O pulsar da resistência
A história de Alberto de Souza, um homem entre revoluções
O pulsar da resistência
A história de Alberto de Souza, um homem entre revoluções Arthur Monteiro Júnior
MIREVEJA
E D I T O R A
2019
Copyright © 2019 by Arthur Monteiro Júnior Direção editorial: João Correia Filho Capa e projeto gráfico: Alexandre Pottes Macedo Tratamento de imagens: Alexandre Pottes Macedo Preparação e revisão: Fabiana Biscaro 1a Edição - 2019
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Monteiro Júnior, Arthur, 1963 O pulsar da resistência : a história de Alberto de Souza um homem entre revoluções / Arthur Monteiro Júnior. -- Bauru, SP : Mireveja, 2019. 128 p. ISBN 978-65-80380-01-5 1. Souza, Alberto de, 1908-1991 - Biografia 2. Brasil - História - Revolução Constitucionalista, 1932 2. Brasil - História - Revolução Paulista, 1924 3. Brasil - História - Golpe civil-militar, 1964 I. Título CDD 923.5511 19-1647
Índices para catálogo sistemático: 1. Ex-combatentes - Biografia Todos os direitos desta edição reservados a Mireveja Editora Ltda. Rua Maria Cecília de Oliveira Maciel, 1-13 Jd. Colonial – Bauru-SP – CEP 17047-625 Fone: (14) 3245 6571 www.viagemaopedaletra.com
À minha mãe, Irene Cardoso de Faria Monteiro. A Lilian Zanetti, companheira de sonhos e de lutas. Ao amigo Antonio Pedroso Júnior, grande incentivador da publicação deste livro. Ao amigo Sidnei Lopes e à amiga Vera Maciel, camaradas com quem tive a felicidade de compartilhar a amizade do biografado.
Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã.
Carlos Drummond de Andrade
Sumário Caminhos da re-existência
12
1. Entre revoluções 14 A Revolução de 1924
16
Fuga da capital
21
Rebeldia precoce
24
Rumo à metrópole
31
Tempo de guerra
36
O exílio
38
O retorno a São Paulo 41 A caminho de Santos
45
A Revolução Constitucionalista 48 1933: a viagem pelo Brasil
52
O combate na praça da Sé
55
Outros conflitos
59
O Levante de 1935
63
A tortura
10
66
2. Interiores
Marcas da violência
76
A mudança para Bauru
78 81
O reinício da militância O caso Sampieri
90
A década de 1950
93
O racha do PCB
96
84
O Golpe de 1964 – a Ditadura está nas ruas A companheira Amélia
99
103
A descoberta dos estudantes
104
Entre amigos 109 A visita de Prestes
112
A resistência 114 Agradecimentos Bibliografia
118 120
11
Caminhos da re-existência Antonio Pedroso Júnior Conheci Alberto no início da década de 1960. A primeira imagem que tenho do protagonista deste livro é em um palanque instalado na esquina da avenida Rodrigues Alves com a rua Rio Branco, duas importantes vias da minha cidade natal, Bauru, onde eu vivia e onde Alberto passou os últimos anos de sua vida. Acontecia ali um comício de Luís Carlos Prestes. Recordo que meu saudoso pai, Antonio Pedroso, conseguiu um autógrafo de Prestes em um exemplar da revista Manchete que estampava a foto do eminente comunista na capa. Em uma das indesejáveis visitas da repressão à nossa residência, em 1964, essa revista foi confiscada. Vinte anos depois, em 1984, Arthur Monteiro Júnior, à época um jovem estudante de Direito de Bauru, conheceria Alberto de Souza de forma muito semelhante à minha – era atraído pela figura de Luís Carlos Prestes, que participava de um comício das “Diretas já” numa importante praça da cidade. No palanque, sentado em uma cadeira, ao lado de Prestes, encontrava-se Alberto, um senhor de cabelos brancos que recebia o respeito de todos os presentes e era anunciado como figura importante da esquerda brasileira. Não entrarei nos detalhes dessa passagem, pois ela está muito bem contada neste livro. A mim cabe chamar a atenção para o fato de que essas duas passagens (para além de suas coincidências) simbolizam algumas das principais qualidades desta obra: tratam ao mesmo tempo das grandes revoluções ocorridas em nosso país e dos dilemas humanos, vividos na intimidade. Adentram a trajetória de célebres personagens da história, como Prestes, e os caminhos de milhares de pessoas que anonimamente lutaram por um mundo melhor. Tocam na violência incomensurável das guerras e, ao mesmo tempo, na
12
