Batateogonia e outras histórias - Fábio Dobashi

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1ª edição 2021


Sumário O nariz

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As aventuras de São Bigolin na Terra Pré-plana Batateogonia

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A invasão das bacttrkias fenuczianas Posfácio

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Sonho de uma noite de verão

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O nariz

“Criança feliz perdeu o nariz E foi pro hospital, comendo mingau” Cantiga popular

I Não faz muito tempo que o professor Francisco Cálido, o Chico da Pós, perdeu o próprio nariz. Isso foi num período penumbroso de uns anos atrás, aquele limbo letivo, quando os professores já fizeram praticamente tudo de realmente importante, mas ainda não estão de férias por uma pendência burocrática ou outra. Sentindo-se, portanto, bastante aliviado, mas não completamente livre para que pudesse viajar, o Chico da Pós abriu uma cerveja e começou a ver a série Stranger things. Ele, que não era nem um pouco fã de séries, mesmo porque não tinha tempo para aquele tipo de coisa, logo se viu completamente envolvido com a trama: o desaparecimento de Will Byers, o surgimento da menina misteriosa com poderes paranormais, a trilha sonora de primeira, os diversos elementos que remetiam à sua infância e adolescência nos anos 1980. Enfim, em algumas horas estava fazendo aquilo que tanto criticava, maratonando a primeira temporada de uma assentada só.

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E foi justamente durante um dos últimos episódios dessa temporada, quando a história estava se aproximando do clímax, que um ser – que ele então julgou que fosse uma barata – correu pelo meio do chão da sala e, sentindo-se em perigo, fugiu para baixo de um dos sofás. Ele viu uma mancha indefinida meio que deslizando ligeira e, quase sem desgrudar os olhos da tela, afastou o sofá com a mão direita e, com o chinelo na mão esquerda, deu um golpe certeiro em cima do bicho, que ficou paralisado, estatelado perto do rodapé, grudado ao chão pela própria gosma. Logo após essa rápida peleja, deitou-se novamente no outro sofá e continuou vendo a série. Terminado o seriado, após a derradeira cena e os créditos, só depois de alguns suspiros, desses que nos afastam aos poucos do conflito ficcional e nos fazem tornar à realidade de forma gradativa, pensou novamente no bicho morto e voltou ao local do crime. Qual não foi sua surpresa ao perceber que o inseto havia simplesmente sumido! E, como se fosse pouco, não havia nem uma mínima mancha no chão. Um acontecimento tão sanguinário e recente, mas que não deixava nenhum rastro, uma única evidência de que, de fato, tivesse ocorrido! Como pode?! Então o Chico levantou todos os sofás e outros móveis, vasculhou minimamente cada centímetro quadrado do chão e das paredes, fez uma varredura minuciosa em tudo na sala, atrás de cada quadro, porta-retratos,

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cortina, embaixo dos tapetes; e fez o mesmo nos demais cômodos da casa, um por um, com o máximo de cuidado e atenção. E nem um único sinal do desaparecido! Coisíssima nenhuma! Absolutamente nem um mísero rastro sequer! Ora, diria alguém mais cético, mas isso não quer dizer nada. Tanta coisa muito maior neste mundo simplesmente desaparece! Aviões despencam, navios afundam, milhões e milhões de dólares evaporam subitamente; pessoas, quadrilhas, provas, helicópteros, toneladas de drogas se desmaterializam, sem deixar a menor pista... O que é um reles inseto, diante de tanto mistério neste mundo? Certo, mas vejam! A questão é que o sumiço desse ser não foi um caso isolado. Pois, logo em seguida – e já era de madrugada –, o Chico sentiu uma dor avassaladora bem no meio da face, as luzes da casa toda começaram a piscar, ele olhou para si no espelho do banheiro e deu-se conta de que simplesmente estava sem nariz. Sim, no meio do seu rosto, abaixo dos olhos assustados, no local exato onde deveria estar o nariz, a pele estava lisa como uma bochecha. E só então ele tomou consciência de que estava respirando pela boca havia horas. Subitamente, sua garganta doeu como se ele engolisse uma bola de sinuca em brasa e as luzes imediatamente pararam de piscar. Mas daí quem apagou foi o Chico!

