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“Quando o eu vira nós” - tramando outras atuações possíveis
Situo o presente trabalho a partir de três tópicos: a coletividade, a multilinguagem, e a condição de sua realização em tempos da pandemia da COVID-19, que expressam a visão expandida a respeito da noção do “produto” aqui apresentado como TFG.
I. TFG coletivo: “Quando o eu vira nós” - tramando outras atuações possíveis
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Reforçando o que já foi dito anteriormente, mais do que uma pesquisa autoral-individual, esse trabalho se faz a partir de trocas. Encaro a atividade da/o profissional de Arquitetura e Urbanismo enquanto algo essencialmente coletivo e colaborativo. As discussões, complementaridades e acúmulos que fazem parte da natureza do trabalho em grupo são fundamentais para desmanchar consensos e desestabilizar ideias rígidas, enriquecendo tanto o processo quanto os resultados do trabalho (ALMEIDA; SABÓIA; STEQUE, 2012). Trabalhar em grupo oportuniza espaços de formação coletiva, com aprendizados mútuos entre os envolvidos, pela possibilidade de agir e conviver juntos (FIGUEIREDO et al., 2017). No espaço acadêmico, essa prática também se insere enquanto um gesto disruptivo, uma vez que no ambiente universitário a individualidade e a competitividade são extremamente comuns, e ações de autoria compartilhada costumam ser desvalorizadas1 .
1 Complexificando essa discussão, caberia ainda uma análise sobre como, em contextos de autorias compartilhadas ou projetos coletivos, existe um processo de invisibilização que recai sobre corpos dentro de recortes interseccionais (gênero/raça/ classe), tendo o reconhecimento de seus nomes muitas vezes apagados - discussão que não irei me deter, mas que não poderia deixar de mencionar.
Assim, desenvolver o TFG individualmente não seria nem um pouco condizente com a atuação que já venho trilhando, tampouco com a que pretendo exercer ao me formar. Nesse sentido, o entendimento deste trabalho enquanto fruto de um esforço coletivo é um desdobramento da maneira que venho construindo meu lugar nessa profissão, bem como, representa um posicionamento convergente com o fazer de Arquitetura e Urbanismo que acredito: uma atuação que tem potência enquanto ação política coletiva. Ademais, cabe também levantar uma discussão e crítica a respeito dos regulamentos proibitivos 2que enquadram os trabalhos finais de graduação (bem como dissertações e teses) do curso de Arquitetura e Urbanismo como projetos individuais.
No meu percurso acadêmico, a intenção desse fazer coletivo se concretizou de forma mais expressiva no ano de 2020, quando surgiu o TRAMA. Anteriormente entendido enquanto um coletivo, e agora em processo de formalização para tornar-se organização sem fins lucrativos, TRAMA dá nome a um movimento que existia antes mesmo do grupo se entender como tal. Descrever sua criação implica narrar uma rede composta por diversos agentes, eventos e territórios que, nos últimos anos, vem se articulando para incidir e disputar as narrativas da cidade de Salvador através de ações de enfrentamento às injustiças socioterritoriais.
Um ponto de partida possível para descrever essa experiência é a Escola de Verão Monotrilho em Disputa (ver pág. 138), em janeiro de 2020, um encontro entre grupos de pesquisa da FAUFBA, associações de moradores e movimentos
2 O regulamento oficial de Trabalho de Fim Graduação da FAUFBA, no seu Artigo 2º, afirma que: “O TFG – Trabalho Final de Graduação corresponde a um exercício propositivo e projetual, de caráter individual, com temática escolhida livremente pelo aluno, desde que relacionada às atribuições profissionais do Arquiteto e Urbanista e destinada a demonstrar sua qualificação para o exercício profissional como Arquiteto e Urbanista.” 54 | Experimentos metodólogicos insurgentes na prática de Arq. e Urb.
sociais com o objetivo de incidir nas controvérsias em torno da intervenção do Monotrilho. Proposto em substituição ao Trem do Subúrbio Ferroviário de Salvador pelo Governo do Estado da Bahia, por meio de uma Parceria Público Privada, a obra do Monotrilho — um modal de transporte elevado e sobre pneus — se consolidou como uma intervenção polêmica, superfaturada, e carregada de violências. A Escola de Verão se colocou como um espaço de formação e ação, articulando Comunicação Comunitária e Avaliação de Políticas Urbanas, representando uma reação em resposta aos processos autoritários desse conflito.
