"Liev S. Vigotski: escritos sobre arte"

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Liev S. Vigotski: escritos sobre arte


Copyright ©2022 by Editora Mireveja Organização, tradução e notas: Priscila Marques Direção editorial: Fabiana Biscaro e João Correia Filho Edição: João Correia Filho Capa e projeto gráfico: Vitor Borysow Preparação e revisão: Fabiana Biscaro Imagem de capa: Rogério Barbosa 1a edição 2022 Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Liev S. Vigotski : escritos sobre arte / organização, tradução e notas de Priscila Marques. -- Bauru, SP : Mireveja, 2022. 320 p. Bibliografia ISBN 978-65-86638-20-2

1. Arte – Psicologia 2. Psicologia e arte 3. Vigotski, L. S. (Liev Semiónovich), 1896-1934 4. Rússia - Cultura I. Marques, Priscila 22-1089 Índices para catálogo sistemático: 1. Arte - Psicologia

Todos os direitos desta edição reservados a Editora Mireveja Ltda. Rua Maria Cecília de Oliveira Maciel, 1-13 Jd. Colonial – Bauru-SP – CEP 17047-625 Fone: (14) 99148 0190 www.editoramireveja.com

CDD 701.15


Liev S. Vigotski: escritos sobre arte organização, tradução e notas

Priscila Marques

1ª edição 2022


Conselho editorial e científico Prof. Dr. Afonso Mancuso de Mesquita Universidade Estadual de Feira de Santana – BA Prof. Dr. Andréa Maturano Longarezi Universidade Federal de Uberlândia – MG Prof. Dr. Carolina Picchetti Nascimento Universidade Federal Santa Catarina – SC Prof. Dr. Elaine Sampaio Araújo Universidade de São Paulo – SP Prof. Dr. Elizabeth da Penha Cardoso Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – SP Prof. Dr. Fábio Dobashi Furuzato Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul – MS Prof. Dr. Fernando Ramalho Martins Universidade Estadual Paulista – SP Prof. Dr. Flávia da Silva Ferreira Asbahr Universidade Estadual Paulista – SP Prof. Dr. Juarez Tadeu de Paula Xavier Universidade Estadual Paulista – SP Prof. Dr. Wellington Lima Cedro Universidade Federal de Goiás – GO


Sumário

Vigotski pelo prisma da arte Ana Luiza Bustamante Smolka

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Vigotski e a cultura russa na virada do milênio Bruno B. Gomide

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O Vigotski incógnito Priscila Marques

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1. Vigotski e as letras 1.1 Manuscrito não publicado sobre o antissemitismo na obra de Dostoiévski 1.2 Resenhas literárias

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Viatchesláv Ivánov. Sulcos e limites. Experimentos estéticos e críticos

74

Andrei Biéli. Petersburgo. Romance em 8 capítulos

76

M. Iu. Liérmontov (pelos 75 anos da morte) 1841-1916

78

Notas literárias. Petersburgo, romance de Andrei Biéli, 1916

85

D. Merejkóvski. Haverá alegria. Peça em 4 atos

93

I. S. Turguêniev. Pope. Poema. Com prefácio e notas de N. L. Bródski

96

O rei está nu

98

Não Exatamente Uma Resenha. Outubro na poesia

103

Os dezembristas e sua poesia

108

O grande escritor popular – pelo aniversário de Serafimóvitch

109

Sobre Demian Biédni, o mujique mau

113

Dez dias que abalaram o mundo

117


2. Vigotski e os palcos 2.1 Ensaio Teatro e revolução

125

2.2 Resenhas teatrais Notas teatrais (Carta de Moscou)

143

Monna Vanna

157

Turnê da Companhia Solovtsóv

160

Crime e castigo – Outono dourado – Ralé

163

Abertura da temporada

167

Turnê de opereta

169

O inspetor geral – Flávia Tessini – O preço da vida – O cantor do

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próprio sofrimento – O moscardo O tolo – A grosseirona

175

Pantera negra – Almas de lobo

178

Não Exatamente Uma Resenha. Intriga e amor – Falcões e corvos

182

Primeira andorinha. O dibuk na montagem de Rubin

185

Uriel Acosta – A tempestade

188

Fraque bem costurado

192

O filhote de águia – O discípulo do diabo

194

Sem remo e sem vela

198

Na biblioteca da vovozinha

199

O dia mais feliz de sua vida ou ponto de exclamação!

200

Pequenos pedacinhos de teatro

201

Último espetáculo

203

Sobre o autor de Não Exatamente Uma Resenha

205

Teatro judaico. Silva – A mensh zol men zein

205

Teatro judaico. A feiticeira – Dos ferblonzele cheifele

207

Teatro judaico. Bar Kokhba – Der Yeshiva Bokher

210

Sobre o teatro infantil

212

Teatro judaico. Homenagem a S. I. Eidelman

214

Notas sobre o teatro judaico

217


Tocha Vermelha

219

Turnê da Companhia Tocha Vermelha. O grilo da lareira – O cachorro

222

no feno – Oceano – Vitória da morte Conversa com o diretor da Companhia Tocha Vermelha

227

Turnê da Companhia Tocha Vermelha. Anel verde – Juventude –

231

Monna Vanna Turnê da Companhia Tocha Vermelha. O bobo no trono – Jogo de

237

interesses Turnê da Companhia Espelho Curvo

241

Turnê do Teatro Acadêmico

245

Turnê do Teatro Acadêmico

251

De Segunda a Segunda. Turnê do Teatro Acadêmico

255

No intervalo entre as turnês

256

Turnê do Segundo Estúdio do TAM

260

Turnê do Segundo Estúdio do TAM

264

2.3. Resenhas de dança

3.

Turnê de E. V. Guéltser

272

De Segunda a Segunda. Turnês de Utiôssov e Foregger

276

Turnês de Utiôssov e Foregger

279

Balé de Kharkiv

282

Vigotski e as artes plásticas A arte gráfica de Bykhóvski

4.

287

Psicologia da arte A psicologia contemporânea e a arte

301

A psicologia contemporânea e a arte [continuação]

308

Apêndice

315



Vigotski pelo prisma da arte Ana Luiza Bustamante Smolka

Os escritos inéditos de L. S. Vigotski reunidos no presente volume nos levam a colocar em perspectiva o laborioso esforço coletivo que se realiza no tempo histórico e que viabiliza, na busca de conhecimento da vida e obra de um determinado autor, novos encontros e interlocuções. É nesse movimento que se insere o trabalho investigativo de Priscila Marques, tradutora e organizadora desta coletânea. A exemplo de como esse conhecimento se constrói historicamente, podemos pontuar, no movimento de divulgação das ideias de Vigotski, uma primeira tentativa de contextualização e compreensão abrangente de sua vida e obra em Vygotsky, uma síntese, de Van der Veer e Valsiner,1 ao qual Veresov2 replica, argumentando sobre aspectos “não descobertos” do pensamento do autor russo. Na passagem para o século XXI, a dimensão do que estava ainda oculto se explicita, sobretudo com a publicação de Vygodskaia e Lifanova,3 e os arquivos familiares e outras fontes se abrem a novas incursões e trabalhos

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VAN DER VEER, René; VALSINER, Jaan. Understanding Vygotsky: a quest for synthesis. Oxford: Blackwell, 1991. VERESOV, Nikolai. Undiscovered Vygotsky: studies on the pre-history of cultural -historical psychology. New York: Peter Lang, 1999. VYGODSKAIA, Gita L.; LIFANOVA, Tamara M. Lev Semenovich Vygotsky. Journal of Russian and East European Psychology, v. 37, n. 2-3, 1999.

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colaborativos.4 É quando se torna possível a pesquisa de Priscila, dando-nos a conhecer aspectos de seu Vigotski incógnito.5 No âmbito das polêmicas que atravessam a produção vigotskiana, tem sido amplamente reconhecido que os seis volumes das suas obras publicadas em russo, em inglês e espanhol reúnem textos com vistas à divulgação de seu trabalho primordialmente como professor e pesquisador no campo da psicologia. E se obras como A tragédia de Hamlet6 e a Psicologia da arte,7 ambas traduzidas para o português por Paulo Bezerra,8 assim como Imaginação e criação na infância, traduzida por Zoia Prestes,9 nos mobilizam e nos provocam no campo da psicologia, elas nos convocam a discussões sobre o estatuto da arte no desenvolvimento humano e a elucubrações sobre a nossa atividade criadora. Neste livro, é pelo prisma da arte que somos convidados a ler os textos do jovem Vigotski, escritos no período de 1912 a 1928. A coletânea, resultante de um minucioso trabalho investigativo que teve início há mais de uma década, em várias fontes, reúne resenhas literárias, resenhas teatrais, apreciação de espetáculos de dança e comentários sobre a arte gráfica, dando visibilidade a um intelectual arguto, erudito, com 4

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ZAVERSHNEVA, Ekaterina. El Vygotski no publicado: uma visión general del archivo personal (1912-1934). In: YASNITSKY, Anton; VAN DER VEER, René; AGUILAR, Enfraín; GARCÍA, Lucinao Nicolás (Ed.). Vygotski revisitado. Una historia crítica de su contexto y legado. Buenos Aires: Mino & Dávila Editores, 2016. p. 141-181; YASNITSKY, Anton; VAN DER VEER, René (Ed.). Revisionist Revolution in Vygotsky Studies. Routledge, 2017; YASNITSKY, Anton (Ed.). Questioning Vygotsky’s Legacy: Scientific Psychology or Heroic Cult. Routledge, 2018. MARQUES, Priscila Nascimento. O Vygótski incógnito: escritos sobre arte (19151926). 2015. Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. VIGOTSKI, Liev Semiónovitch. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 1999. VIGOTSKI, Liev Semiónovitch. Psicologia da arte. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 1999. VIGOTSKI, Liev Semiónovitch. Imaginação e criação na infância. Tradução de Zoia Prestes. São Paulo: Ática, 2009. VIGOTSKI, Liev Semiónovitch. Imaginação e criação na infância. Tradução de Zoia Prestes. São Paulo: Expressão Popular, 2018.


