[AMOSTRA] O gabinete secreto do Sr. Tennet - Evan Klug

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O GABINETE SECRETO DO SR. TENNET

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[Alerta de gatilho:

a obra a seguir pode conter cenas que causam desconforto ao leitor. Prossiga com cautela .]

Prólogo

O SILÊNCIO SEPULCRAL só era quebrado pelo exíguo ruído de mais uma pedra sendo assentada. A luz à querosene era diminuta. O indivíduo com a capa negra era habilidoso no que fazia, mas não tinha pressa. Gostaria até de assoviar, mas isso poderia ser uma atitude imprudente. O silêncio era seu aliado. Aprendeu isto desde muito cedo.

Não havia testemunhas. Talvez, apenas, um quase invisível corvo. Não foi visto, mas o seu crocitar fantasmagórico foi ouvido pelo assentador de pedras. Como há vinte anos, o ar parecia ter um novo odor. A brisa da madrugada acariciava sua face impávida, nem uma gota de suor lhe escorria pela testa.

Em apenas uma hora a pequena muralha formou-se ao redor do cadáver. Pedra a pedra erguerase, ligada por porções de cimento. Não se poderia dizer como tão rapidamente se fizera, nem sob a ação de um construtor habilidoso.

A misteriosa figura levantou-se com um sorriso nos lábios, deu uma última olhada para o defunto, um homem rico, mas que nu, poderia ser qualquer um. Um dente de ouro era toda a riqueza que lhe restara. A luz da lamparina banhava de dourado a face de seu algoz. O sorriso desfez-se lentamente. A lâmina do bisturi riscou o alto da testa do morto, contornou as entradas calvas, preservando o couro cabeludo, e veio descendo por trás das orelhas até abaixo do queixo barbeado. As linhas rubras, quase negras escorreram com pouca força. Repetiu o mesmo do outro lado da face e, em alguns segundos, ergueu diante de si, como se fosse uma máscara, o rosto recortado da vítima. Conferiu o trabalho com zelo. Encarou o defunto sem rosto com desprezo, então usou a mesma lâmina para lhe ferir a jugular e deixar escorrer o voluptuoso sangue carmesim. Aparou o líquido fúnebre em um recipiente de metal e esperou até que a última gota escorresse

Tirou a lamparina do lado do morto, pousando-a novamente no chão enlameado do bosque. O construtor ergueu uma grande pedra chata sobre a murada que envolvia o corpo. Parado ali, sobre sua pequena obra arquitetônica, ele aparentou rabiscar alguma coisa.

A insólita figura, guardou o recipiente metálico e a máscara facial recortada da vítima, apanhou o seu chapéu, a lamparina e a bolsa contendo seus apetrechos e espólios macabros e desapareceu tão repentinamente como aparecera. Em poucos minutos o corvo pousou sobre a pequena muralha, curioso com o novo elemento da paisagem, a qual, com seu conteúdo, permaneceram ali, impassíveis.

Quando encontrada, a misteriosa construção causaria estranhamento, no entanto, o lugar era ermo. O assassino tivera o cuidado de providenciar para que fosse descoberto.

CAPÍTULO 1:

Dias de vingança

A AGITAÇÃO ERA perceptível na margem do bosque e seguia até a estrada que levava a Plymouth. Agentes visivelmente nervosos da polícia local perambulavam impacientes, aguardando ordens. Mais uma manhã nublada como tantas outras. Escondido por trás das nuvens cinzentas o sol já devia estar alto a esta hora da manhã.

Ao longe, a formação rochosa que dava nome ao lugar, dava ares de apreciação a inquietação incomum. Crowville não era um desses lugares onde algo interessante acontecia com frequência.

Uma vila abastada, porém, ainda dependente da administração pública de Plymouth. Seus moradores, em sua maioria, famílias que enriqueceram com negócios no porto da cidade. Coincidentemente ou não, nenhuma delas incorporava a Marinha Real de Vossa Majestade cuja base situava-se em Plymouth. A própria Plymouth ou Devonport eram as preferidas dos militares. Desta forma Crowville ficava um tanto isolada da agitação do porto, ao mesmo tempo que se situava próxima o suficiente para os que tinham negócios a tratar com regularidade na região dos embarcadouros.

