[AMOSTRA] Eu te amo, Philip Parker - Luly Lage

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EU TE AMO, PHILIP PARKER

ISBN 978 65 98121 80 8

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Esta é obra de ficção sem qualquer vínculo ou compromisso com a realidade. As situações e pessoas nela retratadas existem apenas no universo ficcional. Não representando opiniões, gostos e/ou qualquer coisa do universo real das autoras. Qualquer semelhança é mera coincidência.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

L714e

Lage, Luly

Eu te amo, Philip Parker / Luly Lage - 1. ed. - Rio de Janeiro : RR Editorial, 2023. 152 p. ; 21 cm.

Romance. B869 Título. I

Atendimento ao cliente TER a QUI das 13 às 19 horas sac@grupoeditorialquimera.com.br

Para Gugui, meu Philip Parker particular, o melhor amigo de adolescência que se tornou melhor amigo da vida toda: é um privilégio poder me referir a você assim ao te dedicar esse livro!

E você pode contar pra todo mundo

Que esta é sua canção

Pode ser bem simples,

Mas agora que está pronta

Espero que você não se importe

Espero que você não se importe

Que eu expresse em palavras

Como a vida é maravilhosa com você nesse mundo!

(Your Song – Elton John e Bernie Taupin)

Nota da autora ELEANOR GILBERT é, na minha vida, um presente, um presente muito bom, daqueles que é dado por quem te adora e sabe direitinho do que você gosta. Desembalei com cuidado o embrulho, coloquei do lado pra não estragar, abri a caixa com carinho e tirei o conteúdo de dentro, pronta pra usufruir dele da melhor forma possível.

Nesse caso, é claro, usufruí construindo e contando essa história, permitindo que ela deixasse de ser só minha e da RR Editorial e passasse a ser de todo mundo.

Essa história é constituída 99% de ficção e aquele 1% do reflexo da adolescente apaixonada pelo melhor amigo que fui um dia. Reli diários, desenterrei cartas e mergulhei nas minhas memórias de forma tão deliciosa para construí-la que só espero que ela seja uma delícia para quem vai degustá-la também.

Como parte desse aspecto de resgate da minha própria vida, dei para cada capítulo desse livro como trilha sonora uma música do meu maior ídolo, Elton John. Uma história especial assim merece ser embalada por músicas a sua altura, e espero que minha narrativa tenha feito justiça a essa seleção tão maravilhosa!

A NAMORADA DO MEU MELHOR AMIGO

♫ Can You Feel The Love Tonight

ERA MAIS UM dia imersa na voz do Elton John. Estava lá, deitada no gramado dos fundos de casa, debaixo das árvores, onde a luz forte do sol não incomodava meus olhos. Meus pés acompanhavam o ritmo da música, como se tudo ao meu redor não existisse.

Comecei a rir, pensando que se alguém tirasse uma foto minha, com certeza postaria na internet com a legenda Solidão ou liberdade?, seguido de algum clichê sobre “solitude”, que renderia um mundo de comentários iguais.

Ali, sobre um tecido colorido, reparei os diferentes tons de verde das folhas e em como elas estavam juntinhas acima de mim, como se me protegessem do resto do mundo. Aquele cantinho era meu refúgio, o lugar onde eu me escondia quando não queria ver ninguém.

Minhas mãos dedilhavam o chão, tocando um piano imaginário. Eu estava em paz.

Quando Can You Feel The Love Tonight tocou em alto volume nos meus fones de ouvido, fechei os olhos, desejando que Parker também estivesse ali.

There’s a calm surrender

To the rush of day

When the heat of a rolling wind

Can be turned away

An enchanted moment

And it sees me through

It’s enough for this restless warrior

Just to be with you

1

Imaginá-lo juntinho a mim em momentos como aqueles tinha se tornado frequente nos meses anteriores. Por anos, o melhor amigo. Agora também um amor secreto.