Abertura da Escola de Verão no Acervo da Laje. Acervo da autora, 2020.

Nesse contexto, um grupo de pesquisadores/as, graduandos/as, mestrandos/as e profissionais, com um histórico de envolvimento em atividades de extensão, pesquisa e projetos em territórios populares negros da cidade, se implica não apenas em participar, mas também em apoiar a organização dessa atividade. Como parte da programação, foram realizadas oficinas de comunicação comunitária com o intuito de mapear as questões prioritárias frente à intervenção do Monotrilho e as ferramentas de comunicação e linguagem mais utilizadas localmente. Um dos desafios desse processo foi a tentativa de alcançar um equilíbrio entre o estabelecimento de um planejamento mínimo, necessário para a organização de qualquer evento, e ao mesmo tempo buscar acolher os acasos, as dinâmicas comunitárias nos territórios ameaçados e demais imprevisibilidades que surgiram no decorrer da atividade.
Como resultados foram elaborados materiais multilinguagens (jornalzinho, cartazes, lambe-lambe, vídeos, colagens), aproveitando as ferramentas já utilizadas pelas/os moradoras/es, especialmente por meio do whatsapp. Outros desdobramentos foram a construção de uma página do instagram − @aitremcoisa − criada como canal de divulgação e denúncia a partir das discussões sobre a temática, e um dossiê coletivo comunitário encaminhado ao Ministério Público da Bahia. Importante mencionar que essas peças foram elaboradas em colaboração com moradores, e a utilização das multilinguagens (que será abordada no próximo tópico) teve grande destaque, abarcando tanto materiais de caráter mais técnico, como um dossiê, quanto produções que se situam no campo do sensível artístico, a exemplo das colagens feitas coletivamente.


Produtos multilinguagens Acervo da Escola de Verão, 2020.
Além dos resultados citados, a Escola de Verão possibilitou uma “juntança” de pessoas,nos termos de Linda Kayongo, moradora da Vila Coração, integrante Movimento Nosso Bairro é 2 de Julho e da Articulação do Centro Antigo. Pessoas que, em suas diferentes trajetórias, não haviam tido a possibilidade de trabalhar juntas, o que fez com que a Escola de Verão tecesse também, enquanto desdobramento, redes e articulações entre estudantes, professoras/ es e organizações locais, como foi o caso do TRAMA. Finda a atividade, após uma semana intensa de atividades, uma fagulha foi acesa no desejo de continuidade da atuação coletiva que tinha ganhado corpo ali. Inquietas/os e insatisfeitas/os em relação às maneiras pelas quais a formação profissional, desde a universidade até a atuação, se distancia da sociedade e dos seus territórios, o grupo — agora unido também por laços de afeto e amizade — vislumbra a criação do TRAMA como um espaço de experimentação política e artística, uma oportunidade de mesclar ativismo social, produção intelectual e prática profissional engajada.
Dessa forma, o TRAMA surge no fazer junto, a partir de escutas, diálogos, trocas e práticas coletivas. Consideramos que o grupo não é composto apenas pelos integrantes que, em um dado momento, decidem denominar-se enquanto coletividade, mas sim, abarca todos os movimentos urbanos com os quais partilhamos lutas, em sua maioria, organizações sociais que enfrentam processos violentos de exclusão e subalternização política, econômica e social na cidade. Além de movimentos sociais, associações de bairros e coletivos periféricos, a trama é tecida também com grupos de pesquisa universitários, instituições sociais ligadas aos direitos humanos e assessorias técnicas populares. Buscamos contribuir com todos esses grupos, co-criando campanhas de mobilização social e de engajamento comunitário, atividades de formação, criações gráficas, audiovisuais, plataformas digitais, podcasts, intervenções urbanas e denúncias de impactos de projetos, programas e legislações que violam o direito à cidade em territórios negros e populares de Salvador.
Antes de passar para o próximo tópico, acredito ser preciso explicitar que nossa atuação se inscreve em um conjunto de outras tantas articulações coletivas em escala regional e nacional. A inquietação que atravessa o surgimento do TRAMA tem se tornado cada vez mais pulsante no campo da Arquitetura e Urbanismo. Seja pela constatação da insuficiência dos currículos e das políticas formativas das Faculdades em assumirem o campo implicado como eixo estruturante das práticas e aprendizados, seja pelo momento de crise do país, como já dito anteriormente, em que diversas mobilizações emergiram nas últimas décadas. Escritórios modelos, práticas que se inscrevem dentro do que denominamos Assistência Técnica de Habitação de Interesse Social (ATHIS), atuações coletivas por meio de assessorias populares, arranjos extensionistas, entre outras colaborações, configuram um repertório coletivo no campo multifacetado de atuação inter-entre-cruzada entre Universidade, movimentos e coletivos sociais, comunidades e territórios negros e populares.
