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ORG. PATRÍCIA LIMA
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O vazio não está nem quando é silêncio VOZES FEMININAS NA LITERATURA
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O que os livros escondem, as palavras ditas libertam. E não há quem ponha um ponto final na história CONCEIÇÃO EVARISTO
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APRESENTAÇÃO
A vez e a voz das mulheres PATRÍCIA LIMA
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A louca
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Onde a chuva cai
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Desaperto
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No encontro com os meus, eu me vi
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O cheiro do choro
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A estrada que não segui
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Um dia ectópico
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Ordinário
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Des-aforismos
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O doído adeus do amor
FERNANDA MIGUEL CAROLINA BATAIER ARIANE SUAIDEN FERNANDA ROSÁRIO
KAROL LOMBARDI
ADRIANA MAXIMINO NANE DE SOUSA
BRUNA MENDONÇA TITTA SANTOS
AGNES ANALUA BARBOSA
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O fim de um tempo
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Elucubração em torno da palavra baque
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Bicho do mato
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À sombra do girassol
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Uma Capitu em tempos de match
ANA PAULA BENINI KARINA LIMSI
NATÁLIA MOTA
CAROL FIRMINO MICHELI BETTI
102 Mas digam ao povo que fico MARIANA MEIRA
114 Conto erótico
PRISCILA BROSCO
120 {Sem título}
MARINA LEAL
123 Teatro no consultório REBECA ALMEIDA
129 Um flerte com a impossibilidade ANÁLIA SOUZA
135 O vazio não está nem quando é silêncio RENATA MACHADO
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A vez e a voz das mulheres PATRÍCIA LIMA
Algo no mercado editorial nos inquietava. E como não? Quase dois séculos atrás, Jane Austen publicava Orgulho e preconceito anonimamente, temendo ser desautorizada por ser mulher. Décadas depois, escritoras como Mary Ann Evans e Amandine Dupin recorriam a pseudônimos masculinos para que seus romances fossem reconhecidos. Já no século XX, nos círculos literários e intelectuais, a poeta paulista Francisca Júlia ouvia coisas como “Seus poemas são muito bons para terem sido escritos por uma mulher” ou “Você não deveria se ocupar de literatura, mas sim de trabalhos mais femininos”. Hoje, as mulheres ainda são minoria nas listas de lançamentos e nas premiações literárias. Desvantagem histórica, desigualdade arraigada, demérito latente. Esse foi o mote de O vazio não está nem quando é silêncio. Em meio a uma nuvem de reflexões e questionamentos, optamos por abraçar nosso entorno com uma obra coletiva, unindo escritoras das mais variadas origens, gerações, classes sociais, orientações sexuais e posicionamentos – essencialmente, pessoas fazendo literatura e 9
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falando de coisas que lhes são caras. E que, justamente por isso, importam. Assim, abrimos uma chamada para autoras que tivessem alguma relação com a cidade de Bauru, sede da Editora Mireveja. Os 109 textos inscritos nos mostraram a profusão literária local. Por tamanha procura em um município distante dos grandes centros urbanos, entendemos estar no caminho certo. Não foi nada fácil escolher apenas vinte e um textos entre tantos universos possíveis. O livro, entretanto, foi encontrando seu tom. Os textos que apresentamos a seguir nos colocam cara a cara com o racismo estrutural, cujo dano se infiltra mesmo em territórios íntimos, como o corpo. Versam sobre a maternidade e a não maternidade – a mãe como um projeto idealizado dando espaço a vivências em cores reais. Falam da solidão que se expressa como forma de ser, num tempo em que a coexistência parece tão desejada quanto difícil de alcançar. A natureza, substantivo feminino, surge como força motriz e elemento alegórico. A ancestralidade e o sagrado feminino se revelam no contato com a substância viva da terra. A naturalidade do corpo também floresce nesse solo fértil. O autoamor tem presença significativa, e não à toa. As mulheres têm aprendido forçosamente a se amar, quando a crítica e a violência ainda são imperativas. A morte não deixa de ser fonte de criação: a finitude das coisas e também a perda que se dá em vida. Há dualidade e intersecção de vozes, há contradição, dor e beleza. É certo que ficamos devendo narrativas. Somos conscientes dessas faltas. Mas esperamos que elas possam 10
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ser lidas nas entrelinhas, e que a experiência deste livro inspire outras obras. Essas escritoras, cujas palavras reverberam intensamente dentro de nós, estão prontas para conduzir o leitor entre os labirintos do ser mulher. Boa jornada.
PATRÍCIA LIMA TEM 33 ANOS, NASCEU EM SÃO PAULO E VIVE EM BAURU HÁ MAIS DE UMA DÉCADA. É GRADUADA EM LETRAS E TEM ESPECIALIZAÇÃO EM LINGUAGEM, CULTURA E MÍDIA. É UMA DAS COORDENADORAS DO GRUPO DE LEITURA CEVADAS LITERÁRIAS E AUTORA DO LIVRO O AMOR É UM SOLO DE JAZZ.
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A louca
FERNANDA MIGUEL
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O ônibus atrasou, desci no ponto errado e caminhei cinco quadras além do necessário. Suada, ofegante e um pouco arrependida, apertei o interfone numa casa de fachada discreta. Falei meu nome, destravaram o portão. Percebi que precisava fazer xixi. Uma mocinha sorridente e gentil me recebeu, confirmou o horário e pediu para aguardar. Fui ao bebedouro, virei três copinhos de água com a sede de um velho cachaceiro e, quando avistei o banheiro, uma voz gostosa me chamou. – Boa tarde! Tudo bem? Vamos entrar, por favor. Um homem bonito. Cabelo e barba bem aparados, uns trinta e poucos anos, calça jeans e camisa de grife. Num gesto sutil, estendeu-me a mão e sorriu. Pensei no meu rosto suado, das pizzas embaixo dos braços e do quanto teria me preparado melhor se soubesse que ia encontrar um homem daquele. Guardei meu constrangimento, abri um sorriso e entrei na sala fingindo serenidade. Eu nunca pensei em me consultar com um psicólogo. Não é barato, não tenho tempo e, sinceramente, acho uma tremenda frescura. A vida é assim mesmo. Percalços, brigas, lutos, amores, conquistas, derrotas. Não faz muito sentido pagar alguém para ouvir minhas amarguras e ainda me fazer chorar (quem faz terapia diz que chora um monte). Só agendei a consulta porque foi uma determinação do RH do escritório. “Você é competente, soma muitos valores para nossa instituição, por isso decidimos ajudá-la.” A verdade é que sou um jegue que trabalha sempre além do horário comercial, cobre faltas, férias, feriados 13
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e passa noites fazendo planilhas no computador de casa até alta madrugada. O valor que agrego é este: meu sangue. Mas, como me deram o convênio durante três meses, resolvi cumprir mais essa meta institucional e agendei a consulta. Sentei-me na poltrona macia e aconchegante diante daquele homem bonito que me ofereceu água – aceitei, embora estivesse segurando o xixi. Ele se apresentou, disse que atuava há dez anos na clínica, naquela sala branca, com dois belos quadros, uma estante e um tapete bem bacana. Eu queria aquele tapete. Se bem que seria um desperdício porque o pequeno come de tudo pelo chão. E o marido é igual ao pequeno. Suja tanto quanto. – E você? O que te traz aqui? De imediato respondi que estava com alguns problemas de relacionamento no trabalho e o RH tinha achado interessante eu recorrer a um apoio. O homem bonito ficou em silêncio, me olhando. Qual é? Errei a resposta? Não é para isso que estou aqui? – E você? O que te traz aqui? Ele repetiu a pergunta e eu tive vontade de dizer “Acabei de falar, porra!”. O olhar mudo persistia. Em menos de dez minutos após aquele aperto de mão amistoso, minha vontade era chutar o saco daquele cara almofadinha que queria a respostinha certa na hora exata. Fiquei olhando fixamente para ele, em silêncio. – Você consegue me dizer o motivo de estar aqui? Eu talvez não fosse uma pessoa bem-vinda. Ou não seja uma boa história para preencher a tarde do moço 14