— Estava indo levar uma mensagem do meu patrão para a tripulação do seu navio quando vi esta camisa à beira da estrada. Desci do cavalo, pois achei estranho, já que parecia estar suja de sangue. Mais à frente encontrei um par de botas.

— Então, rapaz, foi seguindo até adentrar no bosque? — o Inspetor-chefe franziu a testa enquanto ouvia o jovem.

— Sim, senhor. Achei que algo de muito errado poderia ter acontecido. O senhor não acha?

— É possível. Prossiga.

— Fui encontrando peças de roupa nos galhos pelo caminho até ver aquela coisa estranha ali. Alguém construiu aquilo. Então decidi voltar até Crowville e lhes avisar — o garoto, de não mais de dezesseis anos, demonstrava na face suada um misto de heroísmo com a preocupação de ser implicado de alguma forma.

— Está bem. É tudo por enquanto — o inspetor passou os dedos pelo volumoso bigode enquanto recolocava o chapéu sobre os cabelos castanho-escuros cuidadosamente penteados.

— Acha que há um corpo dentro daquela coisa, inspetor Jones?

Já vamos descobrir, já vamos descobrir

Ofegante, outro homem bem mais jovem que o inspetor Jones chegou correndo:

— O senhor precisa ver isso, chefe.

— O que foi, Roberts?

— É melhor o senhor ver com seus próprios olhos... e estamos lhe aguardando também para removermos a pedra.

— Diabos! De que tipo de loucura estamos falando, afinal?

Os dois homens seguiram a passos largos para o interior do bosque. No pequeno trajeto, Jones verificou as vestimentas banhadas de sangue, deixadas no caminho para que a inusitada construção fosse encontrada.

— Que monte de merda é essa? — a voz do bigodudo saiu quase como um sussurro.

Diante deles, o rastro é evidente, levando até a pequena fortaleza de pedras, onde um policial estava abaixado com o rosto próximo ao solo.

— Por São Jorge, que diabos está fazendo, policial?

— Estou verificando se é mesmo sang...

— Você está contaminando toda a cena do crime. Está pisando sobre as pegadas! Saia da minha frente! Comprometeu a cena...

— Perdão, senhor — o jovem policial esgueirou-se para fora do caminho dos dois inspetores que pisaram com cuidado, lateralmente, na direção da pequena muralha de pedras.

— Agora, por favor, alguém me diga que mediram as pegadas antes desse imbecil pisar sobre elas.

Silêncio. Os agentes entreolharam-se, mas ninguém pareceu ter pensado no básico

— Nem você, Roberts? — Jones mirou ferozmente o inspetor-adjunto a seu lado.

— Me desculpe, senhor. Nunca estivemos em uma cena de crime antes.

O experiente Jones passou os dedos pelo bigode em silêncio, obrigado a concordar com seu assistente. Crowville jamais viu um crime de verdade. Somente ele já havia visto coisas desse tipo na sua juventude em Plymouth.

— É isso que queria que eu visse, Roberts?

— Chegue mais perto senhor, tem uma coisa escrita sobre a tampa.

Jones aproximou-se com cuidado chegando diante da construção. Sobre a pedra chata que cobria o topo da murada havia uma inscrição.

Jones leu. Os olhos arregalaram-se. Empalideceu. Tirou um lenço do bolso e secou o suor da testa.

— Parece ser uma passagem bíblica, senhor. Mas não tenho certeza — disse Roberts.

— Venha, me ajude com isso. Com cuidado! — ordenou Jones

O inspetor-adjunto segurou de um lado e, junto com Jones e mais dois agentes, retiraram a tampa da pequena muralha com dificuldade e a colocaram sobre o solo. Em seguida ambos se levantaram para olhar dentro. O experiente inspetor demorou a abrir os olhos, se preparou para

contemplar o conteúdo do invólucro de pedras. Abriu-os. Sua face pálida ensaiou o pânico por dois segundos. Conteve-se.

— Ele não tem rosto — Roberts se benzeu fazendo o sinal da cruz.

O inspetor-chefe se abaixou retirando algo de sobre o corpo.

— É Lancaster. O maldito teve o cuidado de deixar os documentos junto ao corpo.

— Ele está nu, senhor.

— Eu sei disso, as roupas dele estão pelo caminho.

— Mas parece que está faltando mais alguma coisa, senhor.

O inspetor Jones estreitou os olhos tentando enxergar melhor na penumbra.

— Me tragam luz! — ele esbravejou.

Rapidamente um policial acendeu a lamparina e a entregou a Roberts tomando cuidado para não pisar sobre qualquer pista que levasse ao criminoso. Com o respaldo da luz, o homem de bigode examinou o corpo. Realmente algo lhe faltava. Jones se abaixou e apanhou um graveto e com o auxílio da ferramenta improvisada abriu a boca descarnada da vítima.

— Deus tenha piedade de nós. Ele voltou!

— Voltou? Quem voltou, senhor? — Roberts indagou atemorizado.

— Vá, agora, até o Dr. Robinson. Mande-o vir para cá imediatamente.

— Sim senhor.

— Só então, depois que o legista se dirigir para cá, vá até a casa dos Lancaster e avise a senhora... que me aguarde em meu escritório.

— O que dirá a ela, senhor?

— Somente o necessário.

Roberts saiu apressadamente levando mais dois agentes policiais consigo. Os olhos do inspetor Jones repousaram novamente sobre a pedra achatada que servira de mausoléu para o desafortunado Sr. Lancaster.

“Porque dias de vingança são esses, para que se cumpram todas as coisas que estão escritas.”

CAPÍTULO 2:

A viúva

ETHEL ESTAVA IMPACIENTE, enxugando as lágrimas e andando de um lado para o outro quando Jones abriu a porta.

— Me desculpe fazê-la esperar Srª. Lancaster. Ontem a senhora veio me procurar dizendo que seu marido não havia retornado para casa.

— Sim, inspetor. Não consegui encontrá-lo e parece que ninguém sabe dele. Eu espero que tenha boas notícias. Não aguento mais de tanta aflição.

Jones sentou-se diante de sua mesa olhando fixamente para a mulher:

— A notícia que tenho não é nada boa, Srª. Lancaster.

Os olhos da mulher arregalaram-se na direção do inspetor. Novas lágrimas desceram-lhe pelo rosto.

— Eu sinto muito. Anthony era um bom amigo. Um bom homem, e até onde sei, um ótimo marido também.

— Sim, ele era. Não acredito que já estou falando no passado. Ele ainda é um bom marido — Ethel colocou as mãos sobre o rosto e os soluços aumentaram enquanto ela tentava se conter.

— Pode chorar, Srª. Lancaster, vai fazer bem. O corpo do seu marido encontra-se com o Dr. Robinson que está fazendo a necrópsia, mas deverá vê-lo mais tarde, uma simples formalidade para fazer o reconhecimento, assim que ele terminar.

— Em que... condições ele... morreu? — Ethel balbuciou por entre o choro.

— Então, Srª. Lancaster... — Jones hesitou por um instante. — ele foi assassinado.

— Assassinado? — os olhos da mulher arregalaram-se novamente.

— Eu lamento muito, Srª. Lancaster.

— Ethel, me chame de Ethel... Assassinado? Por quem?

— Ethel... é aí que tudo fica muito estranho. Sabe se seu marido se envolveu em algum tipo de... crime?

A viúva levantou a cabeça e olhou para o inspetor como se não houvesse entendido a pergunta, afinal era seu marido que havia sido assassinado.

— Por favor, não me entenda mal. Eu preciso excluir todas as suposições. Seu marido demonstrou algum comportamento estranho recentemente?

