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III. Ensino, pesquisa, extensão: ao encontro de territórios populares e negros de Salvador

III. Ensino, pesquisa, extensão: ao encontro de território negros e populares de Salvador

Diante dessas inquietações, meus interesses no âmbito da Faculdade foram encontrando lugar à medida em que pude explorar o princípio constitucional que rege a Educação Superior: o tripé acadêmico, caracterizado pela “indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” (art. 207 da Constituição Brasileira de 1988). Articulando conteúdos aprendidos no contexto de algumas disciplinas teóricas, mas sobretudo em atividades teórico-práticas que não se limitaram à sala de aula, pude ampliar os horizontes de aprendizado na minha formação.

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Antes de tratar sobre este assunto, é fundamental pontuar que as experiências trazidas neste trabalho, bem como toda minha trajetória como estudante universitária (que se inicia em 2016 e vai até o momento atual de 2022)

devem ser lidas em perspectiva e em diálogo com a conjuntura sociopolítica do país, visto que emergem em relação com importantes acontecimentos. No contexto ampliado, desde o golpe de 2016, resultando no impeachment da presidente Dilma Rousseff, o Brasil vive um cenário de instabilidade política, e de crescimento da extrema direita com pautas neoliberais e valores conservadores. Em 2017, o Governo Temer implementou reformas (trabalhista e previdenciária) que resultaram na intensificação da precarização do serviço público e na retirada de direitos da sociedade civil. Em 2018, a prisão de Lula e a indefinição da corrida eleitoral para o PT contribuem para o crescimento da popularidade e posterior eleição de Bolsonaro, que configura, até o momento presente, a instauração de um governo de retrocessos, caracterizado pelo desmonte dos direitos sociais e por ataques ao serviço público e ao meio ambiente (PINHEIRO, 2021).

Nessa conjuntura, o campo da Educação é um dos mais atingidos. Presenciamos o descrédito às instituições, com especial ataque às Universidades, a desvalorização da Ciência, o sucateamento de órgãos da Cultura, propostas de “escola sem partido”, demonização da “ideologia de gênero”, entre tantos outros absurdos. Nesse contexto, complexificado pela emergência da Pandemia da COVID-19, se acentuam desigualdades sociais e o debate político, frequentemente polarizado, se acirra; por outro lado, estratégias de mobilização social e de luta por uma agenda democrática emergem, em reação aos desafios da realidade posta.

Esse TFG parte de ações coletivas engajadas com a transformação dessa realidade. Experiências diversas de ensino,, pesquisa e extensão buscam estimular debates na construção coletiva de uma consciência crítica. Dentre elas, algumas das quais serão aprofundadas mais adiante destaco: as atividades de extensão “Perícia Popular no Centro Histórico de Salvador” [ver pág. 102], e o “Simpósio Produção Imobiliária e Outros Fazeres da Cidade” [ver pág. 114], ambas

sob orientação da professora Glória Cecília no âmbito do grupo de pesquisa Lugar Comum; o Atelier V com as professoras Paola Berenstein e Thais Rosa; as disciplinas optativas “Tópicos de Arquitetura — Imaginários da cidade e outras visibilidades”, com a professora Junia Mortimer, e “Entre margens e imagens” também com Mortimer e Rosa.

Cartografia coletiva com a AMACH, durante a Perícia Popular Acervo da autora, 2016

Aponto como denominador comum dessas atividades o fato de buscarem reposicionar a abordagem da universidade, tentando escapar de práticas tecnicistas e hierarquizantes, rearticulando criticamente modos de pensar e narrar cidades e territórios. Essas experiências buscam tensionar a práxis do urbanismo, almejando uma aproximação das formas de habitar, fazer e conhecer a cidade cotidianamente pelos sujeitos que a vivenciam e a produzem, mais do que uma forma de pensar exclusiva de profissionais e especialistas. Para isso, essas práticas se ancoram, principalmente, na tentativa de realizar experimentações coletivas, aplicando metodologias abertas e partilhadas, na formulação de imaginações críticas e sensibilidades sobre o espaço urbano e seus habitantes (FIGUEIREDO et al., 2022). Em suma, são experiências em que o trabalho acadêmico não é produzido sobre as pessoas, mas com as pessoas. Que não busca narrar as pessoas, mas constrói formas de narrar junto às pessoas.