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II

Cara, você tem que vir aqui o mais rápido possível! Você não vai acreditar no que me aconteceu... Estou precisando da sua ajuda! URGENTE!!! Diante da mensagem do Chico, corri o quanto que pude até a casa dele. Mas, chegando lá, toquei o interfone inúmeras vezes, mandei mensagem pelo WhatsApp, liguei para o telefone fixo... E nada! Porra, como que o cara me chama pra vir na casa dele e simplesmente sai? Já estava quase pensando em ir embora, quando a Clarice veio me atender ao portão: – O Chico? Acho que ele está aí, sim. O carro dele, pelo menos, está. Entra! Eles moravam numa espécie de condomínio, desses de classe média-média, que quer ser média-alta, formado por seis casas, separadas entre si, tanto lateralmente quanto de frente, por um espaço pouco maior do que o de um carro. As casas eram dispostas em duas fileiras de três, sendo que a do Chico era a primeira do lado esquerdo de quem entra; e a da Clarice, a última, na mesma fileira. O estranho era ela ter me ouvido interfonar para o Chico e ele não. Assim que entrei, a Clarice pediu licença, pois estava com o fogão ligado, mas disse para eu ficar à vontade e chamá-la caso precisasse. Então, bati insistentemente na porta do meu amigo, mas nada. Dei a volta por trás da casa e, olhando pela primeira janela, parecia que havia algum mo12


vimento lá dentro. Umas luzes coloridas, no corredor, como se alguém estivesse vendo TV em algum lugar da casa, apesar de não se ouvir barulho nenhum de fora. – Chico! Chicooo!! CHIICOOOO!!! – gritei. Esperei alguns instantes e tornei a chamar... – CHIIIICOOOOO!!!! Caralho... Como ninguém respondia, resolvi entrar por aquela janela mesmo, que estava um pouco aberta. Afinal, ele disse que precisava de ajuda e que era urgente. Fui seguindo as luzes coloridas e vi que vinham de outro quarto. Chegando na porta desse quarto, vi uma cena estranhíssima: havia alguém, iluminado apenas por umas cores estroboscópicas que saíam de um monitor. Estava sentado numa cadeira, em frente a uma escrivaninha, diante de um computador. Era um ser muito grande, com as costas largas e a cabeça enorme. O Chico era grande, mas, por mais que fosse cabeçudo, o gigantismo daquela cabeça era exagerado até pra ele! Senti os cabelos arrepiando e o suor gelado correndo pelas têmporas. Meus pés pareciam ter se afundado no chão, de tal forma que se tornava impossível me mover. Fiquei assim paralisado não sei por quanto tempo, perdido em meio a conjecturas das mais diversas espécies – seria um alienígena, um psicopata, um canibal? –, até que lembrei do pedido de ajuda urgente por parte do meu amigo. Era preciso afastar todo tipo de especulação e dar o primeiro passo, nem que fosse pra sair dali correndo e chamar a polícia. 13


Mas subitamente me veio uma coragem não sei de onde e fui me aproximando devagar daquele gigante e ele parecia digitar algo, enquanto balançava o tronco lentamente, em círculos. Aos poucos, percebi que usava um capuz, desses que parecem de esquimó. – Olá! – eu lhe disse, mas não houve reação. Continuei me aproximando lentamente, até que toquei de leve em suas costas, mas ele também não reagiu. Cheguei ainda mais perto e vi que usava óculos e uma espécie de lenço, cobrindo a parte de baixo do rosto. Estava tão próximo dele que podia escutar sua respiração, mas ele parecia simplesmente não notar a minha presença... Com exceção das luzes do computador, o quarto estava escuro, mas era impossível que ele não pudesse me ver também. Quando abri uma das cortinas, para iluminar melhor a cena, ele deu subitamente um salto pra trás, sem se levantar da cadeira, que era daquelas de escritório, com rodinhas. E se esforçou para manter o equilíbrio, enquanto seus óculos caíam e seus olhos se arregalavam. Eu também me assustei, ao mesmo tempo em que bati a canela num dos pés da escrivaninha e acho que nós dois gritamos juntos. Passado o susto inicial, fui reconhecendo aos poucos que o ser era muito familiar... Ele tirou o capuz e, por baixo dele, usava um fone de ouvidos, desses que cobrem as orelhas com duas conchas unidas por uma espécie de arco nada discreto por cima da cabeça. Agora dava pra

