Os Estilosos Gigantes da Patagônia Uma breve história da roupa tradicional no sul do Chile
Por Barbara Cristina, Guilherme de Beauharnais, Mayara de Moraes Neudl e Raíssa Haddock Lobo
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Outros caçadores de guanacos eram os tehuelches, que desenvolveram técnicas mais elaboradas de criar vestimentas: ao invés de utilizar os mantos com as pelagem dos guanacos para fora (como os onas), eles vestiam quillangos, mantos quadrados com o pelo para dentro e motivos geométricos decorando o exterior. Também segundo a Dra. Anawalt, “os motivos mais frequentes dos quillangos eram cruzes pretas e linhas longitudinais azuis e amarelas sobre um fundo vermelho, ou ainda ziguezagues brancos, azuis e vermelhos”. A tradição tehuelche dos quillangos sobreviveu por muitas gerações e, ainda na década de 1930, era comum encontrar seus descendentes produzindo essa variação do manto patagônico. A ameaça de extinção dos guanacos (resultado da caça constante para alimentar e vestir comunidades cada vez mais populosas) obrigou os tehuelches a encontrar outras formas de produzir indumentárias, como a tecelagem, que aprenderam com os povos que habitavam o norte da Patagônia. Mas muito antes de dominar os teares, os tehuelches aprenderam a domar os cavalos selvagens – que descendiam daqueles abandonados na região pelos europeus. Essa atividade fez deles não
© Museo Chileno de Arte Precolombino
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ntre as lendas mais famosas da América Latina, aquela sobre “os gigantes da Patagônia” (região que compreende partes do sul do Chile e a Argentina) é, provavelmente, uma das mais conhecidas. Não à toa, como em tantos outros episódios de relevância antropológica e sociológica, as roupas desempenharam um papel decisivo na construção desse mito: foram as pegadas compridas e largas na neve, produzidas pelo uso de calçados de pele animal por parte dos povos nativos da região que, em 1519, assustaram a tripulação do navio português comandado por Fernão de Magalhães (o primeiro europeu a alcançar o local). De acordo com a doutora em Antropologia Patricia Rieff Anawalt, teriam sido os homens de Magalhães a batizar as pessoas que encontraram durante a viagem de “patagones” (pés grandes) ou, talvez, até mesmo o próprio capitão, inspirado no romance espanhol Primaleon, que narra a história de uma ilha habitada por um gigante chamado Patagón e uma comunidade de caçadores selvagens. A visão de nativos enrolados em grossas peles animais certamente causou uma impressão nos viajantes do Velho Continente, que já começava a explorar a tradição têxtil oriental, marcada pela sutileza e brilho das sedas coloridas. Mesmo com o fim da Era do Gelo (entre 14 e 10 mil anos atrás), o clima na Patagônia se manteve bastante frio, com fortes ventanias, chuvas, neve e granizo. A sutil elevação de temperaturas, entretanto, permitiu que povos caçadores-coletores começassem a habitar a região. A sobrevivência da maiorias deles dependia do guanaco, um animal semelhante a lhama com “o relincho do cavalo, a lã do carneiro, as patas do cervo e a rapidez do diabo”, como descreveu o viajante inglês G. C. Musters, no século XIX. Enquanto sua carne alimentava a comunidade, sua pele servia como proteção contra o frio. Para os onas, por exemplo, as peles de guanacos formavam enormes mantos de 1,5 m² que cobriam o corpo inteiro (com a pelagem voltada para fora). Enquanto as mulheres prendiam essas peças com correias na altura do pescoço, os homens as vestiam sem qualquer tipo de amarra, ficando livres para soltá-las durante caças e garantir maior agilidade. O animal também era utilizado pela tribo como material para calçados, boinas triangulares e faixas de cabeça.
Duas mulheres onas vestindo mantos de pele de guanaco, em 1915
apenas cavaleiros-caçadores, mas cavaleiros-guerreiros, e as disputas violentas com outros povos criaram a necessidade de armaduras resistentes. Como o couro dos guanacos era muito macio, o couro bovino passou a ser preferido na confecção de capacetes, e o de cavalo na de armaduras (feitas com até 7 camadas do material). Além dos mamíferos terrestres, peles de focas e lontras também serviram como matéria-prima para as roupas dos povos tradicionais da Patagônia. Para os yámanas (índios canoeiros), a ausência de pelagem facilitava a movimentação na água, já que eles viviam de pesca e, pelo mesmo motivo, as vestes (pequenas capas de 90 cm x 125 cm) cobriam apenas o torso, deixando as pernas livres. Ainda além, andavam descalços na maior parte do tempo, optando por calçados rústicos de pele de foca e enchimentos de capim apenas durante viagens longas. Já das aves, as plumagens coloridas eram apreciadas por todas as tribos: braçadeiras de penas e adornos pessoais simples, como colares de ossos de pássaros ou conchas, eram padrão entre os onas e os yámanas, enquanto os tehuelches – graças ao contato com outras culturas facilitado pelas viagens a cavalo – adotaram adereços mais refinados, como broches de latão e brincos, pulseiras e anéis de prata martelada. Apesar dos séculos de tradição, o legado suntuário das comunidades tradicionais chilenas começou a sofrer duros golpes a partir do século XIX. Além da considerável redução da população de guanacos, o número de indígenas na Patagônia também diminuiu. Segundo o historiador chileno Mateo Martinic Beros, entre 1843 e 1910, o número de nativos na região caiu de 11 mil para menos de 1.500. A introdução de bebidas alcóolicas e doenças, o confinamento compulsório e a conversão religiosa por parte dos colonizadores contribuíram para o extermínio desses povos assim como o de suas expressões culturais. Seja rústica, sofisticada ou aquática, a singularidade de cada um desses “guarda-roupas” exprime muito mais do que apenas a vaidade humana. Ela conta histórias sobre pessoas que legaram às gerações futuras algo talvez ainda mais íntimo que a escrita: suas vestimentas. A partir delas, pode-se reviver suas memórias e compreender suas vidas e mortes. É através das roupas que os verdadeiros “gigantes da Patagônia” se revelam.
CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP