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e outras decifrações do enredo

reais, mesmo as mais rudes, cada vez mais aparentadas ao sonho. A ponto de ele já não se importar se devia levá-las tão a sério ou não, uma vez que, dormindo ou acordado, elas continuariam a valer o que valem” (p. 98).

Para uma conversa com os alunos, algumas questões podem ser colocadas:

• Os sonhos são só invenções sem sentido da nossa cabeça ou podem ter relação com o que vivemos na realidade?

• Sonhos podem expressar desejos, medos, traumas? Vocês já sonharam coisas que aconteceram depois? Ou sonharam com coisas que têm relação com acontecimentos passados?

É importante não perder de vista que este debate deve contribuir para ampliar a compreensão crítica do estudante sobre a realidade, partindo do sonho como narrativa possível da produção de sentido – em acordo também com as competências propostas na BNCC para as Linguagens e suas Tecnologias.

1.4 Pós-leitura: investigação das intertextualidades e outras decifrações do enredo

No texto da orelha, que menciona o fato de a novela reverberar, “em sutil homenagem, autores como Borges, Cecília Meireles, Machado de Assis, Drummond, Guimarães Rosa, Juan Rulfo e Lewis Carroll”, já tínhamos uma ideia do caráter intertextual da obra, o que permite preparar o espírito crítico e até o “faro” investigativo para “decifrar” em que trechos estão essas referências na narrativa.

Ana Maria Machado menciona esse “prazer da decifração” associado à condição dos bons livros, que convidam o leitor para tal empreitada, mas lhe oferecem mais do que enigmas, permitindo a fruição em suas diferentes camadas, da escolha da linguagem à elaboração envolvente das cenas, utilizando-se mesmo de outros recursos.

Mas quando a intertextualidade está lá ela almeja uma construção de sentido conectada a outras obras e seus autores ou, como diria o teórico Donaldo Schüler, “os textos dialogam”.

O primeiro dos trechos destacados no tópico anterior faz menção ao “sebo labiríntico” sonhado por Benjamin e alude a três dos temas mais caros ao escritor argentino Jorge Luis Borges — bibliotecas (ali representadas pela loja de livros usados), sonhos e labirintos. Não bastasse essa referência, Eustáquio Gomes ainda batiza um de seus personagens mais importantes com o sobrenome de um personagem borgiano, Funes. Neste Solombra, ele é

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o motorista do Packard Twin Six que aparece como um fantasma, sempre que Quintana está se deslocando nos capítulos da parte 2, no que pode ser resultado de um delírio de quase morte — ou mesmo post mortem, não dá para saber com certeza — como vamos descobrir na parte 3. Bem verdade que os dois têm características distintas. O Funes de Borges é o “memorioso”, um personagem que adquire a capacidade pródiga de uma memória praticamente sem limites, capaz de lembrar e descrever os detalhes de tudo a partir de sua experiência.

Mas seria custoso não perceber que esse nome tem o radical de palavras como funesto, funerário, funeral, criando uma associação inequívoca com a morte, ainda mais no contexto de um carro preto clássico, fabricado nas primeiras décadas do século XX — peça aos alunos para pesquisarem imagens do Packard –, cujo motorista oferece carona, em estradas improváveis, em direção a lugares que muitas vezes nem sequer são nomeados, numa atmosfera repleta de incertezas, como também enfatiza a leitura do trecho 5 do tópico anterior.

Os alunos terão lido e formulado suas hipóteses sobre esta parte 2. Portanto, o debate com eles pode deixar essas informações para o final. Passemos a mais uma sessão de discussões sobre as referências da obra, com algumas questões sugeridas.

• Sobre os capítulos da parte 2, com todas aquelas experiências de viagem do personagem Luís Quintana, o que vocês acham que de fato aconteceu? Lembrem que a parte 1 termina com o desaparecimento do livreiro após um acidente de carro em que o corpo não foi encontrado e cartas estão sendo enviadas para Diva e Luisito (esposa e filho).

• E o personagem Funes? Viram como é o carro que ele dirige? O que lhes parece sobre as circunstâncias em que ele surge nas estradas?

Peçam que leiam o conto “Funes, o memorioso”, de Jorge Luis Borges. Perguntem sobre se eles encontram alguma conexão entre o conto e o livro de Eustáquio Gomes. Falem a eles sobre as outras relações intertextuais com a obra do autor argentino.

