”.

Os problemas gerados por essa relação turbulenta entre o desporto e o ensino ficam ainda mais claros ao comparar o Brasil com países onde a cultura de valorização da formação acadêmica dos atletas é relevante. Um exemplo é o dos Estados Unidos: em 1905, o então presidente Theodore Roosevelt convidou membros da alta cúpula de seu governo para discutir a criação de um órgão responsável pela organização relacionada a torneios esportivos para atletas cursando ensino superior.

Basketball Association (NBA). A partida entre os times de futebol americano das universidades de Tennessee e Virginia Tech, em 2016, recebeu um público total de 156.990 espectadores no estádio; mesmo com o preço dos ingressos girando em torno dos 30 dólares.

Há diversos motivos a serem citados para explicar esses números infl ados, mas os principais são o apego dos cidadãos estadunidenses à sua universidade formadora e a espetacularização dos jogos, que contam com atrações musicais; além das cheerleaders e uma variedade de comidas.

Já no Brasil, essa atração de ex-alunos e fãs a essas partidas não acontece, com muitas disputas sendo realizadas em locais pequenos, afastados do campus e com pouco destaque e visibilidade. Beatriz reclama sobre essa situação: “É muito diferente, querendo ou não o nível cai bastante até porque fica inviável você ter uma rotina de treino e jogos como é na federação, então a maioria que joga universitário não está na mesma ‘pegada’ de pessoas que treinam e tem uma exigência diariamente. O esporte universitário no país ainda não tem um grande apoio, e isso afeta as competições como um todo”.

A ideia de “vida ganha” no esporte, explicitada pelos salários astronômicos ganhos pelas estrelas desse ramo ao redor do planeta, seduz jovens que, até mesmo devido a injustiças sociais presentes na sociedade, não enxergam na graduação chances de sucesso na vida.

A logística e deslocamento também é um empecilho na tentativa de levar essas duas vidas; Beatriz Fernandes (18), em entrevista ao Contraponto, jogadora de vôlei do Barueri Clube e da universidade Mackenzie, enfatiza sobre essa questão: “Creio que meu maior desafio nessa área de conciliação foi quando ingressei na faculdade, pela distância dos lugares em que faço cada coisa e pela dificuldade de

Nessa reunião, surgiu a National Collegiate Athletic Association (NCAA), instituição responsável até hoje pelo êxito – tanto para os integrantes quanto para a população – dos esportes de faculdade no país. Em contraste com a baixa popularidade e a informalidade desse tipo de evento no Brasil, a NCAA é encarregada de controlar quaisquer tipos de campeonatos universitários em território estadunidense, criando regras e representando seus atletas.

O futebol americano e o basquete são casos de extremo sucesso da entidade, atingindo índices de popularidade até semelhantes às ligas profissionais como a National Football League (NFL) e a National

João Lucas Villa Belmudes (21) é um atleta brasileiro com passagens por clubes brasileiros como Portuguesa, Juventus, Tubarão-SC e São Caetano, sendo recentemente recrutado para atuar pela University of Charleston, no estado da Carolina do Sul, nos EUA. “Aqui consigo praticar o esporte e carregar os estudos no mais alto nível possível pois a própria universidade oferece a estrutura necessária para isso; as equipes universitárias são tratadas como os times profissionais são no Brasil, com torcidas organizadas e a paixão do fã mesmo”.

Tratando-se sobre a conciliação entre as duas esferas, Belmudes completa: “Quando um jovem chega aos 16 anos, os treinos começam a ficar realmente

Por Davi Garcia, Felipe de Oliveira, Felipe Pjevac, Helena Cardoso e Pedro Lima
Os desportistas costumam se destacar fazendo uso do corpo, dos atributos fí sicos e técnicos. Mas e a cabeça?
O ex-jogador Sócrates, destaque da Democracia Corinthiana no início da década de 1980, era formado em medicina pela Universidade de São Paulo Partida de futebol americano universitário entre Virginia Tech e Tenessee em 2016, com mais de 150 mil torcedores presentes © Revista Veja e Globo Esporte © Alabama Magazine
32 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP

pesados e exigir período integral, o que prejudica os dois anos de estudos pré-ves tibular nas escolas brasileiras. Aqui, esse acompanhamento é feito desde cedo pe las instituições de ensino, que conseguem com sucesso compensar as perdas gera das pelo meu futebol no meu estudo”.

