[AMOSTRA] Borboletas de outono - Luly Lage

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Plágio é crime

Para Daninha, que veio no Outono para ser a Borboletinha que mais se divertia enquanto dançava na cozinha, fazendo chocolate para a madrinha!

Agradecimentos

Aqui, agradeço às mulheres.

Às escritoras, em especial às da RR Editorial, que me empurram na jornada de continuar escrevendo;

Às cantoras, que me trouxeram essa trilha sonora tão especial que escolhi a dedo em cada capítulo;

Às artistas plásticas, que diariamente trazem sentido aos aspectos da minha vida que não envolvem a escrita;

Às familiares, que são a primeira referência que temos em vida, e seguem dessa forma mesmo quando outras referências chegam;

Às amigas, muitas, que me leem, não só em livros, mas também e principalmente na vida;

Às leitoras, que dão sentido ao resultado.

A mim, pela primeira vez, por superar incômodos trazidos pela trajetória de Lili, a transformando em positivo.

Em outras obras e momentos, claro, também agradeço a homens, de todas essas categorias.

Mas, dessa vez, agradeço às mulheres.

Prólogo

É um passo, é uma ponte, É um sapo, é uma rã

É um resto de mato na luz da manhã

São as águas de março fechando o verão

É a promessa de vida no teu coração

Elis Regina1

Como deixar para trás a vida que construí? Como forçar alguém a deixar sua vida de forma tão abrupta também?

As pessoas sempre me diziam incansavelmente que eu era uma mulher forte, mas enquanto fechava a mala de Noah, guardando toda sua existência dentro daquele espaço tão pequeno, me senti mais fraca do que jamais fui. Mais do que isso: desejei poder ser fraquinha, fraquinha, desejei não precisar tirar forças que eu não tinha mais dentro de mim para tirá-lo daquela que, até então, era nossa casa.

A casa onde ele nasceu e viveu todos esses primeiros anos de sua vida. Casa essa que eu esperava que ele nunca mais visse!

Durante os primeiros vinte e oito anos da minha vida eu não quis fugir de nada. No sentido literal, mesmo. Enfrentei tudo o que me apareceu, de cabeça (e nariz) em pé, me gabando disso para quem quisesse ouvir.

E aí, antes que pudesse perceber, estava em um relacionamento que me fazia querer fugir todos os dias, e era o que estava prestes a fazer.

Olhei para a janela, encharcada com uma chuva de fim de verão, brutal. Se tudo desse certo, no dia seguinte, aquela chuva teria parado completamente para que a gente pegasse o ônibus em direção ao futuro.

Quando Heitor voltasse de viagem, Noah e eu estaríamos longe.

Ele não nos veria nunca mais.

1 Antônio Carlos Jobim. Águas de Março. Elis. Phonogram, 1972. Faixa 7.

2

Pulando na água

Olhando para o mundo

Lili vai, Lili vai, Lili continua

Sonhando

Lili vai, Lili vai, Lili continua

Voando

Lili vai, Lili vai, Lili continua

Liniker2

Liniker. Lili. Indigo Borboleta Anil. Estúdio Brocal, 2021. Faixa 3.

Capítulo 01 – Não levo peso, só levo asa

Da onde eu vim

Eu não trouxe mala

Não trouxe nada

Não trouxe cor

Eu não trouxe massa

Só trouxe alma

Marisa Monte (ft. Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown)3

ACORDEI DE REPENTE com o barulho do ônibus estacionando, eu só não sabia onde. Olhei pela janela, a chuva finalmente tinha diminuído, e ainda estava muito escuro para ser nosso destino final.

O motorista abriu a porta e anunciou: “15 minutos!”. As pessoas se movimentaram para aproveitar a parada, seja indo ao banheiro ou para fazer um lanche.

Peguei meu celular no bolso e vi que estava com o sinal bem fraco. Ainda assim, abri o aplicativo onde praticava francês, como forma de retomar meus estudos da língua.