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bonitão. Ou ele não sabia o que queria e estava matando tempo. Ia ganhar o dele com uma pergunta apenas. Foda-se porque o convênio era do escritório, não estava saindo do meu bolso e... – EU SOU LOUCA! Foi como uma explosão. Ouvir minha boca repetir o que meu chefe disse quando arremessei um marca-texto na cara do cliente grosseiro me deixou assustada. “Você é louca!” e mandou eu me retirar da sala. Senti um ódio imenso! Dele, do cliente, da merda toda do escritório, da passividade do marido desempregado, do bilhete da professora do pequeno, e só o combo coxinha e Coca-Cola do boteco em frente ao ponto de ônibus me acalmou. – Fale mais sobre isso. Sobre essa “loucura”. Ele fez aspas com as mãos. Achei pedante, mas me concentrei em narrar os fatos. E assim passei o resto do tempo. No final, o moço com cara de garoto criado em apartamento disse que trabalharíamos essa loucura. Nos despedimos. As pizzas debaixo dos meus braços tinham secado no ar-condicionado 22 graus da sala. Parei para fazer xixi. Cassete! O cara comprou a ideia de que sou maluca. Peguei o pequeno na escola, chegamos em casa e o marido tinha feito sopa. Minha fome era de bife acebolado com fritas e bacon. Reclamei do jantar. Chequei o e-mail do escritório. O pequeno comeu e dormiu. Fui para a cama, marido assistia a uma série. Falou algo sobre a nova temporada, trocaram um ator bom por outro meia-boca. Perguntei se ele me achava maluca. 15
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– Ah... às vezes você é nervosa. Parece meio doida. Não que seja doida. É seu jeito. Entende!? Afff. Por que perguntei, né? Dizem que quando você faz a tal psicoterapia a vida começa a mudar. Na minha, depois da primeira consulta, não aconteceu nada. Fiquei um pouco frustrada. Mas, passados sete dias, voltei para encontrar o meninão criado pela avó. Ele é bonito mesmo. Não usa aliança. Sorte dele, não se casou. Namora, de certo. Com homem, será? Não dá pinta. Será que é chato perguntar onde ele comprou o tapete? Hoje me arrumei melhor. Não estou suando, deu tempo de escovar os dentes depois do almoço. – Boa tarde, tudo bem? Vamos entrar! Confesso que fiquei contente em vê-lo e sentar naquela poltrona macia. Ele me perguntou como passei desde a última sessão. Eu disse que tinha ficado “igual” (me senti irônica fazendo aspas com os dedos). E ele, repetindo o gesto, pediu para descrever esse “igual”. Falei do único dado novo daquela semana: uma voz persistente que me dizia “você é louca!”. – E você acha que é “louca”? Eu fico bem irritada quando o moleque leite com pera me devolve a pergunta. Mas a verdade é que sim. Eu sou louca. – Porque eu brigo mesmo! Não tolero passada de perna na vida nem apalpada na minha bunda no ônibus cheio. Também não abaixo a cabeça para cliente mal-educado estando segura do que estou fazendo. E brigo com o marido por estar cansada de pagar as contas da casa e cuidar do pequeno sozinha, sob o pretexto fajuto de “ele prefere 16