Senti alguma coisa beliscando minha cintura e levei um susto. Abri os olhos e o vi me olhando, como se tivesse sido conjurado pela minha imaginação, todo sorridente. Tirei os fones, a música tão alta que ainda dava pra escutar, e puxei para um abraço apertado, o fazendo deitar sobre meu corpo, e nos juntamos com tanta força que saímos rolando um pouco pela grama.

Quando paramos, já sem ar, segurei sua mão. Ele se afastou me olhando de forma muito diferente agora, colocando a mão em meu rosto. Minha respiração era pesada e audível, como se eu soubesse o que estava por vir.

A quebra de expectativa foi grande quando ele me soltou e olhou para o outro lado. Falei algo pela primeira vez desde que nos encontramos:

O que foi?

Eu tenho medo de estragar tudo...

Fez menção de levantar, mas o segurei.

Você não vai estragar.

Nossas testas se tocaram quando puxei seu pescoço. Reuni toda a coragem que não tive nos últimos tempos e, sem pensar mais um segundo, o beijei.

Ao longe, mas ainda audível, a música chegava em sua última reprodução do refrão, embalando meu primeiro beijo com quem eu tinha certeza de ser o amor da minha vida.

Os pássaros de afastaram, as árvores se mantiveram quase paradas, nenhuma formiga caminhou sobre as folhas. A mãe natureza concentrou todas as suas forças nas carícias de nossas mãos, no desespero dos nossos lábios, no bater do nosso coração.

Minhas pernas o enlaçaram com mais força ainda que os braços e, sem que a gente parasse de se beijar, o ouvi dizendo meu nome.

Talvez seus pensamentos estivessem entrando nos meus, sussurros que queriam ser verbalizados sem interromper um acontecimento tão glorioso.

Senti sua mão em meu braço e um leve sacolejo. Parecia algo estranho para se fazer durante um beijo, então a segurei, e mais uma vez sua voz me chamou, me forçando a abrir os olhos para entender o que estava acontecendo.

Estava deitada com os pés apoiados na minha cabeceira. Elton John, de fato, tocava nos fones, bem baixinho, mas não tinha nada de romântico na canção que tinha começado agora. Parker me olhava rindo, com certeza achando cômica minha relutância em acordar daquele sonho, que tinha esse título em todos os sentidos.

Nossos moletons chegaram, sua dorminhoca! gritou, arremessando um pacote em cima de mim.

Tirei os fones, deixando a música de lado, com o maior sorriso amarelo do mundo no rosto. Sentei, arrumando os cabelos bagunçados depois da soneca, e sem precisar falar nada começarmos a rasgar os embrulhos. E lá estávamos, os dois, admirando cada um seu moletom dos Los Angeles Dodgers em azul e branco; réplica de um dos visuais mais icônicos de Elton John. Eles eram muito brilhantes e perfeitos, do jeito que esperávamos. Eles são lindos! Falei, abraçando o meu. Eu te amo, Philip Parker, por ter conseguido isso... A gente tinha que mandar fazer bonés combinando!

Ele assentiu, colocando sua peça sobre a cama e tirando a minha dos meus braços pra que ficassem lado a lado, de braços cruzados, predizendo o futuro breve onde seriam usadas.

Em seis meses, novembro daquele ano, cruzaríamos o país para curtir o último show do Elton nos Estados Unidos, parte da sua turnê de despedida, Farewell Yellow Brick Road.

Seria nossa primeira viagem sozinhos, primeiro grande show, no estádio do time de beisebol que o moletom homenageava, pouco depois de entrar para a faculdade.

Era um sonho se realizando. Pelo menos aquele.

O que você está ouvindo aí? Colocou um dos fones no ouvido. Tirando os tênis, enquanto nos deitávamos e o aleatório das músicas continuava.

Meu estômago se revirava em cambalhotas toda vez que nossos olhares se encontravam, misturando meus sentimentos escondidos com o gostinho de ter provado como era estar com ele no meu subconsciente. Apesar de meio exagerado e ilusório em alguns pontos, porque sequer existia uma mata atrás da minha casa, o calor do nosso beijo parecia muito real.