Também é importante na instrução intelectual desses universitários as ofer tas de bolsas de estudos. Pelo fato de os EUA não contarem com universidades públicas de qualidade, as faculdades mais reconhecidas no esporte oferecem des contos que em muitos casos chegam à gratuidade para os alunos aprovados nas equipes desportivas.

Apesar disso, o estudante na maioria das oportunidades, deve manter um bom rendimento escolar para poder atuar nos gramados e nas quadras, fator que garan te outras opções de carreira para o caso de frustração no esporte. “Nós temos um conceito que é chamado de elegibilidade, que é o ato de estar apto a praticar o espor te pela faculdade, e isso depende tanto das notas quanto do empenho atribuído aos estudos. Se houvesse um maior incentivo tanto aos esportes universitários quanto a recursos destinados para facilitar essa prá tica, meu caminho no futebol poderia ter sido bem diferente”, adiciona Belmudes.

Essa diferença de acesso à educação acaba refletindo em questões externas ao esporte. É notória no Brasil a baixa parti cipação política de esportistas brasileiros. Em casos como ausência de segurança aos jogadores em invasões de campo, apedre jamento a ônibus de delegações, ataques nas redes sociais, pouco é feito ou manifes tado pelos astros. A falta de debates e par ticipações sociais atreladas aos clubes e às escolas têm grande impacto nisso, além da falta de infraestrutura e da necessida de de escolhas dos jogadores na infância e adolescência entre ir ou não para treinos e jogos que envolvem viagens exaustivas.

É possível observar, em países mais desenvolvidos, como há mais demons trações de envolvimento com problemas sociais. Um exemplo é o de Paul Pogba, jogador de futebol francês, que após uma partida do campeonato inglês, junto de Amad Diallo, companheiro marfinense do clube, estendeu a bandeira da Palestina contra a violência na região.

Em 2020, o meia Mesut Özil exigiu os seus direitos e fez denúncias ao tratamen to da China em relação a populações mu çulmanas, além de cobrar nações como a Turquia para entrar de cabeça na situação. No entanto, parceiros chineses da Liga In glesa proibiram a transmissão de jogos do Arsenal, clube em que o alemão jogava na época, acarretando em um declínio em sua carreira que culminou com o esqueci mento no futebol turco.

Além disso, na NBA e NFL é enraiza da a participação política dos jogadores em diversos temas, principalmente o

racismo, como o caso de Colin Kaeper nick, jogador de futebol americano que, durante o hino estadunidense, ajoelhava ou ficava sentado em protesto aos casos recorrentes no país.

Após as ações, Kaepernick não encon trou um time, e desde então se encontra sem contrato. No entanto, ainda é um ati vista social e fundador da fundação Know Your Rights, que luta pelo empoderamento social dos jovens negros no país.

Ocorreu repercussão também no caso do assassinato de George Floyd, no qual houve uma mobilização geral nas ligas americanas por parte de estrelas, que chegaram até a interromper as atividades esportivas por alguns dias.

Neste ano de 2022, o convidado do “Futebol sem Fronteiras”, Walter Casa grande, criticou a Seleção Brasileira pela falta de posicionamento dos seus jogado res: “Cobro muito o posicionamento do jogador de futebol. Como vim da Democra cia Corintiana, não entendo como nenhum [jogador] fala alguma coisa que interesse para a sociedade brasileira”, comenta o ex -jogador, que na década de 80 foi um dos fortes nomes entre atletas que se posicio navam nas questões políticas e sociais.

