Três histórias e um jantar, Mauro Matos

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À minha mãe e ao meu pai

que sempre foram uma fonte de inspiração inesgotável

PRÓLOGO

Os passos se aproximavam e Daniel, com muito cuidado, entrou no armário, deixando a porta encostada. Concentrou-se para ouvir o som de Samuel, que vinha das escadas. Ouviu um pequeno assoviar ritmado, não identificava a música, porém, era mais fácil de ouvir do que os passos. Logo, chegara ao corredor. Daniel colocou sua mão na maçaneta, a porta agora estava entreaberta, bastava um empurrão para surpreender seu captor. Em sua outra mão, segurava a faca com força, pronto para atacar. Foi quando ouviu uma pequena escorregada.

SAMUEL GIBBS

ORA, ORA... QUE noite! Mais um ano, mais um jantar excelente. Primeiro deixe-me explicar. Todos os anos tenho essa pequena comemoração especial com minha querida esposa. Celebramos o sentimento que partilhamos desde a infância. A comida estava divina e a noite que passei com Caitlyn fora ainda melhor, mesmo sem termos feito amor.

Como sempre, Caitlyn esqueceu o vinho. Eu sempre lhe digo que posso ficar responsável por isso e pegar um na volta para casa, o que não seria incomodo algum. De qualquer forma ela sempre responde da mesma maneira“ é nossa tradição amor , é minha obrigação e você não deve se preocupar com isso. Mesmo que no final compremos o vinho juntos e interrompamos o jantar para isso”. Deus, como eu amo essa mulher. Acho que esquecer o vinho é apenas mais uma tradição. Que poético.

O lado ruim veio na manhã seguinte, quando abri os olhos e o vazio foi tudo o que encontrei do lado esquerdo da cama. As cobertas já estavam frias, apenas uma leve fragrância adocicada de seu perfume, persistia em nosso ninho de amor. Era a imagem perfeita da apreensão que dominava meu coração.

Eu entendo, Caitlyn tinha que trabalhar cedo naquele dia, eu já sabia disso. O que não apaziguou minha mente conflitante. Eu ainda era um homem apaixonado que queria passar o dia com sua esposa. Eu queria passar todos os dias com ela.

1 OUTUBRO

O clima melancólico me entristeceu, levaria pelo menos uma nova volta no calendário, até que tivesse o momento especial com meu amor novamente. Não que os outros dias fossem ruins. Não, sem dúvida todos os dias com Caitlyn eram uma benção. Só que o jantar era o único momento em que esquecíamos tudo e todos para sermos apenas nós e a comida. Podíamos invocar o mais primordial de nossos instintos e sermos nós mesmos, sem as facetas e máscaras que vestimos em público.

Meus dedos se entrelaçaram entre meus cabelos pretos, cortados na manhã anterior, em um sinal de preocupação e ansiedade. Em meu pulso estava uma pequena pulseira desgastada que segurava duas pequenas chaves, a representação do amor entre marido e mulher. Todos os dias eu observava esse pequeno símbolo para saber que ainda estava ali. Eu já o usava a tanto tempo que não o sentia mais em meu pulso, como se fosse mesclado ao meu corpo. Você não sente os fios de cabelo em sua cabeça, mas sabe que estão lá e não duvido que perca alguns minutos do dia os admirando.

Em breve a pulseira não aguentaria as intempéries do tempo e partiria, anunciando a hora de renovar nossos votos de amor. Iriamos à mesma igreja em que nos casamos. O velho reverendo Osteen não estava mais vivo. O religioso viveu anos demais para ser sincero, fora o mesmo homem que casara tanto os meus pais quanto meus avós, os de Caitlyn também. Não importa, eu daria um jeito para encontrar outra pessoa para a cerimônia e tudo ficaria bem. É o que faço de melhor, resolvo problemas.

Levantei da cama e vesti meu robe de seda vinho. Minha roupa balançava, seguindo o movimento da brisa suave que entrava pela janela entreaberta. Olhei no espelho e observei alguns pelos eriçados pelo meu corpo, então sorri. A vida era boa em nossa casa. Morávamos havia quase dois anos nos subúrbios de Grand Haven, no grande estado do Michigan, que sempre terá todo o meu carinho e admiração.

A manhã fria de novembro prenunciava a mudança na paisagem, que logo estaria branca. As árvores sem folhas tinham o charme outonal, nada como o grande branco ao norte dos Estados Unidos, mas mesmo assim tornavam a vista impressionante. E, é claro, o lago Michigan que não estaria congelado por completo, mesmo assim eu não arriscaria me aventurar em suas águas geladas nos próximos meses.

Havia algum tempo que planejávamos nos mudar, talvez eu não estivesse ali para o ápice do inverno do Michigan, o que seria uma pena. E o crime que aconteceria poucos meses depois daquela manhã apenas antecipou os planos, mas isso é me precipitar à minha história.

Demorei muito em meu quarto, precisava ir trabalhar. Entrei em meu terno de dois mil dólares, com minha barriga ainda cheia do banquete da noite anterior. Pensei em comer algo para o café da manhã, até ver o delicado bilhete de minha esposa a parte que você gosta estragou, como comeu muito ontem talvez devesse pular o café da manhã.

Achei prudente obedecer a sugestão, afinal não havia sobras interessantes. De qualquer forma, não sei se meu estômago aguentaria. Assim, segui para a garagem onde minha Range Rover preta descansava. Pouco tempo depois segui para Robbins Road.

Ainda era possível ver uma amostra do verde exuberante de Grand Haven, muito embora algumas árvores já perdessem suas folhas. Deus, como a vegetação na Lincoln Street estava linda naquela manhã e a brisa suave fazia com que os galhos das árvores acenassem para mim, como se dizendo bom dia senhor Gibbs, espero que sua manhã seja maravilhosa.

O charme da cidade interiorana me deixava extasiado. Poucas casas, caixas de correios à beira da estrada, ar puro, privacidade e era possível contar nos dedos quantos carros cruzavam meu caminho, mesmo se fosse horário de pico.

Esses eram apenas alguns dos poucos motivos que me fizeram mudar com minha esposa de Nova Iorque para diversas cidades pequenas ao longo dos anos. O que começara como uma aventura, tornou-se um modo de vida. Viajávamos muito e não nos fixávamos em lugar nenhum, não tínhamos mais raízes. Dois anos em cada cidade era o bastante.

Eu era apenas um pequeno menino da ilha de Manhattan que cresceu em uma família rica e conheceu tantas comunidades novas, tantas pessoas novas.

Penso que, apesar do meu casamento com Caitlyn ter sido um arranjo moderno, sempre a amei. Era uma daquelas coisa de famílias ricas e próximas que querem manter a fortuna entre aqueles que confiam. E nós dois sempre fomos perfeitos um para o outro.

Desde bem novos, rodávamos o país explorando cada canto desta terra maravilhosa. Dinheiro nunca fora problema e eu sabia que não precisaria trabalhar. Mesmo assim gostava de ser um advogado e era excelente nisso.

Eu não gostava de atuar com c brutais, apenas desvios de dinheiro e outros casos de colarinho branco. Ricos também precisavam de ajuda e pagavam melhor. Além disso, sempre tive aversão à violência dos outros.

Bastava a minha...

O caminho até o escritório fora tranquilo, não levei muito tempo para chegar à casa térrea de tijolos vermelhos e pelo menos uma dezena de janelas brancas com persianas pretas, destacadas pelo telhado cinza. Contornei o pequeno gramado à frente da construção, onde o totem de granito, envolto em pedras, dizia Sullivan e Associados, meu empregador. Também era possível observar o nome do detetive particular Allan Tudyk, que alugava uma sala pequena nos fundos e do outro escritório de advocacia, Kirby & Klein Associados, os três inquilinos daquela casa enorme.

Bom te ver tão cedo, Sam. disse a voz carregada de sotaque interiorano.

Como está, Allan?

O velho detetive tinha um cigarro presunçoso na mão e acariciava ligeiramente a barriga saliente, enquanto sorria para mim.

Sobrevivendo, sacumé. Ainda investigando o assassinato do filho da senhora Dixon e, assim como a polícia, não tive sorte alguma. Bom, pelo menos estou empatado com os incompetentes.

Você não me falou sobre esse caso. O que aconteceu?

Não? Eu jurava que tinha comentado alguma coisa, sacumé, os miolos já não são tão bons como eram na sua idade. Também, já fiz tantos trabalhos para seu escritório que não me lembro mais de todas as nossas conversas, parece que tudo vira uma coisa só, como os finais de semana selvagens de minha juventude. Esse tal de Dixon... Felix Dixon, foi morto tem um mês eu acho. Encontraram ele nos arredores da cidade. A polícia nem ao menos sabe onde foi o local do crime, bando de inúteis. Seu cigarro foi ao chão, acompanhado de uma cusparada Em meus tempos na força as coisas não eram ruins assim. Talvez essa nova geração não saiba investigar como fazíamos.

Ou cometem crimes melhores. Repliquei, arrancando um ligeiro sorriso de Allan.

Eu gosto de você, Sam. É uma pena que vá se mudar. Já sabe quando será seu último dia por essas bandas?

Ainda não... sei que falta pouco. Algumas burocracias com o novo escritório estão emperrando tudo. Também tive um problema de vazamento no porão ontem, acho que vou levar pelo menos um mês para arrumar.

Vazamento, é? Eu conheço um bom encanador, se quiser posso te passar o contato.

Obrigado, mas não obrigado. Gosto de fazer esses pequenos trabalhos manuais sozinho. Meu pai sempre me ensinou a cuidar da manutenção da casa. Dizia que enobrece o espirito. Não me importo se demorar, gosto de Grand Haven e tenho minhas reticências quanto à mudança. Sabe, a esposa precisa de novos ares de tempos em tempos, ela trabalha com essas redes sociais e precisa de novidades o tempo todo, dois anos é o suficiente para nos mudarmos. Logo não estarei jovem o suficiente para acompanha-la. Terminei com um sorriso amistoso.

Não fode, garoto! Quando sua mãe trocava suas fraldas cheias de bosta eu já tinha cabelos brancos. Vai fazer eu me sentir uma porra de um velhaco, seu almofadinha!