— Não, Tony era honesto. Extremamente honesto. Parecia tudo normal, como sempre foi. Mas por que me pergunta tal coisa?

— Não sei, nada importante, no momento. Sabe se seu marido tinha inimigos?

— Por favor, inspetor, diga-me logo como ele morreu.

— O Dr. Robinson está trabalhando nisso, por enquanto o que sabemos é que, sem dúvida, ele foi assassinado.

— No porto?

— Não sabemos ao certo ainda, mas ele foi encontrado no bosque, nu, dentro de uma... construção de pedras.

— Como é?

— OK, o que vou lhe contar agora, não pode ser comentado por aí. Fica entre nós, está bem? Pode atrapalhar as investigações. Entende?

Ethel acenou com a cabeça afirmativamente.

— Está bem. Esta manhã um rapaz seguiu em direção à Plymouth quando percebeu uma camisa ensanguentada à beira da estrada. Ele achou estranho e foi olhar, então viu um par de botas, foi seguindo até parar dentro do bosque onde encontrou uma pequena murada feita de pedras com cimento. Então voltou correndo e falou com o meu inspetor-adjunto, o Roberts. Você deve conhecêlo.

O rosto de Ethel estava pálido, perplexo, acompanhando o relato da autoridade policial, mas conseguiu, por fim, responder.

— Sim, eu... eu fiz aulas de pintura com a irmã dele.

— Isso mesmo, ele foi então com reforço policial até o local. Quando percebeu que poderia ser algo sério, mandou me chamar. Eu fui prontamente até o local e quando levantamos a pedra... a tampa sobre essa... murada, encontramos o corpo do Tony lá dentro.

— Como? Isso não faz o menor sentido!

— Eu também não vejo sentido nisso tudo, mas quem quer que o tenha assassinado teve o trabalho de construir essa coisa em volta dele e... ainda deixou um recado.

— Recado? Que tipo de recado?

— Um versículo bíblico escrito com o próprio sangue do seu marido. “Porque dias de vingança são esses, para que se cumpram todas as coisas que estão escritas.” Isto lhe diz algo?

— Não — a mulher pareceu ainda mais abalada com todas estas informações —, não faço a menor ideia do significado dessas coisas. Parece obra de algum lunático!

— Eu também acho. Sabe, Ethel, esse tipo de gente costuma não parar até ser pego e eu quero muito pegar esse canalha. Mas... cá entre nós, eu não tenho recurso humano qualificado aqui. Droga! São policiais jovens, alguns tem medo até de sangue, nunca trabalharam em uma investigação de verdade antes.

— Está pensando em pedir auxílio da Yard?

— Pensei nisso, mas eles não viriam de Londres até aqui por um único assassinato e eu não quero esperar até que esse... lunático mate mais alguém para fazermos alguma coisa.

— O que quer que eu faça? Poderíamos falar com o superin...

— Não, ele não passa de um bonachão. Me desculpe a sinceridade, mas ele mais atrapalharia do que ajudaria.

— Faço qualquer coisa que ajude a capturar ou... matar esse desgraçado.

— Você tem dinheiro Ethel, pode pagar um detetive particular. Não pode?

— Claro. Mas quem?

— Conheço o homem certo. Ele é especialista nesse tipo de gente. Prendeu vários... assassinos da pior espécie, a escória. Tudo que eu sei, aprendi com ele. Uma pena ele ter parado.

— É um ex-policial?

— Sim. Ex-inspetor-chefe de Plymouth. Fui assistente dele quando era mais jovem. Ele parou faz uns vinte anos, mas é a pessoa mais qualificada que eu conheço para este caso.

— Vou pagar o que ele quiser para que pegue esse monstro!

— É aí que está o problema, Ethel. Não é apenas questão de dinheiro, ele nunca mais quis se envolver com isso e deixou a polícia... depois que não conseguiu capturar um... único lunático desses. Na verdade, ele chegou a colocar suas mãos no assassino, mas durante a luta, foi ferido e o criminoso escapou. Evaporou-se. Parece que todas as outras investigações de sucesso não lhe tinham mais importância. Aposentou-se da polícia. Naquela época nem existia Crowville ainda. O que eu quero dizer é que...