No meio da conversa, Parker se sentou na cama e encontrou um álbum de fotos em cima da mesa de cabeceira; eu tinha o colocado ali mais cedo após encontrá-lo num armário. Já crescemos na Era Digital, mas minhas mães faziam questão de imprimir fotos e montar conjuntos como aquele.

Folheamos as páginas, recordando alguns aniversários. Então, ele parou numa foto de nós dois abraçados na roda-gigante do Parque Rosewood quando crianças aquele foi o primeiro e único verão do Rosewood na cidade durante os três meses do verão; fechou após um acidente num dos brinquedos. Senti uma saudade tremenda dos momentos que não voltam mais.

Ele ia fazer algum comentário, mas a porta do quarto abriu novamente. Um dos males de dividir o quarto ainda mais com a irmã mais nova, apesar de todo amor que tínhamos uma pela outra era que, a qualquer momento, uma amostra grátis do apocalipse

como já diziam minhas mães , vulgo as mudanças de humor de um adolescente, poderia atrapalhar tudo.

Felicia entrou como um furacão; a irritação estampada no rosto era tão forte que ninguém teve coragem de dizer mais nada. Ela tinha 13 anos e sua recém-chegada à adolescência trazia uma série de emoções à flor da pele.

Eu não suporto mais trabalhos extracurriculares! Nem sei pra que serve essa porcaria! Mal posso esperar para terminar tudo!

Ela resmungava em alto e bom som, mais para si mesma do que para nós, jogando sua mochila no canto do quarto.

Parker e eu nos olhamos e não conseguimos evitar o riso. Era engraçado como as coisas pequenas podiam ser grandes fontes de estresse quando se era adolescente.

Eu te entendo, Felicia, escola é um saco, mesmo... Parker respondeu Mas, eu juro, acaba antes do que você espera e logo vai morrer...

Morrer de saudades, eu já sei! A Lena me fala isso todos – os – dias, Parker, mas eu NUNCA vou ter saudades disso. Vocês dois são muito sortudos!

Não conseguimos segurar mais uma leva de risadas.

Vocês dois são tão bobos!

Bobos, mas sempre aqui para você! Falei, dando-lhe uma piscadela.

Minha irmã revirou os olhos e saiu, resmungando, dessa vez, algo sobre comer um pacote de biscoitos.

Deve ser TPM. Ele deu de ombros e voltou a olhar o álbum.

Ai, claro que não! Ela nem tem isso ainda! Não começa a achar que toda menina nervosa é TPM.

Ele fez uma careta.

Tenho que ir. Vou visitar o vovô. Mas o celular tocou quase no mesmo instante. É, acho que a visita pode esperar... Sua voz estava tão animada quanto a expressão em seu rosto. A Christie está sozinha em casa e vou lá ficar com ela. Tchau, Lena!

Nem deu tempo de me despedir.

Christie. Christine Thompson era minha colega de time; ela no ataque, eu na defesa também parte do Clube de Debate, mas, nos últimos meses, atendia pelo título de “Namorada de Parker”. Também era meu principal motivo para sequer COGITAR contar a ele tudo o que vinha sentindo.

Ela tinha dois cachorros sem raça definida, adotados sua principal atividade extracurricular era o trabalho voluntário no mesmo abrigo de animais onde adotei

Nikita, minha gata. Foi através de seu incentivo que a família Parker enfim resolveu adotar um novo cachorro depois de muitos anos.

Claro que não existem pessoas perfeitas e a namorada do meu melhor amigo não era a perfeição em pessoa. Também não tinha longos cabelos iluminados que brilhavam à medida que andava ou as melhores notas de toda a turma. Bonita e inteligente, sim, com um sorriso amigável sem ser impecável. Uma garota real e MUITO legal.

Tem como não gostar de alguém assim?

Nós nunca fomos amigas, mas sempre nos demos bem como colegas de classe e de time, uma das poucas pessoas que não me discriminava por vir de uma família homoafetiva. Quando o namoro deles começou, meus ciúmes ainda estavam escondidos, então fiquei feliz em vê-los juntos, desde o fatídico dia em que tinham se tornado realmente um casal.