vasto conhecimento da literatura, deixando-nos entrever sua participação na ambiência cultural de uma época e de um país em transição da chamada Era de Prata para um período revolucionário. Vale ressaltar: os textos que compõem esta coletânea foram selecionados e traduzidos diretamente do russo para o português por uma estudiosa da cultura, da língua e da literatura russa, assim como da obra de Vigotski. Um manuscrito inconcluso de Vigotski sobre a questão judaica na obra de Dostoiévski inaugura este livro. Escrito nos anos de 1912 e 1913, mencionado por Zavershneva10 e até então não publicado e tampouco traduzido, o texto abre a seção das resenhas literárias – sobre escritores e poetas como Liérmontov, Biéli, Viatchesláv Ivánov, Turguêniev, dentre outros. Vigotski tinha entre 15 e 16 anos quando escreveu esse ensaio, no qual ele analisa passagens da obra de Dostoiévski e o fato de esse famoso escritor russo ter sido acusado de antissemitismo. Vários comentadores nos falam da questão judaica na obra de Vigotski. Zavershneva e Van der Veer11 trazem algumas anotações do autor sobre o tema. Contudo, é pouco ainda o conhecimento que temos sobre o assunto. Vigotski viveu com a família em Gomel, no sudeste de Belarus, quando a cidade tinha uma população de cem a cento e vinte mil habitantes, sendo mais da metade de origem judaica. Ser judeu e ser russo, portanto, são intrinsecamente constitutivos de sua personalidade. Como Dostoiévski cria uma “imagem artística” de judeu? Como se defende do antissemitismo? A imagem criada é uma caricatura? É um lugar-comum? Como se produz uma “verdade artística” na obra literária? Essas são algumas das questões que o jovem Vigotski procura abordar em seu texto, dando visibilidade às tensões que marcam as 10

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ZAVERSHNEVA, Ekaterina. El Vygotski no publicado: uma visión general del archivo personal (1912-1934). In: YASNITSKY, Anton; VAN DER VEER, René; AGUILAR, Enfraín; GARCÍA, Lucinao Nicolás (Ed.). Vygotski revisitado. Una história crítica de su contexto y legado. Buenos Aires: Mino & Dávila Editores, 2016. p. 141-181. ZAVERSHNEVA, Ekaterina; VAN DER VEER, René. Vygotsky’s notebooks: a selection. Singapore: Springer, 2018.

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múltiplas relações. Apontando para a duplicidade de sentidos que caracteriza a argumentação do autor de Crime e castigo, Vigotski expõe, em suas próprias ponderações analíticas, ambiguidades e contradições. A segunda seção do livro concentra as resenhas de espetáculos teatrais, publicadas, em sua maioria, em dois jornais da cidade: Novo Caminho (1916-17) e Nossa Segunda-feira (1922-23). Gomel recebia diversas companhias de teatro, e Vigotski era um grande incentivador, além de assíduo e atento frequentador dos espetáculos. Suas resenhas críticas indicavam forte compromisso social e político com a produção artística e cultural da cidade, seu comprometimento com o desenvolvimento de uma educação estética mais ampla e democrática.12 O texto que abre essa segunda seção, “Teatro e revolução”, foi publicado em 1919. Vigotski se indaga: se a revolução provocou mudanças profundas em todas as esferas da vida, que contribuições ela trouxe ao teatro? Novos grupos, novos espaços, novos procedimentos, novos espectadores, possibilidades de emancipação... A arte do teatro se alargou. No entanto, em suas análises do teatro do período revolucionário na Rússia, Vigotski admite que “o novo teatro, aquele que chacoalha a coxia, eis o que não existiu, mas deveria ter existido”. Seu questionamento e crítica sagaz à peça de Maiakóvski, Mistério-bufo (p. 133), mostram-se exemplares nesse sentido: “Existe algo de alegórico e tendencioso na peça, que é intolerável no palco” [...] “Essa pobreza de espírito” [...] “Não existe espírito trágico nela”. E anuncia: “[O novo teatro] levará Shakespeare da sala para a rua” [...] “sai das margens da arte doméstica, da sala, e passa à grande arte, à arte popular” (p. 142). Tensões e conflitos entre o político e o estético se mostram nas análises. Como podem essas dimensões se inter-relacionar, se interconstituir? 12

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MARQUES, Priscila Nascimento. O Vygótski incógnito: escritos sobre arte (1915-1926). Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015; WEDEKIN, Luana M.; ZANELLA, Andréa V. L. S. Vigotski e o ensino de arte: “a educação estética” (1926) e as escolas de arte na Rússia 1917-1930. Pro-posições, v. 27, n. 2 (80) maio-ago. 2016, p. 155-176.


Rigoroso em suas avaliações, Vigotski trazia em suas resenhas análises sobre o tema principal e o conflito central da peça; comentava a direção geral e a organicidade da obra teatral;13 apreciava o planejamento, o cenário, a coreografia, a atmosfera das peças encenadas; criticava os aspectos técnicos e estilísticos das apresentações: as falas, os movimentos, os gestos de atrizes e atores; problematizava as caricaturas, os clichês, as imitações sem alma... Afinal, o que caracteriza a “criação artística”? O que produz a “vivência estética”? O que faz sacudir as coxias? O que afeta? O que emociona? O que arrepia? Onde está “o sal do riso e da lágrima” do teatro? (p. 214). Essas resenhas teatrais do jovem Vigotski vêm agora a público no Brasil quando se comemora o centenário de acontecimentos marcantes no país, como a Semana de Arte Moderna e a fundação do Partido Comunista do Brasil, evidenciando a influência das vanguardas europeias e as repercussões da Revolução de 1917. A publicação acontece exatamente cem anos depois do lançamento do número 1 da revista Veresk, criada por Vigotski e seu primo Davi, em 1922, fazendo alusão à força e à resistência de uma pequena planta das estepes russas às condições climáticas adversas. Veresk seria uma revista dedicada à arte. O primeiro e único número da revista (de que se tem notícia) traz a resenha teatral de Monna Vanna (aqui traduzida, p. 157), na qual Vigotski comenta o drama simbolista de Maeterlinck, a “profunda técnica dramática” desse autor, a dificuldade de montagem da peça, o figurino, as formas de atuação e procedimentos de interpretação da atriz e dos atores, as repercussões do “material psicológico” na cena final, “apresentada magnificamente”. No conjunto dessa produção inicial de Vigotski, vai se evidenciando o movimento da crítica de leitor que caracteriza A tragédia de Hamlet para um método objetivo analítico que marca seus estudos em Psicologia da 13

SOBKIN, Vladimir. As resenhas teatrais de L. S. Vigotski como início da concepção histórico-cultural. Veresk – Cadernos Acadêmicos Internacionais. Estudos sobre a perspectiva histórico-cultural de Vigotski. Brasília: UniCEUB, 2017.

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arte. Desse modo, suas resenhas teatrais, ainda desconhecidas de leitores contemporâneos, mostram um valor indubitável, tanto para a crítica de arte como para a psicologia.14 E, dentre as características analíticas que entretecem psicologia e arte, podemos destacar a duplicidade de sentidos, a ênfase ou a dominante emocional, a arquitetura do drama. De fato, esses aspectos são também comentados nas apresentações de dança, como atestam as resenhas das turnês que abrangem tanto o balé clássico quanto as danças excêntricas, o gênero russo judaico, o gênero apache, o tango trágico, nas quais Vigotski ressalta a técnica, a psicotécnica, como poderosa construção artificial que produz a duplicidade de sentidos. Essa duplicidade é igualmente reconhecida e analisada na arte gráfica, quando “as linhas descrevem alguma coisa, mas também expressam outra” (p. 288). Ou seja, a arte se apresenta como um campo de produção de novos – provocadores? – sentidos.15 Esboçam-se os argumentos da arte como técnica social dos sentimentos, da questão que será retomada posteriormente, em 1930, da psicologia da criação pelo ator. Os textos que fecham a coletânea, publicados em 1927 e 1928, resumem algumas das ideias e argumentos nucleares apresentados e discutidos em Psicologia da arte. Assim, a seleção e a tradução dos textos inéditos que compõem este livro trazem uma valiosa contribuição à compreensão do singular percurso do autor – jovem judeu russo revolucionário. Encontramos Vigotski envolvido com a produção artística e cultural, em especial com a produção teatral, preocupado com o pathos da revolução, com as questões então contemporâneas, com a história, com as possibilidades de criação humana em movimento, 14

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SOBKIN, Vladimir. As resenhas teatrais de L. S. Vigotski como início da concepção histórico-cultural. Veresk – Cadernos Acadêmicos Internacionais. Estudos sobre a perspectiva histórico-cultural de Vigotski. Brasília: UniCEUB, 2017. MARQUES, Priscila Nascimento. O jogo dos sentidos: estruturas duplas da arte e a categoria do sentido em Vigotski. Cadernos Cedes, Campinas, v. 40, n. 111, p. 165-175, maio-ago. 2020.


em transformação... Delineiam-se aspectos que integram a gênese de suas elaborações teóricas e que vão ancorar as teses da psicologia histórico-cultural. O acesso a esses escritos iniciais de Vigotski, viabilizado pela tradução, organização e comentários de Priscila Marques, nos convoca a novas leituras e abre novos e fecundos campos de interlocução e investigação.

