[AMOSTRA] Antes do fim do dia - Marianna Roman

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“Os olhos, chico, os olhos nunca mentem”

1983

Scarface,

EU ESTAVA NO mercado do velho Cairo; um aglomerado erguido em largas ruas de pedra, mas estreitadas pelas centenas de produtos nas portas de suas lojas, com um vaivém dos mais diversos rostos e sons. Colorido por tecidos, tapetes, a luz do sol refletida nos vidros dos cafés e com o cheiro inconfundível, e inesquecível, de especiarias.

Nas esquinas, os alto-falantes a postos para o chamado de oração instantes antes de todos se virarem para a Meca. A cada dia, pontualmente, o Almuadem, o escolhido, entoava o chamado para que, ajoelhados, honrassem a tradição.

Era quase o Ramadã. Salama, nosso criado ele me vira crescer e eu odiava a palavra “criado”, mas, principalmente aqui, onde cada um respeitava e sabia o seu próprio lugar, era assim que devia ser chamado me indicou um velho amigo mercador com quem eu poderia comprar novas lanternas para decorar nossa casa durante o Mês Sagrado.

“Você saberá quando encontrá-lo”, foi tudo o que Salama me disse, e era ao que me agarrava – mesmo me sentindo um completo estúpido por não insistir num endereço enquanto perambulava pelo souk1 entre a multidão enfurecida. Entre turistas, mulheres e crianças... um grupo de homens gritava ainda mais alto, e cheio de gestos, numa das esquinas.

Estranhamente seguro de que encontraria Atef Hanafi, o mercador, andei, me esgueirando entre outros mercadores me oferecendo uma penca de diversos produtos, na direção daquele grupo lutando entre palavras de fúria por uma lanterna ainda não finalizada.

Escondido entre eles, um velho franzino com a pele cor de canela e alguns poucos dentes na boca, soldava o novo objeto, pacientemente, moldando a folha de flandres com as pontas achatadas de seus dedos curtos, gravando cada figura com o olhar compenetrado

1 Mercado

Imperturbável, mãos calejadas, vestindo trajes manchados de toda cor, sentado, perto do fogo e ferramentas, numa cadeira baixa, de palha e madeira, atrás de uma mesa repleta de estruturas de lanternas para montá-las como o cliente desejasse.

Mantive certa distância daquele caos, tomando cuidando para não esbarrar nas fileiras de outras lanternas coloridas ao longo das entradas dos bazares e lojas da ruela empoeirada; algumas recém-chegadas da China ou da Índia meros brinquedos para entretenimento. As verdadeiras fanus2 carregavam uma tradição milenar de cantigas para dar as boas-vindas ao Mês Sagrado, agradecendo as graças alcançadas, enquanto enfeitavam ruas e casas.

Então, o homem que julguei ser Atef Hanafi, o mercador, ergueu um dedo entre os amontados ao seu redor e me fez um sinal para me aproximar. Hesitei, talvez não fosse para mim não nos conhecíamos , mas ele insistiu.

As salam aleykum3 ele disse.

Wa aleykum as salam4 respondi.

Com o rosto se iluminando num sorriso de orelha a orelha, me convidou para um chá em sua casa, pois tinha um presente para mim. Deixou o filho, Bek, em seu lugar com os afazeres das fanus e me pegou pelo punho sem cerimônia.

Ainda estava intimidado com seu imenso contentamento em me ver. Ele parecia uma criança que acabara de ganhar algo que esperava há muito tempo. Me guiou por outras ruelas, no calor da hora antes do chamado de oração, até um casebre escondido num beco abarrotado de caixotes de mercadorias.

A porta de entrada era de madeira muito fina, as janelas cobertas com palhas costuradas em fileiras, mas cada cômodo era enfeitado com inúmeras fanus, tapetes, almofadas, velas aromáticas e incensos por cima de pergaminhos escritos com orações e outras mensagens.

