Cidade das estátuas - Márcio Blanco Cava

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CIDADE DAS ESTÁTUAS



CIDADE DAS ESTÁTUAS

MÁRCIO BLANCO CAVA 1ª EDIÇÃO 2022



Para Cristina Camargo Luiz Vitor Martinello



O medo de saber nos condena à ignorância; o medo de fazer nos condena à impotência. Eduardo Galeano, O livro dos abraços



Nossa perseverante cidadezinha já investiu suas fichas em bustos e estátuas. São heróis desbravadores, primeiro prefeito, primeiro padre, fundador do ginásio, dona da antiga casa de prostituição, inventores malsucedidos, políticos mercenários, madames escravagistas. Há ainda muitos outros, contando personalidades de nosso país, incluídas as mais desprezíveis, e até mesmo internacionais, que a maioria dos conterrâneos ignorantes mal conhece. Cachorros são homenageados com a honraria, uma gata também. Toda essa variedade de espécimes esculpidos em mármore, granito, pedra-sabão ou pedra calcária dão as caras em praças cafonas e abandonadas, largos sujos que fedem a urina, pátios de escolas envelhecidas e malcuidadas, muros de casas históricas de cuja história ninguém quer saber, fachadas sombrias de edifícios públicos corruptos, dentro de bares como apoio para copos e cotovelos e onde quer que você olhe num instante de distração. Talvez esse tenha sido um dos principais motivos de tantos pombos migrarem para nossos telhados. O que não falta por aqui é um lugar para que caguem à vontade. Faz algum tempo o prefeito se lembrou de tentar uma vaga no Guinness, mas a 9


maioria das obras já estava tão suja de merda que ele desistiu diante do alto investimento calculado para providenciar a limpeza e torná-las decentes aos olhos assépticos do mundo. Ele contentou-se então com o incentivo público a um documentário produzido por um grupo de jovens estudantes de cinema vindos da capital. Azar, tudo acabou num grande fiasco. Os meninos acharam melhor mostrar como as pessoas estavam ficando loucas em sua convivência com as estátuas. Os filhos da puta arrancaram de uma velhinha a história de um grande amor vivido por ela com um dos bustos. Perguntaram como se podia amar apenas um tronco dotado de uma cabeça. Rindo até mijar-se toda, devolveu-lhes uma charada: eles mesmos, na pergunta, haviam dado a resposta. E riu-se mais, mijou-se mais. Em todo caso não foram testemunhos como o da velhinha ou o fato de haver tantos bustos e estátuas espalhados por todos os cantos, nem mesmo os episódios insólitos envolvendo os pombos e tampouco os crimes que procuraram esconder por medo e covardia. Não foi nada disso que tornou famosa nossa promissora cidadezinha. Foi no fim das contas Ambrosiano Maria Maria quem nos marcou no mapa, embora de modo surreal e, para alguns, também assustador. Nascido e crescido na casa contígua à livraria e papelaria do pai, assumida por ele a certa altura dos acontecimentos, ali morou até o fim de seus dias; e aqui está, no fim de seus dias, a engenhosidade dificilmente explicável e, daí, pouco crível que nos levou ao polêmico registro de um incidente cuja comprovação por si só ainda não foi capaz de torná-lo fato. Por ironia do destino nem o próprio Ambrosiano Maria Maria deu-se conta de seu protagonismo. Pois, talvez a contragosto, viveu seu grande amor às escuras, por assim dizer. Sua vida no geral transcorreu de modo semelhante. Se pudéssemos 10


assisti-la num filme, a imagem seria quase sempre sombria, e o protagonista, esquivo, alienado quanto à grande gestação da qual teria sido o próprio embrião. Preste atenção no que alguém disse uma vez: tudo na vida tem um fim, embora nem sempre se saiba como tenha começado. A vida nunca é um livro com índice.