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Vigotski e a cultura russa na virada do milênio Bruno B. Gomide

Este é um livro opulento em ideias e informações sobre a riqueza das letras e culturas russófonas no começo do século XX. Quem se lance a lê-lo vai encontrar os borbulhantes universos pré e pós-1917, em suas especificidades radicais e conexões. Há aqui uma verdadeira cartografia de alguns dos principais interesses da época. Comparecem, por exemplo, nomes basilares do oitocentos, como Lérmontov, Turguêniev, Tolstói e Dostoiévski, este interpelado por uma aguda reflexão sobre o antissemitismo em sua obra. Explora-se a complexa tessitura de linguagem e metafísica que compõe os textos dos arquissimbolistas Ivánov e Biéli. E chega-se às desavenças produzidas pelo que então era alcunhado de “Outubro” poético e literário: poetas proletários, prometeus do novo palco, prosadores soviéticos de carteirinha, a pugna formalista. O leitor provavelmente constatará que, notório peso da literatura à parte, o coração dessas iniciativas críticas é mesmo o teatro, cadinho de experimentos com homens, mulheres e crianças, nos limiares de revoluções de muitos tipos. Os temas judaicos dão, explícita ou implicitamente, a tensa liga do conjunto. O leitor comprovará também o quanto ainda precisamos saber a respeito de certos nomes consagrados, encerrados de maneira aparentemente confortável nos quadros disciplinares. Quanta coisa a se pesquisar e, principalmente, traduzir! O Liev Vigotski que aparece aqui é um observador muito perspicaz, por vezes brilhante, da vida cultural. 17


O clichê é inevitável: quais teriam sido os destinos do intelectual judeu-belarusso se não tivesse morrido tão jovem? A contribuição decisiva para a psicologia já está devidamente registrada. Pode-se pensar que ele também seria, se o quisesse e as injunções da vida soviética permitissem, um dos grandes críticos literários e artísticos de sua época. Tinha olho bom para as propriedades da lírica, da narrativa, da dança, da mímica, da acrobacia, em suma, para o movimento corporal ousado e a nuance de pensamento mais fina. Os interessados nos caminhos da literatura e da cultura russa no Brasil conhecem a importância do trabalho desenvolvido nos últimos quinze anos por Priscila Marques, na USP e, agora, na UFRJ. Pesquisadora, professora e tradutora das mais talentosas de sua geração, ela vem enfim lançar o seu livro “autoral”, certamente o primeiro de muitos. É fruto de um verdadeiro périplo por arquivos e congressos russos e europeus. Liev S. Vigotski: escritos sobre arte conjuga a recuperação de textos dispersos, diversos deles traduzidos pela primeira vez no plano mundial, e o comentário crítico certeiro e exigente.

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O Vigotski incógnito Priscila Marques

Os textos de Liev Semiónovitch Vigotski apresentados nesta coletânea têm em comum o diálogo com o campo das artes. O material aqui reunido preenche uma lacuna nos estudos sobre esse autor, que se refere mais precisamente às suas obras “de juventude” – em que pese o despropósito de falar em juventude no caso de alguém que viveu apenas 37 anos. As traduções apresentadas são todas inéditas em português, e a maior parte deste material não foi traduzida para nenhum outro idioma até o momento. Mesmo no original russo, trata-se de um corpus de circulação muitíssimo limitada – somente em 2015 uma parte do que se apresenta aqui foi incluída no primeiro volume da obra completa de Vigotski. Os demais textos foram acessados em bibliotecas russas, a partir de suas fontes originais de publicação, isto é, de periódicos, algumas vezes de pouca circulação, datados do final dos anos 1910 e início dos anos 1920.1

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A transliteração dos nomes próprios e termos em russo foi majoritariamente baseada na “Tabela de transliteração do russo para o português”, elaborada pelo curso de russo da USP e publicada no Caderno de Literatura e Cultura Russa (n. 1, São Paulo, Ateliê Editorial, 2014). Diferentemente dessa tabela, adotou-se a forma “sch” para a transliteração da letra щ. Para o sobrenome de Vigotski, optou-se pela grafia mais corrente em traduções para o português brasileiro, segundo a qual se emprega a letra “i” para transliterar tanto a letra ы quanto a terminação -ий.

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Coletei e traduzi os escritos vigotskianos sobre arte entre os anos de 2010 e 2021, num percurso que iniciei com o doutorado e complementei com um estágio de pós-doutoramento.2 Para esse trabalho, tive a fundamental colaboração de muitos parceiros de pesquisa e instituições: Bruno Barretto Gomide, meu orientador de doutorado e supervisor de estágio de pós-doutoramento na FFLCH-USP, Georg Witte, orientador do estágio de pesquisa na Freie Universität Berlin, Ana Luiza Smolka (Unicamp), Marta Kohl de Oliveira (USP), Willi Reinecke (FUBerlin), Manolis Dafermos (Universidade de Creta), Nikolai Veresov (Universidade de Monash) e tantos outros colegas e professores, que não só dialogaram com essa pesquisa como a tornaram possível. Está reunida aqui boa parte da produção de Vigotski como crítico teatral, ofício que exerceu de forma ativa e prolífica na cidade de Gomel, em Belarus, num período em que ainda não se havia estabelecido como um nome de destaque da psicologia soviética – fato que viria a ocorrer somente depois de 1924, com sua apresentação no II Congresso de Psiconeurologia em Petrogrado e o subsequente convite para integrar o corpo docente do Instituto de Psicologia de Moscou. Observe-se que, em seus primeiros textos, o autor ainda assinava como Liev Vigodski (sendo essa a grafia do sobrenome que consta de seu registro) ou apenas com a abreviação L. V. ou L. S., de Liev Semiónovitch.3

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A pesquisa de doutorado, realizada entre 2010 e 2015, contou com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (Capes), mesma instituição que financiou o período sanduíche realizado em 2013 em Moscou. O estágio de pós-doutoramento, realizado entre 2017 e 2020, foi realizado com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), com período de Bolsa de Estágio de Pesquisa no Exterior (Bepe) em Berlim financiado pela mesma agência entre 2018 e 2019. Não há consenso sobre os motivos que levaram Vigotski a alterar a grafia de seu nome. Uma hipótese é a intenção de diferenciar-se de seu primo David Vigodski, um tradutor e crítico muito ativo na mesma época. Nota-se, ainda, que essa alteração não foi oficial em seus registros, funcionando como uma espécie de pseudônimo, tanto que no nome de suas filhas a grafia com “d” foi mantida.


A organização do material selecionado para este livro seguiu uma possível classificação das linguagens artísticas – as letras, os palcos, as artes plásticas –, culminando num texto mais tardio, de cunho científico, pertencente à área da psicologia da arte propriamente dita. Com exceção desse, os demais textos estão ligados à área da crítica de arte e não têm, portanto, um caráter, escopo ou público-alvo científico. Assim, com este volume, pretendo apresentar uma faceta menos conhecida, mas talvez não menos importante, dentre as variadas atividades exercidas por Vigotski ao longo de sua vida profissional. É importante mencionar, ainda, o tipo de material que constitui o corpus vigotskiano sobre arte. Trata-se majoritariamente de um trabalho periodístico publicado em jornais e revistas de circulação ampla na cidade de Gomel (e, em alguns poucos casos, em Moscou). Daí se depreende que o público-alvo de tais escritos não era especializado ou restrito. Emerge dessa produção a figura de um interlocutor bastante ativo e engajado no campo da cultura, particularmente em sua manifestação cênica, mas também literária e, em menor medida, das artes plásticas. O Vigotski crítico é, ao mesmo tempo, um agente social de olhar apurado para o público e seu contexto social e histórico e um esteta arguto, de elevada sensibilidade para o fazer e o fruir artístico. Assim, o que sobrevém em primeiro plano não é a faceta psicológica, tampouco a puramente estética, mas é justamente no entroncamento dessas esferas que Vigotski cumpre aquele que talvez tenha sido o grande papel de sua biografia: de um ator social interessado na dinâmica humana e em seu desenvolvimento, ávido por construir uma nova sociedade e promover o avanço humano de forma integral.

A (re)descoberta de Vigotski: pesquisa bibliográfica O trabalho de resgate e restabelecimento da obra vigotskiana realizado em minha pesquisa está inserido no contexto de uma rede internacional

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de esforços que, nos últimos anos, tem apresentado resultados significativos para o avanço da compreensão da teoria histórico-cultural, em particular da contribuição de Vigotski, a partir de pesquisas de arquivo e de novas traduções e edições. Nesse cenário, mostram-se especialmente relevantes os trabalhos de Ekaterina Zavershneva, Anton Yasnitsky, René van der Veer e Vladimir Sobkin. Com resultados e escopos um tanto distintos, cada um desses pesquisadores ofereceu, nos últimos anos, contribuições decisivas que, não é exagero dizer, alteraram os rumos dos estudos vigotskianos em escala mundial. A chamada “revolução arquivística”, encabeçada por Ekaterina Zavershneva,4 e a “revolução revisionista”,5 liderada principalmente por Anton Yasnitsky, foram responsáveis por trazer à tona materiais inéditos da obra inicial de Vigotski e pelo reexame de conceitos e de certas tradições de recepção da obra cristalizadas tanto no Ocidente quanto na Rússia. Minha pesquisa esteve inicialmente relacionada com esse movimento, especialmente no que se refere às fontes, traduções e à veiculação de alguns resultados preliminares da investigação.6 Num primeiro momento, o projeto se apoiou nas publicações organizadas por Yasnitsky, que foram veiculadas no periódico Dubna Psychological Journal.7 Posteriormente, foi possível ter acesso ao primeiro volume das obras completas de Vigotski, uma empreitada muito mais ambiciosa e levada a cabo com maestria, ainda que, por ora, tenha resultado em apenas um volume. O primeiro volume da obra 4

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ZAVERSHNEVA, Ekaterina Iu. The Vygotsky family archive (1912-1934). Journal of Russian and East European Psychology, v. 48, n. 1, p. 34-60, 2010. YASNITSKY, Anton; VAN DER VEER, René. Revisionist Revolution in Vygotsky Studies. Nova Iorque: Routledge, 2016. MARQUES, Priscila Nascimento. A crítica do leitor de L. S. Vygótski. Psikhologicheski Jurnal Dubna, Dubna, n. 3, p. 88-97, 2012; MARQUES, Priscila Nascimento. Nota introdutória a “O rei está nu”, de L. S. Vigotski. Psikhologicheski Jurnal Dubna, Dubna, n. 1, p. 101-111, 2013. YASNITSKY, Anton. The complete works of L. S. Vygotsky: PsyAnima Complete Vygotsky project. Psikhologicheski Jurnal Dubna, Dubna, n. 3, p. 144-148, 2012.