Noah estava na cadeira ao lado, com a cabeça deitada em meu colo, dormindo tranquilamente. Seus cachinhos escuros cobriam parcialmente o rosto e seu ombro subia e descia com o ritmo de sua respiração.

Sorri, lembrando de quando ele era bebê e eu ia em seu quarto, ver se ele estava respirando dentro do berço...

Que saudades de quando eu ainda conseguia acreditar que podia protegê-lo de tudo!

Que engraçado, quando criança, eu enjoava bastante em viagens, sempre precisava tomar remédio antes . Meu filho, muito pelo contrário, não sentia nada, e estava bem menos acostumado com estrada do que eu.

Coloquei os fones de ouvido, com muito cuidado para não acordá-lo, e um rapaz trombou em meu braço ao sair do ônibus quando fiz isso. Sequer pediu desculpas, mas não me importei. Foquei no joguinho de línguas, que era mais importante.

3 Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Marisa Monte, Cezar Mendes. Ânima. Tribalistas. Rio de Janeiro: Universal Music, 2017. Faixa 7.

Mesmo com os fones, conseguia ouvir ao longe os múrmuros das pessoas conversando nas cadeiras em minha frente, as únicas que não tinham descido na parada. No início da viagem, prestei atenção no rapaz contando da namorada que morava longe e a menina querendo saber mais sobre ela, cada um de sua janela. Em algum momento enquanto eu dormia, eles sentaram juntos pra continuar o papo sem incomodar os outros passageiros.

É interessante pensar em como as pessoas estão abertas a compartilhar sua vida quando não têm nada a esconder. Aqueles dois não se conheciam, mas passaram horas trocando histórias, dividindo um com o outro o tempo que tinham de viagem pelo simples prazer de trocar ideias com alguém.

Eu não poderia fazer isso, tinha muito o que esconder.

Pensando bem, seria um começo de conversa engraçado...

Não, não estou viajando a trabalho nem a lazer, estou fugindo do meu ex-marido abusivo antes que ele destrua completamente a mim e ao nosso filho!

Ninguém estava pronta pra ouvir esse tipo de história de alguém que nunca me viu na vida. Poucas são as pessoas que aceitam essas histórias de quem conhece, pra começo de conversa.

Minha imaginação foi longe, criando um diálogo longo e profundo com a mesma menina que, agora, estava a um estofado de distância de mim. Nele, eu narrava os seis anos da minha vida que desperdicei ao lado de Heitor

Dentro da minha cabeça, contei a ela como o príncipe encantado se transformou em vilão tão rápido, como eu acabei me vendo presa a ele financeiramente após engravidar, como ninguém acreditaria em mim que aquele dentista tão fino e educado tinha colocado amarras na vida da mulher que dizia amar.

Ela então me abraçava, acalentando todo o meu desespero de ser encontrada por ele após a fuga, garantindo que ia dar tudo certo e contando histórias parecidas que provavam isso.

Passei tanto tempo devaneando, de forma tão intensa, que nem percebi o movimento das pessoas voltando para o ônibus e da porta dele se fechando. Só percebi que o tempo da parada acabou quando o veículo deu um solavanco debaixo de mim, indicando que estava partindo de volta para a estrada.

Desbloqueei o celular, cuja tela tinha apagado, e cancelei a lição que ia começar, guardando o aparelho no bolso e os fones na bolsa. Fazendo um carinho em Noah, me encostei da forma mais confortável possível na poltrona e voltei a dormir.

Em dado momento, quando o céu já indicava estar amanhecendo, uma grande freada seguida de buzina nos acordou. Noah me fitou, assustado, como se não entendesse o que estava acontecendo, e olhou ao redor.

Depois, fez a pergunta que toda criança faz, em qualquer viagem:

A gente já chegou?

Eu ri.

Não, amorzinho, mas vamos chegar já, já. Tenta dormir de novo.