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De modo que. Enternecido pela ocasião, não havia fisgado a coisa logo de cara. A parteira, chamada no meio da noite, decidira tomá-lo por ajudante; conforme o trabalho avançava, via-se surpreendida com o homem que, mesmo despreparado para tal circunstância, mostrava-se aplicado e obediente, facilitando as coisas para o nascimento do filho. Ele sorri ao ver o pedaço de carne dependurado de cabeça para baixo nas mãos da parteira, um franguinho no varal. Entre comovido e aflito — vai bem ele? ouve que o próprio bebê responde a seus temores naturais com um chorinho fino, que logo se agiganta e faz acender-se uma luz na pensão ao lado. Faz calor e tinham deixado a janela aberta numa pequena fresta por onde penetram cheiros de hortelã e manjericão — vai bem ele? e o bebê nos braços da mãe deixara de chorar e solta então não mais que um grunhido, mas suficiente para que o livreiro lute com uma lágrima, que procura esconder com as costas da mão ao encontrar o olhar da parteira. É quando percebe. Ou talvez julgue, Deus lá sabe como, haver em sua expressão uma ponta de deboche dirigido a ele, ao pai. Ou seria um tipo de afeição? Afinal ele também 13


é responsável pela ocorrência de mais um milagre, como se tornou hábito dizer. Acostumada a momentos como esse, a parteira ainda ficaria sensibilizada? Não, besteira! Essa gente tem afeição apenas pelo dinheiro — ele conclui num instante de exasperação, procurando ao mesmo tempo se convencer de uma bobagem de sua parte — vai bem ele? e desvia-se para aproximar-se da cria. Ambrosiano — daremos a ele o nome do avô parece mesmo que já dorme seu primeiro sono aninhado ao peito da mãe, e no olhar da mãe o pai também deduz alcançar um semblante estranhamente submisso, ainda mais acentuado do que lhe era natural. Quase — seria exagero? — a pedir-lhe perdão. Está para sentar-se na beirada da cama quando essa impressão o atinge em cheio. Talvez venha duplicada por somá-la à sensação de poucos instantes atrás ao sentir-se incomodado pelo olhar da parteira. Suspende, portanto, o movimento e mantém-se em pé. Aspira os aromas da hortelã e do manjericão enquanto observa o menino guinchando como um mísero ratinho pelado, e este é o átimo que guardará até o dia da morte. Ali Fernando Lobo Maria compreende com grande estrondo nos ouvidos — como foi sair-me um preto? os olhares da parteira e da mulher. É a primeira coisa que lhe vem à mente tão logo o som do silêncio vai deixando-o aos poucos, feito o eco de uma ideia implantada por alguém disposto a desmoralizá-lo. Nunca mais pôde com os cheiros da hortelã e do manjericão, embora mantivesse as plantas bem cuidadas até o fim para lembrar-lhe — como foi sair-me um preto?

Ambrosiano Maria Maria tem entre trinta e quarenta anos quando Lúcia aparece. É um sábado de junho, a tarde 14


avança gelada. O vento áspero sopra no centro de nossa plácida cidadezinha, assobia nas frinchas dos telhados altos das casas comerciais, corre pelas portas e paredes e ao ganhar velocidade é como se chorasse sobre as pedras desgastadas da rua principal. Só vagueiam ali os fantasmas vagabundos de nossos antepassados. Eles maldizem os redemoinhos que lhes metem nas fuças esquecidas o cheiro ácido da merda seca dos pombos, os pelos soltos dos vira-latas, as gotinhas de cuspe atiradas de cima das telhas musguentas pelos nossos gatos ciganos. Ouvem a zombaria surda dos antepassados dos antepassados, que por sua vez acham graça em todas as desgraças futuras de sua própria gente, viva ou morta. Só há alguns bares abertos, homens escondem-se do tempo frio. No Amado um deles com o copo de cerveja à mão está dizendo — o Médici tem que descer a borracha para não dar chance aos comunas e o copo esvazia-se enquanto as portas enroladas até o teto são assim mesmo sacudidas por rajadas de vento, o rádio a anunciar — tudo vai bem entre uma música e outra. Apressados para deixar a rua, entram dois rapazes e uma garota. Atrás de suas bebidas os clientes procuram refrear a curiosidade. Lá fora cessam os redemoinhos, calam-se os fantasmas. De uma das mesas encostadas à parede, um copinho de conhaque à mão e protegido pela obscuridade de uma lâmpada queimada, Ambrosiano Maria Maria pode observá-los sem receio de parecer inconveniente, e alguém a cochichar-lhe — são daqui? vendo-os por trás, sentados nos banquinhos altos, e podendo perfeitamente tomá-los por três homens. Ao menos é o que pensa Ambrosiano Maria Maria e talvez também os 15