completa de Vigotski, organizado e comentado por Vladimir Sobkin,8 foi essencial para que se corrigissem os problemas existentes nas edições do Dubna Psychological Journal (por exemplo, equívocos na transcrição que levaram a erros textuais e, consequentemente, na tradução, bem como cortes no texto). Dessa forma, foi possível contar com uma base mais confiável para as traduções realizadas em minha pesquisa. Destaca-se também o fato de que a edição russa oferece vasto material complementar e de apoio à leitura, com muitas notas de rodapé que auxiliam na contextualização de temas e de figuras evocadas nos textos. Para esta coletânea, as notas inseridas são de minha autoria e foram feitas com base em pesquisas próprias e em materiais dessa e de outras edições. O fornecimento de informações suplementares aos leitores na forma de notas de rodapé foi pensado e dosado considerando a especificidade dos temas e a obscuridade de muitos dos nomes mencionados nos textos. Com o objetivo de não obstruir excessivamente a leitura e sua fluidez, optou-se (na medida do possível) por não sobrecarregar a tradução e, ao mesmo tempo, buscar tornar a obra mais legível e acessível ao leitor contemporâneo brasileiro. Evidentemente, esse aparato de notas e comentários está circunscrito ao material que se pode acessar. Vale destacar que, em muitos casos, nem das edições russas constam informações mais precisas sobre muitos dos nomes mencionados por Vigotski. O processo de levantamento dos originais não se limitou ao primeiro volume da obra completa, uma vez que este contemplou apenas os textos sobre teatro e dramaturgia. Durante o estágio cumprido na Freie Universität, em Berlim, e durante a pesquisa de campo realizada na Biblioteca Estatal Lênin e no Centro de História Social e Política da Biblioteca Pública Estatal de História, em Moscou, tive contato com vasto material bibliográfico que complementou, de forma decisiva, esse levantamento. 8

VIGOTSKI, Liev Semiónovitch. Polnoe sobranie sotchinenii. Tom I – dramaturguia i teatr. Moscou: Lev, 2015b.

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A pesquisa de campo permitiu localizar em fonte original alguns textos que só haviam sido acessados na republicação do Dubna Psychological Journal, que, como já foi dito, contém imprecisões e incorreções. No setor de periódicos da Biblioteca Estatal Lênin, foi possível ter acesso a 28 números do jornal gomeliano Nach Ponediélnik, para o qual Vigotski escreveu intensamente entre 1922 e 1923. A maior parte desse material foi reeditada no primeiro volume da obra completa, porém os escritos sobre literatura e sobre o museu da cidade não constam desse volume e, portanto, precisaram ser resgatados em sua publicação original. O acesso à integra dos exemplares originais permitiu, ainda, desfazer alguns equívocos de listas bibliográficas em que textos são indevidamente atribuídos a Vigotski. Isso possivelmente se deve ao formato de diagramação e proximidade entre os blocos de texto, de forma que a consulta aos originais dirimiu eventuais dúvidas sobre a autoria e limites de cada texto. Ainda na Biblioteca Estatal Lênin foram localizados o primeiro e único volume da revista editada por Vigotski em Gomel, intitulada Veresk, e os livros lançados por sua editora, Veka i Dni (Os Séculos e Os Dias), também sediada na cidade. A resenha teatral assinada por Vigotski e publicada em Veresk, intitulada “Monna Vanna”, consta do primeiro volume da obra completa e foi incluída nesta coletânea. O acesso ao material completo ofereceu uma visão mais ampla do volume e conteúdos da publicação. Em artigo sobre esse material, Sobkin e Mazánova9 discutem a autoria dos outros textos presentes na revista. Os autores defendem a hipótese de que o artigo assinado por El. Subbótina tenha sido também, na realidade, escrito por Vigotski, assim como o editorial. Por se tratar de uma hipótese dos pesquisadores, ainda que bem fundamentada, optou-se por não incluir tais textos em nosso levantamento ou no corpus de traduções. A listagem de 9

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SOBKIN, Vladimir Samuilovich; MAZÁNOVA, Valeria S. Opyt kommentariev k odnoi teatralnoi retsenzii L. S. Vygotskogo. National Psychological Journal, Moscou, n. 1, v. 13, p. 35-46, 2014.


publicações de Vigotski sobre arte, apresentada como apêndice nesta edição, oferece o levantamento consolidado da totalidade de obras que foi possível localizar e identificar ao longo da pesquisa. Sobre os livros editados pela Veka i Dni, foram localizadas as coletâneas de versos Ogón (Fogo), de Iliá Ehrenburg, e Stikhi (Versos), de Jean Moreás, ambas publicadas em 1919. A composição do catálogo indica a permanência de um diálogo com a arte simbolista, uma interlocução central nos primeiros escritos de Vigotski (haja vista o ensaio sobre Hamlet, de 1915, e as resenhas sobre Biéli e Ivánov de 1916), mas que, aos poucos, perde significativamente espaço nos trabalhos subsequentes.

O tema judaico A produção judaica de Vigotski é ainda algo nebulosa e foi pouco incorporada criticamente pelos estudiosos de sua obra. Trata-se de uma temática que predominou em sua produção anterior a 1917 e, de forma sintomática, quase que desapareceu depois da Revolução de Outubro, a não ser pelas críticas às apresentações do teatro judaico – ídiche – em Gomel, incluídas neste volume. O pouco dessa produção a que se tinha acesso constava do livro organizado por Feigenberg,10 no qual havia três resenhas literárias e o manuscrito sobre o antissemitismo na obra de F. M. Dostoiévski – também incluídos nesta coletânea. O exame desse material mostra dois aspectos muito pouco desenvolvidos nos estudos sobre Vigotski: a preocupação propriamente religiosa (há textos dedicados a comentar o significado de determinadas datas do calendário judaico) e uma preocupação político-nacional, com o debate sobre o lugar do povo judaico na Rússia, as questões da história 10

FEIGENBERG, Iósif Moiseiévitch. Ot Gomelia do Moskvy: natchalo tvorchestvo puti Lva Vygotskogo iz vospominani S. F. Dobkina. New York: The Edwin Mellen Press, 2000.

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desse povo e sua organização política e os impactos da revolução para a conquista de uma cidadania efetiva, com igualdade de direitos. Uma espécie de “J’accuse” vigotskiano, “Os judeus e a questão judaica nas obras de F. M. Dostoiévski” foi um dos primeiros textos do autor, na realidade um manuscrito que foi produzido, estima-se, entre 1912 e 1913 e não chegou a ser publicado.11 Trata-se de um texto raro, pouco conhecido entre os estudiosos de Vigotski, que revela tanto a precocidade do autor quanto a posição de destaque ocupada pela temática judaica entre seus interesses de juventude. Semión Dóbkin, amigo de Vigotski, relata que este era profundamente interessado pelo tema da história do povo judaico, a tal ponto que organizou um círculo de estudos do qual participou o próprio Dóbkin, sua irmã Fánia e a irmã de Vigotski, Zinaída. O círculo fundado pelo jovem Vigotski, aos 15 anos de idade, existiu durante aproximadamente dois anos e centrou-se, segundo Dóbkin, “não tanto no estudo da história judaica quanto da filosofia da história. A história pragmática pouco interessava a Liev Semiónovitch. Penso que ela interessava pouco aos seus ouvintes. As questões O que é a história?, O que é uma nação?, O que torna as pessoas uma nação? eram-nos mais interessantes”.12 Na primeira parte do manuscrito, Vigotski examina as representações estereotipadas e sem profundidade da figura do judeu na literatura russa. O autor comenta a obra de diferentes autores e identifica os lugares-comuns, os clichês aplainadores e, em geral, pejorativos, que acompanham a representação do jid (termo depreciativo do idioma russo para se referir aos judeus). Seu comentário não deixa escapar, inclusive, um recorte de gênero com a sexualização desmedida da figura da mulher judia. Por fim, a primeira parte oferece um levantamento 11

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Partes desse manuscrito foram aproveitadas na composição do texto “M. Iu. Liérmontov (pelos 75 anos da morte)”, publicado na revista Novi Put (Novo Caminho), cuja tradução está incluída nesta coletânea. FEIGENBERG, Iósif Moiseiévitch. Ot Gomelia do Moskvy: natchalo tvorchestvo puti Lva Vygotskogo iz vospominani S. F. Dobkina. New York: The Edwin Mellen Press, 2000, p. 8.


do tratamento do judeu especificamente na obra dostoievskiana, preparando o terreno para uma reflexão mais aprofundada. Na segunda parte, Vigotski debate as respostas de Dostoiévski sobre seu alegado antissemitismo, particularmente a partir do texto “A questão judaica”, publicado em março de 1877 no Diário de um escritor. O jovem Liev Semiónovitch escancara as contradições e aponta até certo cinismo nos argumentos mal-ajambrados a que o romancista recorre para rebater a acusação. Por fim, Vigotski esboça uma surpreendente redenção para Dostoiévski. Para ele, há algum substrato de verdade acerca do povo judaico na problemática e aguda visão de Dostoiévski. Essa improvável superação dialética, infelizmente, não é desenvolvida até o fim, já que o manuscrito não chegou a ser concluído. O texto chama atenção por ser um trabalho com rigor quase que acadêmico, considerando a construção argumentativa e o uso de fontes bibliográficas. Destaca-se também o fato de que a questão étnica e religiosa aparece em pé de igualdade com uma questão propriamente estética: o autor afirma que o verdadeiro pecado dessa literatura antissemita é contra a verdade artística. Já desde muito cedo, a régua pela qual Vigotski mede o valor de uma obra de arte é talhada segundo o lastro da poética e da estética, prenunciando que, seja antes ou depois de estabelecer um diálogo com o materialismo histórico e dialético, ele não cede a um sociologismo ou psicologismo vulgares. Outra oportunidade para observar o desenvolvimento do tema judaico em perspectiva é a comparação das resenhas publicadas nos periódicos Liétopis e Novi Put. O segundo era uma revista voltada para a comunidade judaica progressista (veja-se a capa de fevereiro de 1917 saudando a revolução e o governo provisório recém-instalado , p. 33), ao passo que Liétopis era uma importante revista mensal sobre literatura, ciência e política editada pelo escritor Maksim Górki. Ao resenhar o romance Petersburgo, de Andrei Biéli, para a revista Liétopis, por exemplo, Vigotski destaca os traços estilísticos e composicionais da obra e as contradições entre o êxito na representação do