Rimos como velhos amigos. Eu tinha sentimentos mistos por Allan, mesmo assim às vezes ele era uma boa companhia. E mais importante, eu sabia que o detetive nunca me pegaria por meus crimes, sua falta de pistas no caso Dixon era um ótimo exemplo disso.

CAITLYN GIBBS

Todo o flerte do dia anterior com o homem desconhecido fazia com que me sentisse suja, imprópria. Não que reclamasse do desfecho. Ou de depois passar a noite com meu marido, essa parte sim enchia meu coração de alegria. O que me incomodava era me aproximar de outro homem, mesmo que fosse necessário. E todas as vezes eram. Fosse para manter o padrão, fosse para entrar em ação.

A proximidade de outros homens em si não me deixava mal, sou uma mulher charmosa e não posso negar. Por conta disso, conseguia contratos de patrocínio generosos, além de homens me cortejando e clientes fazendo de tudo para terem minha atenção. Como era fácil lidar com eles para conseguir o que eu queria. São todos tão tolos quando uma mulher bonita está por perto. Talvez aqueles filmes com a linda protagonista e todos os

homens idiotas ao redor dela estejam certos. Menos pela parte de que essas mulheres não precisavam de pessoas idiotas ao redor para parecerem inteligentes. Pensando melhor, talvez isso seja até ofensividade preguiçosa envolta em uma capa de empoderamento, já que passa a falsa impressão de que mulheres só se destacam se não têm a menor competição ao redor, como se não pudéssemos prosperar no meio de pessoas inteligentes e capazes. Mas eu divago.

Acontece que aquela aproximação específica me incomodava, seduzir um homem sendo uma mulher casada não é algo que me orgulhe, é algo necessário e deve ser praticado. Havia um sentimento negativo em mim, acho que por gostar de fazer isso, gostar da atenção e do desejo nos olhos de quem conversava comigo. Talvez esse gostar que fizesse com que a culpa pesasse sobre meus ombros.

É isso, uma pessoa casada não deveria flertar com estranhos e eu sabia muito bem que não estava sendo apenas simpática. Eu amava meu marido, só que... bom, cortejar outras pessoas era algo necessário e dar corda para aqueles que me cortejavam também. Claro que nem todos mereciam essa reciprocidade e alguns egos feridos causavam problemas.

Apesar desses pensamentos desagradáveis, acordei revigorada. Na noite anterior não fizera amor com meu marido, por opção minha. Ele sempre fora apressado, pulava as preliminares ou as fazia de qualquer forma. E essa era a maneira que há muito tempo escolhi para lhe dar como lição. Afinal, quando Samuel se empenhava, era um amante incrível.

Minha pequena maquinação costumava funcionar, eu imaginava que homens, em geral, eram egoístas na cama e, desta forma, meu marido aprendia a importância da generosidade carnal e me saciava. Mesmo que essas reprimendas se repetissem por uma vida inteira, afinal alguns erros se escondem por algum tempo, apenas para volta à tona. Tenho certeza de que se eu aceitasse isso seus deslizes e esquecimentos teriam maior frequência.

A recusa de sexo da noite anterior fora apenas mais uma pequena lição para reforçar o que ele já sabia, Pavlov acertou na mosca. E eu acreditava que meu marido não errava por mal, ele apenas se entregava com muita facilidade aos encantos do ápice de nossa intimidade

Ele não conseguia se segurar nos momentos que precediam o ato do amor. Era como um animal no cio, não controlava suas vontades e todo o tesão que sentia por mim. Às vezes era engraçado, às vezes era incomodo.

Samuel sempre elogiou meus seios dizendo que tinham o tamanho exato pra encher sua mão por completo. Eu adorava isso, como se nos completássemos. E ele parecia apaixonado por completo a cada vez que me olhava. Seu toque delicado em meus cabelos loiros mostrava seu sentimento puro (eu também não reclamava das vezes em que ele os puxava com jeito).

Claro, não podia negar que o sexo era extraordinário, no entanto Samuel precisava entender que sexo não era só enfiar um pau ereto dentro da esposa. E, como já disse, com o tempo ele melhorava muito, o que me deixava satisfeita.

Lembro como a primeira vez juntos fora pavorosa e quase terminou nosso relacionamento. Daí veio o nosso primeiro jantar e a reconciliação, ele aprendeu muito com o passar dos anos e as recusas de sexo eram menos frequentes. A noite anterior fora a segunda do ano. Ele evoluiu tanto e eu tinha muito orgulho de meu esposo.

Tudo bem, preciso assumir que nos últimos tempos meus pensamentos quanto ao meu marido não eram os melhores, estava chateada com algumas situações. Eu sabia que o problema maior não era Samuel e sim a cidade onde estávamos.

Eu odiava Grand Haven e odiava a demora para sair daquele lugar, não aguentava mais morar ali e ele se apaixonara pela cidade. Droga, nós tínhamos um acordo, ele não podia dar para trás porque gosta de olhar os animaizinhos da floresta.

Meu trabalho com as redes sociais dependia dessas mudanças, meus seguidores querem novidades o tempo inteiro, já havia explorado toda a Grand Haven, não havia nada de novo. Cidades pequenas esgotam suas singularidades rápido demais.

Eu ansiava por popularidade e atenção. E dinheiro, mesmo que não precise, é como uma droga potente, ganhar uma grana sempre me faz querer mais e faz meus olhos cor de mel brilharem.

Muito embora não tenha perdido nenhum patrocínio em meu canal, sobre saúde e exercícios (o que tem conteúdo fácil e repetitivo de se fazer, só preciso de uma academia ou um colchonete em casa), isso poderia ocorrer em breve.

Minha principal preocupação era com o canal sobre dicas de viagens e atividades que podem ser praticadas em cada lugar que visitei ou morei. Essa era minha verdadeira paixão, conhecer lugares novos e depois de quase dois anos em Grand Haven, meus seguidores já estavam em declínio, o que me preocupava demasiadamente.

Como já disse, dinheiro não era problema em minha casa, Samuel e eu somos herdeiros. Além disso, ele tem um trabalho que paga bem para uma cidade pequena e eu consigo ganhar mais do que ele com o que faço. Nossas heranças estão investidas e poderíamos viver como rei e rainha apenas desses rendimentos. Mesmo assim, eu amava o que fazia e não pararia.

Já havia anos que eu pensava em me mudar do país, e em breve esperava realizar isso. Talvez ir para a Itália, ou Grécia. Conversaria sobre isso nos próximos anos com meu marido. Em geral não é difícil convencê-lo, ele faz de tudo para me manter feliz

Levantei da cama e olhei para Samuel que roncava alto, o que sempre acontecia quando comia demais. E na noite passada, ele passara muito dos limites, o que pode ter estragado a comida. Então escrevi um pequeno bilhete para que ele pulasse o café da manhã.

Um ligeiro sorriso atingiu meus lábios, não tinha dúvidas de que aquele era o homem de minha vida. E quando se tem a sensação de estar apaixonada mesmo observando-o naquele momento grotesco antes de acordar, você tem certeza de que é um amor verdadeiro.

Gostaria de ficar mais tempo com ele naquela manhã, no entanto, uma reunião me aguardava do outro lado da cidade.

Eu tinha dois anos a menos que meu marido e no auge de meus trinta e três aniversários, tinha como principal cliente a rede de academias Golden Fitness. Assim, gastava o meu tempo malhando, mantinha minha saúde impecável e meu corpo em forma. Também divulgava cidades do interior dos Estados Unidos em minhas redes sociais, o que me rendia uma bela renda extra pela publicidade.

Nova Iorque nunca pagaria para uma influenciadora divulgar Manhattan, mas um lugar menor poderia ser convencido.

Meu contrato com Grand Haven expiraria em novembro e eu decidi não renová-lo. Meu tempo naquela cidade chegara ao final. Era a hora de se despedir do Michigan e deixar toda a hospitalidade daquele estado para trás.

Meu marido arrumara um novo emprego em Lake Charles, na Louisiana, e logo nos mudaríamos. Só esperava que a mudança acontecesse antes do ano novo, para que pudéssemos viajar para Paris em paz. Sempre passávamos o Réveillon em alguma cidade europeia e eu prezava muito por isso, afinal, era o ano em que eu escolheria o destino. Não me importava em repetir a escolha de outro ano. A cidade luz era uma de minhas grandes paixões.

Mesmo com todo o glamour que a vida me reservava, eu nunca poderia me esquecer daqueles que não se deram tão bem. E eu acho que isso fala muito do meu caráter...

Eu tinha o costume de visitar idosos para fazê-los companhia, assim como doava dinheiro para instituições de caridade, era apenas dinheiro e isso eu tinha muito. Alguns diziam que é a obrigação dos ricos doar, ajudar. E as mesmas pessoas diziam que o único motivo por trás dessas doações era um marketing pessoal. Eu sempre pensei que o motivo das doações não importava, o importante era contribuir.

Havia muito prazer em passar as tardes com pessoas menos afortunadas e mostrar toda a bondade em meu coração. Contudo, naquela manhã seria diferente. Reuniões de negócios sempre traziam meu outro lado. Era um momento para ser predadora. Não suportava perder uma negociação e encontraria o representante da prefeitura de Lake Charles

Peguei um taxi, não confiava em aplicativos e em partilhar meus dados pessoas. O que pode soar estranho para uma pessoa que tem sua renda como a minha. Bom, apesar de tudo sempre fui muito reservada, minha persona online que era a despojada.

Para onde, senhora?

Lembrei do homem que conhecera na noite anterior, ele era um taxista também e tudo começou com essa mesma pergunta. Sim, fora uma experiência maravilhosa, como sempre o era. Tentei expulsar esses pensamentos da cabeça e me concentrei no novo motorista. Ele não era um homem belo, mas isso dificilmente importava.

Há um café perto do Home Depot. Se você conhece bem a cidade sabe de onde estou falando. Chama-se Fresh Seed Coffee, não faz muito tempo que abriu. Sim senhora, logo estaremos lá.

DANIEL RICE

Morar sozinho era uma benção. Deixar a família para trás e seguir com a própria vida, esse sim é o maior luxo que alguém pode pedir, sabe como é. Assim que atingi a maioridade me mandei e nunca mais olhei para trás. Não havia nada para mim de onde vim. Droga, um estado famoso por um frango frito. Eu queria distância daquele lugar.

Lembro de minha infância e adolescência em que as garotas nunca me consideraram um cara bonito, só que também não me achavam necessariamente feio. O melhor elogio que recebi, foi quando essa gatinha me rejeitou dizendo que eu era apenas um rapaz normal e ela só se envolvia com os extraordinários.

Bom, o tempo passou e meus cabelos negros continuaram curtos, minha barba tornouse rala e meus olhos castanho escuro, quase pretos, perderam o pouco de vida que tinham. Sabe, aquela esperança de quando eu ainda tinha sonhos de uma vida melhor. Porra, a verdade é que eu não me destacaria na multidão nem que fosse o único presente. Só que isso pode ser muito bom às vezes.

Depois de um investimento ruim e uma empresa falida, virei taxista. Tirava um dinheiro maneiro, mesmo com todas essas porcarias de aplicativos por aí. Sei que é difícil competir, mas eu dou um jeito, sou um cara esperto.

Eu gostava de andar pelas ruas dirigindo minha máquina, um puta Ford Crown Victoria. Mesmo sendo velho eu cuidava bem dele. Aliás, cuidava melhor do que de meu apartamento ou da minha própria vida. Acho que o carro era meu grande orgulho.

Sempre tive esse amor por dirigir, talvez ser taxista esteja no meu sangue, nunca seria piloto de formula 1 e já estou velho demais para tentar outras categorias, ou preguiçoso demais... não sei, essas coisas tendem a se misturar. Acho que arrumar desculpas sempre foi o meu forte.

Enfim, se eu cuido tão bem de meu carro, não podia deixar qualquer pessoa entrar, talvez por isso o dinheiro não fosse tão bom quanto poderia. Nas noites eu adorava dar carona para garotas bêbadas, eventualmente, alguma dava em cima mim e eu gostava de aproveitar.

Naquele dia me levantei da cama de solteiro... sim, eu sei o que devem estar imaginando, é uma vergonha um cara de quase trinta anos dormir em uma cama feita para crianças, eu sempre penso nisso quando vou dormir e quando acordo. O dinheiro é curto né, então preciso me virar como posso. Pelo menos moro sozinho, isso é um grande alívio, mas a cama pequena espanta as garotas.

Isso ou o estado do apartamento que mais parece um dormitório de faculdade. Acho que nunca descobriria qual dos dois era a verdadeira causa. E será que era tão importante? Tinha meu carro e uma namorada, então estava tudo certo.

Aos vinte e oito anos trabalhei como taxista em pelo menos três cidades ao leste do país. Nunca quis ir para Nova Iorque, a concorrência é forte demais por lá e o trânsito ruim

demais. Pelo menos era o que eu sempre me dizia e ainda esperava um dia me convencer de que essa era a verdade.

Não, não... A verdade estava longe disso e fica só entre nós. Eu tinha medo... Medo não, pavor e horror à violência e todos vocês já ouviram as histórias apavorantes sobre a Grande Maçã. Por isso decidi que o lugar de Daniel Rice era em uma cidade pequena, Jacksonville, na Florida, já era grande demais.

Tirei minha camiseta regata branca. Pensando bem... esquece isso, ela já migrava para uma cor amarelada há um bom tempo. Joguei-a no chão, onde se encontrava uma caixa de papelão com dois pedaços de pizza de pepperoni criando bolor.

Meu celular piscava para avisar sobre uma mensagem que chegara. Era Cheryl, minha namorada (talvez quando ela aparecer por aqui de novo possa me ajudar a botar uma ordem nessa imundice).

A mensagem dizia tenha um ótimo dia, meu amor. Ela me tratava bem e era uma mulher muito especial. Não me leve a mal, sempre gostei de Cheryl, talvez até a amasse. Tenho que dizer que as traições não eram tão rotineiras assim, afinal eu sempre fui péssimo na famigerada “arte da conquista”.

Nunca me dei bem com o sexo oposto, aqui está outra verdade para você. Não faço ideia de como acabei com uma garota tão linda e meiga como Cheryl e sei que não a mereço. Só que eu gostava de aproveitar todas as oportunidades que surgiam em meu caminho, nunca tive muitas mulheres ou experiências. Sabe como é, a carne é fraca.

Desde minha infância, tive poucas garotas ao meu lado, dois namoros que terminaram em pouco tempo na adolescência. Uma delas saia com metade do time de futebol e a outra foi um lance virtual, na verdade nunca a conheci.

No começo da vida adulta consegui algum sexo casual, pelo menos quatro prostitutas, até me dar conta de que não tinha dinheiro o suficiente para isso e, então, conheci a adorável Cheryl.

A ruiva de altura mediana e óculos de armação quadrada me foi apresentada em uma festa por um amigo em comum. Esse cara foi outra pessoa que cortei de minha vida, ele pisou no meu calo e isso eu não perdoo. E a vida é assim, os amigos são descartáveis, pelo menos era o que eu me dizia. Ajudava a não assumir que poucas pessoas me aguentavam por muito tempo.

O que nos traz de volta a Cheryl. Ela talvez fosse a melhor namorada que alguém pudesse ter, não tenho reclamação alguma sobre ela. Não imagino alguém que chegue mais perto da perfeição. E eu mesmo não era um namorado tão ruim. Eu era do tipo que trazia flores, lembrava das datas importante, conversava sobre sentimentos e apoiava a independência dela.

O problema é que eu apenas tentava compensar o tempo que não tive na adolescência. Pelo menos, era o que a voz na minha cabeça dizia em cada traição, torcendo para que

Cheryl não descobrisse. E acho que estou tentando demais convencer você de que sou uma boa pessoa. Acho que isso você terá de julgar depois, ao final de minha trágica história.

Bom, continuando...

Respondi sua mensagem com um Obrigado, acho que folgarei no final de semana e podemos sair. E fui tomar banho. Não demorei muito e

sai para um dia moroso em busca de dinheiro suficiente para sobreviver mais aquele mês. Entrei em meu Ford Crown e parti para as ruas de Jacksonville.

Meu primeiro passageiro foi um sujeito de terno, com o cabelo impecável e semblante fechado. Suas únicas palavras foram para onde ir e fique com o troco. Não julgava passageiros, cada um tinha uma vida e uma bagagem própria, alguns falavam demais, outros falavam de menos Por pior que a pessoa fosse naquele momento, poderia ter sido apenas um momento, o contrário também é verdade. Cada ser humano diferente era apenas isso. Um ser humano diferente.

A seguir uma mulher com cerca de 50 anos entrou. Ela tinha algumas rugas no rosto, olhos verdes e cabelo loiro até os ombros fazendo uma ligeira curva para cima. Carregava diversas sacolas de compras e rapaz, como a mulher falava. Tagarelou sobre sua vida, seus filhos Frederic e Annabella, seu marido Chuck... só que havia muita felicidade em tudo o que dizia.

Isso me entristeceu.

Não achava que um dia conquistaria a vida feliz que ela tinha. Talvez eu me sabotasse, como Freud deve explicar de alguma forma. Talvez eu apenas fizesse as coisas do jeito errado, afinal eu era medroso demais para tentar arriscar uma sorte melhor. Mesmo assim, gostei da passageira.

E o que está achando de Jacksonville, madame?

Por favor, não me chame assim. Parece que eu tenho duzentos anos! Sou velha, mas nem tanto. Ela responde entre risos Apenas Dorothy está bom. E quanto à sua pergunta, adoro esta cidade, mas ainda é um pouco grande para mim. Prefiro a tranquilidade das cidades menores.

Penso como você! Adoro esta cidade, o ar puro, as pessoas amigáveis, só que ainda acho intimidadora... o tom reflexivo dominava minha fala estou com toda minha vida por essas bandas agora, tenho um bom trabalho, uma namorada, alguns amigos...

Se você estiver procurando uma cidade pequena interrompeu Dorothy , eu conheço a cidade perfeita em Louisiana. Você parece um moço inteligente, pode pesquisar sobre ela, chama Lake Charles. É um verdadeiro pedacinho de paraíso. Moro lá com minha família se um dia estiver por lá, procure por Dorothy Paulson. Todos me conhecem.

Muito obrigado senh.... Senti o olhar de reprovação arrepiando os pelos de minha nuca, enquanto encarava o retrovisor Muito obrigado, Dorothy.

Eu ficarei em Jacksonville mais alguns dias, minha irmã, Tanya, mora aqui. O que acha de ser meu motorista enquanto isso? Acho que tudo acontece por um motivo e é muito

bom falar com você. Estou por aqui praticamente todos os meses. Sou muito próxima de Tanya e sentimos saudades uma da outra.

Claro, aqui está o meu cartão. Pode ligar ou mandar mensagem, só me desculpe se eu estiver em outra corrida, então se puder me avisar um pouco antes, fica mais fácil.

Maravilha! Então estamos acertados, senhor...

Daniel Rice. Também dispenso o senhor Respondi olhando para a passageira no banco de trás e abrindo um largo sorriso.

Como disse, sou Dorothy Paulson ela replicou com alegria em sua voz , é um prazer enorme te conhecer. Pode encostar aqui mesmo, este é o meu hotel. Lembre deste lugar, pois é onde virá me buscar das próximas vezes

Deixei Dorothy na porta do prédio e sai para o resto de meu dia moroso com passageiros desinteressantes.

Já passava da meia noite e tinha sido um dia de bosta. Poucos clientes, pouco dinheiro, o que significa pouca comida no prato. Droga. Esse tipo de coisa me deixa puto, estava circulando pelo centro da cidade esperando encontrar algum último passageiro para encerrar o dia e diminuir o prejuízo.

O luar, que nos próximos dias encontraria todo o seu potencial, iluminava Jacksonville e era o único motivo para eu ficar na rua até tão tarde. Talvez por isso tenha visto a cena que ocorria naquele beco escuro.

Pisei no freio e olhei para dentro das trevas quebradas pela frágil luminosidade lunar. Ouvi sons abafados que me assustaram pra um caralho. Meus olhos levaram um instante para se acostumar e observar as quatro sombras. Uma caída e três ao seu redor.