Um outro aspecto que afasta os espor tistas da sociopolítica do país é a saída pre coce para o exterior. O sonho de jogar nas principais ligas esportivas desperta o inte resse em muitos atletas brasileiros. Além do alto nível de competitividade apresen tado nos campeonatos afora, viver em um país desenvolvido é uma vontade de muitos, já que a qualidade de vida supera em muitos aspectos o Brasil em quesitos econômicos, sociais e políticos.

Essa vontade de jogar em países que oferecem uma melhor comodidade é ain da mais pretendida pelos jovens atletas, que buscam melhorias na carreira e uma vida mais estável tanto para o esportis ta, quanto para sua família. Porém, uma consequência dessas decisões é o afasta mento entre o atleta e as questões socio políticas do seu país de origem.

Jogadores da seleção brasileira ser vem como um incentivo aos jovens em as censão, que se espelham nas carreiras dos astros, muitas vezes construídas no fute bol europeu. Isso cria um “ciclo vicioso”

que combina sonhos profissionais e desin teresse nas questões sociais.

Ademais, o fato dos clubes europeus se interessarem de forma consistente pelas joias brasileiras, oferecendo um plano de carreira promissor e de alto investimento, mesmo com a maioria dos jogadores sofren do dificuldades de adaptação por chegarem cedo demais, também influencia na migra ção destes. “Muitas das vezes um time de uma divisão menor lá fora tem um plane jamento melhor do que times daqui. Além disso, o esporte aqui no Brasil geralmente é visto como um passatempo e não um traba lho”, afirma o jogador, Gabriel Augusto.

É fundamental que as instituições de ensino trabalhem em conjunto com os clubes com os quais estes esportistas es tão envolvidos, a fim de procurar a melhor solução para que a formação intelectual aconteça em conjunto com a prática es portiva. “Uma melhor combinação entre a temporada de jogos e de estudos e uma melhor organização e entendimento de ambas as partes seria um ótimo caminho”, Beatriz acrescenta.

O trabalho de apoio, organização e aconselhamento, feito também com as famílias desses atletas, pode tornar pos sível que as duas atividades aconteçam de forma complementar, não atrapalhando o desempenho escolar e desportivo.

A questão muda um pouco no caso do ensino superior, já que algumas uni versidades brasileiras oferecem bolsas de estudos para atletas, mas a quantidade e o apelo ainda são bem menores quando comparados a países como os EUA.

Esse auxílio pode ser um estimulador para jovens ingressarem em cursos de gra duação, complementando sua formação acadêmica. “A bolsa de estudos faz com que o atleta tenha a possibilidade de ‘ven der’ seu maior talento, o esportivo. Mui tos daqueles que não teriam condições financeiras ou intelectuais de prestar o vestibular e cursar a faculdade seriam be neficiados com o maior investimento nes se programa. Isso acaba sendo bom para a universidade também, que lucra com o desempenho dos atletas bolsistas e con segue manter o prestígio da equipe, con seguindo assim recrutar mais prospectos de elite”, conclui João Lucas.

À esquerda, jogadores da NBA protestam contra o racismo nos EUA após o assassinato de George Floyd. À direita, jogadores do Manchester United exibem bandeira da Palestina a favor da paz no Oriente Médio © Kevin C. Kox/AP e Manchester Evening News
Esportes
33Setembro/Outubro 2022

A difusão e as verdades do mercado de apostas esportistas no Brasil

As apostas esportivas, principalmente no futebol, são uma forma de entretenimento que envolve uma pessoa apostar seu dinheiro em um determinado clube e ter a possibilidade de ver seu patrimônio multiplicar em caso de acerto. Apesar de existir desde o início do século 20 em países europeus como, por exemplo, na Inglaterra, somente há alguns anos veio a ser difundido em território brasileiro.

“A popularização só chegou agora, mas eu conheço as apostas acho que há mais de dez anos, porque antes a SportingBet – conhecida casa de apostas – não estava no Brasil, então você conseguia jogar nela sem ser oficializada no país. Então já conheço há bastante tempo, de oito a dez anos”, conta a apostadora Denise (nome fictício).