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caráter fantástico e espectral da cidade de São Petersburgo, já cantado por Dostoiévski, e o esquematismo e excessiva racionalidade na construção dos personagens. A resenha da mesma obra para a revista Novi Put traz um enfoque bastante distinto, ainda que em nada contraditório, em relação à outra resenha. São ressaltados aspectos de antissemitismo e de orientalismo que se fazem presentes no romance, fato que é posto em diálogo com a tradição intelectual e literária russa e seu caráter irracionalista. O texto é concluído com uma reflexão profunda sobre o sentido do antissemitismo para a própria constituição e destino da identidade do povo judaico. Em ambas as resenhas, contudo, a obra não se perde em sua especificidade, tampouco é tomada apenas como pretexto para o comentário de um assunto extraliterário. Mesmo quando o tema político é colocado em primeiro plano, o mérito e o valor artístico da obra não são menosprezados. Ao acessar os materiais disponíveis no Arquivo Estatal Central de São Petersburgo, em meio a correspondências e documentos sobre os trâmites burocráticos que envolveram a contratação de Vigotski para dar aulas no Instituto Pedagógico Herzen, em São Petersburgo, detectei um fato curioso e bastante significativo sobre sua autoidentificação como judeu. Do processo de admissão na referida instituição, constam três cópias datilografadas do currículo de Vigotski; o arquivo contém ainda uma cópia manuscrita do mesmo documento, todas com a data de 30 de novembro de 1926. Chamou atenção o fato de que as versões datilografadas omitem sua origem judaica. A versão manuscrita se inicia com “Nascido em 1896, judeu, filho de funcionário bancário”, ao passo que, nas cópias datilografadas, se lê apenas “Nascido em 1896, filho de funcionário bancário”. Até onde é do meu conhecimento, esse fato nunca foi observado na literatura biográfica sobre Vigotski e parece especialmente relevante, haja vista a importância do tema nacional e étnico judaico para o autor, como verifiquei na pesquisa que resultou neste livro e como tem sido observado

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Folha de rosto da revista Novi Put, de 12 de março de 1917. No canto inferior, lê-se “Viva os povos livres da Rússia! Viva o Governo Provisório!”, referência à Revolução de Fevereiro (reprodução fotográfica/acervo Priscila Marques).

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por outros pesquisadores, como Bella Kotik-Friedgut13 e Ekaterina Zavershneva.14 Ainda que não se tenha muitos elementos para elaborar hipóteses mais sólidas sobre as razões que poderiam explicar esse achado, pode-se considerar que se trata de um indício do “apagamento formal” da identidade judaica (espontâneo da parte de Vigotski? Resultado de algum tipo de pressão?) que reitera o gradual desaparecimento dessa temática em seus escritos e, ao que parece, do horizonte de suas preocupações mais imediatas. A questão judaica revela-se promissora e deverá ser objeto de análises futuras. Longe de ser um tema suficientemente explorado, considero, contudo, que no decorrer da minha pesquisa foi possível recolher fontes e materiais bibliográficos para elaboração de uma produção brasileira sobre o tema.

As resenhas críticas: o laboratório para a psicologia da arte Em suas resenhas teatrais, Vigotski acompanha de perto a temporada de Gomel, que era composta por apresentações de trupes visitantes, uma vez que a cidade não tinha, na época, uma companhia teatral permanente. Tratava-se de um palco de província, distante dos grandes centros culturais onde companhias como o Teatro de Arte de Moscou (TAM), de Stanislávski e Nemiróvitch-Dántchenko, o Teatro de Câmara, de Taírov, e os teatros de Meyerhold ou Evréinov gestavam suas elaboradas criações. No período resenhado pelo autor, apresentaram-se companhias menores (Solovtsóv, o teatro judaico de Rubin, o teatro de 13

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KOTIK-FRIEDGUT, Bella. The jewish influence in Vygotsky’s life and ideas. In: CASTELNUOVO, Antonella; KOTIK-FRIEDGUT, Bella; PONTECORVO, Clotilde. Vygotsky & Bernstein in the light of jewish tradition, 2015. ZAVERSHNEVA, Ekaterina. Evreiski vopros v neopublikovannykh rukopisiakh L. S. Vygotskogo. Voprossy Psikhologuii, v. 2, p. 79-99, 2012; ZAVERSHNEVA, Ekaterina. “Molius o dare duchevnogo usilia”: mysli i nastroieniia L. S. Vygotskogo v 1917-1918 gg. Voprossy psikhologuii, n. 2, p. 1-21, 2013.


Maksímov) e outras mais conhecidas, como o Teatro Espelho Curvo, de Aleksandr Kúgel, o Segundo Estúdio do Teatro de Arte de Moscou, o Teatro Acadêmico (hoje conhecido como Teatro Aleksandrínski, de São Petersburgo) e a Companhia Tocha Vermelha, comandada por Vladímir Tatíschev. Gomel recebeu ainda alguns performers de dança clássica, como a bailarina Ekaterina Guéltser e o Balé de Kharkiv, e contemporânea, como a companhia de Nikolai Foregger. Nesta coletânea, procurei incluir textos que abrangem essa variedade, sem restringi-la apenas a companhias de maior renome, além de inserir o subitem “Resenhas de dança” no capítulo “Vigotski e os palcos”. Cada espetáculo é comentado de forma ao mesmo tempo concisa e minuciosa por Vigotski, que apresenta indistintamente fortes críticas tanto às trupes da província quanto às da capital. O autor se mostra bastante atento a detalhes da montagem e das interpretações, com o mérito de não ser excessivamente técnico ou hermético em seu comentário. Uma característica estilística desses textos é a abundância de metáforas e imagens. Trata-se de um recurso que permite ao autor explicitar seus julgamentos com pitadas de bom humor e algo de poético. A leitura das resenhas em conjunto evidencia que Vigotski reconhece a competência das companhias, embora considere que a medida dessa competência depende da magnitude da tarefa posta. No caso de companhias menores, ele destaca o êxito na montagem de obras também menores. Com frequência, aponta para a dificuldade de escapar da vulgaridade e da reprodução do cotidiano em melodramas e comédias menos sofisticadas. Uma questão recorrente é a representação de obras de pathos trágico15 ou romântico; de modo geral, são mais bem-sucedidos os registros prosaicos da vida do que os poéticos. 15

A noção de pathos trágico é um tema transversal da obra vigotskiana sobre arte. Veja-se, nesse sentido, o ensaio sobre Hamlet, o capítulo “Teatro e revolução”, além das diversas menções no corpus resenhístico. O pathos trágico ultrapassa o escopo do gênero trágico, isto é, não se aplica exclusivamente a tragédias, mas envolve um senso filosófico de tragicidade dos acontecimentos e da própria existência.

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Tal diagnóstico de Vigotski está intrinsecamente ligado ao que ele identifica ser a presença de um “naturalismo cotidiano” nas montagens e interpretações. A crítica à reprodução do cotidiano é muito recorrente nas resenhas. Ademais, o tema da existência cotidiana (byt, em russo)16 é central para a produção cultural e intelectual da época. As artes de vanguarda com seu espírito incendiário e revolucionário ansiavam por transformar radicalmente o cotidiano, e as críticas de Vigotski vão ao encontro dessa tendência. No que se refere ao teatro especificamente, vemos que isso leva o autor a combater o chamado naturalismo anímico/psicológico de Stanislávski,17 por ser uma estética que tende a mimetizar a psicologia comum: “As últimas conquistas do teatro naturalista (aquilo que Stanislávski chamou de ‘naturalismo anímico’) se reduziram ao impasse sem saída do experimento psicológico, que é o fim de qualquer arte” (p. 126). A ideia de que a arte dialoga com o real, mas o ultrapassa, atravessa toda a produção resenhística e é coroada em Psicologia da arte, sintetizada na metáfora bíblica da transformação da água em vinho. Em algumas ocasiões, Vigotski discute, por exemplo, a relação entre arte e acontecimentos históricos (a Revolução de Outubro e o Levante Dezembrista) tanto do ponto de vista das ideias contidas nas obras quanto das condições de produção destas. Vigotski defende a necessidade de ir além dos aspectos exteriorizantes e acidentais: não é a origem do poeta, por exemplo, que garante sua força artística e potencial revolucionário: Poeticamente Kázin e Aleksándrovski não chegaram a Outubro, nem sequer a Fevereiro, pois no campo da engenharia poética, como se diz hoje, não criaram nada de novo. Eles foram criados com Balmont e Blok. Isso é muito fácil de demonstrar. Todos o sabem. 16

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O adjetivo bytovói, oriundo do substantivo russo byt, foi vertido nesta tradução para “cotidiano”. Trata-se de um qualificador amplamente empregado por Vigotski para referir-se às obras/peças resenhadas. Em russo, duchévni naturalism. O adjetivo duchévni, oriundo da palavra duchá (alma), foi vertido para anímico para manter a correspondência etimológica do russo.


