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Mais) uma greve dos caminhoneiros no Chile

Chile e Brasil – a agitação inerente das paralisações em países tão dependentes do serviço de cargas rodoviário

Por Iris Martins e Júlia Nogueira

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© AFP Não é segredo que os caminhoneiros, em todo o mundo, exercem papel fundamental para a manutenção da vida das pessoas. São eles que transportam produtos essenciais como alimentos e medicamentos, portanto, com a falta desse serviço, a população é diretamente afetada. No Brasil, que depende em cerca de 80% dos serviços de transporte de cargas rodoviário, a última greve de caminhoneiros em 2018 entrou para a história, na qual até mesmo aulas tiveram que ser suspensas, pois não havia gasolina nos postos, o que impossibilitou os estudantes de chegarem nas escolas por conta da falta de transporte. Somente quando a escassez de alimentos e produtos começou a se fazer presente nos mercados brasileiros, o país enxergou a importância do trabalho desses profi ssionais, que na época, reivindicavam pela diminuição do preço do diesel.

Caminhoneiros bloqueiam a Rota 68 em Lo Vásquez, Valparaíso, Chile, em 27 de agosto de 2020

Situação também enfrentada pelo Chile em 27 de agosto de 2020, quando os caminhoneiros decretaram greve, mostrando mais uma vez a importância de seu trabalho. Os caminhoneiros locais iniciaram uma greve por conta da insegurança no sul de Araucanía. A região centro-sul chilena sofria com o confl ito entre os indígenas Mapuche e o Governo Federal. A greve teve início depois que uma menina de nove anos foi hospitalizada devido à um ferimento de tiro ocorrido em um ataque ao caminhão betoneira de seu pai na região. A polícia ainda não conseguiu identifi car suspeitos.

O município vem sofrendo diversos ataques a caminhões de transporte e fábricas nos últimos meses. Em entrevista ao Contraponto, o caminhoneiro chileno Jose Sebastian Valenzuela de 46 anos, participou da greve, e conta que “a região da Araucanía é a mais pobre do Chile e mais desprezada pelo governo devido ao fato de nessa região haver forte oposição ao Estado. A pobreza e o descaso tornam essa região muito vulnerável para a segurança dos caminhoneiros.

“O ocorrido com a garota foi só mais um dos ataques que sofremos nesses dias que antecederam a paralisação”, explica. Jose também diz que a decisão de parar se deu quando o confl ito entre o governo e os líderes Mapuches atingiu a classe caminhoneira, com caminhões sendo incendiados e colocando esses motoristas em risco.

Três dias antes do início da greve, o sindicato deu um ultimato. Em uma entrevista coletiva, Sergio Pérez, presidente da Confederação Nacional de Transporte de Cargas (CNTC), declarou: “Não vamos trabalhar, não vamos abastecer a nação se o Parlamento não compreende claramente que deve remover essas regulamentações urgentes, para entregar as ferramentas ao Executivo e eliminar o grave problema que o Chile tem, em todas as suas formas. ”

“Esta greve não é contra o povo Mapuche, mas sim contra as más políticas do governo que nos colocam no meio de um confl ito com o qual não temos nada a ver”, disse o caminhoneiro Pedro Galea.

Caminhoneiros estacionaram seus caminhões no meio das estradas, reivindicando por mais segurança na área de Araucanía, possibilitando a passagem de somente alguns veículos. Grupos que defendem os Mapuches confi rmaram alguns dos ataques anteriores a caminhoneiros e empresas, relatou a polícia.

O cenário se encontrava bem preocupante, visto a dependência predominante do transporte rodoviário e a falta de produtos alimentícios e médicos, principalmente durante a pandemia do novo coronavírus. A CNTC disse que o Congresso não aprovou as leis desejadas por eles para a garantia de mais segurança. “Exigimos que o Congresso aprove urgentemente [...] as 13 leis relacionadas à prevenção, perseguição e sanção de crimes”, disse a entidade.

© AFP/Arquivos

Caminhões em uma rota no Chile, em 1° de setembro de 2020.

O brasileiro Fabiano de Jesus, 42, estava no Chile durante a paralisação e relata ao Contraponto como como se encontrou no meio de uma greve no Chile: “Para nós brasileiros foi muito difícil, porque estávamos em Puerto Montt que é uma cidade portuária onde faz muito frio, e ficar parado no acostamento por quatro dias não foi muito bom. Foi muito desafiador para nós brasileiros devido à surpresa dos acontecimentos, nós não sabíamos que iria acontecer uma greve ali. Foi muito difícil. É muito difícil qualquer tipo de reação de nossa parte porque não conhecemos as leis do país e também tínhamos medo de como seríamos interpretados caso manifestássemos alguma insatisfação em relação a paralisação. O sentimento foi um misto de impotência, insatisfação, revolta e medo ao mesmo tempo”. Ele também comenta a semelhança com o mesmo cenário no Brasil: “A organização da greve foi muito parecida com a ocorrida no Brasil. Tudo muito sincronizado, com bloqueios em pontos estratégicos das rodovias”.