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a mãe”. Na real, passei a vida inteira brigando. Lembro de como reagia quando os meninos da escola armavam alguma para mim ou outra menina. Dei na cara do valentão da sala. Por sorte, a professora chegou e apartou. Eu teria apanhado feio aquele dia. Trabalho então... Até hoje tive só uma chefe mulher, que foi demitida quando engravidou. Eu mesma fui demitida quando engravidei! E para conseguir um novo emprego falei na entrevista que o pequeno ficaria com a avó – uma já morreu e a outra mora na Bahia. Menti. Mas só assim deu certo. E quer saber a maior briga da minha vida com quem foi? Meu pai. Ameaçou me pôr para fora de casa se eu fizesse tatuagem. Meu irmão tinha quatro! Porra! Que diferença faz!? Fui lá e fiz duas, de uma vez. Tomei uma surra do velho, apoiado pela minha mãe, que achou indecente eu fazer aquilo. Mas está aqui. Marcado na minha pele, no meu corpo. Quer ver? – É ruim ser louca? Eu pedi para tomar água. Senti um breve sufocamento. Chorei. Detesto chorar. Fico inchada, olho esbugalhado, nariz remelento. Apesar disso me senti bem. Parece que vomitei um elefante entalado na minha garganta há anos. Relaxei. Eu dormiria o resto do dia nessa poltrona deliciosa. O moço bonito fez algumas anotações num caderno de capa preta. Fiquei curiosa, mas, por educação, não perguntei o que escrevia. Enquanto isso, falamos amenidades, e me recompus. Terminamos a sessão com um aperto de mão complacente. Já no ônibus, me dei conta de que não respondi à última pergunta. Eu voltei mais algumas semanas. O danado é bonito mesmo. Um sorriso iluminado, coisa de quem fez 17
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clareamento. Continuo achando que ele é desses que nunca soltaram pipa na rua, tinha um pai ausente e uma avó que lhe fazia mimos. Psicólogos são estranhos. Neutros. Não falam de si. Então, criei a minha versão da vida dele. Nas sessões que se sucederam falei muito sobre mim. Pais, casamento, trabalho, pequeno, marido, amor, sexo, sonhos. Ouvir minha voz narrando essa vida cheia de perrengues, aventuras e mil coisas me fez entender o sentido de ser quem sou. Na última sessão dei-lhe um abraço de agradecimento (e descobri músculos bem firmes por baixo da camisa alinhada). O cara é bom. Conseguiu me ajudar a resfriar o caldeirão fervente que era minha cabeça. E eu também fui incrível, porque... sei lá por quê. Precisa ter motivo para se sentir assim? Já faz algum tempo que tive alta da terapia. E hoje fiquei pensando na pergunta que nunca respondi. “É ruim ser louca?” Não. Não é ruim. Porque as loucas como eu movem o mundo. Exigiu que o cara fechasse a perna para você se sentar no banco do ônibus? É louca. Pediu um sexo selvagem com o marido? É maluca. Falou na reunião que as estratégias propostas não serão suficientes para atingir os resultados? É insana. Falou em violência doméstica, estupro e feminicídio na reunião de família? Precisa de psiquiatra. Abortou? Queima! É bruxa! Imagina viver conformada com tudo isso? Sufocada como nos tempos do espartilho e da pose de mocinha? Não. Inconcebível. No mundo das normalidades convenientes eu quero mais é ser a doida varrida. Não é fácil, claro. Às vezes a pressão é tanta que o marca-texto poderia ser uma bazuca, assim a gente já 18
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acertava vinte pessoas de uma vez. Nessas horas é bom ter alguém para ajudar a organizar o caos e ter um boteco com coxinha e Coca-Cola por perto. Na falta de um deles, a gente se sustenta naquilo que é. Eu sou louca. Incrível. E não tenho cura.
FERNANDA MIGUEL É FORMADA EM JORNALISMO, ESTUDA PSICOLOGIA E TRABALHA COM GESTÃO PÚBLICA. BAURUENSE, TEM 36 ANOS. APRECIA OUVIR HISTÓRIAS E SENTIR PESSOAS. NARRA EM SUAS CRÔNICAS AQUILO QUE ALCANÇA DO MUNDO.
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