O ponto é que, se pegarem uma lâmpada a querosene como marca da RSFSR e uma elétrica como marca da fábrica imperialista, a elétrica, apesar da marca, será mais revolucionária e mais próxima de Outubro (p. 105).

O crítico (ou mesmo o leitor) de literatura deve se atentar não apenas ao “conteúdo”, aqui chamado de aspecto ideológico, mas ao que é próprio da manifestação artística, isto é, à forma poética. Nela reside a chave para um novo modo de pensamento, para novas ideias (e – o autor irá acrescentar em Psicologia da arte – para novos sentimentos): O aspecto ideológico foi compreendido e consolidado com precisão, mas e a poesia? Para que serve decifrar e traduzir “O punhal”, de Púchkin, da linguagem poética para a linguagem prosaica, se a essência da questão está na exposição do pensamento e somente nisso? Criou-se a impressão (não somente para mim) de que a poesia é um pensamento simples e não sofisticado, cifrado ao acaso em palavras incompreensíveis e estrangeiras. Pois nós ficamos sem saber se existe sequer alguma diferença entre Púchkin e Riléiev: na ideologia ela pode ser insignificante, mas e na poesia? (p.108).

O mesmo vale para obras que tratam de eventos históricos reais: veracidade e fidelidade aos fatos não constituem o crivo pelo qual uma obra deve ser apreciada. A realidade – seja ela psicológica ou histórica – se vê transmutada na arte: “a verdade da arte não coincide com a verdade da vida, e não é em absoluto mensurada pelo fato de que, quando aplicada, coincide com figuras geométricas iguais” (p. 268). Assim, na peça de Merejkóvski, por exemplo, vemos representada a “grande verdade do entusiasmo revolucionário” (p. 268), e não uma reprodução documental de um evento histórico; o artista cria “uma imagem convencional e puramente cênica, um receptáculo de sua grande verdade” (p. 268). Esse mesmo entendimento está presente no ensaio “Teatro e revolução”, no qual Vigotski reconhece o esforço das vanguardas (particularmente de Maiakóvski) na empreitada de dar conta do acontecimento revolucionário. Na peça Mistério-bufo, Vigotski vê uma novidade potente, a encarnação da “mais contemporânea contemporaneidade”, “a filha legítima da revolução”. A mistura do gênero medieval com a bufonaria e as 35


inovações na linguagem são todas acolhidas como avanços importantes para a nova arte da nova sociedade. No entanto, para Vigotski, essa obra não chega a alcançar a magnitude da revolução em toda a sua amplitude: “E tudo o que existe de mistério na peça (da revolução social mundial desde o começo até a apoteose) é malsucedido, racionalizado, escrito à thèse, de forma transparentemente alegórica” (p. 137): falta-lhe o pathos trágico da revolução e a ruptura definitiva como o teatro burguês.

Vigotski crítico O cerne da pesquisa realizada, cujo resultado mais importante é este livro, está na explicitação e no exame de uma das facetas da atividade intelectual de Vigotski, isto é, na sua produção como crítico. Colocar essa temática em foco permite ligar pontos, antes desconectados, entre os estudos sobre cultura e história russa e a produção científica do autor. Ao recuperar Vigotski como ator social, interlocutor da cultura, ativista da província e cientista em ascensão, pretendo contribuir para que se chegue a uma visão mais integral e multifacetada dessa figura já há muito conhecida dos meios acadêmicos no Brasil e no mundo. Um dos objetivos do estudo foi rever criticamente o entendimento de que apenas a produção dita científica deve ser considerada como legado válido e relevante para a posteridade. A própria ideia de um conhecimento puramente científico e totalmente inédito, com foco na originalidade da contribuição, sem diálogo com outras teorias e distante de outros tipos de atuação que não a experimental-laboratorial-acadêmica, deixa de fora uma vasta produção cuja importância no processo de produção de conhecimento não deveria ser negligenciada por quem entende que os saberes são construídos socialmente e na interface com diversas esferas da atividade humana. Pode-se dizer que um entendimento mais “cientificista” permeou quase toda a recepção da obra vigotskiana, uma vez que sua circulação

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se deu basicamente a partir da organização das Obras reunidas em seis volumes (publicadas em russo, inglês e espanhol), editadas entre as décadas de 1980 e 1990, nas quais foram incluídos somente os textos relativos às questões psicológicas. Apenas com a revolução arquivística, materiais ditos “periféricos” passaram a ter alguma circulação. É o caso do volume com uma seleção dos cadernos de notas do autor, organizados e comentados por Ekaterina Zavershneva e René van der Veer,18 do primeiro volume da obra completa,19 do livro de Feigenberg20 e de muitos dos artigos de Sobkin, Klimova e Mazánova21 que trouxeram à tona parte da produção crítica. A tese de doutorado na qual esta pesquisa foi iniciada22 representou, a seu modo, uma minirrevolução arquivística em território nacional.

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VIGOTSKI, Liev Semiónovitch. Zapisnie knizhki L. S. Vygotskogo: izbrannoe [L. S. Vygotsky’s notebooks: a selection]. Edited by Ekaterina Zavershneva and René Van der Veer. Moscow, Kanon+, 2017. VIGOTSKI, Liev Semiónovitch. Polnoe sobranie sotchinenii. Tom I – dramaturguia i teatr. Moscou: Lev, 2015b. FEIGENBERG, Iósif Moiseiévitch. Ot Gomelia do Moskvy: natchalo tvorchestvo puti Lva Vygotskogo iz vospominani S. F. Dobkina. New York: The Edwin Mellen Press, 2000. Alguns desses artigos são: SOBKIN, Vladimir. Stanovliénie L. S. Vygotskogo kak teatralnogo Kritika: pervie opyty. Razvitie Lichnosti, n. 4, p. 37-66, 2016; SOBKIN, Vladimir Samuilovitch; KLIMOVA, Tatiana Anatolievna. “Traurnie stroke”: k voprossy o natsionalno-kulturnom samoopredeliénii L. S. Vygotskogo. Kulturno-istorítcheskaia psikhologuiia, v. 13, n. 2, p. 4-12, 2017; SOBKIN, Vladimir Samuilovitch; KLIMOVA, Tatiana Anatolievna. Liev Vygótsi o radosti i skorbi (kommentarii k statie “Mysli i nastroiénie”) Kulturno-istorítcheskaia psikhologuiia, v. 13, n. 3, p. 71-82, 2017; SOBKIN, Vladimir Samuilovitch; KLIMOVA, Tatiana Anatolievna. Vygótski mejdu dvukh revoliutsii: k voprossu o politítcheskom samoopredeliénii utchionogo. Natsionalni psikhologuítcheski jurnal, Moscou, n. 3, v. 23, p. 20-31, 2016; SOBKIN, Vladimir Samuilovitch; MAZÁNOVA, Valeria Serguéievna. O tchiom rasskazyvaet gomelski Veresk Vygotskogo. Opyt rekonstruktsii sotiokulturnogo konteksta. Voprossy Psikhologuii, n. 6, p. 89-106, 2014. MARQUES, Priscila Nascimento. O Vygótski incógnito: escritos sobre arte (19151926). 2015. Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.

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Assim, uma das principais frentes de atuação dessa empreitada foi buscar compreender o escopo real (em termos de volume de publicações) e o significado da atividade crítica na produção vigotskiana em geral. Parte-se de uma posição distinta da expressa por Yasnitsky sobre o suposto baixo valor da produção não científica. Para Yasnitsky,23 Uma parte significativa dos artigos de periódicos de Vigotski, por exemplo, dificilmente podem ser considerados “artigos de pesquisa” segundos os padrões atuais: de fato, como ativista social e funcionário médio do governo, Vigotski escrevia artigos programáticos, administrativos, resenhas e polêmicas que não eram nada incomuns na imprensa acadêmica da União Soviética nos anos 1920 e 1930, mas são bastante incomuns para nós atualmente. Esses artigos não costumavam apresentar estudos empíricos e raramente tocavam em questões teóricas mais profundas, mas tratavam de assuntos de política científica, das bases filosóficas dos estudos marxistas, ou do progresso da atividade acadêmica em determinados locais e organizações. Por motivos óbvios, tais publicações têm apenas interesse histórico.

Yasnitsky fala em tom semelhante sobre a produção vigotskiana voltada ao público não especializado e sobre os manuscritos que não foram originalmente produzidos tendo em vista a circulação pública. Por trás dessa tentativa um tanto anacrônica de estabelecer o que seria o cerne da produção efetivamente científica do autor, há a desconsideração das dinâmicas acadêmicas da época, em particular daquilo que a pesquisadora Anna Stetsenko chama de “atitude transformativa” (transformative stance) que permeou a biografia de Vigotski em muitas dimensões. A apreciação da relevância da contribuição vigotskiana para o presente trabalho aparece aqui com sinais trocados: a ciência atual não deve ser a régua com a qual se mede a história; ao contrário, a indissociabilidade entre produção de conhecimento científico e transformação social que pautou a ciência soviética nos primeiros anos após

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YASNITSKY, Anton; VAN DER VEER, René. Revisionist Revolution in Vygotsky Studies. Nova Iorque: Routledge, 2016, p. 78-70.


a revolução é que pode e deve inspirar a ciência contemporânea. Nas palavras de Stetsenko:24 Em particular, este projeto evoluiu como um empreendimento carregado de valor e colaborativo imerso nas práticas revolucionárias da época, ele personificou tais práticas e contribuiu definitivamente com elas por meio do ativismo cívico-acadêmico de seus participantes. Com efeito, em vez de estar confinado em uma “torre de marfim” de buscas puramente acadêmicas, Vigotski e seus seguidores estiveram diretamente engajados em atuações práticas, antes de tudo em políticas de reorganização do sistema nacional de educação e no desenvolvimento de programas especiais para pessoas sem-teto, pobres e crianças com necessidades especiais (com frequência, tudo isso ao mesmo tempo). Esse engajamento colocou Vigotski e seus colegas diretamente no epicentro de práticas sociopolíticas altamente carregadas da época, como participantes imediatos e atores,25 transformando suas buscas em uma mistura única entre teoria, prática, ideologia e política.