Devido às mobilizações ocorridas no Chile em outubro de 2019, o governo chileno impulsionou uma lei que aumenta as sanções para quem interromper o funcionamento normal das ruas e rodovias, mas não a aplicou neste caso. “Não roubamos nenhum supermercado, não queimamos municípios, não queimamos igrejas, tratores, caminhões ou qualquer coisa. Esta é uma manifestação pacífica”, relatou José Villagrán, presidente do sindicato dos caminhoneiros do sul do Chile.

“A revolução social trouxe sentimento de justiça, o povo não está aceitando que continuem as corrupções, montagens e manipulações dos setores acomodados, portanto isso refletiu diretamente na postura frente a essa paralisação”, afirma a professora chilena Scarlett Fontecilla, em entrevista ao Contraponto.

A paralisação durou quase uma semana, de 27 de agosto a 2 de setembro, quando finalmente chegaram a um acordo com o governo, após a paralisação ter impactado cidades do sul do país. “Vamos ficar muito atentos para que cumpram o que acordamos. Se não for cumprido, voltaremos às estradas e estacionaremos no meio-fio”, ressaltou Villagrán.

A greve não recebeu muito apoio popular apesar das reivindicações de segurança dos caminhoneiros. Scarlett relembra a greve de 1972 e diz que “A população hoje recusa muito ações que sejam desfavoráveis para as pessoas. Uma paralisação dessas pode desabastecer e gerar uma crise total no país como aconteceu em 1973 com os caminhoneiros, situação que precedeu a ditadura militar de Augusto Pinochet”. A paralisação de 2018 no Brasil também teve dificuldade em angariar apoio do povo brasileiro. Enquanto os caminhoneiros protestavam contra o preço do combustível, a população formava longas filas nos postos de gasolina pagando três vezes o preço do que costumava ser.

Greve dos caminhoneiros de 1972 e 1973

O Chile tem um histórico semelhante ao do Brasil, sendo um país que também depende em grande parte dos serviços de transporte de carga pelas rodovias. A primeira grande greve de caminhoneiros ocorreu em outubro de 1972, na qual ficaram paralisados por 26 dias, protestavam contra a criação de uma autoridade nacional de transporte. A greve engatilhou outros movimentos grevistas e as estimativas apontam que a paralisação custou cerca de 200 milhões de dólares para o país na época. Atualmente, acredita-se que este valor poderia circular em mais de 1,2 bilhões de dólares.

Na época, o então presidente eleito em 1970, Salvador Allende tentou conversar com os caminhoneiros no final de outubro, mas não obteve um bom progresso. Quase um ano depois, em 1973, cerca de 40 mil caminhoneiros paralisaram o país novamente. O impacto econômico e a instabilidade foram devastadores, o país nem sequer havia se recuperado da greve do ano.

O movimento, inclusive, foi um dos que mais influenciou o golpe de Estado liderado por seu chefe das Forças Armadas, o general Augusto Pinochet. Neste mês de outubro, a “greve patronal”, como ficou conhecida, completa 48 anos. Augusto Pinochet ficou no poder até 1990, cerca de dezessete anos, instaurando no país uma ditadura violenta.

O caminhoneiro Sebastian afirma que a greve de 1972 e a greve atual não devem ser comparadas: “são momentos distintos e que não devem ser comparados com a greve 72. Hoje não temos uma crise institucional, mas sim, de segurança regional. Cabe à nós buscar nossos direitos e tentar mostrar que não somos inimigos de nenhum dos lados”.

O cenário de tensão política no Chile continua. Como no Brasil, greves dos caminhoneiros chamam a atenção popular e do governo. Apesar dessa classe de trabalhadores ser essencial, é fato que o seu reconhecimento não é universal, mesmo que a categoria consiga causar instabilidade e agitação no país com a ausência de seus serviços. Para os caminhoneiros, a luta por seus direitos é interminável, o que faz com que futuras greves não sejam. Sendo um movimento político ou não, os caminhoneiros têm um alto poder de movimentar o país para reivindicar o que precisam ou acreditam. Chile ou Brasil, ambos dependem em grande parte deste serviço e precisam garantir os direitos desses trabalhadores.

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