— Ele precisa ser convencido.

— Isso mesmo, Ethel, vai precisar convencê-lo a lhe ajudar.

— E onde o encontro?

— Ele é um homem muito respeitado, todos os grandes comerciantes da região o conhecem. Tony o conhecia com toda a certeza. Pois bem, ele trata de toda a documentação de entrada e saída de mercadorias do porto. Todo mundo que quer transportar ou receber algo no porto, e tem dinheiro, passa por ele. Se você precisa de trabalhadores braçais nas docas, é com ele que você arranja também. Ele conhece todo tipo de gente. É um figurão hoje em dia. Prosperou com suas habilidades em um ramo bem mais lucrativo que a carreira policial. Vai encontrá-lo nas docas. Pergunte por Ezekiah Tennet — o inspetor lhe entregou um pedaço de papel com o nome — ou simplesmente Sr. Tennet. Não tem erro.

— Preciso preparar o funeral, vai ser muito difícil, mas prometo que, assim que enterrar meu marido, vou até Plymouth procurar o tal Sr. Tennet.

— Sim, faça isso. Não aceite um não como resposta, porque é isso que vai ouvir.

— E como o convencerei? Qual é o ponto fraco dele?

— Ele não tem um. Não que eu conheça. E eu acho que o conheço muito bem.

— Tem certeza de que não há outra pessoa? Outro gênio investigativo por aí?

— Até ouvi falar de um sujeito, embora os relatos me pareçam um tanto exagerados... — Jones parou por um instante, pensativo — além disso ele está com a Yard em Londres. Acredite em mim, Ezekiah Tennet é homem certo para o caso.

CAPÍTULO 3: UM INVESTIGADOR PARA UM DEFUNTO

Sentado em uma banqueta, junto ao balcão, o homem sisudo deu um gole brusco no restante do líquido que ainda lhe restava no copo. Nem tirara o chapéu desta vez. Como entrou no Plymouth Gin Destillery, sentou-se e não falou com ninguém até aquele momento. Mesmo com o barman ele apenas sinalizara.

— Dia difícil, Sr. Tennet? — perguntou o atendente.

Ele apenas abaixou a cabeça escondendo-se ainda mais por trás da aba larga do seu chapéu fedora fazendo uma careta.

— É o Sr. Ezekiah Tennet? — questionou a mulher que acabara de entrar na destilaria.

— Depende de quem quer saber — respondeu sem sequer tirar os olhos do copo.

— Meu nome é Ethel Lancaster.

— E a senhora precisa de carregadores?

— Carregadores?

— É, carregadores, trabalhadores braçais, honestos, que não roubem o estanho ou o cobre do seu marido? Todos os documentos e licenças da sua empresa estão em dia... então só poderiam ser carregadores. Ele agora envia a mulher para cuidar dos seus negócios?

— Como sabe quem é meu marido?

— Só pode ser a esposa de Anthony Lancaster, não é mesmo? O negociante de...

— Não é sobre isso...

— Então encerramos nossa conversa, Sr.ª Lancaster. Normalmente Anthony trata destes assuntos comigo somente quando está para enviar um novo carregamento de minérios para a Ásia...

— Meu marido está morto!

Um instante de silêncio cortou a conversa e pela primeira vez Tennet tirou os olhos do copo e dirigiu-os a sua interlocutora.

— Minhas sinceras condolências, senhora. — ele levantou-se deixando alguns trocados no balcão — Agora se me der licença.

— Não vai perguntar em que condições meu marido morreu?

— Não.

— Por que não?

— Porque não me importa, além do mais, ele nem era dos meus melhores clientes.

— Isto é grosseiro, Sr. Tennet.

— Talvez..., mas é a verdade, madame.