O som de choro contido chegou aos meus ouvidos, era de partir o coração. Eu estava atrás do volante e, como disse antes, não sou o homem mais corajoso que já andou por esse planeta. Mesmo assim, tinha a vantagem de ser um desconhecido dentro de um carro. Isso ajudou um pouco. Respirei fundo, liguei o farol alto e invadi o corredor estreito buzinando como um louco. Rezava para que ninguém viesse para cima de mim.

As três sombras que estavam de pé pareceram retornar à penumbra, dissipando-se. A luz dos faróis iluminou a roupa bufante que cintilava com os pequenos movimentos da pessoa que ficou para trás. Com cuidado, observei à distância para ter certeza de que os três tinham ido embora. Então pude sair do carro, em direção ao corpo estendido:

Você está bem?

Estou. Uma pausa na voz rouca deu espaço para uma cusparada vermelha no chão. Agradeço pela ajuda, estranho.

O homem interpretando uma personagem feminina tinha seu batom borrado, o olho esquerdo inchado e sangue escorrendo por seu nariz. Com dificuldade tentou levantar e eu o ajudei, segurando seu braço.

***

Venha, entre no carro antes que aquelas pessoas voltem.

Ainda escorada em mim, guiei a Drag Queen pelos poucos metros até meu Ford e a acomodei no banco de passageiro. Ela tremia de frio e de pavor. Levamos alguns quarteirões até que dissesse as primeiras palavras.

Era minha irmã. Seu olhar, vazio e distante, não saia do painel do carro enquanto falava. Mesmo assim era possível ver o esforço enorme que cada palavra exigia. Ela... o marido... Ela, o marido e um amigo! Seu rosto encontrou as palmas de suas mãos e o choro abafado recomeçou ...eles me caçam... desde que fugi de casa. E agora me encontraram.

Eu sinto muito por isso. Passei a mão com delicadeza em seu ombro Tem algum lugar seguro que eu possa te deixar?

Pode parar aqui mesmo, estou sem dinheiro para pagar a corrida, levaram minha bolsa.

Foi a primeira vez que a Drag Queen me olhou, seus olhos estavam vermelhos e mesmo assim era possível ver a beleza da cor azul escondida.

Não se preocupe, o importante é a sua segurança. Posso te deixar onde quiser, não vou anotar no itinerário do taxi, nada fica registrado e não temos problema com ninguém. Fique em paz. A sensação de dizer essas palavras foi boa e aqueceu meu coração, fez com que um sorriso carinhoso dominasse meus lábios.

É muito nobre de sua parte. Nem ao menos me conhece. Muito prazer eu sou Miss Fortune... bom esse é meu nome artístico. Uma piada se pensar no que aconteceu hoje... uma risada abafada e melancólica se formou Meu nome de verdade é George Sherwood.

Muito prazer George, sou Daniel. Quer falar sobre o que aconteceu?

Não vai adiantar de nada, ela continuará vindo atrás de mim. Terei que me mudar de novo o rosto de George se contorceu em uma caricatura apática dele mesmo o que é uma pena, adoro Jacksonville. É a primeira cidade que me sinto em casa, sabe? Eu faço shows regulares, toda quarta-feira neste lugar mais para cima na Edison Avenue. Sempre vou a pé para casa, moro a alguns quarteirões daqui, não levo mais do que vinte minutos. Às vezes me sinto tão bem que nem me troco, às pessoas gostam de me ver assim, me reconhecem e me cumprimentam. É fantástico.

Que bonito, você até abriu um sorriso falando isso. É algo que ama, não é?

Sim, só que é mais do que isso! É quem eu sou de verdade e agora posso ser assim... Só que minha irmã, Sandy, sempre me achou estranho e me provocava. Desde que éramos crianças ela me perturba. Fazia com que as amigas mostrassem os peitos para o irmãozinho esquisito... dizia tem tanto cara por aí louco para ver isso e você assim, vê e fica assustado. Qual o seu problema?.

Acho que o problema era ela respondi com raiva.

Hoje eu concordo com você, mas para uma criança, é muito mais difícil lidar com isso. Sandy tinha uma amiga em especial, Jessica Bartley. Um verdadeiro anjo na terra, ela me entendia e me apresentou um outro mundo que eu não fazia ideia. Também me ajudou

a fugir de casa quando completei 17 anos, se não fosse por ela eu não estaria aqui hoje. Há 7 anos que eu não via minha irmã, quando a encontrei em uma das mesas durante o show tive um misto de medo e alegria. Tinha esperança de que ela tivesse esquecido tudo o que se passou e que fosse me aceitar... uma lágrima escorreu pelo rosto de George eu sorri quando a vi. Como fui estupido. Pedi para ela ir ao meu camarim e ela respondeu que estava com pressa e perguntou se eu poderia acompanhá-la até o hotel em que está hospedada, que eu nem precisava me trocar porque ela não tinha muito tempo e queria conversar com o irmão mais novo em particular. Bom, ela me trouxe para esse beco onde os outros me esperavam. Levei uma bela de uma surra, mas não foi a primeira. E, infelizmente, acho que não será a última.

Eu sinto muito por isso.

Agradeço as palavras e por me ouvir, é bom falar sobre isso abertamente. Ajuda muito. Obrigado.

E por que não vai na polícia?

Você não deveria chamar a polícia contra a própria família... sua voz se desfez em um choro copioso eu sei que você tem razão, mas... mas... isso não deveria ser a solução.

Nem todas as pessoas aceitam a diferença dos outros, essa é a merda de mundo em que vivemos.

Sim, mas o mundo também é bom, existem pessoas como você. E é cheio de gente assim, eu tenho certeza disso, acredito até que são a maioria. E se não achamos nenhuma pessoa boa, podemos nós mesmos ser uma e tentar equilibrar as coisas. Pelo menos é o que tento fazer e parece que você é igual.

Eu tenho minha cota de pecados. As lembranças das traições e abandonos retornaram à minha mente De qualquer jeito fico feliz em te ajudar.

Eu moro na próxima esquina, pode me deixar lá. Por favor, passe uma quarta no Dirty Dicks, onde me apresento. Ficarei mais do que feliz em te pagar pela corrida e lhe oferecer um drink cortesia. Você será muito bem tratado lá.

Acho que vou aceitar sua oferta.

George desceu do carro em um estado melhor do que quando entrara, embora ainda mancasse. Aparentou ter certeza de ter feito um novo amigo e eu decidi voltar para casa, era um dia pouco movimentado para continuar trabalhando.

Embora o dinheiro tenha sido curto, fui dormir feliz, pois o que ganhei naquele dia fora muito mais valioso, dois amigos que me acompanhariam em tempos turbulentos antes de me deixarem.

CAITLYN GIBBS

A noite começava a engolir o horizonte, transformando a pequena cidade de Grand Haven em escuridão. Apenas suas luzes artificiais lutavam para iluminar as ruas.

O anoitecer pode ser algo lindo e assustador nessas cidades. O silêncio é apreensivo, os sons da natureza por vezes soam como o ceifador vindo coletar a dívida dos pecadores e, sem dúvidas, eu conhecia alguns deles. A rua vazia enquanto eu esperava por um táxi não ajudava, nunca se sabe quando um maníaco armado pode aparecer, pelo menos é o que nos fazem acreditar o tempo inteiro, o terror nos espreita a cada esquina.

Meu telefone tocou, tinha me esquecido de colocá-lo no silencioso, senti meu coração acelerar e minhas pupilas dilatarem, foi apenas um choque e eu odeio quando isso acontece. Era Samuel.

Precisa de carona, paixão?

Não, querido. Muito obrigada. Tentei disfarçar o susto de minha voz. Devo voltar tarde para casa, não precisa me esperar. Não posso falar agora, estou a caminho da casa de repouso.

Por favor, venha pra cá logo. Você sabe que saio de mim quando você não está por perto. Havia certo receio vindo de Samuel.

Apenas tente se controlar, querido. Fique em casa e tudo estará bem.

Certo... se precisar de algo me ligue.

Eu havia passado o dia em tediosas reuniões e gravações para as redes sociais. Porcaria, às vezes me sentia como um macaco treinado fazendo sapateado.

Independente disso, eu sempre gostei muito de exercícios físicos e transformei isso em uma fonte de renda. Só que às vezes transformar uma paixão em trabalho pode trazer um fardo enorme, como colocar sua música preferido no despertador. Ser obrigada a me exercitar o tempo todo, expondo isso para o mundo, era cansativo demais.

Claro, minha parceria com a Golden Fitness rendia mais dinheiro do que eu precisava, como já disse, isso nunca foi um problema, apenas torna a vida mais fácil. E quem disse que pessoas ricas não podem sofrer também?

Eu lembrava dos planos de mudança traçados com meu marido e que em poucos meses iriamos para Lake Charles, na Louisiana, onde uma academia da rede já funcionava.

Talvez a mudança de ares trouxesse um ânimo novo para meu espírito. Acho que a frustração de ficar no mesmo lugar monótono, por quase dois anos me deixou mais inclinada às reclamações e sem vontade de fazer minhas tarefas. Não gosto de criar raízes muito longas. Crio apenas com meu marido, não com lugares.

Durante minha tarde filmei os exercícios que fiz e elogiei os equipamentos da academia (elogios vazios, minhas costas doíam cada vez mais, acho que seria o princípio de uma hérnia se não me cuidasse. E o banco da bicicleta ergométrica doía como se eu fosse

rasgada de baixo para cima). Essa rotina que me cansava, tudo era repetição, tudo era tédio, tudo era automático. Não é jeito de se viver, eu precisava de mais emoções.

Depois de alguns minutos esperando, entrei em um táxi e fui para Winsconsin Avenue, não muito longe de Lake Forest Cemetery. A ironia por trás da localização desses lugares era algo que eu tentava ignorar.

Senti-me mal na primeira vez em que fui à casa de repouso, o taxista se perdeu e me levou para as covas, imaginei que o endereço fosse alguma piada de mal gosto, até que fomos ajudados por um segurança local. Ele disse que era algo comum e que provavelmente seria o próximo endereço daqueles velhos, seguido por algumas risadas incomodas.