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ver que aquela careca parecia muito a do Chico! E as sobrancelhas generosas como as de um lobisomem também pareciam, assim como os óculos, que ele recolocou, com a armação grossa e as lentes mais ainda. Quando me olhou, com aquela expressão de reconhecimento, daí eu não tive dúvidas: era o meu amigo mesmo! Graças a Deus por não ser aquele o dia da minha morte! E cada um, de sua parte, deu alguns suspiros de alívio, até que ele foi o primeiro a falar: – Q ...que b-b-bom-que... que v-v-vo-ooo-ceê vei-o... Ju-júl...io-o-o! E-e-eu... e-e-stou de-de-ses-p-p-pe-ra-a-do, c-c-c-ca-ca-raa!!! – Além de gaguejar, ele respirava com muita dificuldade. E também havia outra coisa estranha na sua voz, mas que eu só identifiquei melhor um pouco depois. – Calma! Calma! O que foi que aconteceu? – Eu próprio tentava me acalmar também. Sem tirar o lenço do rosto, contou-me, com muita dificuldade, o caso do desaparecimento do nariz, coisa que me pareceu uma grande loucura, mas ele falava muito a sério. Ao mesmo tempo, olhando bem para o seu rosto, sempre coberto pelo lenço, parecia mesmo que não havia volume suficiente onde deveria estar o nariz. E a voz, embora fosse a dele – o que dava pra reconhecer, pelo timbre –, estava bastante distorcida e estranhamente abafada, como naquelas gravações em que a pessoa parece estar falando de dentro de um aquário. Na tela do notebook, vi que baixava muito lentamente uns arquivos pelo Utorrent:

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– O m-meu na-na...riz! O m-me-meu na-na...riz! Ele apontava pro computador e estava agoniado. Eu apenas olhava pra ele, sem saber o que dizer. Devo ter sinalizado com as mãos e a expressão do rosto que não estava entendendo nada, até que ele pegou um papel, uma caneta e escreveu:

O MEU NARIZ ESTÁ LÁ! ESTÁ TENTANDO SE COMUNICAR COMIGO. DE ALGUM LUGAR, TALVEZ NA DEEP WEB. ESTOU BAIXANDO ELE PELO UTORRENT. MAS O ARQUIVO ESTÁ DIVIDIDO EM VÁRIAS PARTES E VAI DEMORAR PRA BAIXAR UNS... TRÊS ANOS... QUARENTA E... NOVE SEMANAS... E... SEIS DIAS. Meu Deus do céu! Será que, num surto de loucura – como o do Van Gogh –, o Chico tinha decepado o próprio nariz e imaginado aquela história toda? O ano tinha sido estressante para todos nós, mas fazer isso justamente às vésperas das férias?! Pensei em lhe sugerir um implante. Afinal, se hoje em dia fazem prótese de tudo, por que não fariam de nariz? Talvez até ele pudesse ganhar um nariz mais bonito! Tudo isso eu ia pensando, mas não tinha coragem de falar, enquanto o Chico olhava pra mim, como se esperasse por algum tipo de resposta. Olhei para o meu pobre amigo e lhe dei um abraço forte, até que ele desabou a chorar... Mas eu realmente não sabia o que fazer! Felizmente, naquele impasse, a Clarice

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veio e, assim que soube da história, pediu pra ele tentar se acalmar. Pra respirar fundo e relaxar, que nós estávamos lá para o que desse e viesse. Ele se deitou e começou a respirar fundo, mas sem tirar o lenço do rosto em momento algum. Aos poucos foi se acalmando... Até que conseguiu dizer, quase sem chorar e gaguejar, que estava pensando em mudar seu plano de internet, para acelerar o processo de download do nariz: – Te... te...tem uns pacotes de banda u-uultra-mega-larga, mas... o p-preço é exorbitante – ele ainda arfava um pouco, mas nada que se comparasse com alguns minutos atrás – e só é d-dis...ponível para o exército norte-americano e as empresas de po-p-ponta, co-como a... Ap...ple e a Mimi-crosoft. Ma-mas, quem sabe, com um empréstimo bancário e a aju-juda dos amigos... Eu possa contratar o serviço... P-por um dia qu-que seja, para ba-baixar o arquivo... q-que ocupa alguns terabytes. Como eu não conseguia dizer nada de relevante, apenas olhava pra ele com o máximo de solidariedade e concordava com a cabeça. A Clarice, por sua vez, precisou sair de novo, porque não estava de férias. Mas ficou de voltar assim que possível. Depois de algum tempo, o Chico me falou de coisas mais práticas. Pediu que eu fosse até a secretaria da escola onde trabalhávamos e trouxesse uns papéis que ele precisava assinar. Quis me passar o cartão de banco