A perspectiva de Stetsenko ressoou de forma positiva em minha pesquisa, uma vez que contribuiu para um entendimento mais preciso e justo sobre a atividade crítica de Vigotski. A leitura dos textos em que o autor elabora formalmente o papel da crítica foi esboçada na conclusão de minha tese de doutorado. Resgato aqui o último parágrafo da tese, no qual aponto uma primeira síntese sobre a evolução da atividade crítica em Vigotski, com a comparação de três momentos dessa trajetória – o ensaio sobre Hamlet (de 1915), as resenhas do período de Gomel (1922-23) e a obra Psicologia da arte26 (de 1925): Comparando os três momentos, observa-se que a ideia de que a atividade da crítica está ligada à orientação da percepção do receptor é uma constante. A dimensão filosófico-religiosa da arte e o caráter subjetivo da crítica, presentes no texto de 1915, são abandonados. Em seu lugar ganha força o objetivo de otimizar os efeitos da arte no receptor e acentua-se a 24

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STETSENKO, Anna. The transformative mind. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2017, p. 95-96. VYGODSKAYA, Gita; LIFANOVA, Tamara. Lev Semenovich Vygotsky. Zhizn. Deiatelnost’. Shtrikhi k portrety. Moscou: Smysl, 1996. VIGOTSKI, Liev Semiónovitch. Psicologia da arte. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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esfera público-política da atuação do crítico. Além disso, o compromisso com a qualidade das artes na província, visto em 1922-23, se expande, em 1925, para o campo da vida social como um todo. Dentro desse movimento, é possível entender por que Vigotski, a partir de 1923, passa a chamar sua coluna como “Não exatamente uma resenha”. Seu projeto começava a se ampliar.27

Esse tema foi expandido em artigo posterior, publicado na revista Cultural-Historical Psychology, a partir de apresentação realizada no Iscar Summer University 2019.28 Para a análise da faceta crítica de Vigotski, revisitei os textos em que o autor fala explicitamente e de forma mais ou menos sistemática sobre os objetivos da atividade crítica e as tarefas que ela pretende resolver, entre eles o texto “Sobre o autor de Não Exatamente Uma Resenha”, incluído nesta coletânea. Defende-se a ideia de que, com o passar do tempo, o entendimento vigotskiano sobre a arte e seu papel sofreu alterações com o gradual enfraquecimento dos pressupostos estéticos simbolistas e consolidação de uma visão mais objetiva, mediante a influência da nascente leitura formalista e do influxo da ciência psicológica, especialmente a partir da reactologia. Ademais, a atividade crítica vigotskiana deve ser examinada dentro do contexto geral russo, em particular da chamada publitsístika, uma tradição dominante no meio intelectual durante o século XIX que articulou o comentário literário, político e filosófico, sempre tendo em vista os problemas sociais mais urgentes.29 27

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MARQUES, Priscila Nascimento. O Vygótski incógnito: escritos sobre arte (19151926). 2015. Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015, p. 152. A Sociedade Internacional de Pesquisa Histórico-Cultural e da Atividade (Iscar, International Society of Cultural-Historical Activity Research) é uma organização que congrega estudiosos da teoria histórico-cultural no mundo todo, promovendo periodicamente congressos internacionais e regionais, bem como a Summer University. POLONSKI, Andrei V. Publitsístika kak osóbi vid tvortcheskoi deiatelnosti. Naútchnye vedomosti Belgorodskogo Gossudárstvennogo Universiteta. Seria: Gumanitárnie Naúki, n. 11, v. 51, 2008.


Sem se descuidar de possíveis pontos de descontinuidade existentes entre os diferentes períodos críticos, verifica-se que, em Vigotski, há uma compreensão aguda e bastante sofisticada da forma artística, ou seja, uma busca por mapear o que vem a ser precisamente o caráter estético de uma obra artística, aquilo que a distingue de outras produções humanas. Nesse sentido, Vigotski sempre demonstrou ter elevada sensibilidade estética e precaução em relação a possíveis apropriações instrumentais e mecanicistas da arte, o que constitui um traço distintivo que torna sua obra atual e relevante ainda hoje. Há fundamento para que se tema que esse desdobramento em facetas possa resultar em uma imagem fragmentada e algo desconexa da biografia e produção intelectual de Vigotski. Para evitar esse risco, gostaria de salientar o fato de que, segundo a perspectiva aqui defendida, a atividade crítica é um dos pilares para a constituição do “Vigotski cientista”, e não um elemento à parte: Sua experiência e evolução como crítico ao longo de uma década (19151925), em particular durante o período de Gomel, ofereceu a Vigotski uma base sólida para o ingresso no campo científico, para extrapolar análises concretas e criar um sistema teórico mais amplo sobre a experiência estética em Psicologia da arte. Contudo, como tentamos demonstrar nesse artigo, esses papéis não estão desconectados, tampouco um é anulado pelo outro. Um entendimento holístico sobre Vigotski deve considerar cada front de suas ações como um todo integrado. Em uma dinâmica dialética, o crítico engendra o cientista, que, por sua vez, culmina em um retorno ao crítico como ator socialmente engajado que toma parte na transformação da realidade.30

Para reforçar e ressaltar o elo dessa produção com a faceta científica da obra vigotskiana, a coletânea é encerrada com “A psicologia contemporânea e a arte”, um texto que sintetiza muitas das ideias esboçadas no corpus crítico e alça-as ao nível de uma discussão inserida no campo propriamente da psicologia. O artigo apresenta uma nova elaboração 30

MARQUES, Priscila Nascimento. L. S. Vygotsky’s critique: between aesthetics, publitsistika and psychology. Kul'turno-istoricheskaya psikhologiya = Cultural-historical psychology, 2019, v. 15, n. 4, pp. 25-34.

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científica acerca da articulação entre arte e psicologia, sintetizando de maneira bastante produtiva, e até mais acessível, os profundos, complexos e áridos debates teóricos com a psicanálise, o formalismo e a teoria tolstoiana do contágio presentes em Psicologia da arte. Além disso, esse trabalho levou a uma ampliação do arco temporal incialmente considerado quando se tratava da produção vigotskiana sobre arte. Se, antes, tinha-se como limites o ensaio sobre Hamlet, de 1915, e o livro Psicologia da arte, de 1925, as pesquisas mostraram que a temática das artes não se restringe a esse intervalo de dez anos: emerge ainda antes, com o manuscrito sobre o antissemitismo em Dostoiévski, ou seja, aparece inicialmente atrelada à preocupação com o tema judaico (ainda que imbuído de um afiado senso estético) e se expande para além da tese de 1925, com o prefácio “A arte gráfica de Bykhóvski”, no livro A arte gráfica, de 1926, e o artigo publicado na revista Soviétskoe Iskússtvo entre o final de 1927 e no início de 1928.31 Esse arco ampliado mostra-se muito mais nuançado, com interlocuções que ultrapassam a passagem do simbolismo para o marxismo (atravessado por um forte diálogo com o formalismo)32 na virada revolucionária. O estudo desse material revela também pontos de continuidade que apontam para certos núcleos mais ou menos estáveis do pensamento vigotskiano, como é o caso da valorização da especificidade da qualidade propriamente artística e a não redução da arte a outras esferas: em Vigotski, a arte nunca é pretexto, enfeite ou acessório para outra forma de pensamento. Ao contrário, é um sistema de expressão e cristalização da esfera dos sentimentos que opera a partir de uma lógica e um sentido próprios.

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Já no final de sua produção, em 1934, Vigotski retoma o tema teatral em “Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator”. MARQUES, Priscila Nascimento. Formalismo Russo sob a lente de L. S. Vygótski: influência e crítica. Revista RUS, v. 11, n. 16, p. 125-145, 2020.


Por fim, esse corpus, e a seleção feita para esta coletânea, mostra um percurso que vai da crítica para a produção científica, um caminho não linear que é, antes, caracterizado pela interpenetração entre as atuações em diferentes esferas: a crítica aparece como laboratório do cientista, e o cientista como a culminação do crítico.

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1 Vigotski e as letras

1.1 MANUSCRITO NÃO PUBLICADO SOBRE O ANTISSEMITISMO NA OBRA DE DOSTOIÉVSKI1 Os judeus e a questão judaica nas obras de F. M. Dostoiévski I O futuro historiador do judaísmo na Rússia, ao estudar as manifestações características do antissemitismo, se deterá perplexo, como que diante de um enigma, frente à relação da literatura russa com os judeus. Já Púchkin definiu a relação dessa literatura com os escritores posteriores: “Bateu-me à porta um judeu desprezível” (O xale preto. É estranho e incompreensível: apesar de ter defendido os princípios da humanidade, se desenvolvido sob o signo do humanismo, a literatura russa trouxe tão pouco de humano à representação do jid.2 É impossível conciliar a humanidade de Gógol com a representação de Iánkel (Tarás Bulba) e o quadro do pogrom judeu. E essa atitude de Gógol, isto é, humanidade e humanismo para com todos, exceto por Iánkel, 1

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Texto redigido por Vigotski entre 1912 e 1913. Uma primeira versão dessa tradução foi publicada em RUS – Revista de Literatura e Cultura Russa, v. 12, n. 158, abr. 2021. Jid, denominação depreciativa para judeu (evrei, em russo).