Não fiquei muito sentida quando a morte dele foi anunciada no jornal naquele mesmo ano. Neste tipo de cidade, sempre sabemos de todos os óbitos assim que acontecem e os rumores começam. Acho que no caso dele os boatos iam de assassinato pela esposa até algum morto vivo que voltou da cova para encerrar o humor desrespeitoso do segurança. A verdade é que foi apenas o bom e velho ataque cardíaco causado por excesso de hamburgueres.

Ao chegar em Best Years Senior Community o odor de Pinho Sol impregnou minhas narinas, enquanto me aproximava da recepção. Aquele cheiro incomodava, quase tanto quanto a piada do segurança.

Como sempre Kelly estava na recepção. Ela era uma menina de vinte e poucos anos, com cabelos negros escorridos e olhos determinados. Ela trabalhava ali para ficar perto da mãe idosa, já que os irmãos mais velhos se mudaram do país e esqueceram por completo da matriarca. Ela era muito cuidadosa com a mãe e nunca permitiu minhas visitas. É triste uma família tão grande ficar tão pequena ao final da vida de alguém e uma filha impedir qualquer contato.

Boa noite, vim visitar Evelyn Schmidt

Boa noite, senhora Gibbs. Vocês se deram muito bem neste último ano, não foi? Uma pena que ela nunca lembra de você.

Isso não importa, cada dia é único para ela, o que aumenta a importância do que estou fazendo. Mesmo que a senhora Schmidt não saiba quem sou eu, a felicidade que ela tem com minha companhia é o que me faz vir aqui. Às vezes conhecer alguém pela primeira vez, toda vez que a vê, pode ser uma benção.

Que bom ouvir isso. disse a recepcionista com um largo sorriso Acho que você é a única família dela, já que o filho nunca a vem visitar. Uma pena como alguns desses idosos ficam sozinhos por tanto tempo.

Muitos filhos ingratos neste mundo... percebi que tinha um tom saudosista, perdi os meus pais há uns dez anos, eles sempre me fizeram muita falta. Talvez eu esteja aqui só para compensar esse vazio. Isso me torna uma mulher egoísta?

Claro que não, acho que não importa o seu motivo, se você faz o bem, você é uma boa pessoa. Ela diz entre risadinhas divertidas e pouco confiáveis É ótimo ter você por

perto. Por favor, a senhora Schmidt lhe espera no quarto. Não preciso dizer o caminho, não é? O bom humor da recepcionista era bem-vindo.

Segui pelos corredores da casa de repouso enquanto observava diversos idosos sentados. Alguns liam, outros assistiam televisão, uma mulher negra de cabelos brancos sorria com alguém que parecia ser seu filho. Acho que algumas pessoas ainda têm tempo para visitar os pais, outras não têm tanta sorte.

A porta do quarto de Evelyn estava entreaberta, como se ela esperasse que alguém entrasse. Não, ela chorava todas as noites, rezando para que alguém entrasse.

Boa tarde, Evelyn. Como está hoje?

Quem é você?

Ninguém de importante, já tivemos essa conversa diversas vezes e acho que não vai se lembrar de mim de qualquer forma. Essa segunda parte saiu entre os meus dentes e bem baixinho Estou aqui para lhe fazer companhia. A senhora Carter me disse que recebeu uma ligação de seu filho hoje. Como foi?

Ligação? Eu não lembro. A senhora Schmidt respirou profundamente Desculpe, eu tenho este probleminha na cabeça.

Eu sei. Venho te visitar há uns dois anos, quase todas as semanas. Você sempre me fala das ligações de seu filho. Ele te ligou hoje, não? Para perguntar de você e se desculpar por não lhe visitar.

Sim... talvez. Eu não tenho certeza.

E do que vocês falaram?

Não lembro direito. Ele costumava me ligar para dizer que está com pouco tempo para me visitar, acho que tem trabalhado muito. Que bom que me ligou hoje. Ele sempre teve essa dificuldade de se firmar em um emprego, então sempre passa a maior parte dos seus dias procurando um em vez de trabalhando, toda essa correria o deixa sem tempo. Uma risada tristonha saiu da senhora Schmidt Deve ser tudo culpa minha.

Não se preocupe. Você já me falou tudo isso antes. Acho que as enfermeiras ficarão felizes ao saber que você recebeu essa ligação hoje.

Passei mais duas horas fazendo companhia para Evelyn. Jogamos cartas, falamos sobre seu marido, morto a pelo menos vinte anos como se ele ainda estivesse entre nós. Ela chorou ao falar sobre o filho que nunca aparecia, então a lembrei da ligação pelo menos quatro vezes, o que parecia lhe fazer sorrir, mostrando seus dentes amarelos.

Sai da casa de repouso e encontrei um táxi que passava na rua. Sentei-me no banco de trás e quando o motorista me perguntou qual seria o destino fiquei um pouco insegura.

Poderia ir para casa, claro. Mas me sentia em um daqueles dias em que queria ficar sozinha. Bom, não exatamente sozinha, apenas longe da minha casa. E se a oportunidade

***

surgisse, eu poderia praticar. E, simples assim, estava decidido. Eu não iria para casa e sim para um bar, sozinha.

Segui para o norte da cidade até uma cervejaria local, com vista para o Grand River. Não me importava com o gosto da cerveja ou com quem me serviam... fiquei absorta ao cardápio, mesmo sem ler uma única palavra. Minha mente divagava para longe, pensava em meu marido e no ótimo dia que tivemos. Droga eu deveria ter transado, fiquei com vontade.

Não levou muito tempo para que meus cabelos loiros chamassem atenção. Eu sabia o quão linda era e usava isso a meu favor. Eram raras as vezes em que precisava fazer algo, além de existir, para atrair um homem. Mesmo assim, gostava de flertar. Não que eu fosse fazer algo além disso, era como se fosse um treino para o grande jogo. Ou olhar o cardápio em um restaurante, levantar-se e ir embora, sem comer nada.

Posso lhe pagar uma cerveja? perguntou a voz grave.

Claro, estranho. Respondi com um tom sedutor.

O homem de cabelos curtos e barba aparada se sentou ao lado meu lado. Seu perfume era doce, mas sem exageros. A fragrância agradava meu olfato.

O que achou da cerveja? ele perguntou com um olhar petulante

Já tive melhores, há um certo desequilíbrio aqui e um gosto um tanto quanto metálico. É bem leve, sem dúvida, mas está lá. Talvez algum problema no envaze ou exposição ao sol.

Gosto de uma mulher que entende de sua cerveja. E você tem razão, um de meus funcionários começou faz pouco tempo e cometeu esse pequeno deslize. Deixou a última produção no pátio tempo demais antes de mover tudo para o estoque. O “cara novo” sabe como é, sempre erram.

Então você é o dono?

Sim, um dos sócios. O mais popular e bonito, você vai ver.

Uma repulsa tomou conta de meu estômago. Homens muito cheios de si nunca eram um bom sinal e tendiam à violência, ou outros comportamentos ruins, com muita facilidade. Senti a súbita vontade de ir embora.

Escute...

Warsaw. Ian Warsaw, como o nome da cerveja.

Isso não é muito criativo.

No entanto, é um belo nome. Todos os meus empreendimentos levam meu nome de uma forma ou de outra. A cervejaria era apenas um sonho de adolescente.

Escute, Ian. Eu preciso ir.

Já? Mal nos conhecemos, fique um pouco mais, tudo o que você beber é por conta da casa.

Obrigada, mas não obrigada.

Levantei-me da cadeira para ir embora, foi quando senti sua mão envolvendo meu pulso e me puxando de volta, não havia muita força ali. O que não mudou o incomodo que se apossou de mim.

Só mais 5 minutos... Ele suplicou.

O olhar que disparei em direção a Ian fez com que sua respiração parasse e seus dedos fortes se afrouxassem ao redor de meu pulso, não precisei de muito esforço para me desvencilhar.

Tenha um boa noite, senhor Warsaw.

Ouvi meu celular tocar, era uma mensagem de Samuel. Vai demorar para chegar em casa, meu amor? Tive um imprevisto no escritório e devo ficar até mais tarde. Olhei para as palavras do meu marido e um ligeiro sorriso se formou em meus lábios. Estou a caminho, paixão respondi.

SAMUEL GIBBS

Desliguei o telefone e Caitlyn parecia particularmente insegura e distante. Não gostava de ouvi-la assim, esse tom sempre trazia preocupações a meu coração. Pessoas neste estado emocional costumam cometer erros. E nós não podemos cometer erros.

Entrei no carro refletindo sobre o que se passaria na cabeça de minha esposa. Eu tinha algumas opções de destino, poderia ir para casa ou ir com meus colegas de escritório celebrar o fim do caso de Rodrick Fallon.

O empresário da famosa Fallon & Filho, conglomerado de minério de ferro, dióxido de titânio, diamantes e matérias primas, fora inocentado pelo cruel homicídio da própria esposa.

Fallon era nascido e criado na cidade e amigo pessoal de Edward Sullivan, que dava o nome ao escritório de advocacia em que eu trabalhava. Talvez por isso tenha decidido seguir seu caso conosco em vez de algum escritório chique de cidade grande.

Conheço os advogados que trabalham comigo, eles são apenas razoáveis. Mesmo assim nenhum profissional neste mundo seria bom o suficiente para inocentar o senhor Fallon. Sua roupa ensanguentada, o alarme de segurança de sua casa desativado com a senha pessoal dele era bem convincente. No entanto a arma desaparecida e a falta de testemunhas (exceto a senhorita Garcia que mudou seu depoimento no meio do processo e voltou para seu país de origem. Como uma mulher rica ou amedrontada, eu imagino) eram o único fio de esperança de uma sentença favorável.

Não se enganem, Rodrick Fallon era culpado até o último fio de cabelo e eu não poderia comemorar a liberdade de um monstro desses. Sua esposa sim era uma mulher inocente e não merecia o homem terrível com quem partilhava o matrimonio. Esse foi um crime tão horrível e sangrento que eu não poderia fazer parte de sua comemoração. Por isso não me envolvo em casos de homicídio. Se uma vida acaba deveria ter, no mínimo, um motivo justo, como que para proteger um bem maior, para garantir o alimento de sua família, ou para acabar com o mal que assombra este mundo.