Desde 2020, tivemos a oportunidade de conversar com algumas destas coletividades através da participação em eventos, mesas de debate e aulas, partilhando experiências e ampliando as conexões com uma rede de movimentos que nos inspiram (Figura 1). Ao mesmo tempo, identificamos que é necessário criar meios para conseguir um maior acesso a informações, análises e desdobramentos das ações realizadas por essas coletividades, a fim de potencializar parcerias e trocas entre projetos e experiências. Com isso, encontra-se em fase de elaboração (para além da temporalidade da entrega deste TFG) um mapeamento regional e nacional 3de instituições, ONGS, agências e coletividades com as quais pretendemos dialogar, construindo interlocuções e futuras colaborações. Como possibilidade de desdobramento, vislumbramos a criação de uma plataforma ou dispositivo que apresente essa rede mapeada, servindo como ferramenta para disseminar trabalhos e ampliar conexões.
Pensando na multiplicidade de existências, corpos e trajetórias que caracterizam o fazer-cidade e suas coletividades, uma outra multiplicidade constituiu-se enquanto parte da atuação do TRAMA: a multilinguagem, tratada a seguir.
3 O mapeamento “Tramas de atuação”, ainda em fase de elaboração, pode ser acessado através do link público: https://docs.google.com/document/ d/1XZJ5oBlnC5wOdU2bF0LsdzHEIIXk-mugiED2aAnfIr0/edit?usp=sharing. Nosso desejo é que, futuramente, essa pesquisa possa se transformar em uma plataforma de maior alcance, que visibilize e divulgue ações em curso no país, conectando coletividades e gerando novos arranjos a partir de trocas entre projetos. 2. A construção do TFG | 59
WEBINÁRIO CULTURA E LUTAS URBANAS - INDISCIPLINAR (UFMG) com:
COLETIVO AQUI FORA (AL) :
Coletivo urbano que busca reativar espaços públicos
COLETIVO OCUPARTHE (PI):
Coletivo que atua no cruzamento entre arte, cidade, memória
COLETIVO A-BRAÇO (CE):
Coletivo de urbanismo voltado a ações de intervenção colaborativa no espaço público
EVENTO PREPARATÓRIO PARA A CONFERÊNCIA POPULAR PELO DIREITO À CIDADE com:
LIDERANÇAS DA ARTICULAÇÃO DO CENTRO ANTIGO
OBSERVATÓRIO DAS CIDADES, POLÍTICAS PÚBLICAS E MOVIMENTOS SOCIAIS (UESB)
Pesquisa é norteada por temáticas, como moradia, violência urbana, mobilidade urbana, arte urbana como demonstração do direito à cidade justa
Figura 1: Conexões, parcerias, inspirações





AULA DA DISCIPLINA CULTURA VISUAL, CIDADE E ARQUITETURA (PPGA-AU FAUFBA E FAUUSP) com: GOMA (SP): Coletivo interdisciplinar de arquitetos, designers, fotógrafos, produtores e educadores. GRU.A (RJ): Escritório que elabora projetos e obras com especial interesse na interseção entre os campos da arquitetura e das artes plásticas MICRÓPOLIS (BH): Micrópolis é um grupo de arquitetos que atua nos cruzamentos entre espaço, design e educação
MESA DO CICLO DE DEBATES RAU+E/UFBA, “EXPERIÊNCIAS DE ASSISTÊNCIA E ASSESSORIA TÉCNICA NO CONTEXTO DA PANDEMIA” com RESIDÊNCIA AU+E/UFBA: Curso de Especialização em Assistência Técnica, Habitação e Direito à Cidade Apoio institucional da ONU HABITAT
outros participantes do evento: GEOCOMBATE COVID-19 SSA/UFBA (BA) FÓRUM DE ASSESSORIAS DO NORDESTE LABRUA (PB) CENTRO DE DEFESA FERREIRA DE SOUSA (PI) PROJETO DE EXTENSÃO CONJUNTO JOSÉ MONTEIRO SOBRAL/UFS (SE) EMAU TRAPICHE/UFS (SE)

Colagens para plataforma Pipoco Acervo da autora, 2020.