espectros. A essa altura nossos bufões velhacos acomodaram-se nos espaços do balcão, nas prateleiras com garrafas e teias de aranha, de cócoras sobre as mesas, silenciados enquanto pensam bebericar de copos alheios. A garota sentada entre os dois rapazes, o cabelo bem curto assim como eles, uma voz de menino — cerveja, por favor assim como eles, uma magreza estúpida, mas erótica. Vestem roupas semelhantes, calças em tom verde-escuro enfiadas na bunda, camisetas e jaquetas apertadas, botas de cano longo. Encaixam as mochilas entre os pés, pedem sanduíches. Comem em silêncio no balcão, depois fumam e apagam as guimbas nos próprios pratos. A Velha Guapa enfia-se no meio deles contrariada — com sua licença, senhor a retirar a louça. É sogra de Pablo Cardenal, o dono do bar, mãe de Clarice A Que Desapareceu. Encarquilhada, curtida pelo sol, de vez em quando é confundida com a Lola, que é grande feito um búfalo e não precisa empinar-se nas mesas para receber agrado dos fregueses. Ao contrário, a Velha Guapa é pequena como um camundongo e se pudesse cuspiria na cara de todos eles. A cadela nessa época costuma buscar no guarda-roupa, sem que a Velha Guapa perceba, uma de suas blusas encardidas. Mete-se dentro para proteger-se do frio. Na penumbra, meio bêbados, já houve clientes que enxotaram a Lola pensando que fosse a Guapa, e outros agradaram a Guapa imaginando ser a Lola. Um dos rapazes pergunta ao dono do Amado onde podem encontrar um hotel, mas Ambrosiano Maria Maria, embora sem se dar conta inteiramente, já está tomado por aquele estado que determinará o resto de sua vida. Parece que estava escrito. Havia almoçado ali mesmo, onde aos sábados lhe serviam costeletas de porco preparadas no 16


forno a lenha. Então se deixou ficar, sem coragem de enfrentar o frio, degustando em goles curtinhos o conhaque espanhol que uns parentes arranjavam para Pablo Cardenal a preços camaradas. Quando os forasteiros entraram, Ambrosiano Maria Maria apenas viu a garota de relance e não se conteve. Fingiu ter ido ao banheiro só para observá-la de frente ao voltar. Ela olhou-o ele não sabe com que olhos de uma generosidade negligente, em seguida abaixou a cabeça, ele certo de que havia em seus lábios delgados um sorriso escondido. Foi sentar-se, a Velha Guapa acabava de servir outra dose, virou-a inteira, uma quentura expandindo-se no peito, o desejo de levantar-se novamente. E assim o fez, detendo-se dessa vez no balcão onde podia vê-la de perto. Sem perceber, afagou o lenço da Velha Guapa achando ser a orelha da Lola, pediu um maço de cigarros. Atrapalhou-se ao tentar enfiá-lo no mesmo bolso do casaco onde já tinha outro. Ela percebeu enquanto bebia sua cerveja, de novo fixou nele seu olhar, agora sem esconder o sorriso. Ele também quis sorrir, não pôde. Voltou desajeitado ao seu lugar. De lá não conseguiu mais desviar-se dela, embora pudesse vê-la somente pelas costas. Não sabia o que era, o que o obrigava a sentir-se assim, atraído, como se diante de si houvesse qualquer coisa que nunca tivesse visto, conhecido. Agora, surgindo-lhe a oportunidade, não titubeia. Dispõe-se a acompanhá-los; naquela época a única pensão de nossa progressista cidadezinha ficava por coincidência ao lado de sua casa.