Os dois começaram a sair após um jogo amistoso do qual nosso time participou que parecia indefeso, proposta de interação para fortalecer a união entre jogadoras das escolas da região, mas na verdade todo mundo sabia que não era: alguns olheiros de universidades estariam ali, dispostos a oferecer bolsas de estudo a quem mais se destacasse.

Parker estava na arquibancada torcendo por nós. Christie, que até então não tinha se sobressaído muito como artilheira, foi quem fez o gol de desempate e nos deu a vitória nos minutos finais. Foi uma jogada maravilhosa, digna da admiração da treinadora e, claro, de dois senhores desconhecidos que a procuraram logo após o fim da partida, entregando panfletos de faculdades locais que ela aceitou bem animada.

Fomos para o vestiário muito empolgadas, e a euforia da vitória me fez demorar mais lá dentro do que de costume, porque eu não conseguia parar de discutir todos os lances com minhas companheiras de defesa. Quando enfim terminei meu banho e saí, pronta para a comemoração, encontrei os Parker e Christie conversando na porta, como se já tivessem muita intimidade, sobre as ofertas recebidas por ela, verdadeiros tesouros nas mãos de qualquer veterano do Ensino Médio. Ele parecia hipnotizado e precisei cutuca-lo para ser vista.

Parker explicou que estava me esperando e disse “Vamos?”. Nós duas respondemos “Sim!”.

Seguimos rumo à Lanchonete da Esquina, um lugar onde todo mundo se reunia, mas sequer ficava em uma esquina, e Christie foi recepcionada como uma grande superheroína, afinal tinha salvado o jogo e nossa posição no campeonato sem pontuação.

Eu e Paker nos sentamos juntos, mas pouco tempo depois Christie se juntou a nós. Ali, ao lado deles, era impossível não ver a troca de olhares ficar mais intensa, então saí e os deixei sozinhos. O primeiro beijo não demorou cinco minutos.

No caminho de casa, Parker não conseguia parar de falar dela e eu estava feliz demais com essa alegria toda. Dei a maior força do mundo pra ficarem juntos, e quando me deixou na minha porta me agradeceu por “tê-los apresentado”.

Ao longo das semanas, porém, vê-los andando de mãos dadas no término das aulas me deixava cada vez mais triste. Quando ouvia músicas românticas, com ele ou não, imaginava uma vida diferente pra nós dois, como casal.

Foi num desses dias, enquanto estava com Your Song no repeat, caí na real: gostava dele de uma nova forma. Era “nossa música”! Sempre associei a ele por falar da relação de amizades dos compositores, tão maravilhosa e vista pelo mundo inteiro como romântica, de repente me fazendo enxergá-lo como um possível amor também.

Eu me sentia culpada por isso o tempo todo, como se fosse eu a vilã dessa história porque, se parar pra pensar, se o filme da nossa vida fosse contado pelo ponto de vista de Christie, eu seria. A melhor amiga do namorado, a boa invejosa cujos sentimentos só ficaram claros ao perde-lo para a mocinha incrivelmente gente boa.

Até eu torceria contra mim nesse filme!

Como a vida não é um filme, após ver Parker descendo a rua naquela tarde, me permiti voltar para o quarto, cabisbaixa. Ignorei o chamado das minhas mães, alegando não estar com fome na hora do jantar e prometendo voltar para comer mais tarde. Mentira. Fiquei a noite toda com os fones nos ouvidos, sentindo a respiração de Nikita, enquanto ela dormia ao meu lado, ignorando a hora e minha irmã, ainda um tanto quanto irritadiça.

Eu não queria aquela realidade, pelo menos não ali, na cama, já convivia com ela todos os dias.

Eu queria sonhar!

UM DIA SANGRENTO

♫ Empty Garden

NO DIA SEGUINTE, o grito de Felicia clamando por uma “MÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃE!” ecoou por toda a casa, exalando desespero. Eu sabia que nossas mães não estavam, então larguei o dever de Química e saí correndo à sua procura, já que ela não estava no nosso quarto.