Não, para minha carreira apenas casos leves, casos que envolviam dinheiro. Assim não era responsável por deixar nenhum assassino à solta.

(Bastava eu.)

Entrei no carro e decidi ir para a cervejaria Warsaw, sabia que Caitlyn estaria lá. Minha esposa quase sempre deixa a localização de seu celular ligada, o que era uma benção, assim como era proteção. E aquele dia não fora nenhuma exceção.

Não me causou espanto quando a vi sentada próxima à janela de entrada. E como de costume, não levou muito tempo para que um homem se aproximasse. Eles sempre se aproximavam.

Esse era o momento em que meu coração acelerava e eu precisava tomar cuidado para não me entregar às emoções. Não poderia cometer esse erro de novo, foi um inferno da primeira vez. E da segunda...

Julguei mais prudente esperar no carro e apenas observar. Vi o sujeito se afastar e enviei uma mensagem para meu amor. Mesmo a distância pude ver o belo sorriso em seu rosto, não tinha dúvidas de que era para mim. Mesmo não sendo o mesmo sorriso do dia em que nos casamos, ou de quando ela disse sim ao meu pedido durante nossa viagem à Roma, era estonteante, como sempre o fora. E ainda deixava minhas pernas moles como dois fios de espaguete recém cozidos.

Quando Caitlyn saiu, continuei à espreita em frente à cervejaria. Esperei até ver uma Mercedes Cabriolet conversível com o rosto familiar dentro. Decidi segui-lo enquanto pensava droga, pessoas ricas sempre são mais complicadas de sumirem. Segui a Mercedes, mantive os faróis apagados e com uma boa distância. Não acho que aquele imbecil saberia que eu estava atrás dele mesmo se eu batesse em sua traseira.

Ele mantinha a velocidade alta e transitava em zigue-zague, por vezes invadindo a faixa contrária, por vezes invadindo algum gramado, o que deixaria algum proprietário muito bravo na manhã seguinte. Apenas um descuido ou um carro no outro sentido e meus problemas terminariam. O pensamento me divertiu e trouxe um sorriso bobo ao meu rosto.

Não tive tamanha sorte. Mantivemos a rota para o sul até a Lincoln Street, apenas cinco quilômetros de minha casa, onde pude observar a pomposa residência daquele maldito. Pessoas ricas sempre moram perto de pessoas ricas, odeio isso. E aposto que ele joga golfe, por isso comprou essa maldita casa perto do campo da cidade.

Decidi não parar. Mas em uma rápida observação da casa, pude julgar, pela bagunça do jardim frontal, que ele tivesse um filho pequeno, diversos brinquedos espalhados adornavam a paisagem na frente da casa. Parecia provável que ele tivesse uma esposa, o segundo carro bloqueando a porta da garagem e seus xingamentos de “maldita mulher” indicavam isso.

Continuei pela Lincoln Street até chegar em minha casa, onde Caitlyn fazia o jantar. O cheiro de comida sendo preparada, misturado com a visão daquela perfeição em forma humana era tudo o que eu precisava.

Três dias depois eu estava em minha sala terminando a análise do processo de corrupção dentro da Shackleton Incorporações.

Pelo menos Edward Stuart, o presidente, fora cuidadoso. Sem dúvida alguma era culpado, no entanto conseguiu se livrar de quase todas as evidências. Claro que o gerente de operações seria preso, só que o gerente não era meu cliente, então pouco me importava, ele que apodrecesse na prisão.

Apenas quando olhei para o relógio na parte inferior da tela do computador que me dei conta do horário. Eu não estava com fome, mas é sempre prudente almoçar antes das três da tarde.

Levantei-me da cadeira e segui pelo enxuto escritório cumprimentando Lara, a recepcionista, Ferdinand o estagiário e Donald, quem eu acreditava ser o advogado mais corrupto que a cidade já vira. Ao sair da casa uma voz familiar alcançou meus ouvidos:

Boa tarde, Sam. disse o detetive Allan Tudyk Sei que costuma almoçar tarde. Se estiver com fome, podemos ir comer juntos.

O homem vestia um terno bege e uma camisa branca comprada em alguma ponta de estoque, com claras manchas de suor antigo e algumas gotas novas escorriam por sua testa, mesmo no clima frio de outubro.

Claro, estou sem planos agora à tarde, a companhia seria boa. Respondi da forma mais simpática que pude.

Ótimo! Eu dirijo porque você parece um lunático no volante, meu coração velho pode não aguentar toda a emoção.

Tá bom, tá bom. Só que sabe o quanto odeio entrar na sua lata velha. Não podemos comer aqui por perto então?

Sem chance, sacumé! seguimos pelo estacionamento em direção ao veículo mais maltratado que já tive o desprazer de entrar Conheço um restaurante vazio, mas é longe, você tem tempo?

Claro, qualquer coisa por um amigo.

O rosto do detetive se encheu de alegria. Ele gostava quando o chamava de “amigo”. Talvez ele não tivesse tantos, talvez ele não tivesse nenhum. Ficar velho e sozinho deve ser algo terrível, muitas pessoas podem se aproveitar disso. E eu adorava. Tornava tudo mais fácil para mim.

Quero falar sobre o novo caso que peguei com a polícia hoje de manhã. Entra aí disse o detetive enquanto destrancava as portas de seu Pontiac Fierro , sabe que é o único almofadinha que eu convidaria para almoçar, então não passe a oportunidade e não me venha com frescuras.

Allan Tudyk tinha um grande problema com os “almofadinhas”, mas a verdade me parecia diferente. Ele não passava de um homem velho e decadente que, embora tivesse algum talento para investigação, não é e nem nunca seria bom o suficiente. Ele sabia disso,

***

mesmo que em um nível inconsciente, e por esse motivo era tão frustrado. Então qualquer um que fosse bem-sucedido seria um maldito “almofadinha”. Droga, como eu odiava quando ele me chamava assim, se não fossemos tão próximos eu poderia dar um sumiço nele. Inclusive eu acho que ele nunca descobriria o próprio assassino, nem se eu o eliminasse com um tiro na testa a queima roupa.

Tudo bem, vamos. Aceitei o convite dando-lhe um tapinha nas costas.

Não posso negar que ele era uma ótima fonte de informações para as investigações dos crimes na cidade. Por conta de seu trabalho antigo na força ainda tinha muitos contatos. E era ótimo saber se a polícia tinha alguma pista próxima de mim...

Eles dificilmente tinham...

Não levamos muito tempo para chegarmos em um restaurante ao sul da cidade. O local obscuro tinha um cozinheiro com manchas de óleo na camisa regata branca e um avental com marcas secas em diversas cores diferentes, como uma pintura abstrata.

Atravessamos o salão vazio e fomos até uma mesa distante e mal iluminada. Senteime de frente para a porta, assim podia ver as pequenas baratas que tentavam transitar escondidas.

A pouca luminosidade vinha da única janela ao lado da porta. Prefiro nunca me sentar de costas para a entrada de algum lugar, pois a única vez em que fui surpreendido estava sentado dessa forma e, por pouco, não levei a pior

Allan se sentou de frente para a cozinha, sua boca já salivava.

Olha só, Sam, o que vou te falar é bem sério, ainda não saiu nos jornais porque a polícia não quer pânico e sabe como os “cidadãos” são ... “ cidadãos ”saiu com certo nojo

Um bando de ovelhas idiotas! É isso que são, qualquer probleminha e já acham que o fim do mundo está próximo ou assassinos em séries abominam a vizinhança... Não tenho paciência para isso. Bom, os investigadores da polícia não sabem se estão atrás de um criminoso ou se foi acidente. Caso tenha sido um crime, não querem que assassino saiba que estão atrás dele.

Ouvi o relato um tanto confuso do detetive, mesmo assim me interessei, algo bom sairia dali, podia sentir. Então, me inclinei para frente a fim de escutá-lo melhor. O olhar incerto do velho detetive encontrou o meu e ele pareceu se recompor.

Do que você está falando, Allan?

Sim, claro, acho que divaguei um pouco ou me antecipei demais. Bom, só vou te contar isso porque confio em você, saiba disso. E te considero um amigo essa última frase saiu baixa, como se ele não quisesse que eu ouvisse ou tivesse vergonha de dizê-lo Encontraram um corpo na mata próximo à M-104, malditos coiotes comeram a maior parte das evidências, mesmo assim os policiais conseguiram um nome Bruce Schmidt.

Acho que meus olhos brilharam com a informação, o detetive tinha minha atenção por completo e ele sabia, pois sua expressão mudou de confusa para satisfeita, abrindo um largo sorriso.

O que sabem sobre ele? indaguei ao detetive.

Não muito. O cara não apareceu para trabalhar hoje. Sabe, é um daqueles funcionários que nunca é notado, sempre está no horário, mantem sua cabeça baixa, não tem muitos amigos, se é que tem algum. Alguns até acreditavam que um dia ele enlouqueceria e mataria todo mundo do escritório, sacumé. Bom, alguém chegou nele antes que o próprio despirocasse.

E o que você acha que aconteceu?

Homicídio, sem dúvida. Mesmo com alguns investigadores levantando a possibilidade de uma caminhada na mata que deu errado. Não se deixe enganar O punho do detetive alcançou a mesa de madeira. isso é uma grande besteira! O cara foi assassinado, tenho um sexto sentido para isso. O detetive bateu de leve com o indicador da mão direita na própria cabeça com um tom de orgulho Pense bem, ele era magro como um graveto, nunca deve ter se exercitado na vida! Sem dúvidas ele foi desovado ali. Mas por que alguém iria querer matar um ninguém assim? Eu ainda não sei, mas desde quando alguém precisa de um motivo para matar, certo? Tem todo tipo de louco neste mundo. E, como disse, os coiotes acabaram com quase todas as evidências. O que a polícia sabe é que foi recente e que ele provavelmente foi comido vivo, descobriram o corpo madrugada passada.

Você sempre acha que é homicídio, não me fale em sexto sentido! Repliquei com uma risada divertida.