Saem à rua, Ambrosiano Maria Maria sente a língua adiantar-se ao próprio cérebro — vieram de longe? 17


e tenta disfarçar o interesse que o faz esquecer-se do frio. Vai sufocando o ânimo que lhe incandesce o peito. Não pode observar a garota, ela caminha exatamente atrás dele. Dois ou três pombos sobrevoam o grupo, ele dispensa-lhes um olhar de receio pois sabe do que são capazes. Por sorte o sol despenca feito uma bola de fogo, apagando-se atrás da serra. E quando escurece os pombos têm medo. A mancha compacta dos fantasmas inúteis por sua vez produz uma vozearia intangível. A eles não importa se dia ou noite, vivem um transcorrer ininterrupto do tempo. Sem remédio os sons confundem-se com o sopro do vento, e a garota responde vagamente — estamos conhecendo a região à medida que olha em redor buscando decifrar a origem do rumor. Mas a única coisa que identifica lá atrás, observando-os desde a porta do Amado, é a Lola com as orelhas em pé e um susto nos olhos, que também podem ser os da Velha Guapa. Ambrosiano Maria Maria ergue a gola do casaco, recebendo no rosto a poeira que o vento traz das travessas de terra junto com as risadas que rodopiam sobre os paralelepípedos e sobem numa espiral enlouquecida entre as massas de nuvens. Pensa em perguntar o que vieram fazer, até quando ficarão, de onde são. Não faz uma coisa nem outra em seu estado momentaneamente caótico. Em não mais que cinco minutos passam diante das estátuas do primeiro juiz de direito, que aliás não era juiz de direito coisíssima nenhuma, mas só um pau-mandado dos barões do café, e do único habitante de nossa gloriosa cidadezinha a participar da Segunda Guerra Mundial. Testemunham também, num busto irremediavelmente manchado pelos dejetos dos pombos, a figura altiva de nossa famosa costureira que pregou um botão no paletó de Getúlio Vargas. Durante a campanha presidencial um pombo que ninguém soube de 18


onde veio emporcalhou de tal modo um dos botões da roupa do caudilho que a melhor solução foi trocá-lo, não sem que nossos bem-humorados conterrâneos cochichassem — foderam o botãozinho do Getúlio entre si, entre risos. Coincidência ou não, bem ao lado, um pombo farta-se de cagar sobre a cabeça do próprio busto do político. Arrulha acintosamente, mostra-se aos forasteiros em plena atividade. Ambrosiano Maria Maria tenta desculpar-se — o caminhão-pipa passa uma vez por semana para a lavagem em meio a uma nova saraivada de gargalhadas invisíveis — foderam o botãozinho do Getúlio que logo se perde em jardinzinhos ferrugentos e alpendres vazios. Chegam então a uma curta escada de acesso à pensão. O prédio térreo, pintado de azul e branco, guarda sobre a porta de entrada o busto de Jânio Quadros, que, inclinado feito uma gárgula louca, dá a impressão de que cairá a qualquer instante. De dentro o som do rádio, e alguém a anunciar — tudo vai bem enquanto ele estica a mão — meu nome é Ambrosiano curvando-se em leve reverência, primeiro para a garota — se precisarem de alguma coisa e ela — Lúcia antes de agradecer — é um prazer a Ambrosiano Maria Maria, que sorri ao mostrar o portãozinho de ferro entre dois pequenos pilares de alvenaria — eu moro aqui arrependendo-se imediatamente por ter exposto seu estado de ânimo. “Eu moro aqui.” Gostaria de apagar a frase. Uma 19


criança boba revelando qualquer novidade infantil. Espera que os forasteiros entrem, só então dá meia dúzia de passos até o portãozinho de ferro, o gelo do trinco queimando-lhe a mão. Antes de abrir a porta de casa, ainda se planta na varanda da frente, a pele arrepiada não só pelo frio. Olha para um ponto qualquer da parede da pensão. Procura adiar ao máximo a mudança de ambiente, a troca da atmosfera nova que acaba de respirar pelo ar viciado da solidão que habita sua casa, que paira sobre a mesa, que infesta a cama. Tenta imaginar em que quarto Lúcia passará a noite. Então lhe vem à mente com certa angústia que não sabe por quanto tempo Lúcia permanecerá ali. Pensa com franco desespero que talvez durma com um dos rapazes. Ou com os dois. A cabeça começa a doer-lhe. Ouve o zumbido de distantes gargalhadas. Com raiva e impaciência destranca a porta e entra. Ambrosiano Maria Maria não está acostumado a ver-se enredado assim. Goza sua liberdade. Junta-se a mulheres da vida quando tem vontade. Entrega-se a encontros furtivos na própria livraria, onde já traçou as seguintes senhoras bem casadas de nossa recatada cidadezinha. E também leva para casa garotas ainda jovens e já cansadas dos rapazes fúteis, a cabeça a martelar — sou livre enquanto vai à cozinha, o manjericão e a hortelã fazendo-se sentir desde os fundos, toma um gole de café requentado, força-se a repetir — sou livre as coisas continuam como antes, os encontros com as putas em qualquer lugar, as rapidinhas na loja, as garotas sonhadoras que acabam na sua cama. Ri alto para ouvir o próprio riso. Interrompe-se bruscamente. Teria por acaso percebido um tom estranho? Uma pequena fratura nervosa? Pensa em ir ao clube tomar um gim-tônica, mas não se lembra 20