A porta do banheiro estava entreaberta.

Tá tudo bem aí dentro? Bati duas vezes antes de empurrar a porta devagar.

Cadê a mamãe Mônica, Lena?

A mamãe teve que sair para reunião com um cliente... Você precisa de alguma coisa?

Do outro lado da porta, silêncio. Esperei por mais de um minuto, até que ela respondeu:

Eu... acho que fiquei... menstruada!

Entrei no banheiro e vi o que ela julgava ser uma possibilidade era, na verdade, a realidade.

Achei que estava com dor de barriga e quando senti uma coisa estranha pensei que tinha feito cocô na calça, mas não está parecendo...

Seu olhar tinha um desespero tão grande que foi impossível evitar o flashback de como aconteceu comigo, enquanto brincava com ela no meio do campinho de futebol, perto da nossa casa.

Eu tinha sua idade, também, lembra? Essa dor são cólicas, com o tempo você vai até se acostumar com elas. Tá tudo bem?

Claro que não tá tudo bem! Eu não quero ficar menstruada!

Bom, isso é uma coisa que você não pode evitar, pelo menos por enquanto, Felicia... Também não é um bicho de sete cabeças, relaxa. Com o tempo, você se acostuma. É só sangue, uma coisa que tem no nosso corpo desde que a gente nasceu, não é nojento como parece.

2

O problema não é esse, é a reação das pessoas... respondeu com olhar cabisbaixo O pai da Kelly comprou FLORES pra comemorar... Eu não quero comemorar isso, por favor!

Assenti, pegando um absorvente no armário. Na verdade, isso jamais passaria pela minha cabeça, sempre achei meio cafona essa história de comemorar a primeira menstruação como se fosse uma grande vitória pessoal, digna de flores e chocolates. Com a família inteira dando parabéns, fazendo parecer uma conquista do direito de sentir cólicas menstruais em uma meia maratona.

Assegurei a Felicia que nossas mães jamais a tratariam daquela forma, afinal não tinham feito nada daquilo comigo. O pai da Kelly era um homem, afinal, eles tendem a ser exagerados. Com tudo.

Esse tipo de exagero é uma grande hipocrisia, isso sim.

A partir do momento que a primeira vez passa, a maioria das pessoas começa a lidar como se a gente cometesse um crime mensal ao ficar menstruada. Não podemos usar essa palavra, não podemos deixar que as pessoas saibam que está acontecendo, temos que esconder qualquer resquício de que aquilo ali existe.

E, no fim das contas, é só um processo biológico como outro qualquer, e a vantagem de ter crescido com duas mulheres dentro de casa uma delas, ginecologista é que aprendi isso bem cedo.

Olhei para minha irmã, com seu olhar vago de medo inocente, assustada pelo que estava por vir em sua vida prestes a não mudar quase nada e entreguei o absorvente, ao mesmo tempo em que meu celular começou a tocar.

Era Parker. Recusei.

Você não vai atender? perguntou.

Ah, eu falo com ele depois, isso aqui é mais importante, relaxa... Você quer conversar sobre isso?

Não, acho que não... Não sei se tenho algo pra conversar...

Por que você não liga pra Ariel e conversa com ela?

Ariel, irmã mais nova de Parker, era mais ou menos dois anos mais velha que Felicia e, assim como nós dois, foram criadas juntas, já que nossas mães não se desgrudavam. Elas não eram tão unidas quanto eu e Parker, mas boas amigas.

Ou pelo menos eu pensava assim, mas Felicia sacudiu a cabeça em negação.

Ai, Lena, eu e a Ariel nem somos mais amigas, desde que ela foi pro Ensino Médio! A gente não se vê nunca nem gosta das mesmas coisas...

Mas vocês brigaram... ou algo assim?

Não, só nos afastamos, mesmo. É normal, né? Ela mudou de escola e tá nessa fase super rockeira. Eu gosto dela, tá tudo bem.