E quase sempre estou certo. disse o detetive com ar de seriedade.

Tudo bem, eu estava brincando... E o que a polícia vai fazer agora?

Bom, o rapaz era bem solitário. Ele tem uma mãe no asilo dos velhacos, só que ela não vai servir de nada, a véia já não bate bem da cabeça, sabe? Alzheimer se não me engano Parece que ela insiste em dizer que recebeu uma ligação do filho depois do horário que o legista deu como da morte. Por mim eu descartaria esse depoimento, a velha é confusa, sacumé. Gente doida nunca é confiável

Que coisa horrível de se falar.

Não seja desses. Só te disse a coisa como ela é, sem enfeitar. Nunca vou entrar nessa onda de politicamente correto que está acabando com o mundo. A velha já era, só está respirando, cagando e andando. Não vai ajudar em nada na investigação

E se foi, de fato, um acidente? Às vezes o sujeito estava caminhando para entrar em forma, talvez para impressionar alguma garota. Você já foi jovem, sabe que homens vivem fazendo idiotices para conquistar alguém. Aí o sujeito teve algum problema, sei lá, câimbra ou mal-estar, já que nunca se exercitou. E, como você disse, os coiotes tiveram um jantar grátis.

Então eu arranco minha bola esquerda e te dou! Pode crê que foi um assassinato O detetive tinha o dedo em riste no meu rosto e um sorriso triunfante nos lábios , vou tentar ter acesso ao corpo e te dou mais detalhes, sacumé.

Meu estômago começou a roncar, o que me trouxe um sorriso sinistro aos lábios que durou um breve instante, por sorte o detetive não pareceu reparar.

Olhei para meu companheiro e tentei me manter sem emoção. Meu coração tinha certa alegria, pois em breve eu saberia todas as informações que a polícia tinha sobre minha última vítima.

Vamos comer. De repente me deu uma fome tremenda.

DANIEL RICE

Era uma nova quarta-feira à tarde e eu dirigia pelas ruas de Jacksonville em um dia claro de sol intenso. Um rapaz, que não deveria ter mais do que vinte e cinco anos, saiu deste casarão que eu sabia ser um escritório de advocacia.

Ele vestia um terno preto, uma camisa branca, gravata vermelha e óculos escuros que ocultavam seus olhos. Mesmo assim era possível ver seu rosto vermelho e um caminho úmido em sua face.

Para o Hospital Batista, na Dunn Avenue... Tenho pressa. disse a voz entrecortada e pesarosa que parecia distante.

Estava claro que ele não receberia boas notícias. Talvez já tenha recebido as piores possíveis e estivesse apenas indo para um desfecho... para uma despedida... para um cadáver...

O clima fúnebre persistiu no carro, cortado por apenas um ou outro ruido baixo que o passageiro tentava disfarçar. Acho que ele tentava engolir o choro, como seus pais devem ter lhe ensinado desde criança. Acho que esses advogados têm que se mostrar fortes para o mundo, o tempo inteiro. Por mais sombrio que seja o seu próprio universo.

Não tentei conversar, ele precisava de seu próprio tempo. Apenas mantive a atenção no caminho. Foram longos 15 minutos.

Aqui está bom. O rapaz respirou profundamente Obrigado. Completou de maneira apática.

Ele teve certa dificuldade para sair do carro, parecia desnorteado. Deu uma nota de cinquenta. Acho que pegou a errada, mesmo assim, não acho que queria que eu o corrigisse ou passaria mais tempo do que o necessário perto de mim. Ou talvez quisesse adiar o máximo que pudesse a ida para o hospital e queria que eu avisasse sobre o erro para ficar ali alguns segundos extras. Preferi ficar quieto e ele foi embora em passos morosos e cabisbaixo.

Como um dia tão belo pode reservar notícias tão ruins? Acho que a morte não escolhe data ou hora.

Dali segui meu caminho para encontrar Cheryl. A vantagem de trabalhar por conta própria é que eu fazia meus horários. A desvantagem é que meus ganhos dependiam das horas trabalhadas e aquele desvio me traria prejuízos. Mesmo assim decidi fazer essa pausa. Era o aniversário dela e eu não podia perder por nada.

A assistente de recursos humanos completara vinte e três anos, trabalhava na FDJ Investimentos e ganhara o dia de folga. Cheguei em sua casa junto com uma brisa fria e úmida, talvez chovesse à noite.

Ela me esperava com a mesa posta. Eu queria fazer uma surpresa para ela e, no final, ela que preparou um almoço inesperado para mim. Com certeza eu não merecia aquela mulher. À minha frente estava um vinho branco com duas taças, salmão, purê de batata, alguns legumes e meu favorito, torta de cordeiro.

Cheryl, querida, quanta coisa incrível. Você não precisava fazer tudo isso, é seu aniversário.

Eu sei que você trabalha muito e tive o dia de folga, não foi nada. Pelo menos ocupei a mente. Sente-se, vamos comer.

O que acha de mais tarde à noite fazermos algo? Quero te levar a um lugar... acho que você vai gostar, dessa vez será uma surpresa!

Claro meu amor. Tenho certeza de que vou adorar. ***

Naquela noite fomos ao Dirty Dicks. Cheryl nunca vira um show como aquele (e eu também não). Seus olhos brilhavam maravilhada e sua risada rolava solta com os comentários sarcásticos despejados ao microfone. Vê-la daquela maneira alegrava meu coração. Sempre sentirei sua falta, mas não posso dizer que o fim era algo que eu não imaginava.

George estava no palco como Miss Fortune. Preciso dizer que ele era muito talentoso, suas piadas eram certeiras, tirando sarro das pessoas na plateia com um humor ácido arrebatador.

Perto do fim de seu show, ele parou de falar. Sua expressão divertida ganhou contornos emotivos e sérios. Seus olhos azuis ficaram vermelhos e sua voz um tanto quanto embargada.

Parem a música, por favor. Há algo que preciso dizer.

Os murmúrios de surpresa ecoavam por todo o bar. O que dava a entender não ser comum a George sair de seu personagem ou interromper o espetáculo.

Sei que muitos de nosso regulares aqui devem ter reparado os hematomas que ainda tenho em meu rosto, mesmo com maquiagem sei que vocês veem e comentam. Bom, esses machucados não são nada, se não fosse por Daniel, sentado ali no meio com sua linda companheira. Por favor, podemos ter uma luz nele? O rapaz de cabelo preto e barba mal feita ele diz rindo Daniel, Daniel, preciso lhe ensinar algumas coisas sobre como cuidar de sua aparência. Sim, esse mesmo, agora temos a pessoa certa. Ele salvou minha vida semana passada, esse homem é um verdadeiro herói! Nada daquela baboseira de capa e sair voando, ele arriscou a própria vida por mim e sempre serei grato por isso. Todas as bebidas dele e de sua garota são por minha conta, Frank! Muito obrigada, Daniel!

Todos se levantaram e me aplaudiram de pé. Eu não era um herói de verdade, só um cara dentro de um carro que estava morrendo de medo, mas era o mínimo que eu poderia fazer. Só que se não tivesse um carro, eu provavelmente teria fugido, talvez chamado a polícia que chegaria tarde demais. Não acho que seria uma boa ideia contar isso a George.

Daniel, querido! Fique por aí, assim que acabar meu bate papo quero me sentar com você!

Ergui meu copo em direção ao palco, com um brinde imaginário. George respondeu com um aceno de cabeça e um grande sorriso, então continuou com suas piadas e cantoria. Podemos nos sentar com vocês? disse uma voz às minhas costas.

Eram dois homens negros, um era grande, talvez o maior homem que eu já tenha visto na minha vida, deveria passar dos dois metros e não era musculoso, era gordo, mas com certeza havia muita força ali. Suas mãos eram enormes, do tipo que poderia pegar cinco baderneiros com uma delas e jogar para fora do bar sem derramar uma gota de suor. Acho que se ele fosse musculoso seria menos intimidador.

O outro era baixo. Bom, não baixo, baixo, mas perto do primeiro qualquer um que não fosse jogador de basquete pareceria pequeno. Acho que tinha por volta de setenta centímetros acima do primeiro metro. Talvez um pouco mais. Ele parecia simpático, o outro um tanto quanto carrancudo.

Claro, puxem uma cadeira. Respondi com um sorriso alegre.

Então Continuou o menor dos dois , você é o famoso Daniel? George não para de falar sobre você, o Super-Homem que o salvou. Ele é meu melhor amigo, então sou grato também. Muito prazer, Albert é o nome. E esse grandão ranzinza é meu marido, Christopher. Se tiver a sorte de ouvi-lo falar, será a voz mais gostosa e penetrante que já escutou em sua vida. Uma pena que a use tão pouco Disse rindo e olhando para o outro homem. Não se assuste, ele é um amor de pessoa depois que o conhece.

Um pequeno grunhido, seguido de um olhar de reprovação (ou de vergonha) veio do homem grande. O que divertiu Albert.

Vocês formam um casal lindo! Disse Cheryl com alegria Como se conheceram?

Muito obrigado, querida! Vocês também. O Tropeço aqui é segurança na The Pink Experience, minha casa noturna preferida. Quando o vi foi amor à primeira vista. Tenho certeza de que foi recíproco, mesmo que ele não admita.

Outro grunhido de reprovação se seguiu (ou de vergonha) e aquilo divertia Albert. Ele envolveu o parceiro em um grande abraço e lhe deu um beijo no rosto.

Todos os dias eu chegava na Pinkie e parava ao lado dele. Ninguém sabia se ele era gay, mesmo assim eu sempre encostava ali e tentava fazer com que ele risse. Ele nunca riu. Demorou um bocado para eu descobrir que ele não ri com a boca, pelo menos não em público. Ele treme o indicador direito em uma espécie de tique adorável. Quando descobri isso o convidei para sair, ele deu esse grunhido aí, mas eu estava convencido de que aquilo não era um não! Dei-lhe um beijo na bochecha e disse que esperaria ele fora da casa o tempo que fosse. Foi a primeira vez que ele desviou o olhar do público dançante e me olhou nos

olhos. Fiquei intimidado e minhas pernas tremeram. Não se engane, não foi de medo Ele fez um sinal de sim com a cabeça, bem ligeiro. Esperei até às 5 da manhã e lá estava ele, com o mesmo terno. Foi a primeira vez que ouvi sua bela voz. E o resto é apenas mais uma história de amor. Sua voz rápida era divertida Meu Deus, desculpem eu sempre faço isso, não deixo as pessoas falarem. Por favor Daniel, fale sobre seu dia de herói!