de alguma vez ter ido ao clube tomar um gim-tônica. Traça planos mirabolantes para esta mesma noite, para o domingo também, está ansioso para convencer-se de que — sou livre nada mudou, mas é mentira. Só o que faz é deitar-se no sofá da sala. Vira-se para um lado e para o outro, cego. Seus olhos foram espiar a silhueta da pensão.

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— Talvez você não queira levar isso adiante — disse-me Lúcia. — Eu posso não ser exatamente quem você espera que eu seja. De modo impetuoso, pois eu estava arrebatado pelo que tinha acabado de acontecer, respondi que na verdade ninguém pode ser exatamente o que nós esperamos. Alguma coisa, grande ou pequena, em algum momento não se encaixará na ilusão de nossas expectativas. Ela se levantou da relva sem dizer nada, ajustou a calça apertada na cintura estreita, cruzou os braços e ficou admirando a serra de costas para mim, os pés bem abertos. Ainda deitado, apoiei o peso do corpo no cotovelo, mordi o polegar para assegurar-me acordado. Pelo meio das pernas de Lúcia dava para ver a planície do cerrado lá embaixo, uma lâmina de orvalho ao primeiro sol, e mais adiante o lago refletindo o céu azul enfeitado por sobrevoos de garças branquíssimas. — Você percebeu que já me contou sua vida toda? — ela disse, girando o corpo sobre uma perna só, as mãos agarrando o próprio ombro, os lábios estirados como se freasse o desejo de sorrir, os olhos verdes e apertados fitando-me com certo deboche. 23


Era uma desconcertante verdade. Eu já tinha mais de trinta anos. Dizer-me perto dos quarenta seria mais adequado, mas fiquei com vergonha. Tinha perdido meu pai fazia quase duas décadas, minha mãe morrera eu ainda menino. Fora uns tios e primos cuja localização já me fugia, minha vida resumia-se apenas a mim, isto é, ao trabalho na livraria herdada da família e às viagens por meio dos livros. Isso para resumir a história. Mesmo assim eu me defendi. Disse que ela exagerava, que não era bem assim. Que eu só havia tentado ser atencioso. — E o que eu te contei? — ela disse ao deitar-se comigo de novo, também se apoiou no cotovelo, ficamos um de frente para o outro. Nada. Lúcia só tinha me ouvido. Eu um perfeito imbecil. De novo tive a sensação de que meus longos anos não haviam servido para tornar-me um homem maduro. Que ao primeiro confronto adulto eu entreguei os pontos cedo demais. — Eu não vou contar nada — Lúcia usou um tom carinhoso, angustiado. Sentou com os braços em torno dos joelhos, puxou a bolsa e de lá tirou os óculos escuros. O sol começava a erguer-se do outro lado do vale por trás da serra, uns pássaros entusiasmados saudavam o dia com tamanha eloquência que às vezes precisávamos de um intervalo antes de concluir pensamentos. — Nunca — continuou, com um sorriso que parecia de brincadeira, mas, por trás das linhas faciais que de repente me soaram duras, vi que não era. — Não ligo — eu disse. Eu estava absorto por tudo que vinha de Lúcia, sua voz rouca, o cheiro ácido de suor amenizado pelo desodorante, as palavras econômicas, o olhar difuso. Tanto fazia se santa ou puta. Para mim Lúcia já se encontrava isenta de qualquer juízo; era um daqueles bustos sagrados de nossa cidadezinha 24