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é simbólica para todos os escritores posteriores. Outro fato também causa estranheza: apesar de ter levado o realismo à sua expressão extrema e, pelo caminho da genial revelação psicológica dos mistérios da alma humana, ter ultrapassado o limite em que o real se torna simbólico, a literatura russa trouxe tão pouca profundidade psicológica para a representação dos judeus, de modo que tais imagens espalhadas nas mais geniais criações não respondem às mínimas exigências do realismo artístico. Começando pelo “romance de costumes” de F. V. Bulgárin Ivan Vyjiguin (1829), que representa de forma grosseira o jid criminoso, passando por toda a literatura russa (com raríssimas exceções), em toda parte encontramos a mesma relação com os judeus e – o que é ainda mais impressionante e notável – a mesma representação deles. É difícil acreditar, embora páginas das melhores obras da literatura russa sejam prova disso, que a representação dos judeus seja a mesma em Bulgárin, Gógol, Turguêniev, Dostoiévski, Púchkin, Nekrássov e outros. Sempre e em toda parte, seja Iánkel, de Gógol (Tarás Bulba), Guírchel Tropman, de Turguêniev (do conto “O jid”), ou Issái Fomitch Bumchtein, de Dostoiévski (Escritos da casa morta), ou, de modo geral, segundo a expressão de A. Gornfeld, o “jid episódico”, sem relação direta com a narrativa ou apenas ofendido de passagem, que encontramos com tanta frequência em Gógol, Turguêniev e Dostoiévski, sempre e em toda parte o jid é, na visão do autor, um “judeu desprezível” e, do ponto de vista da representação objetiva, é a personificação dos vícios humanos em geral e dos nacionais em particular. Se enfileirássemos citações com descrições de jides feitas por Turguêniev, Gógol e Dostoiévski, seria difícil identificar quem é o autor de cada excerto, tão pouco há de individual e próprio na representação da figura do jid. Os tipos de judeus na literatura russa foram por muito tempo concebidos conforme um lugar-comum, que foi criado na mente da população russa de todas as camadas sociais e transferido da vida para a


literatura, tornando-se ecos naturais das noções tradicionais sobre o desconhecido mundo do judaísmo e da relação cotidiana com os jides. É claro que esse grave pecado da literatura russa (não diante do judaísmo, evidente, mas diante da verdade artística!) não é exclusividade dela. Se quisermos rastrear a origem desse lugar-comum, seremos levados às fontes da literatura europeia ocidental. A Idade Média, que determinou a atitude cotidiana para com os judeus e contaminou os séculos com antissemitismo, criou e transferiu para a literatura esse lugar-comum que, até os nossos dias, se mantém quase inalterado. Na Idade Média, como atesta Leroy-Beaulieu,3 “o judeu tinha de suportar muitas ofensas. Quase sempre era obrigado a fazer o papel de bobo na Máslenitsa para o divertimento da gente da rua. O judeu divertia a multidão; servia-lhe de objeto de zombaria. No melhor dos casos, suscitava apenas risos”. Eis por que, também na literatura, “ele, de fato, se converteu numa espécie de arlequim que sempre interpreta o mesmo papel”. Eis por que “os poetas e beletristas representaram apenas o judeu estereotipado, rastejante, maroto, rapinante”. Eis a origem dessa regra antiga, mas que há muito se mantém firme entre os dramaturgos: “Todos sabem” – disse Alexandre Dumas – “que os judeus no palco devem sempre ser engraçados” (“Lettre à M. Cuvillier-Fleury”). É característico observar, a fim de confirmar a posição acima apresentada (isto é, de que, na representação do judeu, a literatura peca não diante do judaísmo, mas diante da verdade artística), que com esse lugar-comum do jid vicioso e engraçado existia (e continua existindo) um modelo segundo o qual, por um longo período, foram criados tipos de judias. “Se o judeu” – diz Leroy-Beaulieu – “deve suscitar repugnância, a judia, ao contrário, é dotada de todos os meios possíveis de sedução. Todas as judias são atraentes, assim determina a tradição.” Essa legítima heroína de baladas se manteve, infelizmente, não apenas na 3

Todas as citações foram retiradas do livro Os judeus e o antissemitismo, de Leroy-Beaulieu. (N. do A.)

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opereta, mas foi ilegitimamente (de forma artisticamente ilegítima) reestabelecida também no drama, em romances, novelas e contos. “Nosso senso cavalheiresco” – diz em seguida Leroy-Beaulieu – “ou fragilidade ariana sempre se submeteu facilmente aos encantos de seus olhos aveludados e cílios longos. Em relação a elas, ao que parece, não existe antissemitismo” – conclui sagazmente Leroy-Beaulieu. Não obstante, acrescento eu, essas imagens de baladas (atualmente de operetas) são igualmente (se não ainda mais!) ilegítimas artisticamente, e tampouco respondem às mínimas exigências do realismo artístico, como é o caso das imagens dos jides. A literatura russa também conhece essa imagem da “jovem jidovka”, que encontramos não apenas em “Balada”, de Liérmontov, como em romances, dramas e novelas. O próprio Púchkin definira a relação do autor com ela. Essa não é uma jidovka desprezível! Ele diz: Pela fé em Moisés, amanhã, Aos beijos teus, sem me acanhar Pronto estou, judia, a me entregar4

Contudo, apesar da boa vontade do autor em relação à judia e seus beijos, ou ao “encanto de seus olhos aveludados e cílios longos”, essa imagem é artisticamente tão ilegítima quanto a do judeu que desperta somente desprezo. A questão, portanto, não é apenas a relação do autor (e isso é característico, observo entre parênteses, mas é uma questão secundária, como tratarei adiante!) – mas a ilegitimidade artística, o lugar-comum, o estereótipo de ambas as imagens. Assim, se por um lado essa relação habitual com os judeus e esse lugar-comum, esse estereótipo, são sempre uma representação idêntica, por outro lado, como é característico e profundamente

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Do poema “Cristo ressuscita” (1820), de Aleksandr Púchkin.


impressionante que a literatura russa não tenha produzido... não, que a literatura mundial tenha produzido apenas um Shylock!5 O mistério do espírito judaico, da psicologia judaica, era e continua sendo um enigma não resolvido, que os decifradores da alma humana em vão tentaram (será que tentaram?) desvendar. O rosto judaico, marcado por inquieto pesar e incompreendida aflição, que se ocultam bem no fundo do olhar do judeu, não aparece no retrato artístico, mas o característico nariz saliente do judeu e pronúncia esquisita para o ouvido alheio foram apresentados em milhares de caricaturas. No campo da representação artística de tipos judaicos, Dostoiévski não foi muito mais longe do que os outros escritores. Não encontramos em suas obras nenhuma imagem artística de judeus. “Não há sequer uma imagem artística de judeu em Dostoiévski”, constata V. Jabotínski (Afabilidade russa). Não passam de charges, assim como os judeus de Gógol, que, segundo expressão de A. Gornfeld, aparecem “não como figuras reais, mas caricaturas, que surgem predominantemente para fazer rir o leitor”. “Na representação de seu camarada de galé Issái Fomitch Bumchtein (Escritos da casa morta, 1861), Dostoiévski não colocou nada além de desprezo infinito”, diz A. Gornfeld. “Judeu desprezível”, o eterno estribilho da canção cômica sobre o jid. Aleksandr Petróvitch Goriántchikov, que conduz a narrativa, assim descreve Issái Fomitch: Já não era jovem, andava perto dos cinquenta, de baixa estatura e fraco, astuto e ao mesmo tempo um rematado pateta. Era atrevido e arrogante e a um só tempo covarde ao extremo (...). Fora preso sob acusação de assassinato. Escondia uma receita que seus amigos jides lhe haviam conseguido de um médico logo depois do patíbulo. Essa receita permitia preparar um unguento, que, depois de umas duas semanas de uso, apagava as marcas. Ele não ousava empregá-lo no presídio e esperava 5

Judeu agiota, personagem de O mercador de Veneza, de William Shakespeare.

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concluir a pena de doze anos para, depois, uma vez desterrado para algum povoado, aproveitar-se sem falta de tal receita. “Senão não vou poder me cassar”, disse-me certa vez “e quero cassar sem falta”. (...) Estava sempre em magnífico estado de espírito. Para ele, a vida no presídio era fácil; com o ofício de ourives, vivia sobrecarregado de trabalho, que recebia da cidade, onde não havia um ourives, e assim escapava aos trabalhos pesados. Naturalmente, era ao mesmo tempo agiota, e abastecia o presídio inteiro cobrando juros e praticando o penhor (Capítulo IV – “Primeiras impressões”).6

Mas é claro! É evidente! Não precisa nem dizer! Senão ele não seria judeu! De fato, os termos “judeu” e “usurário” são sinônimos! Com efeito, assim determina o lugar-comum! E essa é apenas a “primeira impressão”. Como vemos, ele é engraçado (“se cassar”) e agiota. As duas coisas fazem dele um judeu. Não surpreende, portanto, que Issái Fomitch fosse amado pelos poloneses: Talvez unicamente porque ele os divertia. Aliás, nosso jidezinho também gozava da afeição de outros presos, embora todos, sem exceção, zombassem dele. Era o único jid entre nós, e até hoje não consigo me lembrar dele sem rir. Sempre que o olhava, vinha-me à lembrança o Iánkel, do Tarás Bulba de Gógol, que, quando se despe para passar a noite com sua mulher numa espécie de armário, fica no mesmo instante parecidíssimo com um frango. O nosso jidezinho Issái Fomitch e um frango depenado eram tão parecidos como duas gotas d’água (Capítulo IV).7

É simbólico que Issái Fomitch faça o autor dos Escritos da casa morta se lembrar de Iánkel: de fato, ele é tão parecido com o “jidok gogoliano” como “duas gotas d’água”, e faz lembrar seu protótipo. Essa semelhança, é claro, não serve à imagem artística de Dostoiévski, uma vez que ela pode ser explicada de forma demasiadamente simples: Issái Fomitch foi criado conforme o modelo do “jidok gogoliano”, ou melhor, ambos foram criados por um mesmo modelo, que é anterior 6

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Citado a partir de: DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikhailovitch. Escritos da casa morta. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 101-102. Cf. Dostoiévski, 2020, p. 101.


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