Neste ano, as casas de apostas estão patrocinando 53 dos 60 times das três primeiras divisões nacionais, além de emissoras de televisão, placas de publicidade, os próprios campeonatos, ex e atuais jogadores consagrados no futebol nacional como Rivaldo, Marcelo, Ronaldinho Gaúcho, Vinícius Júnior e Adriano Imperador.

A Sportradar, empresa suíça especializada na integridade competitiva e monitoramento de apostas, fez um levantamento e descobriu que houve 903 jogos suspeitos de manipulação no ano de 2031, em dez esportes diferentes e 76 países distintos. Esse dado é um recorde nos 17 anos que a empresa faz esse acompanhamento na área. Esse número ainda deverá ser superado até o fim deste ano, porque nos primeiros oito meses de 2022 foram identificadas pela empresa manipulações de resultado em 670 partidas, das quais 400 foram apenas no futebol.

O maior escândalo que já houve em território nacional ocorreu em 2005, quando árbitros e apostadores colaboravam entre si para manipularem os jogos. Entre eles o ex-árbitro, Edílson Pereira de Carvalho, que carregava em seu uniforme o escudo da FIFA.

“É comum a gente notar isso em campeonatos menores, como na segunda divisão, estaduais de terceira divisão, divisão de base e feminino. Estou sempre dentro do estádio vendo os jogos de várias equipes, percebo quando o comportamento dos jogadores está diferente, principalmente zagueiros e goleiros: quando a bola está na linha de fundo eles forçam muito o escanteio; goleiros que deixam a bola passar. Noto os comportamentos da comissão técnica (...), principalmente nos campeonatos que não têm transmissão”, revela o scouter Dante (nome fictício). Ainda afirma que os próprios jogadores e diretorias apostam nos jogos e também manipulam, que é algo normalizado.

“Meu trabalho é relatar tudo o que acontece no jogo: gols, escanteios, cartões, laterais, impedimentos, faltas, substituições, tudo isso a gente reporta. Tem pessoas que perguntam o que eu faço no estádio e eu falo que trabalho com estatísticas. Nunca tive o azar de encontrar com algum louco, mas tenho alguns colegas que já passaram por isso e sofreram ameaças”, completa Dante.

O mercado de apostas esportivas tem crescido de maneira incisiva no Brasil. Esse aumento está diretamente ligado ao processo de regulamentação dessa atividade no nosso país. Atualmente, há cerca de 450 sites ativos que geram 12 bilhões de reais por ano. Como não há impeditivos, restrições e controles para esse mercado, as casas de apostas, as quais são sediadas em paraísos fiscais, vêem o Brasil com bons olhos por não pagarem impostos.

Esses números deixam claro que esse mercado está em uma curva de crescimento. O público, da mesma maneira, é atraído para apostar em jogos de futebol por conta dessas cifras que prometem lucro sem nenhum tipo de esforço. “A possibilidade de ganho imediato ilude qualquer um e todos entram. Propaganda com astros do futebol e pessoas conhecidas e idôneas, com frases como ‘ deu green’, facilita muita gente a perder dinheiro”, relata a apostadora Denise.

Nas redes sociais, muitos perfis começaram a ser criados com o objetivo de analisar os mercados, dando dicas de onde e como as pessoas devem apostar.

Geralmente é cobrado à parte dos apostadores uma quantia fixa para terem acesso a todas as análises. “Acho que pode ter envolvimento das casas de apostas infl uenciando tipsters – indivíduos que dão dicas de apostas. É muito fácil convidar pessoas para poder divulgar casas de apostas e mais pessoas jogarem. Quanto mais jogarem, melhor, mesmo que alguém ganhe hoje, amanhã ela vai perder. A maioria ganha no começo e perde no final”, opina Denise.

“As pessoas que vivem disso estudam os jogos, então eles conseguem ganhar dinheiro com isso. Se a pessoa tiver dinheiro para gastar e puder gastar dinheiro que sobra, pode fazer isso, até porque é uma forma de se entreter”, diz Dante.