que nos acostumamos a respeitar sem questionamentos. Eu tinha sido abatido por ela. Uma garota de vinte e poucos anos que busquei na pensão, uma mistura de ânsia e cólera no peito. Que aceitou sair com alguém que só tinha visto por dez ou quinze minutos numa cidade desconhecida. — Você veio e é só o que importa — eu disse a ela, e essa me parecia ser a verdade absoluta à qual eu me aferrava com obstinação. Diante dessa atitude, portanto, que direito tinha eu de alterar as regras do jogo? Se Lúcia antes de sair cercou-se de cuidados para o bom andamento de nossa relação? — É a primeira viagem que farei desde que… — ela me diria no dia em que viajou. Até mesmo essa circunstância ela havia previsto naquele nosso primeiro encontro, ainda abraçada às pernas, os óculos escuros contracenando com a escalada do sol bem diante de onde estávamos sentados, rodeados por pequis, barbatimão, faveiros. — Vou viajar em algumas ocasiões — ela falou, encarando-me. Perguntei, já me arrependendo após um segundo, se um dia essa norma poderia ser quebrada. Lúcia percebeu meu passo em falso, sorriu daquele modo secreto. — Um dia — voltou a olhar-me, medindo minha reação —, quem sabe. Revirou o fundo da bolsa, tirou um cigarro e o isqueiro, acendeu e tragou, a fumaça confundiu-se com o vapor do frio que fazia de sua boca uma lareira na serra.

Esta é apenas a primeira vez, talvez a primeira de muitas. Fiz um juramento e devo cumpri-lo, devo recorrer à consciência 25


de que aceitei ser refém. Nada me foi imposto por Lúcia. Aliás nem mesmo por mim. — Aceito você daqui em diante — eu disse a ela, talvez com receio de meus próprios escrúpulos, para não me dar tempo de acessar os princípios básicos de um homem típico de nossa cidadezinha, onde é preciso estar seguro do terreno que se vai pisar, se possível sem se comprometer com nada estranho à sua rota. Eu, no entanto, contrariei esse mandamento não escrito, atalhei, facilitei as coisas para a garota. Porque assim julguei ser melhor para mim, um sujeito maduro, geralmente distante de relações duradouras, que viu em Lúcia o facho de luz sem o qual ninguém deve passar nesta vida. A última relação sexual com uma mulher havia sido nos fundos da escola primária, no fim da quermesse beneficente para a construção da estátua do Médici. Paguei o que daria para comprar três bons livros, embora ela deva ter gastado em algum brinco ou numa daquelas calças boca de sino. Não era de todo má, é verdade. Mas que vida é essa? Trepar como um cão atrás do busto do Pelé! Lambuzando os dedos na merda fresca dos pombos acumulada nas bordas do mármore; arriscando-me a ser flagrado por gente cuja retaliação seria buscar os livros dos filhos na cidade mais próxima, reduzindo assim a receita remediável da loja; sujeitando-me a todos aqueles comentários que em nossa cidadezinha levam muitas vezes anos para arrefecer e que, antes disso, podem desgraçadamente decretar sua derrocada. Mais do que isso, é curioso pensar que de repente toda essa falsa moral foi suplantada exatamente por um sentimento maior, mais nobre, e exatamente por isso todos os riscos com as prostitutas que enfeitaram meus dias (obrigado, meus amores!) tornam-se agora bobagens cômicas, pois sou outro homem, refém de Lúcia, refém de uma ideia que se alimenta por si, sem a intercessão de gente ou estátuas. 26