Merhaban5... Você trazer alegria à essa casa ele disse, me dando as boasvindas como de costume num inglês arrastando o som do “r” pelas sílabas, com o sotaque árabe, naquele tom de voz alto. Talvez pelo ruído do mercado entrando pelas brechas da porta e das janelas.

Só se levava para dentro de casa quem realmente se estimava. O lar era um local sagrado, o zelo pela troca de boas energias dentro dele deveria ser prioridade a todos os presentes.

Acho que também era um motivo que me deixava intimidado, e intrigado, com sua alegria em me ver e o convite para um chá num local tão especial. Poderíamos ternos sentado num desses muitos cafés pelo souk claro que, para mim, tudo era uma desculpa para um café , mas ele fizera questão de me trazer até aqui.

Šukran6 respondi em sua língua para que se sentisse mais à vontade. E ele logo estava tagarelando sobre o clima, os turistas, as mulheres e sua vida.

2 Lanternas árabes

3 Saudação árabe

4 Saudação árabe

5 Bem-vindo(a)

6 Obrigado

Era viúvo, tinha nove filhos e seis netos. Além do trabalho com as fanus, era conhecido por seus dons para a cura e procurado, principalmente pelos estrangeiros de passagem, para ler sua sorte.

Nos sentamos no meio da sala de estar, talvez o maior cômodo da casa. O suor molhava minha testa e encharcava minhas roupas quando ele me esticou um leque de palha trançada que eu prontamente aceitei, agradecendo, ou morreria em breve com aquele calor.

Apesar de ter vivido alguns anos no Cairo, quando criança, e passado tantas temporadas, inclusive no verão, a temperatura era algo que tinha certeza de que jamais me acostumaria.

O chá não vai ajudar a esfriar, pensei enquanto ele punha a mesa e me servia.

Por favor, beba Afet pediu e eu não recusei.

E, de novo, entre um gole e outro, era aquela alegria que encontrava minha timidez. Como ele poderia estar tão feliz em ver alguém que sequer ouviu falar até poucos minutos?

Salama me contar muito sobre você ele disse.

Mesmo?

Sim! Salama gostar muito de você, Garoto Americano.

Garoto americano; ninguém havia me chamado assim antes.

Ele é um amigo querido da família eu disse.

Sim, sim, sim! Amigo! Gostar muito da sua família!

Também gostamos muito dele.

Mais sorrisos. No meio de suas risadas sonoras, mais comentários sobre Salama que ele viu nascer e crescer e minha família egípcia. Minha avó não sabia ler ou escrever, no entanto era uma mulher sábia. Sempre com bons conselhos, poucas palavras. Passava a maior parte do tempo nos jardins de casa, cuidando das plantas, ou nos afazeres domésticos. Meu avô, um rico mercador de tecidos e joias, cuidava de sua loja durante todos os dias até o último cliente sair ao anoitecer. E permaneceu assim até seus últimos dias. Outro de nossa família que não estudou, mas aprendeu a administrar seus negócios observando atentamente o souk

De loja em loja, ele absorveu os ensinamentos e conhecimentos de seus empregadores. Minha mãe, mesmo com a relutância dos pais, estudou Artes na Inglaterra e retornou ao Egito, onde permaneceu, cuidando dos negócios da família, lidando com as dificuldades dos costumes as mulheres sempre tinham de ficar atrás, submissas, em silêncio até se casar com meu pai e se mudar para os Estados Unidos. Então, Salama passou a administrar tudo; a casa, as lojas, o pagamento dos empregados.

De repente, o assunto havia cessado. Agora havia um silêncio desconcertante na sala, entre o som dos goles no chá.

Feliz que não ter abandonado suas origens egípcias ele voltou a falar.

Minha paixão pelo Egito me acompanhava aonde quer que eu fosse.

Sua mãe ser mulher muito especial, com nome da deusa.

O senhor a conhece?

