VOVÓ SURREALISTA

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Vovó SurreaLista

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Vovó Lis oo ta CARLOS CANHAMEIRO

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ILUSTRAÇÕES CACÁ MEIRELLES


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Para Lucas & Nina

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A voz de meu avô arfa. Estava com um livro debaixo dos olhos. Vô! o livro está de cabeça para baixo. Estou deslendo. MANOEL DE BARROS

Eu era toda ouvidos. Ouvia com os olhos, com o nariz, com a boca, com todos os sentidos... CORA CORALINA

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[Era uma vez] Era uma vez uma história que contava a história de uma pessoa que contava histórias que ela mesma havia inventado. Era história pra todo lado. História pra todo gosto, desgosto, alegria e dia cabisbaixo! Era uma vez uma criança que noutra vez era bebê que dessa vez era adulta. Criança adulta existe? No Era uma vez, existe. Existe o quê? Existem quantos Era uma vez a gente quiser. Uai, mas então quem tá contando essa história? Ninguém! Ninguém? Não! Era uma vez! Ah, Era uma vez é uma pessoa que conta histórias. Também! Ah, entendi... Então não era uma vez! O quê? Quando uma pessoa entende Era uma vez, a história não era mais uma vez. Ah, entendi, acho... Mas então quem era a pessoa que contava histórias que ela mesma tinha inventado? Era uma vez. Ah... Senhor Era uma vez?... Quem disse que Era uma vez é um senhor? Ninguém! Senhora Era uma vez?... Quem disse que é uma senhora? Ninguém... Era uma vez é era uma vez de qualquer idade, de qualquer sexo, de qualquer lugar... Pode ser mulher, transmenino, esquimó do Saara... Era uma vez tudo isso e mais do que isso. Não tem limites!

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[Surrealista] VOVÓ É preciso estudar, minha querida... É preciso estudar

antes de tudo nessa vida e depois de tudo nessa vida! NETA Vovó, a senhora sabe...? VOVÓ Eita! Senhora? NETA Ai, vó. Eu só sei chamar a senhora de senhora... VOVÓ Pois então, agora, eu só vou chamá-la de Surrealista! NETA Isso lá nem é nome! VOVÓ Senhora também não, Surrealista. NETA Ah, tá bom, vovó... VOVÓ O que, Surrealista? NETA Meu nome não é Surrealista. VOVÓ Nem o meu é senhora.

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NETA Tá bom... Tá bom... VOVÓ Estudou desde antes de tudo? NETA Acho que sim. E vou continuar estudando depois de tudo... VOVÓ Vamos descobrir em breve, Surrealista! NETA Eu parei de chamar a senhora de senhora. VOVÓ É verdade, mas eu gostei de ter uma neta surrealista! NETA Então a senhora vai voltar a ser senhora. VOVÓ Quem me dera não ser senhora, não é mesmo,

Surrealista? NETA Para, vovó. VOVÓ Paro, mas não garanto que não vou fazer de novo! NETA Semana passada a senhora me chamou de... Como era

mesmo? Ostracisma. VOVÓ É porque você vive cismada com os nomes que te dou,

Surrealista.

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NETA Acho na verdade que eu gosto. VOVÓ Eu sei, mas eu não gosto de senhora. Por que você

não inventa outros nomes para mim? NETA É difícil. Meu pai fala que tenho que ser educada

com a... VOVÓ Uai! Você é muito educada. Só acho estranho você

ainda não ter aprendido nenhum nome diferente de senhora para chamar a sua avó! NETA Vou tentar. Eu prometo. Na semana que vem... VOVÓ Não! Hoje. NETA Hoje? VOVÓ É! Agora. NETA Agora? VOVÓ Você vai ficar repetindo tudo o que falo? NETA Não, senhora...

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VOVÓ Vamos lá... Outro nome. NETA Não. Ah, não, ah... Eu não consigo. VOVÓ Claro que consegue. Você conhece um monte de

nomes. Um monte de tudo quanto é coisa. NETA Mas eu não sei ler direito ainda e não tenho tantos

livros quanto a senhora. VOVÓ Aiai! Senhora. Senhora. Senhora. Surrealista

Ostracisma Karamazova. Por favor! Você vai ler muito mais, mas muito mais do que eu li. NETA Duvido. VOVÓ Eu tenho certeza, Karamazova. E agora vamos lá.

Meu novo nome. NETA Vovó. VOVÓ Esse é mais velho do que a sua

antepresuntatataravezdezavó! NETA Vozinha?!

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VOVÓ Olha o meu tamanho, Ostracisma! NETA Abuela. VOVÓ É a mesma coisa, só que na língua do seu avô

paterno. Pensa que me engana? NETA Velha?! Ai. Desculpa. Escapou. Eu falei sem querer,

sem pensar... Não foi de propósito. VOVÓ Fique tranquila, minha Surrealistazinhanovinha. Sua

avó é um pouco velha sim. Não é feio nem errado, os dias são rios que correm dos dois lados. E nós duas nadamos neles! Não precisa ficar envergonhada. Sua avó é velha, tem razão, e estou cansada dessa tal senhora que nem nome é! Agora quero um nome diferente. Nome nome, sabe? De descoisa desinventada, destrambelhada... Nome de cachorro quando sonha, morcego transavesso, anjos lesmoniados... NETA Eu não entendo nada do que a senhora fala. VOVÓ Entende sim. Entende tudo. Me chame de... NETA Cascata?