Apesar de haver avisos sobre entretenimento consciente, as casas de apostas não têm políticas rígidas para as pessoas que começam a perder dinheiro, como aponta Denise: “Quando eu perco dinheiro, eu não sou viciada e posso continuar apostando. Quando eu ganho dinheiro, eles não deixam apostar mais. Desse jeito, a casa sempre vai ganhar.” Dante concorda com a opinião de Denise, afirmando que as casas de apostas não se importam se a pessoa é viciada ou não, elas querem que o indivíduo perca para ganharem dinheiro. “Acredito que nenhuma casa de aposta tenha um sistema para avisar que o apostador está mais perdendo dinheiro do que ganhando.”

Denise, apesar de durante esses dez anos ter mais ganho do que perdido, não recomenda ninguém a entrar no mundo das apostas. “Prefiro não recomendar ninguém a apostar. Quando você vê que tem muita gente que perde dinheiro, eu acho que não é legal. Vejo muitas pessoas na internet fazendo apostas absurdas, fazendo empréstimos e no final acabam perdendo e isso não vale à pena.”

Por Marcelo Ferreira Victorio, Gustavo Romero e Pedro Paes Homem aposta enquanto assiste a um jogo de futebol © Montagem: Marcelo Ferreira Victorio © Montagem: Marcelo Ferreira Victorio
Como o ramo se popularizou e pode estar manipulando resultado de partidas
34 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP

Em 2019, o Comitê Olímpico Inter nacional (COI) incluiu quatro novas modalidades para o programa dos Jogos Olímpicos de Paris, de 2024. Entre elas, estará presente a primeira catego ria de dança esportiva, o Breakdance, do qual teve uma primeira aparição nos Jogos Olímpicos da Juventude de 2018, em Bue nos Aires, na Argentina. Essa inserção dos novos esportes é uma tentativa de trazer maior diversidade aos jogos, como comen ta Tony Estanguet, presidente do Comitê Organizador dos Jogos de 2024.

“Nosso objetivo, desde o início, foi destacar o que foi a força dos Jogos duran te 32 edições, a diversidade dos esportes e a emoção que resulta no rendimento, ao mesmo tempo em que aproveitamos a oportunidade que nos oferece o COI, para melhorar o programa e oferecer uma nova dimensão”. Contudo, a visibilidade que o Break conquistou até chegar aos Jogos Olímpicos traz uma história de grande re sistência, desde o século XX.

Tendo a crise de 1929 como marco inicial para o aumento da violência e da pobreza nos Estados Unidos, a popula ção dos bairros do Bronx e do Brooklyn, em Nova York, na década de 50, começa a procurar novas formas de manifestação para reafirmarem suas existências na so ciedade norte-americana. Assim, os DJs Afrika Bambaataa e Kool Herc foram os artistas que incentivaram os jovens de co munidades a resolverem suas discussões e diferenças por meio da dança, nas bata lhas que aconteciam nos quarteirões dos bairros nova-iorquinos, chamadas de Blo ck Partys, com a batida da música de RAP e Hip-Hop. O objetivo era fazer movimen tos físicos com certo grau de dificuldade a ponto de seu adversário não conseguir fazer o próximo.

Dessa forma, os jovens das periferias denunciavam a dura realidade da segre gação racial dos guetos nova-iorquinos e as condições sociais em que viviam. As performances serviam para mani festar a revolta que sentiam por imensa desigualdade, buscando apontar a ex clusão social e ao mesmo tempo fugir de padrões já estabelecidos pela cultura vigente, que refletiam acomodações e continuidades.

O break, no entanto, não se limitou apenas ao debate da resistência. Além de aludir às formas de posicionamentos, o es tilo revelava uma valorização de suas iden tidades, dos lugares de onde são e vieram, da ancestralidade de suas culturas, uma maneira de as carregarem para além dos subúrbios --- para a cidade e o mundo.