Oh, sim... vinha aqui muito... Comprar tecido, tapete... Muito tapete!

Sim, era a minha mãe. Com certeza.

Eu ter presente especial, Garoto Americano.

Ele se levantou com certa rapidez e foi até o lado de fora procurar algo num daqueles caixotes. Voltando com uma pequena lanterna nas mãos. Nas bordas do metal fino de sua estrutura, os desenhos da história do nascimento de Hórus, filho de Ísis nome de minha mãe , gravados. Seus vidros eram em tons de azul, roxo, vermelho e rosa em pequenas e grandes partes formando flores de lótus.

Havia uma lenda antiga além da mais comum que se sabe que dizia que Hórus, filho da deusa Ísis e do deus Osíris, nascera daquela flor com significado de pureza e vida. Assim como Hórus era o deus dos vivos.

No meu sonho, você segurar as metades do seu coração nas mãos, ajoelhado no Nilo. Cercado de lótus que ir ainda fechadas e voltar desabrochadas Atef disse.

O senhor sonhou comigo? perguntei surpreso.

Ele deu uma risadinha, confirmando com a cabeça. E, aos poucos, de novo, entre goles, a risada ia tomando mais e mais forma. Ecoando pela sala.

O Garoto Americano vai cair ele disse ainda em meio a um riso, como se aquilo, de fato, o divertisse.

Engoli em seco. Um frio me cortou a espinha. De onde aquilo tinha vindo? Sua risada sonora agora já me incomodava.

O quê...? indaguei.

Então seu rosto serenou... mas a sensação estranha ainda me embrulhava o estômago e minha cabeça tentava entender o que era aquilo. Ele esticou a mão sobre a mesinha, pedindo a minha. Eu segurava a xícara de chá com tanta força que podia quebrála. E, como se guiasse cada movimento, senti seus dedos envolvendo meu punho.

Suas palavras, ditas em meio a uma risada que, de repente, ainda ecoavam em minha cabeça e eu, ali, sentado com aquele homem desconhecido, um completo estranho, soavam como uma piada de mau gosto num filme de terror. Desses em que não há humor alegre, só o riso que antecede o caos.

Atef, o mercador, curandeiro e vidente, permanecia em silêncio com os olhos fixos nas linhas da minha mão, enquanto eu suava frio do outro lado da mesinha sentindo o cheiro almíscar do chá. Com o coração martelando, me doendo o peito.

A escuridão chegar a você, Garoto Americano. Você cair ele repetiu.

Cair... Cair... Cair... Cair..., ecoava de novo... e de novo... e de novo...

Eu não queria gritar ou correr só que minha memória apagasse aquelas palavras para que eu pudesse, enfim, sair dali sem o peso delas nos meus ombros. Porque, embora pudesse fugir, jamais seria capaz de arrancar a profecia de Atef dos pensamentos. A crença que trazia comigo e os ensinamentos de minha mãe sobre nossa cultura não deixariam. Essa era uma dádiva, mas também uma maldição. Confesso que, até certo ponto, eu era bastante impressionável e isso não era bom.

Você levar essa lanterna contigo ele disse, de repente, me arrancando dos meus devaneios Ela manter acesa, a luz que precisar para guiar quando chegar escuridão.

Era como se um elefante se sentasse sobre o meu peito. De ombros caídos, com o ar preso na garganta... também me esqueci de como abria a boca para dizer qualquer coisa.

Atef mantinha a mesma serenidade de quando, no souk, aqueles homens berravam ao seu redor. Dizia cada palavra com tamanha naturalidade e me deixava cada vez mais em choque.

Mas não se preocupar. Você carregar coragem do leão no coração... e a astúcia da águia na cabeça, para dar sabedoria ele apontou para a tatuagem do Olho de Hórus na parte interna do meu braço Junto dessa luz... Tocou a lanterna ... você encontrar de novo o caminho.

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