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VOVÓ Gostei, mas prefiro Cachoeira! Eu choro muito. NETA Tá. Então... Amarela! VOVÓ Vovó Amarela. Acho que daria um bom nome de livro,

mas minha cor preferida é violeta! Outro. NETA Cambalhota! VOVÓ Ahá! Gostei também, mas minhas costas não! Outro. NETA Sonambuleira. VOVÓ Vou te roubar o cobertor essa noite. Outro, Faustana! NETA Margarida. VOVÓ Outro. Silibassabila! NETA Abracadabreira. VOVÓ Outro. NETA Almofapena. VOVÓ Outro.

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NETA Saboneteira. Desastradazeira. Espinharroseira.

Peixe de Boca Cheia. Vagalumeincendia. Cabeçateieira. Olavaqueima. Felpofilva. Travesseira. Páginasemletra... VOVÓ Tá bom... Ufa! Tá bom... Pronto. Já tenho nome para

mais duas vidas inteiras. Agora trate de se lembrar de todos eles. NETA Ah... Já esqueci. VOVÓ Não tem problema. Na semana que vem você

inventa outros. NETA Invento. Acho. Vovó, você não se cansa de ler? VOVÓ Não. E você também não vai se cansar quando

aprender.

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[Senhor Dirceu] NETO Vovó era como a avó de todo mundo, com a diferença

de que essa era a minha avó! Ela era mais velha, mas não muito velha. Eu não sei o quanto velho é uma medida. Ela tinha os cabelos brancos com um restinho de cinza, como se alguém tivesse esquecido de retocar. E lia. Ah, como ela lia. É, vovó lia o tempo inteiro. Saía sempre com um livro debaixo do braço e mais dois na bolsa. A biblioteca era sua segunda casa, e com quem podia vovó conversava. VOVÓ Bom dia, senhor Dirceu! SR. DIRCEU Dia... O que está lendo hoje, Elvira? VOVÓ Um dos bons! SR. DIRCEU Você sempre diz isso de todos os livros... VOVÓ Porque eles são assim! SR. DIRCEU Todos? VOVÓ Todos os que li. Muitas histórias...

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SR. DIRCEU Nenhuma repetida? VOVÓ Olha, quase todas! SR. DIRCEU E ainda assim são todas boas? VOVÓ Como a vida de toda gente. SR. DIRCEU A vida de toda a gente não é boa, Elvira. VOVÓ Suas histórias são, ainda que sejam tristes. SR. DIRCEU Como pode uma história triste ser boa? VOVÓ Pois pode muito bem. Deixa eu te contar uma que

li na semana passada... SR. DIRCEU Qual o nome do livro? VOVÓ Já me esqueci do nome, mas não me esqueci da

história. SR. DIRCEU Diz lá. VOVÓ Nas primeiras páginas...

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CarLos CanHameiro Olá, eu sou artista de teatro, escritor, pai do Lucas e da Nina e estou sempre à procura de lugares diferentes para criar. No teatro, faço parte da Cia. LCT, que tem mais de quinze anos, e da Cia. De Feitos, que em dez anos criou quatro peças infantis — das quais eu gosto muito! Já publiquei sete peças de teatro e dois livros de poesia. A ideia da Vovó Surrealista surgiu durante os ensaios da peça Achados & perdidos. Enquanto eu pensava nela, acabei perdendo o ensaio, mas achando meu primeiro livro para crianças! Ah, e o terceiro livro que faço junto com a Cacá, ilustradora e amiga do coração. E já começo a pensar para onde o meu Era uma vez vai me levar na próxima criação!

Cacá MeireLLes Já eu sou artista visual, fotógrafa, ilustradora, mãe do Joaquim e do Tomé e buscadora dos mundos de fora e de dentro da gente: dessas paisagens. Gosto de percorrer as estradas de sons, de sonhos, de olhos fechados e abertos, e sentir as imagens que surgem dessas caminhadas pela imaginação. Aliás, o que será mesmo a imaginação? Fica aqui essa pergunta-abertura para vocês. Este é o terceiro livro que ilustro para esse amigo tão querido, o Carlos. Quando recebi o texto, estava na frente do mar e li e reli de cabo a rabo. Me emocionou tanto que não sabia mais se no meu rosto escorria água salgada de lágrimas ou do mar. E com essa emoção criei os traços da Vovó Surrealista.


Copyright © 2021 by Carlos Canhameiro Edição João Correia Filho Preparação e revisão Fabiana Biscaro Capa e projeto gráfico Luciana Facchini Ilustrações Cacá Meirelles 1ª edição 2021

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Canhameiro, Carlos Vovó Surrealista / Carlos Canhameiro; ilustrações de Cacá Meirelles. Bauru, SP: Mireveja, 2021. 64 p.; 11 ils. ISBN 978-65-86638-15-8 1. Literatura infantojuvenil I. Título II. Meirelles, Cacá CDD 028.5 21-2474 Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura infantojuvenil

Todos os direitos desta edição reservados a Editora Mireveja Ltda. Rua Maria Cecília de Oliveira Maciel, 1-13 Jd. Colonial — Bauru-SP — CEP 17047-625 Fone: (14) 99148 0190 www.editoramireveja.com



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