Além disso, a escolha da prática, prin cipalmente nas ruas, era um jeito simbó lico de ocupá-las, referindo-se à questão do lugar social, de marcarem presença em seus ambientes comuns de convivên cia. Também era um modo de pacificar disputas territoriais nas regiões. Assim, o Hip-Hop e o Break se espalharam pelo país e pelo mundo rapidamente, criando novos movimentos e modalidades. Mes mo com suas raízes consolidadas em Nova York, é inegável a existência de conexões e semelhanças na cultura de comunidades negras, que já existiam ao redor do mundo bem antes do break

Um fato que confirma isso são as si milaridades que alguns dos movimentos da capoeira, esporte de origem afro-bra sileira, tem com o breakdance, como, por exemplo, o “pião de cabeça”, que é muito parecido com o “ head spin”. Ambos os mo vimentos se baseiam em girar o corpo com as pernas para o alto se apoiando com a cabeça no chão.

Tempos depois da cultura hip-hop se popularizar entre os norte-americanos, o estilo chega ao Brasil por meio de grupos como o Public Enemy – que fizeram seu primeiro show na cidade de São Paulo em 1984 – e também da televisão, que ajudou a globalizar o breaking. Thaíde, um dos fundadores do Back Spin (1985), o mais antigo grupo ainda ativo no país, e Nelson Triunfo, pernambucano conhecido como o pai do hip-hop brasileiro, são alguns dos pioneiros que se identificaram com o mo vimento. Juntos, os dois incentivavam os jovens a adentrarem ao novo estilo, aju dando-os a deixarem de lado a violência fortemente presente em bairros periféri cos naquela época.

Foi com esse propósito que o Break foi inserido nas Olimpíadas. O presidente do COI, Thomas Bach, comentou à ESPN sobre o ingresso das quatro modalidades. “Os quatro esportes propostos estarão to talmente em linha com a Agência 2020, porque contribuem para que o programa seja mais equilibrado, quanto a gênero e mais urbano, e oferecem uma oportunida de de se conectar com uma geração mais jovem”. Além disso, Estanguet acrescen ta: “Trata-se de uma disciplina espetacular e muito diferente de tudo já visto até agora em uma Olimpíada que, além disso, exige uma disciplina e um rigor fora do comum”.

Sendo essas semelhanças culturais e a marginalização de comunidades negras algo global, não é impensável que o uso da dança e do esporte para superar essa rea lidade também seja global. O breakdance representa um estilo de vida por meio de uma forma de existir no mundo: a arte. Logo, a modalidade ainda é forte fonte de criação de vínculos entre a juventude e suas comunidades, de modo que tem ga nhado cada vez mais visibilidade.

Por Dayres Pereira, Gabriela S. Thier e Júlia Takahashi Competição de Breakdance Julho de 2022, em São Paulo © Julia Takahashi
Breakdance nas Olimpíadas: Símbolo de Resistência Negra e Periférica A história da modalidade de dança que estará presente nos Jogos Olímpicos de 2024
35Setembro/Outubro 2022

Oálbum de figurinhas da Copa do Mundo teve seu início no Brasil em 1950, Copa que foi sediada no país. O álbum foi feito pela indústria de balas e chocolates A Americana LTDA. Os criadores tiveram a brilhante ideia de vender as figurinhas junto das balas que eles produziam. Atualmente, é a empresa italiana Panini que produz os álbuns, e isso já perdura há mais de 50 anos. A Panini começou a produzir seus álbuns na Copa do Mundo de 1970. O preço dos álbuns e das figurinhas sobe a cada edição, como todas as outras coisas que vem crescendo de valor ano após ano, como por exemplo, os alimentos que em alguns casos sobem até 80% ao ano, a gasolina que sobe 32,62%, o diesel que subiu 40,54%, ou o etanol que chegou ao patamar de 36,17%, sendo que estes são só alguns dos produtos que sofrem constantemente com a alta infl ação no Brasil, e as figurinhas do álbum da Copa do Mundo também não fogem disso.