— O inspetor Isaac Jones de Crowville me enviou.

— E por que aquela raposa bigoduda lhe mandaria falar comigo? Fiz algumas transações mais complicadas para o seu marido, dessas que envolvem países asiáticos. De resto, ele se virava por conta. Se a senhora for até...

— Ele foi assassinado!

Os poucos frequentadores do bar dirigiram sua atenção ao casal no balcão. Percebendo isso, Ezekiah falou em um tom mais ameno.

— Escute, Sra. Lancaster. Não posso ajudá-la. Não sei o que Jones lhe disse, mas eu não faço mais isso. Sinto muito.

— Eu posso pagar! Eu pagaria um bom preço para o senhor ajudar a polícia a pegar o desgraçado que assassinou o meu marido.

— Eu sei que a senhora pode pagar, e mais uma vez vou dizer: não posso, não quero e não vou me envolver nisso.

Ezekiah ajeitou o chapéu na cabeça e foi saindo.

— É mentira! — Ethel disse olhando na direção do figurão de terno alinhado, cor do céu nublado de Plymouth, que se virou novamente.

— O que é mentira?

— Que sente muito.

Tennet assentiu com a cabeça e passou o dedo pela aba do chapéu.

— Tem razão — concordou.

Abriu a porta do Plymouth Gin e saiu em direção ao porto.

CAPÍTULO 3:

O homem certo

NO DIA SEGUINTE o Sr. Tennet estava nas docas, acertando o pagamento dos trabalhadores que haviam descarregado o Genesis.

— Espero que o assunto não seja o mesmo de ontem, madame.

— Como me viu? Eu vim sorrateiramente para pegá-lo de surpresa — Ethel respondeu.

— Não preciso vê-la. A senhora pisa com mais força no pé direito. O som do salto da sua bota contra a rua de pedras lhe denuncia de longe.

— Piso com mais força? Está dizendo que eu sou manca ou algo assim?

Tennet esboçou um sorriso, sem olhar para a mulher.

— É imperceptível para a maioria das pessoas. Não se preocupe. E minha resposta ainda é não. Não perca seu tempo comigo!

— Sabe, senhor Tennet, acho que começamos com o pé esquerdo ontem, embora, segundo o senhor, seja meu pé mais suave, acredito que não fui muito agradável. Confesso que fiquei um pouco contrariada com sua resposta, mas também percebi que não cheguei a lhe formalizar uma proposta. Não lhe disse nenhum valor. Então como hoje é um novo dia, gostaria de saber se realmente não aceitaria este trabalho.

— Minha senhora, eu já tenho um trabalho, se ainda não percebeu.

— Sim, eu percebi. Este navio... é seu? — perguntou apontando para o atracadouro.

— O Genesis? — Ezekiah sorriu enquanto dois de seus empregados que estavam próximos gargalhavam — Não. Apenas descarregamos toda a mercadoria que veio de Londres. Coisa de todo o tipo. Roupas, ferramentas e até armas. Vou conferir a documentação e garantir que toda a mercadoria chegue a seu destino. Ficaria surpresa com toda a burocracia para se liberar uma simples caixa de charutos.

— Dez mil libras! Eu lhe ofereço dez mil libras para ajudar o inspetor Jones a pegar o assassino do meu marido.

— Primeiramente, não fale em valores altos como este nesse tom de voz! — Tennet deu um salto e praticamente tampou a boca da mulher que arregalou os olhos — Nem todo mundo nesse lugar tem uma carta de referências, minha senhora. Há gente de todo o tipo. Por isso meus serviços por aqui são tão importantes. Eu sei quais são os trabalhadores em quem se pode confiar, me responsabilizo por eles. Se algum deles me desaponta, reza para que a polícia o encontre antes de mim.

— Ah, me perdoe! Não imaginava que as coisas eram assim tão... bárbaras por aqui.

