Revista de Divulgação Cultural (RDC) nº 93

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Dia e noite.

Finalmente, no terceiro livro, focado no escrever, Raquel se inspira na sintaxe de vida do escaravelho-barata, evocado por Clarice em A Paixão segundo G.H., como emblema da escritura. Nessa última parte, faz uma viagem de vasta erudição por inúmeros poetas e narradores em que o animal aparece não apenas como metáfora, mas como método de vida e de escrita. Suas conclusões apontam que toda existência no mundo é, em última análise, uma biografia que se conta, em referência à ideia do animal autobiográfico de Jacques Derrida. Ou para lembrar Francis Ponge, outra fonte importante do ensaio, tudo que existe além do homem é uma forma de escritura. O capítulo “Morre o autor, nasce a barata” analisa o acontecimento da morte simbólica do autor não só como condição de surgimento da leitura, mas como espaço de abertura para o devir-inumano, gesto no qual ainda sobrevivem os vestígios do escritor. A potência inumana da escritura é compreendida a partir do desencadeamento de devires minoritários que levam o escritor a tornar-se mulher, criança, índio, negro, animal, sempre na direção do menor, do que não tem lugar, nunca na direção do dominante, como analisam os filósofos Deleuze e Guatarri, dois dos muitos teóricos basilares no pensamento da autora. A parte final discute com personalidade o tema do “embate entre a máquina de poder e a máquina literária”, alimentado pela luta entre a doença da dominação, que é um delírio de morte, contra a saúde

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da resistência, que é um delírio de vida, segundo a célebre distinção de Deleuze. Esse embate aparece de modo muito eloquente na análise de “Estado de graça”, texto inclassificável de Clarice Lispector para o Jornal do Brasil, que insinua a oposição radical entre o horror do estado de exceção exercido pela Ditadura Militar e

“Ver, pensar e escrever o outro inumano é postular um pensamento em crise, no qual o homem não é mais a origem e o fim” o estado de graça, ensinado ao homem pelos animais, que conhecem melhor do que ele o prazer de estar vivo ou, no dizer de Clarice, “entram com mais facilidade na graça de viver”. Uma questão ética e política atravessa toda a literatura na percepção do inumano: “A relação de embate entre a máquina antropocêntrica e a máquina de guerra da escrita, destruidora de todas as hierarquias e separações entre os viventes”, como sublinha a autora. Existe, logo escreve é prefaciado pela professora e PHD em educação, Gilka Girardello, que se refere à Raquel como “uma escritora-xamã de pensamento vertiginoso, reconhecendo-a no termo que a

própria autora atribui a Clarice Lispector. A pesquisadora enaltece a fértil interlocução que a obra realiza entre Clarice e o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. “É muito feliz a ida da autora às lendas indígenas, contadas por Clarice à luz do pensamento do antropólogo, que resulta em uma crítica acachapante à cultura ocidental vencedora”. Especialista na temática da infância, Gilka chama a atenção para a ousadia e a coragem da autora, ressaltando a “defesa originalíssima que Raquel faz de uma humanidade fundada em uma comunicação radicalmente alteritária”. O prefácio respalda a reflexão que o livro traz: “Se a humanidade dos seres se localiza na relação de uns com os outros, todas as espécies, todas as criaturas passam a fazer parte da infinita pluralidade humana”. Reforça ainda a crítica contundente da autora contra o senso comum e o vazio perverso do jornalismo comercial contemporâneo, que se afasta cada vez mais dos povos em desaparecimento para se deixar cada vez mais aparelhar pelo poder. Desde que o homem escreve o animal e se inscreve nele, dá a ler uma ordem do fascínio, do medo e da violência, num jogo contraditório entre dominação e encantamento, enfatiza Raquel. Sempre valendo-se do diálogo crítico e criativo com muitos escritores e teóricos, mas evidenciando seu percurso marcadamente autoral, como acentua Gilka, o livro se direciona para um encadeamento do olhar, do pensamento e da gramática do inumano.

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