Na edição de 2018 cada pacotinho custava R$2,00, já agora em 2022 cada pacote custa R$4,00, ou seja, o preço dobrou. Em 2018 o preço mínimo para se completar o álbum era de R$280,70, já agora, o preço mínimo é de R$564,00. É um aumento extremamente notável, e isto em um país que se encontra em uma crise financeira crescente, com milhões de desempregados que são apaixonados por futebol, e que por conta do alto preço, precisam deixar uma paixão de lado.

O preço das figurinhas supera a infl ação de 2018 para este ano, pois se fosse levado em conta o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo), o pacote deveria custar em torno de R$ 2,61, visto que o

índice variou cerca de 30,5% de março de 2018 a junho de 2022, mas a fabricante do produto relatou em entrevista ao portal G1 que: “A editora mantém o preço dos produtos colecionáveis há dois anos entre R$ 3,50 e 4,00, valor este alinhado e praticado em toda a América Latina”. Segundo a Panini “O álbum de figurinhas da Copa do Mundo Qatar 2022 é um produto oficial licenciado pela FIFA e, por esse motivo, tem que seguir políticas de equiparação de preços em todos os países LATAM [da América Latina], conforme regras definidas pela entidade”.

O jornalista da ESPN Breiller Pires comenta ao Contraponto: “Quando acontece esse efeito infl acionário, tanto o álbum quanto as figurinhas aumentaram mais que os indicies de infl ação que temos no Brasil que são o IPCA e o IGPI e por conta disso exclui mais da metade da população brasileira que depende de auxílio brasil e de projetos socias criados pelo governo e com isso afasta essas pessoas de participar.”

Levando em consideração que o salário-mínimo atual é de R$ 1.200,00, a compra e coleção do álbum da copa do mundo torna-se uma atividade completamente inacessível para as classes D e E. As crianças e adolescentes, pertencentes às classes sociais mais baixas que não viveram a cultura de copa do mundo no Brasil nas últimas décadas, não terão uma atividade de entretenimento (que historicamente, sempre foi a compra das figurinhas) referente ao acontecimento, tornando o evento algo comum, e com atividades de entretenimento extracampo destinadas única e exclusivamente ao público infanto-juvenil das classes A, B e C.

Paro o jornal Contraponto, o aluno de jornalismo da PUC-SP Bruno Scaciotti opina: “Dez pacotes representam 40 reais, um valor muito alto. Entretanto, é uma tradição da copa, algo para colecionar, guardar e agora assim como as figurinhas raras, o material todo também se torna um item raro de venda.”

Dentre o público restrito que ainda possui condição de adquirir as figurinhas percebe-se que o ato de “trocar” as repetidas é ainda mais comum nesta edição. Isto sem dúvida reflete que a atividade tornou-se algo destinado a aqueles que possuem uma boa condição financeira.

Em redes sociais, como o Tik Tok e o Instagram é possível notar um grande volume de conteúdos sobre o álbum da copa do mundo, sejam vídeos de infl uenciadores do ramo futebolístico, realizando a abertura dos pacotes, ou o ato de colar as figurinhas. Porém algo que chama muito a atenção nesta edição são as figurinhas do tipo “Legends”. Apesar de não serem necessárias para que o álbum seja completo, elas são uma grande ambição por parte do público, principalmente dentre os colecionadores. Segundo a Panini, ao todo existem oitenta figurinhas de vinte jogadores, que fazem parte do tipo “Legends”, totalizando apenas 1.600 figurinhas como esta no país inteiro. Exatamente por ser tão raro este acontecimento, os preços destas figurinhas chegam a custar 9 mil reais.

O álbum da Panini é uma “brincadeira” muito presente na vida dos brasileiros neste período que antecede a copa do mundo, mas a compra de alimentos mais básicos no dia a dia do cidadão, como leite, carnes e as verduras, são muito mais urgentes na realidade do país.

Por Felipe Botter, Christian Policeno e Lucca Ranzani
As figurinhas da Copa 2022 chegaram nas bancas, mas o preço alto preocupa
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36 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP

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