Ele voltou a deitar no meu colo e logo sua respiração ficou pesada, indicando que tinha obedecido. Eu permaneci acordada, esperando nosso destino chegar.

Avistei a rodoviária antes que o ônibus entrasse nela.

Ao contrário de estações de ônibus tumultuadas de grandes cidades, aquela era pequena, o que, de certa forma, exala um charme singular. Daqueles que cativa seus moradores e viajantes que passam por lá. Ficava no centro da cidade, dando a ele movimento, conectando a comunidade ao resto do mundo.

Até seu entorno era meio pitoresco. O prédio da estação, que não era, de forma alguma, grande, tinha um estilo arquitetônico rústico que combinava direitinho com a região onde estava localizada. Seu exterior era adornado com flores vibrantes, adicionando um toque de beleza natural ao ambiente.

Principalmente para mim, uma grande apaixonada por flores!

Quando enfim descemos e fomos pegar as malas, me senti tomada por uma sensação aconchegante, como se fosse abraçada pelos tons quentes da madeira e da iluminação, combinando direitinho com o outono começando.

Eu sentia no ar um leve aroma de café, o que me fez perceber o quanto estava com fome.

Segurei a mão de Noah e fomos andando junto com o fluxo de pessoas. A poucos metros do desembarque estava Bel, minha prima, segurando uma plaquinha onde se lia “Minha incrível família”.

Talvez, para algumas pessoas, aquilo soasse bonitinho, porque realmente era, mas eu sabia o motivo de a plaquinha conter aquelas palavras, e não nossos nomes. Mesmo tão longe de casa, era preciso manter discrição.

Quando ela nos abraçou, o fez de forma que pudesse envolver os dois ao mesmo tempo. Pegamos meu filho no colo juntas e nos envolvemos no outro braço, que permaneceu livre, ficando ali pelo que pareciam eras.

Deu tudo certo, né? Foi a primeira coisa que ela disse, assim que nos separamos.

Deu, sim. Saímos em um horário que ninguém viu, não encontrei conhecidos na rodoviária de lá... Nada a temer.

Ela sorriu, aliviada.

Fomos andando em direção ao carro, onde guardamos as malas e embarcamos rumo à pequena cidade de Temperança, que ficava ali perto e não tinha rodoviária própria.

Noah olhava a paisagem com os olhos indicando que ainda estava com sono, o que nos permitiu conversar.

Você falou pra sua mãe, né? ela perguntou.

Falei, claro. Passei o endereço pra ela já no celular novo. Assim que a poeira baixar, ela vem nos visitar... Você falou pra sua?

Claro que não! Até parece que ela ia segurar a língua, não consegue. Ia acabar falando pro meu pai ou pro meu irmão, você sabe, não dá pra mais ninguém saber...

É, eu sei... Não corre o risco de eles aparecerem por aqui?

Ela riu.

Ai, Lili, desde que eu mudei, eles não vieram. Só pra ajudar a trazer as coisas, mesmo. Você sabe como são, detestam interior. E, por mim, tudo bem, gosto de ter minha vida familiar separada da que tenho aqui, me faz bem...

Ficamos caladas alguns minutos, quando ela retomou a conversa.

E lá, no Rio, mais alguém sabe?

A Karine, professora do Noah. Eu precisava de ajuda com a transferência e sabia que ela não ia falar nada.

Só?

Só.

Ela assentiu, como se indicasse que aquilo era uma boa coisa.

Quando o carro enfim parou, me vi de frente para uma casa branca de janelas e porta marrons, com uma pequena garagem bem na frente, onde estacionamos após ela abrir o portão. Descemos e Bel me entregou as chaves, indicando para que eu abrisse.

Noah segurou minha mão e disse:

A gente vai pisar com o pé direito, né?

Eu ri e concordei.

Quando contei que íamos mudar juntos, dois dias antes, combinei que nossa entrada na casa seria daquela forma, uma tradição que indica começar bem algo novo.