É verdade, querido. Você nunca me contou essa história. Entoou Cheryl.

Não aconteceu nada demais, de verdade. Tudo o que fiz foi entrar em um beco com meu carro e buzinar, foi o suficiente para espantar aqueles três. Graças a Deus. De resto só dei uma carona para George.

Como é modesto! disse Albert se inclinando sobre a mesa Não seja assim. Preciso te ensinar a contar histórias! Você precisa florear mais, dê detalhes sedutores, fale como se sentiu, como eram as pessoas, como estava o clima! Minta um pouco para aumentar, diga que deu alguns golpes de kung fu nos vilões. Sabe, sou um escritor meia boca, mas já vendi alguns livros. Nenhum Best Seller ainda, mas paga as contas.

Vocês se importam se eu interromper?

Era George com sua persona bufante de Miss Fortune. Mesmo com toda aquela maquiagem seu olho ainda estava roxo, migrando para uma cor amarelada e talvez ficasse assim por um bom tempo.

Todos se levantaram e fui o primeiro que George cumprimentou, ele deu um beijo em meu rosto e senti sua barba rala na minha. O sentimento foi estranho, não estava acostumado a receber beijos de homens, mesmo que no rosto. O abraço foi apertado, seguido de um pequeno choramingo:

Muito obrigado por ter vindo, meu querido Daniel. Sua voz era mais firme do que achei possível.

O show foi incrível, nunca vi algo parecido. Tenho que voltar outras vezes.

Ele me soltou, mas sua mão seguiu até a minha e a apertou com força, como se fosse o último fiapo de emoção que se permita ter.

Vamos, vamos George, ele está com a namorada! interrompeu Albert Não vai tentar roubar o menino na frente dela, não é?

Você é um idiota, Albert! George respondeu se divertindo. Não lhe disse que estou procurando um apartamento novo? Acho que preciso me mudar depois de tudo que aconteceu. Você conhece alguém que possa me ajudar, Dani-boy?

Eu conheço um tal sujeito interrompeu Albert , preciso buscar o nome dele, mas dizem que ele é muito bom. Tão bom que foi assaltado e em vez de perder o dinheiro vendeu um apartamento para o ladrão!

‘Bert era a voz profunda de Christopher, meu Deus, Albert tinha razão, era linda e intimidadora , pare de contar essa ladainha. Você sabe que Kyle tem três balas no ombro que provam a mentira que é essa história.

Sim! E também sei que você sempre me corrige quando eu a conto. O que não deixa de ser um causo muito engraçado! E é assim que você deve contar uma história, Daniel.

Seguimos bebendo até o amanhecer e George cumpriu sua promessa, não gastei um único centavo. Foi uma noite de risadas, novos amigos e percebi que George tinha um olhar triste, acredito que pelas lembranças de uma vida de sofrimentos. Ao mesmo tempo parecia feliz, talvez por estar entre pessoas que se importavam.

É curioso isso, independente de quanto soframos, um pequeno fio de alegria pode ser o suficiente para que possamos seguir em frente.

CAITLYN GIBBS

Você já teve a estranha sensação de que alguém está à espreita? Você olha ao redor e vê apenas sua própria sombra que rasteja de uma forma apavorante no chão e tudo à sua volta parece amedrontador demais e inseguro demais.

O bom de passar tanto tempo em academias é que sempre estou de tênis, assim meus passos são silenciosos e, se for preciso, posso correr bem rápido. Claro que nunca seria uma competidora olímpica, no entanto, poderia dar um belo cansaço em quem me perseguisse.

Também posso lutar. E se chegar em casa... Bom, aí a Colt 1911 de Samuel, uma relíquia de família, serviria muito bem o propósito. Bastava pegá-la no quarto, em todas as casas que moramos sempre a deixamos em alguma cômoda perto da cama. Sem falar que atirar não era nenhuma novidade para mim.

Esse era o meu estado de espírito na última semana. Dia e noite, eu tinha certeza de olhos vidrados na minha nuca, observando cada movimento meu. Era como se tivesse um alvo em minhas costas e deixava minha mente em um turbilhão de preocupações. Deve ser uma das piores sensações do mundo, nunca se sentir segura.

Reparei em um carro elétrico que começou a passar na rua de minha casa e isso era assustador. Malditos carros silenciosos.

Embora bem visível nas três vezes que o vi de manhã, à noite a cor preta do Prius se misturava com o ambiente. Só Deus sabe quantas vezes ele apareceu durante a madrugada.

Uma tarde ele se descuidou e chegou perto de mim, talvez perto demais. Consegui dar uma boa olhada, seus vidros eram bem escuros, o que não me permitiu ver o motorista. Mesmo assim consegui dar uma olhada na placa do Arizona. Anotei os números, então Samuel pesquisou para mim em seu escritório.

A dona do Prius era uma tal de Olisia Wójcik, de oitenta e quatro anos. Ela não deveria dirigir há pelo menos trinta. Havia algo de suspeito naquela compra recente, o que me deixou mais preocupada.

Pensei em ir à polícia... Droga, eles só atrapalhariam. É o que sempre fazem, complicam as coisas. E meu marido não pareceu nada feliz com o resultado de suas pesquisas.

Não havia muito que eu pudesse fazer, quão indefesas realmente somos quando há alguém à espreita? Claro que eu tinha um suspeito. Aquele cara do bar não batia bem da cabeça e não lidou bem com meu “não”.

Ian Warsaw tinha o perfil daqueles homens que não aceitam tomar um fora. No fim, são todos iguais, cheios de si, pois sempre tiveram tudo. Têm mais dinheiro do que merecem... Só que o que eu poderia fazer sem provas?

Talvez as coisas esfriassem com o tempo, mesmo assim deveria tomar cuidado dali em diante. ***

Era uma noite fresca de quarta-feira, tentei esquecer tudo e fui para um bar ao sul da cidade. Fiquei sentada sozinha em uma mesa bistrô de frente para a janela que dava para a rua. Todos podiam me ver, eu gostava disso, eu precisava disso.

Não havia nada demais em flertar com desconhecidos e esse homem de óculos tinha algo que me lembrava de um Sam mais jovem (não, não existe ninguém igual ou parecido com meu marido). Não me importei com ele me pagando alguns drinks, o rapaz era uma boa companhia, não deveria ter mais do que vinte e cinco anos.

É tão fácil seduzir um homem, uma pequena brincadeira com o canudo da bebida, uma mexida nos cabelos e eles já imaginam que se darão bem. Bom, talvez seja a verdade em alguns casos, talvez algumas mulheres não saibam usar essas habilidades, talvez seja tudo apenas um flerte. Acho que essas interações são tão incríveis, talvez eu tenha ficado muito mecanizada porque tudo sempre foi fácil e já não existia tanta emoção.

Então me dei conta do Prius preto parado na rua. A placa do Arizona e os faróis ligados não deixavam dúvidas, era ele.

Desculpe, Barry. Eu preciso checar uma coisa. Disse para o rapaz que tentava fazer algum truque de mágica com uma moeda.

Corri para a rua, mas o carro foi silencioso e rápido, nem ao menos cantou pneu.

Olha só, o que nós temos aqui? Se não é a maravilhosa Caitlyn!

A voz familiar foi aterradora.

Warsaw?! O que faz aqui?

Um homem não pode estar em um bar da cidade do qual ele não seja o dono?

Seu maldito, você está me seguindo? Não deixei a raiva transparecer, mantive minha voz calma e baixa. Onde conseguiu o Prius?

Que Prius? Por que eu te seguiria? É tudo uma feliz coincidência, não se coloque em um pedestal, já conheci diversas mulheres como você... E elas sempre foram minhas... um sorriso nojento dominou seus lábios e sua aparência se tornou um tanto quanto horripilante. Ele deu um passo em minha direção.

Se você der mais um passo, eu mato você! droga, eu não devia ter gritado.

Isso é uma ameaça ou uma promessa? Se me matar de prazer eu vou adorar. Sua voz cínica me enfurecia.

O que está acontecendo aqui, querida? disse Samuel mantendo certa distância de nós dois. Ele vestia uma roupa esportiva e um capuz cobrindo a cabeça. Foi quando me dei conta de que eu cometi algum erro.

Nada, meu amor. Apenas mais um idiota no caminho.

Você deve ser Samuel! – Interrompeu Warsaw, sem tirar os olhos de mim – É um prazer te conhecer... não deveria deixar sua mulher sozinha por aí, nunca se sabe o tipo de pessoa que ela pode conhecer, tem muita gente perigosa solta no mundo.

E eu sou o mais perigoso de todos. Replicou Sam com a frieza que me conquistara anos atrás.

Ian Warsaw riu. Riu à beça. No entanto, sua risada não escondia o nervosismo que sentia. Não, não era nervosismo, era maior, maior que medo, maior que pavor. Ele estava aterrorizado, acreditava em Samuel.

E ele deveria mesmo...

Foi um prazer revê-la Caitlyn. Por favor, mantenha contato.

O horrível homem se afastou, para logo ser engolido pela escuridão e sumir de nossas vistas. A sensação de raiva deu espaço para a frustração ao me dar conta que Sam estava por perto. Havia algo de errado, então fiquei parada sem olhar para o lado. Mesmo assim continuamos conversando

Sabe que eu tinha tudo sob controle. Não precisava intervir.

Eu sei. E é por isso que eu precisava. Há câmeras na frente do bar, você não foi cuidadosa dessa vez Caitlyn, você foi filmada. Ele te deixou irritada de verdade.

Sim... E ele sabe sobre nós.

Então, o destino dele está selado?

O destino dele está selado. Lembre-se que não me envolvo com esses seus afazeres. Faça como achar melhor.

Em vez de ir em direção ao meu marido, voltei ao bar e Sam teve seu cuidado de sempre para evitar as câmeras.

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