brutalidade cotidiana, muitas vezes invisível, latente. Resgatam momentos importantes da nossa memória, como as revoluções de 1924, de 1932, o Golpe de 1964, enquanto nos apresentam a linha do tempo de um homem com suas contradições, desejos e dilemas. Alberto passou por tudo isso. A tortura na prisão, por exemplo, deixou sequelas que complicaram ainda mais a vida do velho sapateiro, profissão que exerceu durante décadas. No final da vida, andava apoiado nos móveis de uma pequena casa de madeira, e só não teve um destino ainda pior por ter sido descoberto por um grupo de estudantes e militantes da cidade, que o ajudavam como podiam. Claro, ao mesmo tempo bebiam numa fonte inesgotável de histórias e lutas. Entre esses jovens estava Arthur. Com o falecimento de Amélia Auradel, a companheira de Alberto, intensificaram-se as visitas e os cuidados. Além dos que moravam em Bauru, estudantes de outras cidades que militavam na esquerda aproveitavam a passagem pela região e colocavam na agenda uma conversa com o ilustre comunista. Ancorado na amizade, no respeito e na observação, Arthur Monteiro Júnior (que também se formou em Jornalismo) mergulhou no passado do velho combatente, conhecendo em detalhes suas andanças em busca da sobrevivência, mas também sua participação no Partido Comunista Brasileiro e nos movimentos revolucionários. Está tudo aqui na biografia de um homem cuja coerência faz falta nos dias de hoje, principalmente em um momento político como o atual, no qual conquistas da classe trabalhadora estão sendo destruídas e jogadas na lata do lixo da história. Arrisco dizer que o protagonista deste livro já estaria nas ruas, lutando contra a tirania que se avizinha e se impõe. Não está, infelizmente. Mas sua trajetória acaba de ganhar o mundo, de ir para as mãos de leitores ávidos, de perpetuar-se como um livro. Antes de terminar, creio que caiba aqui um provérbio africano que uso com frequência: “Enquanto os leões não tiverem um historiador, os caçadores serão os eternos vencedores”. Que bom que o guerreiro, o leão indomável Alberto de Souza, encontrou em Arthur Monteiro Júnior um amigo, um biógrafo e, agora revelado, um grande narrador.
13
1. Entre revoluções
A Revolução de 1924 Pelos céus da cidade de São Paulo zuniam granadas. Nas ruas por onde, cotidianamente, seus habitantes transitavam a caminho do trabalho, somente se via destruição. Os paralelepípedos, por onde carros e bondes circulavam, agora serviam como trincheiras para os soldados: era a Revolução. A maior cidade do país estava à beira do caos; quem podia, fugia apressado para outras regiões, ou para a casa de parentes em áreas distantes. Aos que ficavam, restava torcer para que não fossem atingidos pelos bombardeios, quase que incessantes. Os saques no comércio local passaram a ser constantes, e as forças legalistas, no intuito de dizimar o ânimo dos rebeldes e desmoralizá-los perante o povo paulistano – que lhes era simpático –, atacavam sem piedade os civis, destruindo bairros inteiros. Talvez tenha sido a maior carnificina sofrida pela população de São Paulo. Em julho de 1924, o país era governado por Artur Bernardes, que desde o início de seu mandato havia se tornado bastante impopular. Dois anos antes, pressionado, de um lado, pelo avanço das lutas dos trabalhadores e, do outro, por rebeliões sucessivas dos tenentes do Exército, Bernardes tinha decretado estado de sítio e, sob ele, governava. A repressão aos opositores levou milhares de pessoas à cadeia, especialmente a colônias prisionais, de onde poucos saiam com vida. A truculência que demonstrava para com os críticos do seu governo iria se confirmar na reação às forças rebeldes que tomavam a capital paulista. Entre a gama de grupos oposicionista estavam os tenentes, que, vinculados a um setor militar pertencente à baixa oficialidade, perfaziam, no começo da década de 1920, cerca de 65% do corpo de oficiais. Eles eram originários, em sua maioria, das camadas médias da população. Apresentando um valor significativo enquanto força política, viam na ação governamental uma
16