— Tem muita coisa que a senhora parece não saber, dona Lancaster. Inclusive que eu não trabalho mais com investigações desde que saí da polícia. E isso já tem quase vinte anos. Vivo muito bem com o que faço e nem todo o dinheiro do mundo me tentaria a me aventurar em uma investigação policial novamente. O que tenho que lhe dizer para que compreenda e me deixe em paz?

— Vinte mil libras! — ela sussurrou, desta vez — Eu realmente preciso dos seus talentos investigativos. O senhor foi muito bem recomendado.

— Jones está desesperado! Ele lidera um grupo de jovens que mal saíram das fraldas. É apenas isso! Ele só quer um parceiro.

Ezekiah apanhou seu chapéu sobre a escrivaninha e deixou Ethel falando sozinha:

— Sr. Tennet, Sr. Tennet! — ela não conseguiu acompanhar os passos rápidos do rabugento homem na direção da Barbican.

Assim que abriu a porta do Plymouth Gin ele viu um homem sentado com seu chapéu coco em uma mesinha perto da entrada.

— Já devia saber que estaria aqui.

— Relaxe, Ezekiah. Sente-se! — o inspetor tirou o chapéu e o colocou sobre a mesa.

— Eu estava relaxado até você colocar essa mulher atrás de mim — ele sentou-se de frente para o inspetor e colocou seu chapéu também sobre a mesa.

— Ah, o que é isso? Não consegue se desvencilhar de uma simples mulher?

— Ela é bem teimosa.

— Ela está desesperada! Acabou de perder o marido de um modo trágico e ainda reúne forças para ficar na sua cola. Acabou de mandar o filho único de cinco anos para a casa dos pais em Bristol. Eu me compadeço dela... e ela está decidida!

— Você sabe, Isaac, eu não quero mais me envolver com caça a assassinos, achei que tinha deixado isso claro quando pedi minha exoneração.

— Eu sei, eu sei. Infelizmente não se fazem homens como você aos montes por aí. Seu talento para esta coisa é incrível. Eu, em todos esses anos nunca mais vi alguém com a sua capacidade para resolver casos.

— Pare de me bajular, isso não funciona comigo. Você sabe que eu prefiro a discrição. Muito diferente daquele pirralho de Londres.

— Não quer nem saber nada sobre o caso? São condições que você conhece... muito bem.

— O que quer dizer?

— Tenho certeza de que é ele, Ezekiah, ele voltou! — Jones falou em um tom quase solene.

— Não pode estar falando sério...

— Se não fosse, acha que eu me daria ao trabalho de vir aqui desenterrá-lo, Tennet? Pela Virgem Maria, homem, é sua chance de finalmente pegá-lo — o inspetor deu um gole no seu gim.

— O que te faz pensar que é ele mesmo?

— Fiz com que fossem tiradas algumas fotos. Não podia perder nenhum detalhe. Veja por si mesmo!

Jones colocou um envelope por debaixo do chapéu, sobre a mesa. Ezekiah o apanhou, e começou a olhar as fotos.

— Mas que diabos é isso?

— É onde encontramos a vítima. O assassino praticamente nos levou até lá. Deixou as roupas, manchadas com sangue desde a beira da estrada, que foram encontradas por um menino, empregado dos Anderson.

Tennet continuou vendo as fotos, uma a uma.

— O que é isso? Está escrito...

— Eis aí minha conclusão, minha certeza que é dele que estamos falando. O verso escrito com sangue. “Porque dias de vingança são esses, para que se cumpram todas as coisas que estão escritas.”

— Lucas 21:22.

— Exatamente, como há vinte anos — Jones olhou fixamente para o seu mentor —, se não fosse importante, tenha certeza de que eu não teria vindo. Além do que, por mais que eu pense, não entendo esse túmulo de pedras. Não faz sentido. Por que simplesmente não largou o corpo na estrada?

— Ele gosta de nomes. Você sabe o que significa Lancaster?

— Não faço ideia.

— Pois eu poderia apostar que tem algo a ver com muralha, murada ou algo do tipo.

Jones franziu a testa e soltou um discreto sorriso com o canto esquerdo dos lábios.