Fiquei pensando em como eu tinha deixado isso passar; a irmã do meu melhor amigo, que morava bem ali ao lado, não frequentava mais tanto nossa casa há quase um ano. Me senti um tanto quanto relapsa e egoísta. Ela, como sempre, parecia estar lendo meus pensamentos:

Você tá muito ocupada com o último ano e as coisas da faculdade. Não fica se sentindo mal, tá?

Segurei sua mão e o telefone tocou mais uma vez. Silenciei de novo.

E se o sangue vazar e todo mundo ver minha calça manchada? perguntou.

Ah, isso sempre acontece...

Vendo o seu olhar de desespero com a minha resposta, completei:

É normal acontecer, mesmo... Você vai morrer de vergonha na primeira vez, mas depois passa.

Minha vergonha não vai passar nunca, Lena! Todo mundo vai saber que eu menstruo!

E qual o problema disso?

Ela não soube me responder, então deu de ombros. Mais uma vez continuei sem esperar por respostas diretas:

Olha, Felicia, existe um alvoroço muito grande em torno disso, eu sei, mas é tão bobo, né? Metade da população mundial menstrua, não é nenhum mistério. Eu sei que as revistas romantizam e o resto das pessoas age como se fosse o fim do mundo, mas não é.

Você vai se acostumar!

Mesmo assim... E se alguém rir da minha cara?

Aí você ri junto na frente da pessoa e corre pro banheiro pra limpar a bagunça!

Você já fez isso?

Na primeira vez não, mas com o tempo fui levando numa boa... Olha, se tem um momento em que as mulheres se apoiam é nesse, é só você precisar de um absorvente ou algo parecido que com certeza alguém vai aparecer pra te ajudar!

Ela riu.

Tá bom, eu vou tentar. E se eu manchar a calça?

Aí você amarra uma blusa de frio na cintura e fingia que estava aderindo uma moda de vinte anos atrás!

E se não tiver uma blusa de frio na mochila?

Aí você pega a de uma amiga, te falei, é um momento de união!

Você é muito boa nisso... Ela parecia impressionada de verdade.

Eu ri.

Não sou nada, só tenho mais tempo de prática. Vai, relaxa, a única coisa diferente é que agora você pode ter filhos, e aí...

FILHOS, LENA?

De repente, mamãe Mônica apareceu na porta, querendo saber o motivo daquele grito.

O que tá rolando aqui, Lena? Quem é que vai ter filhos??

Seu típico olhar de quem farejava alguma coisa escondida no ar bateu direto em mim.

Ei, ninguém aqui vai ter filhos! Me defendi na mesma hora. A Felicia ficou menstruada, mamãe, e eu só queria que ela pensasse nisso sem tabu, só significa que o corpo dela está pronto pra ter filhos!

Mas eu não posso ter filhos, eu nunca nem beijei ninguém!

De novo, desespero.

Mamãe assumiu a conversa daí.

É isso que a menstruação significa, filha, você nunca estudou isso na escola?

Por um momento quem se desesperou fui eu, achando que minha irmã estava alheia ao funcionamento do próprio corpo em um nível absurdo.

Estudei, né, e antes de estudar eu já sabia disso tudo. Vocês que me ensinaram.

Mas não faz sentido meu corpo ficar preparado pra uma coisa que não vai acontecer.

Esse é um dia assustador, mesmo, filha... Nosso útero prega essa peça, de nos dar mais responsabilidade do que a gente consegue processar com 13 aninhos...

E a sociedade ainda reforça isso com aquele papo de “meninas amadurecem mais cedo”... Não consegui segurar o comentário.

É, tem isso também...

Nikita entrou no banheiro resmungando, como sempre fazia quando era deixada de lado em longas “conversas de menina”. O espaço estava oficialmente superlotado.

Que droga, gente, eu e as meninas planejamos inaugurar a piscina da casa da Mary nas férias. Agora eu não posso mais!

Mamãe a tranquilizou.

Claro que pode, menina, você tá achando que vai ficar os próximos três meses sangrando? Em uma semana isso aí acaba e você pode tocar sua vida.