Ele adorou. Desde então só falava nisso, repetiu o gesto em todos os lugares que entramos desde então, incluindo o ônibus de viagem e o carro da prima-tia. A hora de fazer isso ao meu lado enfim tinha chegado, e parecia deixá-lo mais eufórico ainda do que antes.

A casinha era uma graça, o lugar ideal para abrigar uma mãe solo e o filho de cinco anos. Um espaço aconchegante e acolhedor que nos proporcionaria conforto e sensação de pertencimento.

Apesar do tamanho compacto, a casa foi projetada para aproveitar ao máximo o espaço disponível, parecia feita para atender às nossas necessidades.

Ao entrar, me vi em uma sala de estar bastante convidativa. As paredes eram pintadas em tom turquesa bem claro, quase branco, criando uma atmosfera serena. Já estava ali nosso novo sofá e uma poltrona grande e cinza que eu não tinha comprado, dispostos diante de uma mesa de centro baixa de palete.

Eu amava esse tipo de composição rústica e nunca pude ter uma casa assim antes!

Imaginei nós dois naquele ambiente, lendo livros ou assistindo juntos aos seus filmes preferidos.

À esquerda da sala estava a cozinha compacta e funcional, já equipada com todos os eletrodomésticos básicos inclusos no aluguel. Havia também uma pequena mesa de madeira, quase na mesma cor da de centro, com quatro cadeiras, que antes faziam parte da casa de Bel e ela nos doou

Do outro lado da sala, um corredor minúsculo levava aos dois quartos e ao banheiro. O primeiro quarto, o menor, seria de Noah e o segundo, pouco maior, o meu. Ele também já estava mobiliado com uma cama de casal, uma mesa de cabeceira e

armário embutido, que também tinha no quarto dele. Cortinas brancas cobriam as janelas o que não estava no contrato, mas eu sabia exatamente quem tinha colocado ali.

Aproveitei o pequeno tour para ir ao banheiro, pois tinha evitado fazer isso no caminho para não acordar meu pequeno. Ele era, como tudo ali, compacto, mas funcional, com Box pequeno e chuveiro já instalado, pia com espelho e armário embaixo, além de, claro, vaso sanitário. Enquanto usava fiquei olhando o azulejo, adornado com pequenas flores de cor desbotada.

Era o único cômodo da casa que estava completamente pronto. Na semana anterior, eu tinha enviado dinheiro para compras então já tinha papel higiênico, sabonete e alguns produtos de higiene sobre a pia.

Assim que saí, Noah me pediu para ver o quintal que ficava ao fundo, o que o deixou mais empolgado em toda a mudança.

Após cinco anos vivendo em um apartamento, proibido de interagir com as outras crianças nas áreas comuns do prédio, ele tinha um espaço onde poderia ser livre.

Abri a porta dos fundos e o deixei correr pelo espaço pequeno, de braços abertos e cabelos ao vento. Parecia estar em um quintal de vários quilômetros.

Sentei na beirada da porta, observando aquela cena e respirando em paz pela primeira vez em muito tempo.

Me permiti sonhar em transformar aquilo em um espaço para receber os novos amigos, onde eu teria muitas plantas e algumas luzinhas em cordões. Algo lúdico, delicado e alegre, que transparecesse nossas personalidades individuais também como família. Porém, mais do que qualquer coisa, sonhei que ali realmente encontraria consolo, segurança e um lugar pra chamar de lar.

Repirei fundo e voltei pra dentro, para as paredes esverdeadas, para o layout cuidadoso e a atenção aos detalhes que garantiam que cada canto da casa, mesmo ainda desmontada, atendesse às necessidades de pequenas famílias como a nossa.

Enfim, prendi meus cabelos e fui desembalar a mudança, que tinha chegado na véspera. Era hora de criar um ambiente onde pudéssemos prosperar e criar belas memórias juntos.

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