Pois bem. Vamos aos fatos. Lúcia deixou nossa cidadezinha faz cinco dias. Tomou o trem às seis e cinquenta da manhã. Da nossa casa à estação não são mais do que quatro estátuas e dois bustos. A bagagem apenas a mochila, aquela mesma de quatro meses atrás, quando chegou com os rapazes. — Meus irmãos — ela resumiu, pensativa, na única ocasião em que fiz alusão aos dois. Nada a esconder de ninguém. — Minha mulher viajou — eu disse a duas ou três pessoas que perguntaram, como sempre perguntam por aqui, com segundas, terceiras e quartas intenções. Quiseram saber se foi visitar a família. Ou se foi a trabalho. O que ela faz, mesmo? — Saudades da mãe — inventei, surpreendendo-me com a naturalidade das palavras a saírem-me, como se eu conhecesse a mãe de Lúcia, como se conhecesse o nome de minha sogrinha — aqui não pude evitar o riso —, como se criasse mentiras desde que nasci. Era como se aquelas pessoas cheias de perguntas e segundas, terceiras e quartas intenções já não significassem mais nada; como se ao responder com bom humor às intromissões até então desconfortáveis eu estivesse me dirigindo a um dos vira-latas que vivem mijando no pé das nossas estátuas e, apanhados em flagrante delito, chispam de costas para esconder que estão (eles conseguem!) a rir na cara de todos. Passei o primeiro dia na ausência de Lúcia sem maiores percalços. Houve um bom movimento na livraria. Atendendo às cartas que enviei, parece que muitos clientes planejam livros de presente neste Natal. As encomendas são animadoras para este lugar árido de literatura. Poucos leem. Preferem gastar em “coisas úteis”. Já ouvi considerações assim até dentro da minha loja. O que nos sustenta é a papelaria, é verdade, mas sem a livraria seríamos apenas comerciantes. Essa análise era de meu pai. À noite, após o jantar, pus-me a pensar em Lúcia 27


enquanto fumava e ouvia um disco qualquer. Fiz uma infinidade de planos para agradá-la. Incluí todas as possibilidades de presentes para o fim de ano. Decidi comprar um televisor. Tomado pela ansiedade, pensei até mesmo em antecipar as coisas. Imaginei Lúcia retornando para casa e tendo já em nossa sala o aparelho instalado. Mas naquela mesma noite procurei fazer com que a razão vencesse o entusiasmo. Talvez fosse melhor ir com calma. Tudo a seu tempo. Acabamos de nos casar, ainda temos prataria e talheres fechados nas caixas (que os nossos convidados não descubram por nada, pois são capazes de nos amaldiçoar por tamanha desfeita!) e qualquer novo presente seria apenas mais um, por assim dizer. Assim adormeci. Na manhã seguinte comprei a televisão. Mesmo com a instalação providenciada, resolvi evitar assistir a um programa sequer. Meus prazeres deixaram de ser individuais. Cobri o aparelho com um lençol. O Velho Borges, dono da pensão, acompanhou com interesse a novidade e já me perguntou duas vezes se estou gostando. Procurei esconder a irritação, desconversei com a justificativa de não ter tido tempo em razão de trabalho. Ele sorriu com aquele semblante sinuoso que bem conhecemos em nossa cidadezinha, sempre propenso a construir suas histórias mirabolantes para atender aos próprios interesses. A segunda noite correu rapidamente, eu pensava se ligaria ou não a tevê. Se ligasse, seria uma traição. O pensamento absurdo assustou-me. Também passei o tempo lendo o manual de instruções e considerando a distância ideal entre o sofá e o aparelho. Em seguida fui tomado por uma onda de terror pueril ao dar-me conta de que talvez devesse ter me informado melhor sobre a disponibilidade do equipamento já em cores. Porém me tranquilizei. Eu poderia ver isso depois. 28