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dele, com a senha, para que eu lhe comprasse algumas coisas básicas, mas eu recusei: – Eu pago com o meu cartão e depois a gente acerta. Ele fez uma lista com os itens de que precisava e que consistiam, basicamente, em comida, papel higiênico, material de limpeza e umas pastilhas pra dor de garganta. Eu falei para ele ficar tranquilo e tentar seguir os conselhos da Clarice. Então o Chico foi fazer um chá e, quando saí, estava tomando banho, pra tentar relaxar. Assim que pus os pés pra fora do condomínio, senti uma espécie de alívio por me afastar um pouco daquele clima de pesar e impotência. Precisava pensar num jeito de ajudar o Chico! Mas como lhe dizer que o que ele precisava mesmo era de um psiquiatra? Nos dias que se seguiram, fiz tudo o que estava ao meu alcance, embora tenha sido muito pouco. Escutei todo tipo de loucura: que, uma vez baixado o arquivo de não sei quantos tera, era só imprimir em 3D, com algum material orgânico, como pele de tilápia; que ele vinha recebendo ligações telefônicas do próprio nariz, com DDD das mais diversas regiões do Brasil; que isso tinha acontecido por causa de uns vírus que se instalaram no computador dele, porque o Mark Zuckerberg já o estava espionando fazia um certo tempo e planejando não só a sua desnarigação, mas a de outros professores latino-americanos subversivos. Por isso, eu também tinha que me cuidar! A cada ideia estapafúrdia, tentava fazer um contraponto com algo razoável que me

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passava pela cabeça. Mas o fato é que ele estava transtornado! A Clarice aparecia sempre que podia e propunha que ele fizesse alguns exercícios de relaxamento, trazia uns florais de Bach, aplicava reiki e não sei mais o que – coisas próprias de uma terapeuta holística. Da minha parte, cheguei a lhe dizer o que pensava, da melhor maneira que pude: – Você precisa da ajuda de um médico... Um psiquiatra talvez... – E-ENTÃO VO-VO...CÊ ACHA QUE-QUE... ESTOU LO-LOUCO? NÃ-NÃO ACRE-CRE... DITA QUE-QUE EU EST...TEJA SEM NANA-RIZ?!? QUER QUE-QUE EU LHE MO-MOS... TRE A ABE-BERRAÇÃO PO-POR BAIXO DESSE LE-LENÇO!? QU-QUER VE-VER A ATRA-TRAÇÃO DE CI-CIRCO??! – Me desculpa, cara... Às vezes ele chorava como um bebê ou tinha acessos de raiva, mas nunca deixava de usar aquele lenço. Também cheguei a sugerir que procurasse um bom otorrino ou cirurgião plástico: – Quem sabe eles não fazem uma prótese pra você. Dessa vez, ele pegou um papel e escreveu:

O MEU NARIZ ESTÁ VIVO , CARA! ELE TEM ME ENVIADO MENSAGENS EM CÓDIGO PELO WHATSAPP. EU SEI QUE É ELE! VOCÊ NÃO SABERIA SE FOSSE O SEU?!? E ainda tentou explicar, por escrito, compulsivamente e de forma muito confusa, que

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existiam universos paralelos, pois o tempo e o espaço eram relativos, como Einstein já provara; além do que, havia muito mais espaço vazio e energia do que matéria nos corpos físicos. Mas tem gente que só acredita no que vê! Concordei com tudo aquilo, claro. Quem era eu pra discordar? Resolvidas todas as questões mais práticas, como a papelada que ele ainda precisava assinar, o pagamento de uns boletos e a compra das coisas de que precisaria pelos próximos dias, foi com muito pesar que deixei o Chico aos cuidados da Clarice e tive que viajar pra casa dos meus pais. Já era quase véspera de Natal! III

“Nariz – s. m. 1. Parte saliente do rosto entre a testa e a boca, e que é o órgão do olfato”

Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa

Se eu próprio não lhes contar a minha história, vocês jamais vão entender o que aconteceu. Tentei explicar para o Júlio algumas vezes, mas, quando fiz isso, eu mesmo ainda não tinha compreendido quase nada. E não digo que agora tenha a compreensão plena das coisas, mas, pelo menos, consigo entendê-las de um modo suficientemente claro para fazer este relato.

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E foi um longo processo até aqui... No início, fiquei bastante perturbado! Os meus pensamentos eram bem confusos e a minha energia se dispersava. Mas a Clarice me ajudou muito com as terapias alternativas dela e todo o apoio psicológico e emocional, além do suporte na resolução de questões cotidianas. Aos poucos fui me acalmando e conseguindo focar naquilo que realmente importava. E, quase no fim daquelas férias, entrei com o pedido de licença. Quando fui examinado pelo médico, ele me diagnosticou como se eu estivesse passando por um tipo de distúrbio psicológico causado por esgotamento emocional. O mais estranho foi que ele simplesmente fingiu não perceber a ausência do meu nariz. De qualquer modo, tendo conseguido essa licença, evitei ao máximo sair de casa, pois não me sentia nada à vontade para me expor por aí desnarigado, ainda mais em Campo Grande, onde as pessoas não estão acostumadas. Por coincidência, estava passando por um período de sérios conflitos familiares – uma herança disputada entre meus irmãos – e, sendo assim, um ou outro membro da família que entrava em contato comigo era facilmente mantido à distância pelas minhas respostas evasivas. Felizmente, a Clarice estava ali pra me apoiar! Então pedi a ela que levasse meu computador para a assistência técnica. Mas não havia nenhum tipo de problema grave, além de alguns programas desatualizados e coisas desse tipo. Aliás, pensando bem,