barreira ao sonho de ascensão social. Assim, as críticas passaram a ser cada vez mais constantes e agressivas, inclusive à hierarquia militar. Os militares reivindicavam melhores condições de vida, com o aumento do soldo, bem como maior representatividade para os setores intermediários do Exército. Ao contrário de movimentos militares anteriores, a Revolta de 1924 não foi aleatória e teve uma fase preparatória e de organização, que se iniciou em 1923. Na verdade, ela pode ser considerada uma consequência de levantes como a insurreição dos “18 do Forte”, ocorrida no Rio de Janeiro em 1922, mas com dados novos: havia agora um projeto político – embora vago – e a participação de civis, ainda que restrita à classe média. Os revoltosos queriam a formação de um governo provisório, a eleição de uma nova constituinte e a realização de reformas políticas de cunho liberal. Entre as propostas, o voto secreto, descentralização federal, limitação das atribuições do Poder Executivo, moralização e independência do Legislativo, assim como a ampliação da autonomia do Judiciário, e obrigatoriedade do ensino primário e público. Eram medidas saneadoras que pouco tinham a ver com a realidade do povo, já que não faziam referências à questão social nem apresentavam críticas aos princípios econômicos do domínio oligárquico. Por consequência, não havia participação popular nas lutas que se travavam nas ruas de São Paulo, coisa que até mesmo os próprios revoltosos temiam. Como a oposição ao governo federal era geral, os tenentistas gozavam de grande popularidade junto à opinião pública. Mesmo assim, possuíam profunda despreocupação com os anseios populares, pois acreditavam que o enfretamento que tinham com as forças militares legalistas era uma missão quase “técnica”, de uma vanguarda militar. Nessa época, a população da cidade de São Paulo não chegava ainda aos 600 mil habitantes, conforme dados de 1920, sendo que grande parte era constituída de operários, muitos deles estrangeiros, principalmente italianos e espanhóis que haviam fugido das lutas políticas em suas terras de origem. Era o momento em que a capital paulista começava a se industrializar. A articulação revolucionária interligava os focos de agitação unindo vários pontos do país. No entanto, São Paulo fora escolhido como núcleo principal, pois o local inicial do movimento – o Rio de Janeiro, palco da revolta militar em 1922 – estava sob extrema vigilância policial, impedindo qualquer
17
movimentação maior. Além disso, em São Paulo havia o apoio da Força Pública, cujo líder, Miguel Costa, aliara-se aos tenentes. Para dar respaldo ao movimento, os tenentes tinham em mente convidar para a sua chefia um oficial graduado. Como o intento não fora alcançado, conseguiram que o posto fosse ocupado pelo general reformado Isidoro Dias Lopes. Devido a alguns contratempos de última hora, o movimento só eclodiu em São Paulo. Na madrugada do dia 5 de julho, em homenagem aos dois anos da tomada do Forte de Copacabana, as tropas rebeldes do Exército e da Força Pública tomaram de assalto os principais pontos estratégicos da capital paulista, ocupando-a até o dia 27, sob o comando de Miguel Costa e Dias Lopes. Com a prisão do general Abílio Noronha, comandante da 2ª Região Militar, bastava sufocar a resistência do Palácio dos Campos Elísios, sede do Poder Executivo, onde tropas legalistas ainda faziam campanha. Com a fuga do governador Carlos de Campos, no dia 8 de julho, os rebeldes tomaram conta da cidade, sob a liderança de Dias Lopes. Mas a vitória foi sufocada pelo bombardeio massivo das tropas federais, que colocaram 14 mil soldados legalistas para o enfrentamento dos 3,5 mil insurgentes. Bombas espalharam-se transformando a cidade em terra arrasada e causando a morte de muitos civis. Nesse cenário de destruição, após vários dias, o comando dos revoltosos, no intuito de evitar tragédias maiores envolvendo a população paulistana, decidiu-se por recuar, rumando para o interior. Nessa esteira, com o passar do tempo, os rebeldes aderiram à estratégia de guerra de movimento, dirigindo-se para o sudoeste do Paraná, na região de Foz do Iguaçu. De forma geral, além de todo o planejamento teórico que antecedeu a Revolução de 1924, houve também um grande preparo militar, inclusive porque existiam, entre os revoltosos civis, alguns que nunca haviam manuseado armas. Esse era o caso de Alberto. Alistado junto ao grupo de insurgentes, o rapaz permaneceu em treinamento no quartel durante quinze dias aprendendo o uso correto de armas pesadas. Nenhum dos colegas da época o acompanhou na revolução, mas com ele estavam muitos outros civis, inclusive vários imigrantes. Desse modo, encerrado o período de preparo, foi formado em São Paulo o 1º Batalhão, composto majoritariamente por voluntários e também por policiais, totalizando cento e
18