Mas agora são QUATRO menstruações pra levar em conta... Já tinha Kelly, Mary e Steph, agora sou eu! E se cada uma ficar menstruada em uma semana diferente?

É, aí vocês NUNCA MAIS vão poder ir na piscina juntas na vida de vocês, Felicia, essa é a verdade.

Me mantive bem séria ao dizer isso, como costumava fazer quando fazia esse tipo de brincadeira para assustá-la. Seus olhos se arregalaram, até que mamãe começou a rir e logo em seguida ela percebeu que não era verdade.

Para! Eu já tô assustada e você ainda fala isso!

Também ri da cara dela que, apesar de ter acreditado por um momento, riu junto.

Bom, dizem que as amigas que passam muito tempo juntas acabam sincronizando o ciclo menstrual, esse tipo de coisa. Vocês quatro não desgrudam, daqui a pouco ninguém vai aguentar esse quarteto de TPM sincronizada.

Sério? Eu não sabia disso! Seu ciclo é sincronizado com o de alguém?

Sacudi a cabeça negativamente. Afinal, meu melhor amigo não passava por aquelas coisas, e era dele que eu nunca desgrudava.

O meu e o da mãe de vocês é, sim!

Mamãe estava com uma expressão muito orgulhosa ao dizer isso. Felicia pareceu mais aliava com essa possibilidade. Em seguida, nos deixou sozinhas no banheiro de novo, alegando que ligaria pra mamãe Rachel pra contar a novidade.

Vocês não vão comprar flores, né?!

Claro que não, meu amor! Relaxa...

Depois do susto inicial, minha irmã percebeu que foi tudo um grande drama desnecessário. Só precisava de alguém para mantê-la calma e se lembrar do que estava acontecendo.

Continuamos no banheiro conversando e não sei como a conversa migrou daquela forma para beijos na boca, tendo Nikita como testemunha silenciosa e dorminhoca do papo.

Felicia e eu temos opiniões e jeitos muito parecidos, mas no visual somos bem diferentes. Tanto mamãe Monica, de quem sou filha biológica, quanto meu pai têm cabelos castanhos, no meio termo entre o liso e o ondulado, e olhos da mesma cor. Já mamãe Rachel, que a teve através de inseminação artificial, cujo tratamento de fertilidade já tinha começado quando nossas mães se casaram, tem os cabelos bem cacheados e a pele

negra, e minha irmã era igualzinha, as duas tão idênticas que nem parecia que tinha uma segunda pessoa anônima envolvida no processo.

Era como se fossem um clone perfeito uma da outra.

Quando eu era criança e saíamos juntas, muitas pessoas achavam que nossa família era uma dupla de amigas passeando com suas filhas para almoçar, ir ao parquinho, tomar sorvete ou fazer compras. Até no hospital onde mamãe Rachel trabalhava isso já aconteceu uma vez. Com o tempo, porém, ficamos marcadas em nossa pequena cidade no estado da Virgínia.

A mente fechada das pessoas não conseguia processar um casal lésbico, saudável e feliz, criando duas filhas saudáveis e felizes também. Nós quatro éramos como celebridades do mal para alguns.

O clima estava bem mais leve no nosso pequeno banheiro e Nikita já tinha desistido de nós duas, após ser acordada com as risadas que demos com a história do beijo catastrófico que tive com um dos meninos do time de futebol masculino, quando o celular tocou uma terceira vez.

Felicia olhou dele para mim e disse, entre uma risada:

Atende esse menino, Lena, ele já está com abstinência por estar o dia todo sem você... Deve precisar de algum conselho pra agradar a namorada dele. Ajuda o pobre...

Eu, por outro lado, parei de rir na mesma hora. Não era comum Parker insistir tanto assim em falar comigo, se um de nós não atendia ao telefone o outro entendia que alguma coisa estava acontecendo e esperava o retorno chegar.

Aceitei a ligação e coloquei o telefone no ouvido, atendendo como apenas um “Oi”.

Sua voz, bastante embargada, demorou um pouquinho pra responder com uma frase que eu não esperava ouvir:

Lena... Meu avô morreu!

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