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era pouco provável que o Zuckerberg tivesse raptado o meu nariz, pois eu nem era tão subversivo assim. Descartada essa hipótese, tentei decifrar melhor as estranhas mensagens que vinha recebendo pela internet e pelo Whats. E, depois de muita pesquisa e muitos equívocos, descobri que elas estavam em nahuatl, uma língua proveniente do México e da América Central, falada pelos astecas e toltecas, entre os séculos VII e XVI – sendo que inicialmente eu tinha suspeitado que estivessem em aramaico e, em seguida, em mohegan, idioma álgico-algonquino, dos índios moicanos. Feita essa descoberta, foi só ir jogando as mensagens no Google Tradutor e tudo começou a se esclarecer! Quem estava me enviando as mensagens não era bem o meu nariz, mas uma espécie de duplo meu, chamado chCjo, em outro plano da realidade ou, mais especificamente, no universo paralelo β -olho. Outra pista fundamental para que eu compreendesse o ocorrido foi a leitura do conto “O jardim dos caminhos que se bifurcam”, do Jorge Luis Borges, que me foi recomendada pelo próprio chCjo. A ideia básica do Borges é a da existência de infinitos planos da realidade, que abrangem todas as possibilidades – como naquele conceito do multiverso, ou seja, de um conjunto formado por todos os universos possíveis. No meu caso, resumidamente podemos dizer que, sob a influência de ter maratonado a série Stranger things, por horas seguidas, minha consciência sofreu um bug

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e acabou acessando um plano da realidade em que a espécie humana evoluiu sem o nariz, ou seja, sem a percepção do olfato. O meu nariz, por sua vez, foi subitamente absorvido pelo universo paralelo β -olho, cujo portal, devido a uma combinação astronômica muito específica, estava aberto. Nesse universo, os humanos têm mais de um nariz; e o meu foi parar lá, embaixo do sofá do chCjo, que também estava maratonando uma série. Esse meu duplo, por sua vez, percebendo que aquele nariz tinha vindo de outro universo, procurou entrar em contato comigo para devolvê-lo. E, para isso, usou a internet e a linha telefônica. Mas a comunicação entre os diferentes planos de realidade não é nada fácil... Assim, depois de muitos obstáculos, como interferências cósmico-quânticas, variações astrofísicas e quedas constantes de sinal, consegui compreender o ocorrido e combinamos um meio de ele me devolver o nariz. Em vez de utilizar o Utorrent, como vínhamos tentando antes, ele me enviaria o arquivo inteiro, através de um serviço de correios interplanático virtual – um tipo de Dropbox. Mas isso só seria possível durante a superlua do dia 7 de abril, período em que o portal que liga o nosso universo ao β -olho estaria favoravelmente “arregalado”. No entanto, meu duplo me alertou que, devido à ocorrência de três chuvas de meteoros relativamente próximas na linha temporal – a Quadrântidas, a Líridas e a Eta-Aquáridas –, haveria um certo risco 23


de o portal passar por algumas “piscadas β -óticas”:

Se isso acontecer, o arquivo pode chegar corrompido. E, para que eu o reconfigure e a gente possa tentar um novo envio, vai levar, no mínimo, uma semana no meu universo, o que corresponde a aproximadamente 98 anos do seu... Eu acho que vale a pena corrermos esse risco, porque o Dropbox é muito mais rápido, mas a última palavra é a sua!1 Como eu não soubesse o que responder, ele próprio completou:

Essa é a melhor alternativa que temos. Vou lhe mandar uma oração βπ-ótica muito utilizada nesses casos. Daí você vai rezando durante o envio do arquivo e vai dar tudo certo! Pode ser assim?2 Ao mesmo tempo em que fiquei surpreso ao descobrir que eles também rezavam, isso me transmitiu a sensação de que eram mais próximos de nós. Então, respondi positivamente, pedindo-lhe que me mandasse logo a oração, para que eu a imprimisse e começasse a praticar.

¹ Traduzido do nahuatl pelo Google. ² Idem.

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Esta obra foi composta em fontes Alice e Obviously em papel Pólen Soft para a Mireveja Editora.

Ilustração de capa criada a partir de colagens de imagens de domínio público do site www.publicdomainreview.org




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