Percurso de Aprendizagem no Centro Histórico, durante o Simpósio Fazeres da Cidade Matheus Tanajura, 2019

Nesse momento, acredito também ser importante situar de onde falo, explicitando o ponto de partida da autoria do presente trabalho. Sou uma mulher branca que vem de uma família de classe média, e sempre vivi em bairros também habitados e planejados por uma maioria branca, como eu. Trazer territórios populares e negros para o centro do debate desse trabalho é também refletir sobre a relação que tenho construído com minha própria cidade, Salvador, de população majoritariamente negra, com uma cultura fundada a partir da diáspora africana. Enquanto “agente externa” 1a esses territórios, entendo a importância de construir uma posicionalidade, e de evitar qualquer tipo de performatização da culpa branca (NASCIMENTO, 2020) que atue de forma paralisante, gerando uma incapacidade de ação e de compromisso com uma postura ativa, reflexiva, transformadora. É preciso encarar de frente o constrangimento e desconforto inerentes à convivência com violências raciais. Para isso, tenho apostado no letramento racial e na constante (e infindável) busca por desaprender e desmantelar práticas racistas que estão presentes na minha formação, para assim, poder fazer parte da construção de ações de reparação histórica.

Muitas foram as vezes em que ouvi de lideranças comunitárias, membros de associações de bairros e moradores de bairros populares negros, relatos sobre como a Universidade era equivocada em suas aproximações, reforçando uma forma extrativista de interagir com os territórios. Essa “forma extrativista” é marcada por um modus operandi da branquitude que se coloca em uma perspectiva de centralidade, e se relaciona com a “outridade” através de

1 Nesse caso, me caracterizo como “agente externa” por não habitar territórios populares e negros de Salvador. No entanto, acho válido comentar que o uso do termo “externo” guarda consigo a complexidade de reiterar fronteiras e limites, especialmente quando usado para caracterizar pessoas da academia. Reforça-se a ideia da Universidade rigidamente pensada enquanto uma instituição que está no “fora”, quando, na realidade, a Universidade é composta por uma multiplicidade de pessoas, opiniões, e linhas de produção de conhecimento, podendo ser muitas coisas. 1. Arquitetura e Urbanismo como prática política | 41

premissas utilitárias. Isto é, a academia se aproxima, colhe informações, digase de passagem, tomando um tempo considerável do cotidiano de pessoas que se dispõe a contribuir com relatos, memórias, ou guianças pelas ruas da cidade, para então produzir artigos, teses e afins que raramente retornam de alguma forma às comunidades.

Ademais, ao lançar olhares sobre esses territórios, a produção hegemônica do conhecimento acadêmico, muitas vezes, também reproduz práticas colonialistas e eurocêntricas ao encarar tais espaços apenas pela perspectiva da pobreza ou da precariedade, reproduzindo uma perspectiva homogeneizante que corrobora para uma história única (ADICHIE, 2019) sobre esses lugares. O mesmo acontece, em grande frequência, nas mídias tradicionais, em que diariamente programas policialescos veiculam informações que estigmatizam e criminalizam os territórios negros e populares, criando uma narrativa que traz como tônica a violência.

A escritora novaiorquina Saidiya Hartman, negando-se a encarar a negritude enquanto um “problema a ser resolvido”, nos apresenta diversas estratégias e possibilidades de construção de pensamento e escrita da história, como o pensamento especulativo, narrativa radical, documentalismo poético, e fabulação crítica (HARTMAN, 2019). Mais do que entrar nas especificidades de cada uma das abordagens citadas, interessa destacar que estas se constituem enquanto formas de improvisar e expandir as narrativas a partir de documentos oficiais, levando em conta limites, omissões, inverdades e “fabricações” que são disseminados numa dita “história oficial”, contada sempre pelos “vencedores”. Falar da complexidade destes territórios, que também são pulsantes em seus fazeres cotidianos e tradicionais, suas práticas culturais atuais e ancestrais de subsistência, moradia, cuidado coletivo, economia solidária, memória, e cultura é fundamental, como forma de combater e disputar as narrativas reducionistas e mesmo violentas que são criadas sobre áreas marginalizadas da cidade.

Nas experiências e práticas de arquitetura e urbanismo que citei, com as quais me alinho, territórios, comunidades e movimentos populares negros, com os quais a academia dialoga e colabora, não são pensados apenas como paisagem, contexto, ou lócus de práticas em si mesmas, mas sim como espaços de produção de conhecimento (FIGUEIREDO et al., 2022).

Encontro da Escola de Verão II Acervo da autora, 2022

IV: Camplo ampliado, campo implicado

Tendo uma rotina de disciplinas que abrangem desde Matemática e Física básicas, até estudo teórico de Estética das Artes, ensino de softwares de desenho técnico e modelagem 3d, passando por discussões de História e Patrimônio, além dos ateliês de projeto, a/o estudante de Arquitetura vivencia um cotidiano de aprendizado essencialmente múltiplo, diversificado e complexo. A ideia de um “campo ampliado” da Arquitetura parece ser inescapável diante de uma inerente inter/trans/multidisciplinaridade que resulta das muitas áreas de conhecimento com as quais essa profissão não só dialoga, mas ancora suas bases para construir sua atuação.

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