Eu ainda darei muitos presentes a Lúcia. Desejo fazê-la feliz em todos os aspectos. Não quero que digam por aí que falta algo a Lúcia. Sei de comentários sobre nossa união. Isso não dura, eles nem se conhecem direito, ele é muito velho para ela, ainda mais sendo…, ninguém sabe de onde ela veio, ela é isso, ela é aquilo. Quero calar a todos. Anteontem, todos os pensamentos já gastos, repetidos à exaustão com as possíveis reações de surpresa de Lúcia, ou seja, sem mais a que me agarrar, comecei a sucumbir. Talvez em vez da televisão um telefone tivesse sido melhor aquisição. Mas ligar para onde afinal? Há um telefone na pensão, mas Lúcia não deu sinal. E, dotado de um comportamento altruísta talvez inconcebível, não pensei em perguntar. No fundo admitia haver um exagero de minha parte. Não tinha sentido alimentar apreensão desse gênero. Mesmo assim, e confesso que sem pensar nas consequências, tomei o caminho da estação. Só ao chegar lá me dei conta do papel ridículo. O trem do fim do dia, o segundo e último de passageiros, chegou e partiu sem que Lúcia tivesse aparecido. Ainda passei em frente à empresa de ônibus, mesmo sabendo que Lúcia não voltaria em um deles. Perdeu a viagem? Essa foi a primeira pergunta em tom suspeito quando eu mal havia deixado para trás a estátua de Esperança do Rosário, a dona da primeira casa de prostituição de nossa cidadezinha, que gastava todo seu lucro em obras assistenciais, incluindo bustos e estátuas. A zombaria continuou com comentários semelhantes. Mais um dia solteiro? Parece preocupado. Quem sabe amanhã, hein? Dessa vez as respostas não me saíram naturalmente. Não foi como chamar pelos vira-latas. Caminhando de volta, eu era o próprio vira-lata. — Eu não vou contar nada — Lúcia dissera por trás de seus óculos escuros e de uma nuvenzinha de fumaça que a embaçava na manhã fria. 29


— Eu não vou contar nada — agora não era Lúcia, simplesmente estava no ar, como um vento zunindo nos meus ouvidos, algo incorpóreo que não consegui captar sob a razão. Sentia-me um vira-lata, mas tentava convencer-me das regras que havíamos estabelecido, deixando subentendidos certos limites de nossa união. O que Lúcia havia sido até então não me importava, eu mesmo dissera. Puta ou santa. Recapitulei nossos diálogos, desde a madrugada em que fui à pensão e pedi para que o Velho Borges a chamasse e, de modo mais acentuado, após fazermos um sexo áspero, inusitado, abruptamente conduzido por Lúcia, imposto por Lúcia daquele modo inesperado, por trás, deitados na grama da serra, o orvalho frio a resfriar nossa febre por cima de roupas tiradas pela metade e debaixo da capa de chuva herdada de meu pai. Eu não estava louco. Eu tinha perfeita consciência da aceitação dessas regras, um cânone pressuposto. Lúcia não precisara pedir-me nada. Todas as alusões feitas por ela a qualquer possível condição para que ficássemos juntos foram absorvidas por mim. — Você veio e é só o que me importa — lembro-me de ter dito essa frase a ela. — Vim porque… — tentei lembrar-me da resposta de Lúcia, e outra vez, do mesmo modo que havia ocorrido naquela madrugada sobre a relva encharcada, um tremor percorreu-me como a eletricidade de um raio que não mata. Nunca amei uma mulher antes de Lúcia. Apenas no sentido carnal. É fácil chegar a essa certeza. Naquela madrugada, quando o Velho Borges foi chamá-la e a vi sair com seu meio sorriso, o olhar de quem não está surpreso, eu já sabia onde ia dar. Que ela me faria de gato e sapato. E eu, como um bichinho indefeso, miaria. Foi acompanhado desse pensamento reconfortador que, na volta da estação, eu contornei o busto de Armstrong e novamente estava pronto para soltar palavras 30


bem-humoradas em resposta a outras bobagens inconvenientes que me dissessem pelo caminho. Mas, como se aquelas pessoas que sempre encontramos nas piores horas pudessem ter acessado minha mente, cheguei em casa sem que mais ninguém me importunasse.

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Copyright ©2022 by Editora Mireveja Direção editorial: Fabiana Biscaro e João Correia Filho Edição: João Correia Filho Capa e projeto gráfico: Cintia Belloc Arte da capa: Wlad Pieroni Preparação e revisão: Fabiana Biscaro Para as falas da personagem indígena, o autor usou o Dicionário Guarani Português, de Luíz Caldas Tibiriçá (1989).

1ª edição 2022

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 _________________________________________________________ Cava, Márcio Blanco Cidade das estátuas / Márcio Blanco Cava. – Bauru, SP: Mireveja, 2022. 288 p. ISBN 978-65-86638-22-6 _________________________________________________________ Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção brasileira

Todos os direitos desta edição reservados a Editora Mireveja Ltda. Rua Maria Cecília de Oliveira Maciel, 1-13 Jd. Colonial – Bauru-SP – CEP 17047-625 Fone: (14) 99148 0190 www.editoramireveja.com


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