Adiante na investigação das intertextualidades possíveis de serem observadas em O Vale de Solombra, encontramos o capítulo “nonada”, cujo título remete à palavra que abre o romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa (já citado como personagem) e é das últimas mencionadas em seu fecho. Ela quer dizer “coisa alguma” ou “o nada”. Mas Eustáquio Gomes trata o fato de modo peculiar: “A Benjamin nunca pareceu casual que o vice-cônsul, que era um escritor dado a inventar palavras e a recombiná-las (...), concluísse sua obra-prima com o coleio de uma lemniscata” (p. 23).

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Vejam: lemniscata é o nome que se dá ao símbolo do infinito — ∞ — e o texto explora a coincidência de ter sido concebido pelo matemático August Moebius, cujo sobrenome é o mesmo de Aracy, esposa de Rosa. Mas cabe a pergunta aos alunos:

Por que o autor chama a palavra nonada de “coleio de uma lemniscata”?

(Não devemos limitar as respostas, mas é provável que tenha relação com a forma da palavra, já que “coleio” significa “movimento sinuoso”.)

A menção a grandes autores da literatura mundial, no jantar na casa de Quintana (p. 32), pode revelar um tanto do repertório de leitura do próprio autor, permitindo algumas especulações sobre seus gostos. Os personagens discutem o que teriam escrito os gênios das Letras se pudessem continuar a produzir depois de mortos, tendo a experiência do pós-vida. Quintana cita William Shakespeare, Miguel de Cervantes, Honoré de Balzac, Marcelo Proust, Thomas Mann, James Joyce e Jorge Luis Borges. Em seguida, especula sobre um “segundo volume das Memórias Póstumas” de Brás Cubas, de Machado de Assis, menciona os “buritis do mundo astral” que mexeriam com a imaginação de Guimarães Rosa e também as obras de François-René de Chateaubriand e Julio Cortázar. Sugerimos que o trecho seja relido como ponto de partida para uma pesquisa.

• Consultem a turma: “Se fossem vocês, participando desse jantar, que autores citariam na hora de dizer da sua curiosidade sobre o que eles teriam escrito depois de mortos?” Ou simplesmente: “Que escritores já mortos vocês leram e gostariam continuar lendo se for possível a comunicação com ‘o outro mundo’ como afirma a doutrina espírita?”

• Dividam a turma em grupos pequenos, em quantidade semelhante à dos dos autores citados. Peçam que pesquisem sua história, suas obras mais destacadas e alguns temas centrais de seus enredos. A proposta é apenas permitir, como na realização de um seminário, que todos ampliem seu conhecimento e sua curiosidade sobre esses artistas, trocando informações em apresentações breves.

As menções aos autores e suas obras tornam a intertextualidade desta novela bem evidente nos trechos citados. Mas, a exemplo do que ocorre com Funes, há outras referências mais sutis, como as que envolvem o personagem “Ebó” (p. 105). Ele é descrito como parecendo uma “criança disforme” que vem montada às costas de Richard Wilhelm — missionário, teólogo e sinólogo, feito personagem —, quando este chega para fazer uma conferência na cidade Tsingtao.

A esta altura a atmosfera onírica já dissipou algumas dúvidas quanto à possibilidade de os acontecimentos se darem no plano do real, na ordem da narrativa. Quintana chega

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de carro numa cidade chinesa, pensando ser o município de João Monlevade, em Minas Gerais. Ou seja, assume-se que é um território sobrenatural. Mas falemos do Ebó.

Logo Quintana percebe o equívoco e entende tratar-se de um “um chinês adulto”, de “meio metro”, cuja boca tinha “um rasgo horrendo”. O nome que o livreiro atribui ao pequeno vem do som que ele faz ao chorar, mas a palavra evidentemente alude ao termo iorubá que designa a “oferenda” e na cultura popular pode equivaler a um “feitiço” reparador, feito para que alguém reencontre o equilíbrio. Por tudo, a escolha já renderia uma grande discussão com os alunos.

Mas fica melhor. Batizado o homenzinho, ele responde: “Melhor que Djin, melhor que Morlock, talvez melhor que Odradek. E muito melhor que Golem”, p. 107. Essas referências merecem atenção por parte dos leitores.

 Pesquisem esses termos. Vejam qual é a sua origem e vamos conversar sobre eles. Afinal, o próprio autor deu a pista quando os chamou, em seguida, de “seres imaginários”

Para complementar a discussão:

 Djin — na mitologia árabe, equivale ao ser místico do gênio.

 Morlock — no livro A Máquina do Tempo, H. G. Wells dá esse nome aos seres humanoides descritos como habitantes dos subterrâneos do mundo no futuro.

 Odradek — ser/personagem de Franz Kafka cujo aspecto é o de um carretel de linha, mas tratado de maneira infantil.

 Golem — ser artificial associado à tradição mística do judaísmo.

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