— Tem razão, vou verificar.

Ezekiah passou a mão pelos cabelos com a cara enfarruscada e olhou para a próxima foto.

— Essas já são da autópsia. Pedi para o Dr. Robinson registrar tudo — disse o inspetor. Ele continua levando o rosto das vítimas.

— É um colecionador, é o que ele faz. E o sangue?

— Levou também, ou gastou tudo no local, montando este circo — o inspetor respondeu fazendo o sinal com o dedo indicador na altura do pescoço.

— Ele teve a genitália removida.

— Sim, e olha onde foi encontrada. No interior da boca da vítima — Jones apontou para a outra foto.

Tennet suspirou, olhou para o velho amigo e disse:

— Você sabe como esse assassino trabalha. Ele não escolhe suas vítimas a esmo. É um vingador. Você sabe o que isto significa. Esse sujeito poderia ser um molestador ou algo do tipo. Você conhecia bem o tal Lancaster?

— Ele era bem conhecido de todos, tinha negócios no...

— Eu também sei quem ele era, estou perguntando se você o conhecia bem! Eu mesmo preparei alguns negócios para ele, documentação alfandegária, mas falei com o sujeito três ou quatro vezes no máximo, e rapidamente — Tennet olhou diretamente nos olhos de Jones.

— Não. Conhecia ele como a maioria.

— Se for o Vingador, e eu não estou afirmando que seja, mas... se for, você sabe o que isto significa. Ele vai atrás de todos os envolvidos.

— Eu... eu sei. Se houver outros envolvidos.

— Sempre há! Figurões como Lancaster acham que estão acima da lei, que podem fazer o que bem entenderem e nunca serão pegos, isto envolve cúmplices.

— Ainda não temos certeza. Precisamos de um motivo. Não podemos ficar aí acusando o morto.

— Deixou alguma coisa passar em Crowville, meu amigo.

— Não quer dizer que tenha sido em Crowville. Pode ter sido aqui em Plymouth. Ele passava muito tempo por aqui.

— Pode ser. Lhe desejo sorte, Jones, vai precisar.

Isaac levantou-se da mesa, de supetão, encarando Tennet nos olhos. O movimento brusco foi notado por todos no bar, que lhes dirigiram seus olhares curiosos. Ao perceber que era o centro das atenções, o inspetor sentou-se novamente e sussurrou.

— Por tudo que é mais sagrado, homem. Sei que agora é um homem importante, mas aquela mulher precisa da sua ajuda. O marido teve o pinto e as bolas decepados e colocados na própria goela. O rosto retirado. O que vai acontecer depois? Você quase pegou esse canalha há vinte anos! Vai deixálo escapar mais uma vez?

— Relaxe, Isaac. Não queremos fazer uma cena aqui

O inspetor olhou para os lados e percebeu ainda alguns olhares. Recompôs-se.

— A viúva sabe disso?

— Por todos os santos, homem! Ela não precisa saber de todos os detalhes!

— Pois deveria. Ela vai ficar sabendo de uma forma ou de outra. Vamos precisar descobrir no que o tal Lancaster estava envolvido se quisermos impedir que outros tenham o mesmo destino.

— Espera aí, você disse... “vamos”?

— Se esse sujeito voltou depois de vinte anos, não vai parar até ter causado um grande estrago. Ele vai atrás de um por um. Diga a Srª. Lancaster que isto vai lhe custar cinquenta mil libras.

O elegante Sr. Tennet, recolocou as fotos no envelope e o devolveu sob o chapéu de Jones, levantou-se, abotoou o paletó, apanhou o chapéu e recolocou-o sobre a cabeça. Despediu-se do amigo com o dedo indicador sobre a sobrancelha movimentando-o na direção do inspetor, como se dissesse “até logo” e saiu.

Na rua, Ethel observou a saída do indelicado Sr. Tennet da destilaria. Ela aguardava ansiosamente que o inspetor Jones tivesse obtido maior sucesso do que ela.a

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