poucos homens que enfrentariam as tropas legalistas que cercaram a capital paulista, bombardeando-a. Depois de entender minimamente como seria a luta, partiram para a linha de frente. Aos 16 anos, Alberto viu de perto a grande tragédia da guerra: desumanidade, falta de escrúpulos e, muitas vezes, ausência de objetivos mais concretos. Porém, sabia por que lutava, afinal tanto ele como a maioria dos revoltosos estavam insatisfeitos com o governo federal, e a violência dos legalistas somente aumentava seu descontentamento. Infelizmente a desigualdade das forças era visível. Além disso, a tática de terra arrasada, adotada pelos legalistas, prejudicava ainda mais a resistência dos rebeldes. Alberto atuou no Alto do Ipiranga, onde os insurgentes tomaram uma tecelagem armados de metralhadoras e fuzis. Os legalistas contaram com o apoio dos marinheiros, que vieram de Santos combater junto com as tropas oficiais. Enquanto houve munição, os revolucionários permaneceram na batalha. Mas a resistência não durou muito; tornou-se impossível enfrentar o fogo cerrado das tropas bem armadas. Esgotados, pouco restava aos rebeldes, a não ser evadir como podiam: era a hora do salve-se quem puder. Na fábrica havia um grande bueiro que escoava exatamente no rio Tamanduateí. Enterraram as armas nas proximidades e por ali se esgueiraram. Após a fuga, a primeira coisa a ser feita era trocar o uniforme de revolucionário por uma roupa de paisano e, assim, escapar da perseguição policial. Usando essa estratégia, com a ajuda de amigos, Alberto ficou durante algum tempo isolado em São Paulo. Enquanto isso, as tropas revolucionárias já tinham se retirado para o interior, encontrando trânsito livre até a cidade de Bauru, noroeste do Estado, com o objetivo de chegar até Três Lagoas, no Mato Grosso. Na cidade paulista, Dias Lopes, chefe supremo dos rebeldes, foi informado da presença maciça de tropas federais cercando Três Lagoas. Diante do imprevisto, o plano teve que ser alterado, e seguiram pela Estrada de Ferro Sorocabana para o oeste, alcançando o porto de Presidente Epitácio, onde já havia alguns barcos os aguardando. Nesse período, surgiu uma séria divergência entre setores da Coluna Paulista: Dias Lopes propunha uma guerra de posição, que conquistasse e mantivesse um território a partir do qual a luta revolucionária pudesse se expandir gradativamente. Já o general João Francisco preferia uma guerra de movimento,
19
enquanto aguardavam a eclosão do levante do Sul, comandado pelo então capitão Luís Carlos Prestes. A concepção que prevaleceu foi a primeira, mas a derrota em uma batalha decisiva modificou a direção da marcha, passando a valer a orientação de João Francisco. Ocorrido o levante no Sul, alguns membros da Coluna Paulista partiram para a região a fim de engrossar o contingente gaúcho; porém, a maior parte dos paulistas desceu o rio Paraná, concentrando-se em Foz do Iguaçu. Com a derrota, os revolucionários sulistas se concentraram em São Luís das Missões, sob a liderança de Prestes, com o objetivo de marchar ao encontro da divisão paulista. No entanto, a empreitada não seria fácil. Além do imenso território a ser percorrido, havia 10 mil homens do Exército, chefiados pelo general Cândido Rondon, empenhados em impedir a junção das forças revolucionárias. Com a direção de Prestes foram organizados três destacamentos, comandados pelos tenentes Siqueira Campos, João Alberto e Mário Portella Fagundes, num total de 2 mil homens que iniciaram a marcha em direção ao Paraná. A estratégia de Prestes foi definida em carta endereçada a Dias Lopes durante a trajetória: “A guerra no Brasil, qualquer que seja o terreno, é a ‘guerra de movimento’. Para nós revolucionários, o movimento é a vitória. A ‘guerra de reserva’ é a que mais convém ao governo que tem fábricas de munição, fábricas de dinheiro e bastantes analfabetos para jogar contra as nossas metralhadoras”. Finalmente, no início de abril de 1925, foi possível unir as duas posições, dando origem à Coluna Miguel Costa-Prestes, que num período de quase dois anos (até fevereiro de 1927) percorreu cerca de 24 mil quilômetros pelo interior do país, sem perder nenhum dos 53 combates que travou com as tropas federais, as polícias estaduais e os jagunços contratados por “coronéis” que dominavam vastas regiões. Obtendo informações sobre o rumo tomado pelos rebeldes paulistas, Alberto seguiu ao seu encontro, contando com o dinheiro que restava do que havia recebido na campanha. Em Santana do Parnaíba, no interior de São Paulo, finalmente encontrou alguns grupos revolucionários, no momento em que conquistavam a cidade.
20