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Quando o Vazio esbarrou com a certeza
Por Anna Baisi
ouTro Dia, o Vazio me perguntou por que sentia tanta saudade do Brasil. Repetidamente, eu também faço essa pergunta para mim mesma. Não sei responder, porque nem sei por onde começar. É difí cil montar uma linha de raciocínio, “fazer uma longa lista sobre as coisas que preciso (preciso mesmo?) dizer”. A lista pode ser infi nita? se a resposta for sim, tudo bem, eu aceito.
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Depois que tive o primeiro contato com obras como “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, “Manifesto Antropófago” e “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” de Oswald de Andrade e as belas pinturas da Tarsila de Amaral, talvez antes mesmo disso, algo surgiu dentro de mim que, até então, eu desconhecia.
Na minha cabeça de adolescente eu só conseguia pensar “quão cega eu fui – ou melhor, quanta certeza eu tinha dentro de mim – de não conseguir perceber que a América Latina pode ser tudo isso que essas terras todas são, e MUCHO MÁS?”, fi quei com raiva por nunca ter me questionado sobre nossas terras e sobre tantas coisas que só fui perceber tendo o contato com essas e outras obras que também conversam entre si, desde as mais corriqueiras, passando pelas abstratas, até as mais teóricas.
Essa tal raiva continua, agora em outro estilo. Hoje em dia tenho mais consciência do que estudei, e por ter consciência que a gente também sente raiva e castiga a paciência. Porém, é importante mencionar: foi com a raiva que senti saudade. Então o Vazio me perguntou: “saudade do que, exatamente?”, também me pergunto isso, cariño.
A melhor resposta, ou a resposta que posso dar por agora é: não sei, não sabemos. Se alguém souber, por favor, me manda uma mensagem. Mas, por enquanto: não sabemos. Não vamos saber que saudade raivosa e maluca é essa, e somente o que teremos certeza disso tudo – ou quase nada, que também é algo – é que esse sentimento reinará em algum momento, e depois daí só expandirá: como os nós e laços que são feitos em um crochê para se tornar algo (se é que sempre não foi alguma coisa), assim como redes de conexão.
Não dá muito para saber das coisas quando você não entende da onde vêm. Eu tenho até medo de afi rmar isso, porque também não sei de onde vem esse pensamento. Talvez de uma voz que estabelece, todos os dias, um vínculo com a minha vida chamada… inconsciente? Talvez!
Quando eu era criança, lá para os meus 11 anos, eu fantasiava que os Estados Unidos era o país mais incrível do mundo, e fi cava enfurecida por não ter nascido lá. Só de ter essa lembrança, apesar de não saber muito sobre o que se trata, eu penso naquele fi lme “Meu passado me condena”. De maneira boba e bem humorada, claro.
© René Magritte
De uns tempos para cá, comecei a ir atrás dos fi lmes latinos, porque eles nem sempre – quase nunca, apesar da mídia estar dando um pouco mais de espaço e visibilidade – vêm até nós. Eu amo assistir. Quando vejo, eu me sinto um pouco mais eu, compreende? Mesmo que nunca inteiramente. Parece que somos e estamos na terra do ninguém, mas que esse ninguém vem de um “muitão” que achamos que é ninguém, mas nunca foi. Sempre foi algo, só não sei te dizer o que foi. Não temos esse acesso – ou não queremos ter?
Tenho saudade de saber algo sobre nós, algo sobre nossa terra, sobre nossas raízes. Mas, mais ainda, tenho raiva daqueles que apagaram as histórias de tantos e as possibilidades de muitas outras que poderiam ter sido expandidas. Não sei de onde começa, mas sei que existe… ô, se existe! E é preciso saber para continuar mudando.
Os dias de quarentena me fi zeram – e fazem – refl etir ao dobro sobre nossas posições perante a sociedade. Já adianto: não cheguei à conclusão alguma. E que bom! Quando eu estiver totalmente certa de algo, me chacoalhe, me faça assistir algum fi lme em movimento, escutar uma música de bater os cabelos (mesmo se eu me tornar careca) e, sobretudo, me faça dançar e ver que a cada passo da dança, tudo pode mudar. Enquanto há movimento, há mudança.
Sinto essa saudade do Brasil também. Saudade de dançar e ver os outros dançando, isso sim é fato. Sinto saudade, sou nostálgica. Sinto saudade do Brasil ser assim, nostálgico. Quero relembrar para jamais esquecer. Me dá medo ver as horas e o tempo se passando tão rápido, e a história também.
Esses dias, inclusive, li, em alguma reportagem, uma frase de Isabel Allende, sobrinha do Salvador Allende, ex-presidente do Chile antes de iniciar o Golpe de Estado por Pinochet. Preciso que vocês leiam com atenção, e não vai ser uma necessidade minha explicar o porquê, vocês entenderão: “Escreva o que não deve ser esquecido”.
Eu recuso um presente que machuca, oprime, agride, apaga e minimiza nossas terras, mas não esqueço, é por não esquecer que escrevo com sangue fervendo das veias abertas da América Latina. Fico com raiva por sentir saudade do Brasil, das raízes, dos países vizinhos – nossos irmãos, mas é preciso. Eu preciso e, acima de tudo, precisamos sentir essa raiva que percorre todo o nosso corpo, para sentir uma necessidade de mudar, de mudança. Que você que me lê esbarre com o Vazio por aí, para que ele te faça perguntas, mesmo que você não encontre resposta. Que você esbarre com angústias, fúrias e raivas, para que possamos sempre revisar a história de maneira que a gente nunca esqueça o que aconteceu para estarmos aqui.